Processo n.º 376/23.1T8TMR.E1
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Sumário:
1 – O regime estabelecido no
artigo 1406.º, n.º 1, do Código Civil, é aplicável, ex vi artigo 1404.º do mesmo código, à comunhão hereditária, pelo que,
na falta de acordo sobre o uso das coisas que integram a herança, qualquer dos
co-herdeiros pode usá-las, contanto que, ao fazê-lo, respeite o fim a que cada
uma delas se destina e não prive os restantes co-herdeiros do uso a que
igualmente têm direito.
2 – É ilícito o uso de uma
fracção autónoma, por um co-herdeiro, de forma que impeça os restantes de
também o fazerem.
3 – A violação culposa do direito ao uso da fracção de que é titular o co-herdeiro não utilizador é geradora de responsabilidade civil aquiliana, nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.
4 – A questão do uso das coisas que integram a herança não se confunde com a da administração desta.
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Autor/recorrente:
AAA.
Réu/recorrido:
BBB.
Pedidos:
a) Ser o uso que o réu faz do imóvel
considerado ilícito;
b) Ser o réu condenado no pagamento, ao
autor, de uma indemnização, na quantia de € 10.200, correspondente a metade do
valor mensal de € 400, que seria possível obter num arrendamento da fracção
supra identificada, desde Dezembro de 2018;
c) Ser o réu condenado no pagamento das
rendas vincendas até à realização da partilha do imóvel ou até à sua
desocupação.
d) Ser o réu condenado no pagamento de
juros de mora contados desde a citação na presente acção até efectivo e
integral pagamento.
e) Ser o réu condenado a,
alternativamente, no prazo de dois meses a contar do trânsito em julgado da
sentença, celebrar, com o autor, um contrato de arrendamento nos termos dos
artigos 1022.º e seguintes do Código Civil, do qual resulte a renda fixada por
este tribunal e o prazo de pagamento da renda, que deverá corresponder ao
primeiro dia útil do mês a que disser respeito, ou, no mesmo prazo, deixar o
imóvel livre de pessoas e bens.
Sentença recorrida:
Julgou a acção improcedente.
Conclusões do recurso:
a) A decisão recorrida é, salvo o devido
respeito, que aliás é muito, injusta e muito precipitada, tendo partido de
pressupostos errados.
b) Entende o recorrente que as suas
legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da
decisão recorrida.
c) Quando a presente acção foi
instaurada, o aqui recorrente não assumia a qualidade de cabeça-de-casal,
porquanto o despacho que proferiu à sua designação apenas foi proferido, nos
autos de inventário 183/23.1T8TMR, em 13 de Abril de 2023, pelo que não podia,
logicamente, proceder a essa instauração imbuído de uma qualidade que não
detinha.
d) Ao contrário do referido pelo tribunal
a quo, o autor, aqui recorrente,
apresentou, efectivamente, alegações, nos termos e para os efeitos do disposto
no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cfr. “Alegações” com a
Ref.ª 47042264, datadas de 07 de Novembro de 2023.
e) Por outro lado, concluiu o tribunal
de primeira instância sufragar o entendimento “…que “o artigo 1406.º do CC é
inaplicável à situação em apreço porque a natureza da comunhão em que se
consubstancia a herança indivisa é incompatível com o disposto nesta norma.”,
fazendo assim improceder a presente acção e absolvendo o réu dos pedidos.
f) Ora, com todo o respeito que lhe
merece a sentença proferida, o autor, aqui recorrente, não pode deixar de
manifestar a sua veemente discordância com tal conclusão.
g) Pelo que, de igual modo e uma vez
mais, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo na sentença de que se recorre, a utilização por qualquer
herdeiro dos bens da herança em proveito próprio, nas situações em que o cabeça-de-casal
não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, deve
considerar-se sujeita ao regime do artigo 1406.º do Código Civil, face à
ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de
situações.
h) A utilização de um determinado bem da
herança por um dos herdeiros só determina uma privação do uso pelos outros
consortes, para os efeitos do artigo 1406.º do Código Civil, se ela contrariar
a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização.
i) Provou-se nos presentes autos que,
não só que não houve qualquer acordo entre o outro herdeiro, o aqui recorrente,
e o réu sobre a utilização do bem da herança, como o réu decidiu por sua
própria iniciativa ocupar o prédio, ignorando as solicitações que lhe foram
dirigidas no sentido de proceder à entrega das chaves do imóvel ao recorrente,
de forma a que este pudesse também ter acesso ao mesmo, tudo sem qualquer
autorização do (agora) cabeça-de-casal e restante herdeiro, fazendo dele a sua
habitação diária - conforme resulta expressamente da matéria de facto provada,
supra transcrita em 18.
j) Logo, ocorrendo uma ocupação por um
herdeiro de um imóvel pertencente a uma herança, impeditiva do seu uso por
outro herdeiro, o prejuízo causado a este último corresponde à parte do valor
locativo daquela unidade predial no mercado de arrendamento, durante todo o
período em que se verificar tal ocupação, correspondendo essa parcela à quota
desse herdeiro na herança.
k) Teria assim de proceder a acção.
l) Não pode, pois, colher a argumentação
sustentada pelo tribunal a quo na
decisão proferida, uma vez que a vingar o seu entendimento estaria, assim,
legitimada a conduta de qualquer co-herdeiro na utilização exclusiva, não
autorizada, ilícita e indevida de bens da herança, em manifesto favor deste e
prejuízo dos restantes co-herdeiros.
m) Entende o recorrente que a decisão
recorrida viola claramente os artigos 562.º, 564.º, 566.º, 1305.º e 1406.º do
Código Civil.
Questões a decidir:
1 – Uso dos bens da herança até à
partilha;
2 – Verificação dos pressupostos da
responsabilidade civil;
3 – Montante da indemnização.
Factos julgados provados pelo
tribunal a quo:
1 – Em 31 de Julho de 2014, no Hospital
de (…), faleceu, intestada, CCC, cuja última residência habitual foi na Rua (…),
n.º (…), 1.º esquerdo, freguesia de (…), concelho de (…).
2 – Faleceu no estado de viúva de DDD.
3 – Não tendo deixado testamento ou
qualquer outra disposição de sua última vontade, sucederam-lhe, como seus
herdeiros legitimários, o autor, seu filho, e o réu, seu neto.
4 – CCC deixou, como herança, a fracção
designada pela letra D do prédio sito na Rua (…), lote (…), concelho de (…),
descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da União das
Freguesias de (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da
mesma freguesia.
5 – A qual vem sendo habitada pelo réu,
sem que tenha sido efectuado qualquer pagamento ou compensação pela ocupação.
6 – Acrescendo que não foi facultado o
acesso à mesma ao autor, nem o mesmo autorizou tal ocupação.
7 – Esse não consentimento foi
transmitido, através de um contacto telefónico, em Dezembro de 2018, pelo autor
ao réu, sendo que foi também durante essa mesma conversa telefónica que o autor
solicitou as chaves do imóvel ao réu, de forma a ter acesso ao mesmo.
8 – Não obstante, instado para esse
efeito, o réu ignorou ambos os pedidos, que lhe foram feitos pelo autor.
9 – Esse mesmo não consentimento foi
reiterado posteriormente pelo filho do aqui autor, junto do réu.
10 – O que mais, uma vez, foi ignorado
pelo réu.
11 – Essa utilização do imóvel pelo réu
mantém-se desde a data do óbito de CCC e ainda hoje se verifica.
12 – Com este comportamento do réu,
designadamente, o uso indevido do imóvel e à revelia do outro herdeiro, o autor
foi impedido de, também, utilizar esse imóvel.
13 – Por forma a proceder-se à partilha
do imóvel, correm termos, neste Juízo Local Cível, os autos de inventário sob o
processo n.º 183/23.1T8TMR, que se encontra pendente.
14 – Considerando que o imóvel se
encontra junto a uma das principais avenidas da cidade de (…) e relevando a sua
tipologia e área, seria possível obter num arrendamento do imóvel supra
identificado, um rendimento mínimo mensal de € 400.
15 – O autor foi nomeado como
cabeça-de-casal no processo referido em 13.
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1 – Uso dos bens da
herança até à partilha:
Os traços essenciais do
litígio são os seguintes:
- O recorrente e o recorrido são os
únicos herdeiros;
- Integra a herança uma fracção
autónoma;
- O recorrido reside na fracção, sem
pagar qualquer contrapartida, desde a data da abertura da sucessão;
- O recorrente foi impedido de utilizar
a fracção e opõe-se a que o recorrido nela resida.
O recorrente sustenta que a
utilização da fracção pelo recorrido, feita de molde a privá-lo a si próprio de
também a utilizar, é ilícita e lhe confere o direito de ser indemnizado. Em
abono desta tese, invoca o disposto no artigo 1406.º, n.º 1, do Código Civil
(diploma ao qual pertencem todas as normas doravante referenciadas), segundo o
qual, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos
comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim
diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do
uso a que igualmente têm direito. O recorrente considera que esta norma deve
ser aplicada à comunhão hereditária ex vi
artigo 1404.º.
É diverso o entendimento do
tribunal a quo.
Este começa por salientar,
acertadamente, que o recorrente propôs a acção na qualidade de herdeiro e não na
de cabeça-de-casal.
Considera, em seguida, que,
a existir uma utilização ilícita da fracção por parte do recorrido, seria a
herança, e não o recorrente (simples herdeiro), o titular de um eventual
direito a indemnização daí resultante, o que, logo à partida, determinaria a
improcedência da acção.
Considera o tribunal a quo, por outro lado, que o disposto no
artigo 1406.º é inaplicável à comunhão hereditária porquanto é incompatível com
a natureza desta. Cita, a esse propósito, o voto de vencida exarado no acórdão
do Supremo Tribunal da Justiça de 21.04.2022, proferido no processo n.º
2691/16.1T8CSC.L1.S1.
As objecções feitas, no
referido voto de vencido, à aplicabilidade do artigo 1406.º à comunhão
hereditária, são, resumidamente, as seguintes:
- A herança indivisa constitui uma
comunhão de tipo germânico ou em mão comum, na qual a propriedade de cada um
dos bens não se reparte por quotas ideais, antes tendo, cada um dos titulares,
apenas direito a uma quota de liquidação aquando da partilha;
- Daí que, havendo dois herdeiros, não seja
correcto afirmar-se que cada um deles tem direito a metade do prédio que faz
parte da herança;
- Logo, é impossível repartir o uso do
prédio pelos referidos herdeiros em função da quota de cada um e considerar que, na falta de acordo, o herdeiro
utilizador tem a obrigação de compensar, nessa medida, o herdeiro não
utilizador.
É, naturalmente, diverso o
entendimento que fez vencimento no referido acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, ao qual o recorrente adere. No que concerne, especificamente, à
questão da aplicabilidade do disposto no artigo 1406.º, n.º 1, à comunhão
hereditária, a sua fundamentação é, resumidamente, a seguinte:
- A questão do uso de bens da herança,
em proveito próprio, por um dos herdeiros, não se mostra especificamente
prevista e regulada pelas regras do direito sucessório, pelo que deve
considerar-se aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo
1406.º, ex vi artigo 1404.º;
- A isso não obsta o entendimento de
que, nas situações de comunhão em mão comum, designadamente na comunhão
sucessória, os direitos dos contitulares não incidem sobre cada um dos
elementos que constituem o património colectivo, mas sim sobre todo ele, como
um todo unitário;
- A posse do autor da sucessão sobre os
bens da herança continua nos seus sucessores, nos termos dos artigos 1225.º e
2050.º;
- Apesar de nos encontrarmos perante uma
posse meramente jurídica, porque não se exige a prática de actos materiais,
qualquer dos co-herdeiros, além da acção de petição da herança (artigos 2075.º
e seguintes), pode utilizar os meios de defesa da posse relativamente a cada um
dos bens da herança (artigos 1276.º e seguintes), inclusivamente contra o
cabeça-de-casal que não se encontre no exercício dos poderes de administração
(artigo 2088.º, n.º 2);
- Pelo que o artigo 1406.º é
subsidiariamente aplicável a uma situação de composse, a qual se verifica
sempre que há pluralidade de herdeiros.
À argumentação no sentido da
verificação de uma situação de composse por parte dos herdeiros, responde-se,
no voto de vencida, em termos que assim se resumem:
- Seria possível pensar na defesa
judicial da posse e equacionar a hipótese de uma acção possessória (artigo
1277.º), mais precisamente de uma acção de restituição (artigo 1278.º),
destinada a obter a recuperação da posse efectiva e pôr fim ao esbulho, o que
permitiria, ainda, ao possuidor restituído, o direito a ser indemnizado dos
prejuízos causados pelo esbulho, nos termos do artigo 1284.º;
- Porém, a acção em apreciação não era
uma acção possessória; ainda que o fosse, sempre estaria sujeita ao regime das
acções possessórias, designadamente à regra do artigo 1284.º, do qual resulta
que o possuidor perturbado ou esbulhado não pode pedir a indemnização dos
prejuízos sofridos se não pedir, simultaneamente, a manutenção ou a restituição
da posse, e a procedência daquele pedido dependerá da procedência deste último;
- Por outro lado, a posse é exercida nos
mesmos termos do direito real, pelo que a aplicação do artigo 1406.º depara com
os mesmos obstáculos apontados à propriedade colectiva;
- A composse pode existir em relação a
qualquer direito real susceptível de posse; se o direito real for divisível
(propriedade, usufruto), também a composse o será; se o direito real for
indivisível (servidão, enfiteuse), os compossuidores sê-lo-ão in solidum: haverá como que uma
titularidade colectiva da posse e não uma posse de quotas ideais do direito
possuído;
- O domínio e a posse sobre os bens em
concreto da herança só se efectivam após a realização da partilha; a herança
constitui um património autónomo, nada mais tendo os herdeiros que o direito a
uma quota-parte do património hereditário;
- A posse da herança indivisa é causal,
pois o co-herdeiro compossuidor é, simultaneamente, contitular do direito a que
a posse corresponde;
- Logo, a invocação da composse pouco ou
nada acrescenta para o efeito da protecção do interesse do co-herdeiro;
- Seja como for, o acórdão não
fundamenta a conclusão de que a existência de uma situação de composse gera, na
esfera jurídica do herdeiro não utilizador, o direito a uma indemnização.
No voto de vencida, considera-se
que o meio jurisdicional apropriado para a tutela do interesse do co-herdeiro
que não utilizou o bem da herança é uma acção de prestação de contas, a propor
contra o co-herdeiro utilizador daquele bem; este deveria ser demandado na
qualidade de cabeça-de-casal, com vista ao apuramento das contas da
administração da herança.
Foi neste quadro que se
desenvolveu a discussão da causa, como resulta da petição inicial e das
alegações que o recorrente apresentou antes da prolação da sentença recorrida,
bem como desta última.
Analisemos a questão.
Com a morte do autor da
sucessão e a consequente abertura desta, coloca-se a questão da utilização das
coisas que integram a herança até ao momento em que o direito de propriedade
(ou outro direito real de gozo que não se extinga por efeito da morte do
titular) sobre cada uma delas ingresse, por efeito da partilha, no património
de cada um dos herdeiros. Esse período é, não raro, muito longo, seja devido à
inércia dos herdeiros no que concerne à realização da partilha, seja devido ao
arrastamento de negociações entre os interessados nesta, seja ainda devido à
demora de processo de inventário que seja instaurado em face da ausência de
acordo sobre a partilha. Facilmente decorrem vários anos entre a abertura da
sucessão e a aquisição dos singulares bens da herança por cada um dos
herdeiros.
Daí que a regulação da
utilização das coisas que integram a herança constitua um tema da maior
importância.
Há coisas que podem
permanecer sem utilização durante longos períodos sem que sejam postos em causa
interesses relevantes dos co-herdeiros, quer porque não visam satisfazer
necessidades prementes destes, quer porque aquela não utilização não afecta a
sua conservação. É o caso de objectos preciosos ou de uma colecção de quadros
ou de moedas, por exemplo.
Outras coisas existem cuja
utilização corresponde a necessidades prementes dos herdeiros, ou de alguns
deles. A sua não utilização redundaria, objectivamente, numa perda económica,
pois, de um lado, teríamos bens não aproveitados e, do outro, necessidades de
herdeiros por satisfazer. O Direito deve visar o melhor aproveitamento possível
das coisas para a satisfação de necessidades humanas e não tornar-se um
obstáculo a esse aproveitamento e, por essa via, uma fonte de desperdício de
recursos, por natureza escassos.
Mais, há coisas que se
deterioram se não forem utilizadas regularmente, como é o caso da generalidade
das máquinas, nomeadamente de veículos. E há coisas que, se não forem
utilizadas de forma permanente, deixam, pura e simplesmente, de existir
enquanto tais, como é o caso de uma exploração agrícola ou agro-pecuária, ou de
um estabelecimento comercial ou industrial.
Note-se que a questão do uso
das coisas que integram a herança não se confunde com a da administração desta.
O artigo 2088.º, n.º 1,
estabelece que o cabeça-de-casal pode pedir, aos herdeiros ou a terceiro, a
entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar,
contra eles, de acções possessórias, a fim de ser mantido na posse das coisas
sujeitas à sua gestão ou a ela restituído. Desta norma não resulta, porém, que
todos os bens que integram a herança tenham de ser entregues ao
cabeça-de-casal. Muito menos que essa entrega tenha como finalidade a sua
utilização exclusiva pelo cabeça-de-casal. Este é um simples administrador da
herança (artigo 2079.º) e não, sendo herdeiro (como é regra – artigo 2080.º),
um herdeiro com privilégios relativos ao uso das coisas que integram a herança[1]. Por isso, «Essencial é que, como aliás se depreende do
próprio texto da norma, a entrega material dos bens seja realmente necessária
ao exercício da gestão que os artigos 2079.º e 2087.º confiam ao
cabeça-de-casal como administrador da herança.»[2]
Em suma, a regulação do uso
das coisas que integram a herança constitui uma questão que não pode ser
desprezada, impondo-se encontrar um regime legal que salvaguarde devidamente os
interesses em jogo. Foi isso que se procurou fazer no acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça que vimos referenciando, na senda do acórdão do mesmo
tribunal de 15.02.2022 (processo n.º 929/14.9TBAMT.P2.S1), ao convocar, com
apoio no disposto no artigo 1404.º, o regime estabelecido no artigo 1406.º, n.º
1. É tarefa a que o aplicador do Direito não pode esquivar-se. Daí que, se se
considerar inaplicável o regime estabelecido no artigo 1406.º, n.º 1, tenha de
se encontrar outro regime jurídico para aquele uso. Isto, claro, partindo do
princípio de que são inaceitáveis, quer a solução de vedar, pura e
simplesmente, a utilização das coisas que integram a herança, pelos co-herdeiros,
até à partilha, quer a de reconhecer, como utilizador exclusivo legítimo de
cada uma daquelas coisas, o co-herdeiro que tome a iniciativa de o fazer,
unilateralmente, antes dos restantes.
Nesta ordem de ideias, o
primeiro reparo a fazer à sentença recorrida é a de, à semelhança do voto de
vencida em que se inspirou, após afastar a aplicabilidade do regime
estabelecido no artigo 1406.º, n.º 1, não especificar que regime jurídico considera
aplicável ao uso das coisas que integram a comunhão hereditária.
Como acima referimos, no
voto de vencida, considera-se que o meio jurisdicional apropriado para a tutela
do interesse da aí autora é uma acção de prestação de contas, a propor contra o
co-herdeiro utilizador da coisa, na qualidade de cabeça-de-casal, com vista ao
apuramento das contas da administração da herança. Todavia, isso é questão
diversa. Não se indica qual é o regime que se considera aplicável ao uso das
coisas que integram a comunhão hereditária.
Na sentença recorrida, ainda
se faz menos. Afasta-se a aplicabilidade do regime estabelecido no artigo
1406.º, n.º 1, mas não se indica, nem qual é o regime que se considera
aplicável ao uso das coisas que integram a comunhão hereditária, nem qual seria
o meio jurisdicional apropriado para a tutela do interesse do aqui autor e
recorrente, sendo certo que a solução proposta no voto de vencida não é
aproveitável neste processo, pois o réu e recorrido nunca foi cabeça-de-casal.
Em vez disso, conclui-se, na
sentença recorrida, que, «não estando
ainda a herança partilhada, não é possível atribuir metade do direito de uso do
imóvel a cada um dos herdeiros e considerar que, na falta de acordo, o herdeiro
utilizador tem a obrigação de compensar, nessa medida, o herdeiro não
utilizador, termos em que, mais não resta do que julgar a presente ação improcedente».
Considera-se, portanto, que, na falta de acordo, o herdeiro utilizador não tem
a obrigação de compensar o herdeiro não utilizador. Nem na proporção indicada
(metade do valor de uso), nem em qualquer outra, aparentemente.
Ou seja, cairíamos, ou na
solução de vedar o uso das coisas que integram a herança pelos co-herdeiros,
salvo, eventualmente, acordo de todos eles sobre os termos desse uso, ou na
solução de reconhecer, como utilizador legítimo, o co-herdeiro que primeiro
iniciasse a utilização de determinada coisa e privasse os restantes de fazerem
outro tanto. Como anteriormente referimos, qualquer destas soluções é de
afastar.
O reparo, que acabamos de
fazer, à ausência de indicação de um regime legal de uso das coisas que
integram a herança pelos co-herdeiros alternativo àquele que o artigo 1406.º,
n.º 1, estabelece, não resolve a questão com que nos defrontamos. A aplicabilidade
do regime do artigo 1406.º, n.º 1, à comunhão hereditária, tem de ser
demonstrada.
O primeiro dado a ter em
conta é a ausência de regulamentação específica sobre o uso, pelos co-herdeiros,
das coisas que integram a herança. Em vez disso, temos o artigo 1404.º, que
manda aplicar as regras da compropriedade, com as necessárias adaptações, à
comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente
para cada um deles. Saliente-se: independentemente da natureza da comunhão. Não
se restringe a aplicabilidade das regras da compropriedade às hipóteses de
comunhão romana, com exclusão da comunhão em mão comum.
Sendo assim, o regime do
artigo 1406.º, n.º 1, só não será aplicável à comunhão hereditária se se
demonstrar a sua incompatibilidade com a natureza desta. A redacção desta norma
é a seguinte: «Na falta de acordo sobre o
uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela,
contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina
e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito».
Não divisamos qualquer
obstáculo à aplicabilidade desta norma ao uso das coisas que integram a
comunhão hereditária pelos co-herdeiros. Se houver acordo entre estes, valerá
esse acordo. Na falta dele, qualquer dos co-herdeiros terá o direito de usar as
coisas que integram a comunhão hereditária, desde que respeite o fim a que cada
uma delas se destina e não prive os restantes co-herdeiros da possibilidade de fazerem
o mesmo.
A circunstância de os
co-herdeiros não serem titulares de quotas sobre cada um dos bens que
constituem a herança, mas apenas sobre a globalidade desta e para valerem no
momento da partilha, é, para este efeito, irrelevante.
Mais, esta característica da
comunhão hereditária até a torna mais harmoniosa com o regime do artigo 1406.º,
n.º 1, que a própria compropriedade. Nesta, ao usar a totalidade da coisa, o
comproprietário vai além das forças da sua quota. Daí a necessidade do n.º 2 do
mesmo artigo, que esclarece que o uso da coisa comum por um dos
comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à
dele, salvo se tiver havido inversão do título.
Na comunhão hereditária, os
co-herdeiros têm um direito unitário sobre cada uma das coisas que integram a
herança, pelo que, quando um deles usa uma dessas coisas, não se verifica a
desconformidade entre esse uso e o direito de que ele é titular sobre a mesma
coisa. Daí que a aplicabilidade do n.º 2 à comunhão hereditária seja
desnecessária. Dada a natureza unitária do direito dos co-herdeiros sobre cada
uma das coisas que integram a herança, em caso algum o uso de uma dessas coisas
por um deles poderia conduzir à usucapião, a menos que houvesse inversão do
título da posse.
Concluímos, assim, que o
regime do artigo 1406.º, n.º 1, é aplicável, ex vi artigo 1404.º, à comunhão hereditária, pelo que, na falta de
acordo sobre o uso das coisas que integram a herança, qualquer dos co-herdeiros
pode usá-las, contanto que, ao fazê-lo, respeite o fim a que cada uma delas se
destina e não prive os restantes co-herdeiros do uso a que igualmente têm
direito.
Daí que, quer o recorrente,
quer o recorrido, sejam titulares de um direito a usar a fracção dos autos,
direito esse decorrente da sua qualidade de herdeiros.
Não se trata aqui de cada um
deles ter direito a metade da fracção, ou metade do direito de uso desta, como
é referido na sentença recorrida. Por aplicação do regime do artigo 1406.º, n.º
1, quer o recorrente, quer o recorrido, por serem herdeiros, são titulares de
um direito de uso da fracção, nos termos ali estabelecidos. Assim acontecerá
até à partilha.
2 – Verificação dos
pressupostos da responsabilidade civil:
A pretensão indemnizatória
do recorrente funda-se em responsabilidade civil aquiliana. Cumpre verificar se
se verificam os pressupostos desta, estabelecidos no artigo 483.º, n.º 1.
O recorrido reside na
fracção, sem pagar qualquer contrapartida, desde a data da abertura da
sucessão. O recorrente, por seu turno, tem sido impedido de utilizar a fracção
e opõe-se a que o recorrido nela resida.
Vimos no ponto anterior que,
quer o recorrente, quer o recorrido, por serem herdeiros, são titulares, cada
um deles, de um direito de uso da fracção.
Este direito de uso não
decorre da posse que eles tenham sobre a fracção, pelo que é inútil entrar na
discussão sobre se os herdeiros são titulares dessa posse e em que termos.
O mesmo direito de uso
também não integra o conteúdo de qualquer direito real de gozo de que
recorrente e recorrido sejam titulares sobre a fracção. Nenhum deles é titular
de um direito dessa natureza sobre qualquer das coisas que integram a herança.
A fonte de cada um dos
direitos de uso da fracção é a qualidade de herdeiro que, quer o recorrente,
quer o recorrido, têm, conjugada com o disposto nos artigos 1404.º e 1406.º,
n.º 1. O recorrente é titular de um direito de uso da fracção e o recorrido é
titular de outro direito de uso da fracção.
Os termos em que o recorrido
vem exercendo o seu direito de uso da fracção desde a data da abertura da
sucessão violam o disposto no artigo 1406.º, n.º 1, pois impedem o recorrente
de, também ele, exercer o seu direito de uso da fracção. Daí que se verifique o
primeiro pressuposto da responsabilidade civil aquiliana: a prática de um acto
ilícito, por violação de um direito alheio.
O recorrente, não só nunca
autorizou o recorrido a usar a fracção em exclusividade, como lhe comunicou, em
Dezembro de 2018, que a isso se opunha. Nessa ocasião, o recorrente solicitou,
ao recorrido, que este lhe entregasse as chaves da fracção, de forma a ter
acesso à mesma, pedido esse que o segundo não satisfez. Em face disto,
concluímos que o recorrido sabe que está a violar o direito do recorrente ao
uso da fracção e, não obstante, persiste nessa conduta. Verifica-se, pois, o
pressuposto da culpa, na modalidade de dolo.
Em consequência da actuação
do recorrido, o recorrente encontra-se privado do uso da fracção desde
31.07.2014, data da abertura da sucessão. Contudo, não está provado que o
recorrente tenha interpelado o recorrido para cessar o seu uso exclusivo e
permitir que, ele próprio, também usasse a fracção, antes de Dezembro de 2018.
Sendo assim, é lícito concluir que apenas desde esta última data o recorrente
vem sofrendo danos em consequência da privação do uso da fracção.
Encontram-se, assim,
reunidos os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana: acto ilícito e
culposo, dano e nexo de causalidade entre aquele e este. O consequente direito
a uma indemnização surgiu na esfera jurídica do recorrente, titular do direito
violado.
3 – Montante da
indemnização:
Os danos que, para o
recorrente, resultam do facto de o recorrido estar a privá-lo de usar a fracção
desde Dezembro de 2018, não são susceptíveis de uma avaliação em função do
critério da diferença entre a sua efectiva situação patrimonial e aquela em que
ele se encontraria se tal privação não ocorresse, estabelecido, como regra, no
artigo 566.º, n.º 2. Em face disso, é aplicável o disposto no n.º 3 do mesmo
artigo, de acordo com o qual o tribunal julgará equitativamente dentro dos
limites que tiver por provados.
Está provado que, dando a
fracção de arrendamento, seria possível obter um rendimento mínimo mensal de €
400. Mostra-se conforme com o critério de equidade estabelecido no artigo
566.º, n.º 3, calcular a perda que o recorrente sofreu em consequência de o
recorrido o ter privado do uso da fracção desde Dezembro de 2018 em metade
daquele valor mensal de € 400, ou seja, em € 200 por cada mês de duração dessa
situação. Sendo dois os herdeiros, um uso equitativo da fracção – fosse em
regime de coabitação, fosse para cada um deles a utilizar em períodos
pré-determinados, fosse, simplesmente, para depósito de bens pessoais – traduzir-se-ia
numa vantagem patrimonial avaliável em € 200 por mês para cada um deles. Tendo
o recorrido privado ilícita e culposamente o recorrente desta vantagem, deverá
ser no referido montante mensal de € 200 a indemnização que terá de lhe pagar.
Tal indemnização apenas deixará de ser devida a partir do momento em que o
recorrido desocupe a fracção ou, quando menos, permita que o recorrente a esta
aceda e também posse a usá-la, entregando-lhe uma cópia das respectivas chaves.
Não se apurou em que dia do
mês de Dezembro de 2018 o recorrente contactou o recorrido no sentido de lhe
transmitir a sua oposição a que ele usasse em exclusivo a fracção e lhe
solicitou as chaves desta para, também ele, ter acesso à mesma. Consequentemente,
o primeiro mês relativamente ao qual existe o direito de indemnização do
recorrente é o de Janeiro de 2019.
Sobre o montante
indemnizatório acumulado até à data da citação, são devidos, pelo recorrido,
juros de mora, à taxa supletiva legal, desde essa data até integral pagamento –
artigos 805.º, n.º 3, e 806.º, n.ºs 1 e 2.
Sobre o montante
indemnizatório que for devido pela ocupação ilícita da fracção a partir da data
da citação, são devidos juros de mora, à taxa supletiva legal, desde o último
dia do mês a que respeitar cada parcela de € 200 até integral pagamento –
artigos 564.º, n.º 2, 805.º, n.º 2, al. b), e 806.º, n.ºs 1 e 2.
Em face da procedência dos
pedidos de condenação do recorrido no pagamento de uma indemnização e dos
respectivos juros de mora, fica prejudicada a apreciação do pedido de condenação
do mesmo a celebrar um contrato de arrendamento com o recorrente.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e, julgando-se a
acção totalmente procedente:
- Condena-se o recorrido a pagar, ao
recorrente, uma indemnização, à razão de € 200 (duzentos euros) por mês, desde
Janeiro de 2019, inclusive, até ao momento em que o recorrido desocupe a
fracção ou, quando menos, permita que o recorrente a esta aceda e também passe
a usá-la, entregando-lhe uma cópia das respectivas chaves;
- Condena-se o recorrido a pagar, ao
recorrente, juros de mora, à taxa supletiva legal, sobre o montante
indemnizatório acumulado até à data da citação, desde essa data até integral
pagamento;
- Condena-se o recorrido a pagar, ao
recorrente, pela ocupação ilícita da fracção a partir da data da citação, juros
de mora, à taxa supletiva legal, desde o último dia do mês a que respeitar cada
parcela de € 200 até integral pagamento.
Custas a cargo do recorrido.
Notifique.
*
Évora,
11.04.2024
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª
adjunta)
(2.ª adjunta)
[1] O acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 21.04.2022, que vimos referindo, chama muito justamente a atenção
para este aspecto, aí se afirmando que «a competência do cabeça de casal para
administrar os bens da herança atribui-lhe os poderes necessários para a
prática de atos e de negócios jurídicos de conservação e frutificação normal
dos bens administrados […], neles não se incluindo, seguramente, a utilização dos
bens da herança para seu exclusivo proveito, designadamente a utilização de um
imóvel da herança para nele habitar com a sua família.»
[2]
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código
Civil Anotado, volume VI, Coimbra Editora, 1998, página 148, em anotação ao
artigo 2088.º.