Processo
n.º 7505/15.7T8STB.E1
*
Sumário:
1 – A
prolação de saneador-sentença, nos termos do artigo 595.º, n.º 1, al. b), do
CPC, tem carácter excepcional, só devendo ter lugar se, logo nessa fase, o
processo contiver todos os elementos que possibilitem a tomada de decisão de
acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis.
2 – Em
acção de reivindicação na qual uma das rés pede, em reconvenção, a sua declaração como
proprietária do prédio reivindicado com fundamento em aquisição por usucapião,
essa ré tem o ónus de alegar os factos que integram, quer o corpus, quer o animus da posse nos termos daquele direito real.
3 – Se os factos alegados pela
referida ré na contestação/reconvenção não configuram o animus da posse nos termos do direito de propriedade e, por causa
disso, é, desde logo, evidente que, de acordo com qualquer das soluções
jurídicas plausíveis, terá de proceder a acção e de improceder a reconvenção,
sem necessidade de mais provas, deverá ser proferido saneador-sentença em
conformidade.
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Relatório
AA,
BB, CC, DD e EE propuseram
a presente acção declarativa, com processo comum, contra FF, GG e incertos,
estes últimos representados pelo Ministério Público, pedindo:
- A sua declaração como únicos e
legítimos proprietários do prédio urbano sito em (…), Setúbal, descrito na
Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…), em virtude de o terem adquirido
por sucessão hereditária;
- A condenação dos réus a
reconhecerem a propriedade dos autores sobre o prédio por eles ocupado;
- A condenação dos réus a
absterem-se de qualquer acto que prejudique os direitos de propriedade sobre o
referido prédio;
- A condenação dos réus a
desocuparem o referido prédio e a removerem, à sua custa, todos os móveis e
utensílios que no mesmo se encontrarem e as construções nele implantadas.
A ré FF contestou, pugnando pela
improcedência da acção. Em reconvenção, a mesma ré pediu a sua declaração como
legítima proprietária do prédio em causa, por o ter adquirido por usucapião.
Os autores replicaram, sustentando
a inadmissibilidade legal e, subsidiariamente, a improcedência da reconvenção.
Realizou-se audiência prévia, na
qual foi proferido saneador-sentença que, julgando a acção procedente, por
provada, declarou que os autores são donos do prédio dos autos e condenou os
réus a restituírem o mesmo prédio livre e devoluto, abstendo-se da prática de
actos que perturbem o direito daqueles. A sentença julgou ainda improcedente a
reconvenção.
A ré FF recorreu do saneador-sentença,
tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Vem
o presente recurso interposto do saneador-sentença proferido em 2 de Junho de
2017, que julgou procedente a acção e julgou improcedente a reconvenção
deduzida pela ré FF.
2.
Como se vê, foi tal saneador-sentença proferido com continuação da audiência prévia (iniciada em 28 de Abril de 2017),
com a finalidade constante do art.º 591º, nº 1 alínea b) do NCPC, uma vez que
se pretendia conhecer de imediato do mérito da causa.
3. É única, e ademais entende-se simples, a questão
ora submetida à preclara apreciação da Vossas Senhorias. No caso, verificou-se
ou não o imperioso pressuposto/requisito que permitisse o conhecimento imediato
do mérito da causa?
4.
Dispõe o sobredito preceito que o despacho saneador destina-se a: “Conhecer
imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem
necessidades de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos
deduzidos ou de alguma excepção peremptória.”
5. No caso, com a prolação da sentença
recorrida verificou-se a apreciação total dos pedidos dos autores e da
reconvinte, que foram considerados procedente e improcedente, respectivamente,
com claríssima violação daquele
indispensável requisito/pressuposto, o
de que o estado do processo o permitisse, sem necessidade de mais provas.
6. No caso, o estado do processo não o permitia,
resplandecendo a absoluta necessidade de mais provas.
7.
Como refulge na contestação e reconvenção, de 20/11/15, a ré FF, contestou e reconveio.
8.
Isto é, não só contestou factos alegados pelos autores (vg. art.ºs 14º a19º,
37º, 38º, 41º e 42º da contestação), como invocou factos (vg. art.ºs 20º a 22º,
24º a 26º, 28º, 33º e 35º) que fundamentavam o seu pedido reconvencional de ser declarada legítima proprietária do
prédio, adquirindo por usucapião,
por posse pacífica, pública e de boa-fé!
9. A
questão central aprecianda era a de qualificar
a posse do prédio pela
reconvinte, a partir de 1999 e oficialmente por ser notícia pública e
documentada, desde o mês de Outubro de 2000, como de má-fé ou de boa-fé.
10. Através da indispensável produção de prova em
sede própria de audiência de julgamento, resultaria provada e não provada a
factualidade que permitiria uma ou outra conclusão.
11. A posse não titulada constitui
pacificamente presunção ilidível,
mera presunção juris tantum, pelo
que, logo alegou factualidade diversa, e bastante, capaz de, a resultar como
provada em audiência de discussão e julgamento, como era seu ónus, ilidir tal
presunção.
12. Isto é, incontestavelmente, resultaria da prova
documental e testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, a
conclusiva qualificação da posse como de má-fé ou de boa-fé, questão crucial
para a precedência da acção ou da reconvenção.
13. Reafirma-se que não estava de todo verificado o
pressuposto/requisito imperioso que tornasse admissível o conhecimento do
mérito no saneador, como infelizmente foi.
14.
Como é preclara e judiciosa Jurisprudência:
- “I A admissibilidade do conhecimento do mérito
no saneador, está condicionada à existência no processo de todos os elementos
para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis do direito
e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa. II. Se uma dessas soluções
impuser prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados,
não pode proferir no saneador decisão sobre o mérito da causa (Ac. da
Relação de Lisboa de 14/12/2006 – Proc. 9662/2006-6.dgsi.net)”.
15. E,
exemplarmente inexcedível
- “ I
Nas decisões que conheçam do mérito da causa, proferidas em sede de despacho
saneador, uma vez que ainda não houve lugar a um juízo sobre a demonstração da
veracidade dos factos alegados que se encontram controvertidos, por não ter
havido oportunidade de produzir prova sobre eles, não é possível indicar-se os
factos que não se provaram.
II – A
possibilidade de proferir uma decisão de mérito nessa fase baseia-se na circunstância
da matéria de facto relevante para a decisão da causa já se encontrar definida
ao findar a fase de apresentação de articulados, pelo que, nesses casos, para
que a fundamentação de facto esteja completa, é suficiente indicar-se os factos
que integram essa matéria.
III – Na altura do despacho saneador os factos que
podem ser considerados na decisão de mérito, além dos factos notórios e
daqueles que o juiz tem conhecimento em virtude das suas funções, são aqueles
que resultam de confissão judicial, de acordo expresso ou tático das partes nos
articulados, do funcionamento de presunção legal inilidível, ou de documento
com força probatória bastante.
IV – A
demonstração desses factos não resulta do exercício da livre apreciação da prova
pelo julgador, mas sim do funcionamento de disposições legais que constituem um
justificado resíduo do sistema da prova legal, pelo que nesta fase não tem
lugar uma análise crítica das provas produzidas, nem a especificação dos fundamentos
que foram decisivos para a convicção do julgador, uma vez que a prova não
resulta da formação de uma convicção, mas da aplicação de disposições legais,
podendo apenas ser útil para a verificação da correcção da sua aplicação ao
caso a indicação donde resultou a prova da matéria de facto que fundamentou a
decisão de mérito.
(Ac.do
Tribunal da Relação de Coimbra de 16/09/2014 – Proc. 1655/10.3TBVNO.C1, www.dgsi.pt).
16. Isto é, a posse não titulada presume-se de
má-fé. E tal presunção é ilidível. E tendo a Reconvinte alegado factos que, a
resultarem provados em audiência de discussão e julgamento, demonstrassem que o
possuidor ignorava, ao adquirir a posse, que lesava o direito de outrem, e
portanto a adquiriu de boa fé, assim ilidindo aquela presunção, não pode o juiz
da causa transformar discricionariamente uma presunção ilidível em presunção
inilidível juris et de jure,
proferindo no saneador decisão sobre o mérito da causa.
Termos em que, pelas razões e fundamentos
sumariamente expostos supra, deve ser dado provimento ao presente recurso,
anulando-se a decisão recorrida por não se verificar o pressuposto/requisito da
admissibilidade do conhecimento do mérito da causa enunciado no art.º 595º nº 1
alínea b) do NCPC, em conformidade se ordenando o prosseguimento do processo,
com a realização da indispensável audiência de discussão e julgamento, assim
fazendo V. Exas. inteira JUSTIÇA!
Os
recorridos contra-alegaram, formulando as seguintes conclusões:
A) No
caso em apreço, os elementos factuais e documentais coligidos permitem,
indubitavelmente, uma imediata decisão do mérito da causa, inexistindo
quaisquer factos controvertidos juridicamente relevantes para a decisão da
causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito – cfr. o
artigo 510.º, n.º 1, do CPC;
B) Da
análise dos articulados apresentados pelas partes, resulta inequívoco que a
actuação da recorrente é desprovida de animus
possidendi;
C) A
própria recorrente, intitulando-se de “ocupa”
(cfr. artigo 36.º da contestação apresentada), confessa comportamentos,
porventura, configuráveis como verdadeiras apropriações de propriedades alheias
– tal como no caso em apreço;
D) O
movimento anárquico integrado pela recorrente é, inequivocamente, incompatível
com uma eventual intenção de a mesma se comportar como titular de um direito
real (animus), pois o próprio
conceito de propriedade é inconciliável com o anarquismo;
E)
Sendo inequívoco que bem andou o tribunal a
quo ao decidir imediatamente sobre o pedido, pois os presentes autos
impunham uma decisão imediata de mérito, nos termos do disposto no artigo
510.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por ser manifesta a inexistência de uma
situação de posse efectiva por parte da recorrente (nos termos do disposto no
artigo 1251.º do Código Civil), pois, no caso em apreço, o exercício de poderes
de facto sobre o imóvel objecto dos presentes autos é desprovido de animus;
F) Ao
contrário do alegado pela recorrente na alegação apresentada, seria sempre
irrelevante a qualificação da sua posse (se de má-fé ou de boa-fé), pois, antes
de mais, a situação descrita nos presentes autos nem sequer se reconduz a um
caso de posse e, como tal, não é idónea a produzir os efeitos por aquela
almejados, nomeadamente a aquisição da propriedade por via da usucapião;
G) O
entendimento do tribunal a quo, ao
considerar que o caso objecto dos presentes autos não pode ser reconduzido a
uma situação de posse, torna desnecessária a apreciação das características da
posse porque, em bom rigor, considera-se nem sequer existir posse efectiva por
parte da recorrente;
H) Do
teor das alegações apresentadas pela recorrente não resulta qualquer argumento
que ponha em causa a inexistência de uma situação de posse efectiva;
I) A
recorrente olvidou que seria essencial demonstrar o animus e, consequentemente, que o caso em apreço se poderia
reconduzir a uma situação de posse, de acordo com o disposto no artigo 1251.º
do Código Civil;
J)
Assim, não logrou a recorrente pôr em causa os fundamentos exarados no douto
despacho saneador-sentença recorrido, defendendo a impossibilidade de
conhecimento imediato do mérito da causa, por razões que pressuponham algo que
não resultou demonstrado nos presentes autos – a existência de animus e consequente posse efectiva;
K)
Ainda assim, sempre seria por demais evidente que uma eventual “posse” da
recorrente só poderia qualificar-se como sendo de má-fé, por ser inaceitável
que aquela desconhecesse que lesava direitos de outrem;
L) O
que significaria que, ainda assim, a eventual posse da recorrente seria sempre
insusceptível de possibilitar a aquisição da propriedade por via do instituto
da usucapião (porque decorreram menos de 20 anos desde o momento em que a
recorrente ocupou o imóvel);
Nestes
termos e nos mais de direito, com o suprimento de Vossas Excelências, deve ser
negado provimento ao presente recurso e, em consequência, confirmar-se a
vigência na ordem jurídica da decisão recorrida, com as legais consequências,
assim se fazendo Justiça.
O
recurso foi admitido.
Objecto
do recurso
Tendo
em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e
delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das
questões cujo conhecimento oficioso se imponha, a única questão a resolver consiste
em saber se se verificam os pressupostos da prolação de saneador-sentença.
Factualidade
apurada
Na sentença recorrida, foram julgados provados
os seguintes factos:
1 – Encontra-se registada, com data de
15.01.1991, a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, por
sucessão hereditária de HH e mulher JJ, a favor de CC, DD, KK, EE, LL e MM, do
prédio urbano sito em (…), Setúbal, descrito na 1ª. Conservatória do Registo
Predial de Setúbal sob o n.º (…), da freguesia de (…), inscrito na matriz respectiva sob o artigo (…).
2 – Encontra-se registada, com data de
18 de Junho de 2015, a aquisição, por sucessão hereditária de KK, a favor de CC,
do prédio identificado em 1).
3 – Encontra-se registada, com data de
18 de Junho de 2015, a aquisição, por sucessão hereditária de LL e NN, a favor
de BB e de AA, do prédio identificado em 1).
4 – Encontra-se registada, com data de
18 de Junho de 2015, a aquisição, por sucessão hereditária de MM, a favor de DD
e EE, do prédio identificado em 1).
5 – O prédio em questão está ocupado a
partir de 1999 e oficialmente, por ser notícia pública e documentada, desde o
mês de Outubro de 2000, por um grupo de indivíduos denominados COSA, nome que
deriva de Casa Ocupada de Setúbal Autogestionada, no qual se integra uma
geração de jovens que comunga de um tipo de cultura e socialização diferente.
6 – A ré FF faz parte desse grupo.
7 – A ré FF tem a sua residência em (…), Palmela.
8 – A ré GG tem a sua residência em (…), Lisboa.
9 – Essa ocupação foi efectuada sem
consentimento dos autores.
Fundamentação
A
recorrente sustenta que o estado do processo não permitia o conhecimento do
mérito da causa no despacho saneador porquanto havia necessidade de produzir
mais prova sobre a questão central em discussão, que era a qualificação da sua
posse sobre o prédio dos autos, sendo a sede própria para o efeito a audiência
final. Em abono desta tese, a recorrente cita jurisprudência segundo a qual a admissibilidade do conhecimento do mérito no
saneador depende da existência, no processo, de todos os elementos para uma
decisão conscienciosa segundo as várias soluções plausíveis de direito e não
apenas tendo em vista a adoptada pelo juiz da causa.
A isto, os recorridos contrapõem que os elementos
constantes do processo permitiam o conhecimento do mérito da causa no saneador
porquanto inexistiam factos controvertidos juridicamente relevantes
para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de
direito. Isto porque, da análise dos articulados, resulta inequívoco que a
actuação da recorrente é desprovida de animus
possidendi, sendo, assim, manifesta a inexistência de uma situação de posse
por parte da mesma e, logo, a inviabilidade da aquisição do direito de
propriedade sobre o prédio dos autos por usucapião. Consequentemente, seria
irrelevante a qualificação daquela hipotética posse como de boa ou má fé.
Vejamos,
então, se estão preenchidos os pressupostos legais para a prolação de
saneador-sentença.
O artigo 595.º, n.º 1, do CPC, dispõe
que o despacho saneador se destina a:
a) Conhecer das excepções dilatórias e
nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos
elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da
causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais
provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de
alguma excepção peremptória.
Doutrina e jurisprudência convergem
quanto à natureza excepcional da possibilidade de conhecer do mérito da causa
no despacho saneador e ao grau de exigência no tocante aos respectivos
pressupostos legais.
Assim, apenas em situações excepcionais
o estado do processo permitirá, sem necessidade de mais provas, conhecer do
mérito da causa logo após o final da fase dos articulados, prescindindo-se das
fases da instrução e do julgamento. “Normal
é que o juiz (não estando ainda realizada a parte fundamental da instrução
do processo) não possa conhecer da matéria no momento em que profere o despacho
saneador. Excepcional é que, com o
encerramento dos articulados, o julgador tenha à sua disposição todos os factos
que interessam à resolução da questão de direito exclusivamente suscitada pelas
partes, ou encontre nos autos todos os elementos de prova essenciais ao
julgamento da matéria de facto envolvida no litígio”[1].
Tal excepcionalidade decorre,
nomeadamente, do grau de exigência subjacente ao citado artigo 595.º, n.º 1,
al. b), do CPC. A possibilidade de conhecimento do mérito da causa na fase de
saneamento do processo, embora justificada pelo princípio da economia
processual, não pode redundar em práticas processuais que prejudiquem a prova
da factualidade relevante alegada pelas partes e o debate das propostas de
solução jurídica do litígio por estas apresentadas, diversas daquela que o
juiz, no momento do saneador, antevê como sendo a correcta. Mais concretamente,
só pode conhecer-se do pedido no saneador se, logo nessa fase, o processo
contiver todos os elementos que possibilitem a tomada de decisões de acordo com
as várias soluções jurídicas plausíveis. Se, no momento do saneador, o processo
apenas contiver elementos idóneos para sustentar uma das diversas soluções
possíveis do litígio, o juiz, por muito convicto que esteja do acerto dessa
solução, deverá abster-se de proferir saneador-sentença e, em vez disso, deverá
fazer prosseguir o processo até à fase de julgamento.
Esta orientação é pacífica na
jurisprudência, podendo citar-se, a título de exemplo:
- Acórdão da Relação do Porto de
10.03.2009, proferido no processo n.º 0824061
(relator: CANELAS BRÁS):
“I - O
artigo 510.º, n.º 1, alínea b), do C.P.C. — conhecimento antecipado do mérito
no saneador — intenta evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase
contenham já todos os elementos necessários à sua boa decisão. II - Mas tal
regime não se coaduna com tomadas de posição que, em nome da celeridade, não
permitam às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade
que alegam e que poderá conduzir a soluções mais abrangentes, ainda não
possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que
ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura. III - E daí que, na
dúvida, deva o processo prosseguir os seus normais termos, com a organização da
base instrutória e passagem à fase da instrução e produção das provas,
apresentando-se excepcional o conhecimento antecipado de mérito e normal o seu
prosseguimento para a fase de julgamento.”
- Acórdão da Relação de Évora de
14.11.2013, proferido no processo n.º 25/12.3TBFTR-A.E1 (relator: JOSÉ
LÚCIO):
“1 - Pode conhecer-se do mérito da
causa em saneador-sentença sempre que o estado do processo o permita, sem
necessidade de mais provas, mas apenas nessa situação. 2 - A produção de prova
será desnecessária quando inexistam factos controvertidos relevantes para a
solução da causa segundo as várias soluções plausíveis para a questão de
direito. 3 - Existindo mais do que uma solução plausível para a questão de
direito e factos controvertidos com relevância para alguma delas é prematuro o
conhecimento do mérito da causa no saneador.”
Acórdão da Relação de Lisboa de
14.11.2013, proferido
no processo n.º 866/11.9TBOER.L1-2 (relator:
TIBÉRIO SILVA):
“O conhecimento, no despacho saneador, do
pedido ou de uma excepção peremptória não deve ocorrer quando continuem em
aberto várias soluções de direito plausíveis e, nessa perspectiva, haja factos
ainda controvertidos.”
Acórdão da Relação de Lisboa de
22.01.2013, proferido
no processo n.º 532/10.2T2MFR.L1-7 (relator:
ORLANDO NASCIMENTO):
“Dispõe o art.º 510.º, n.º 1, al. b), aplicável ex
vi art.º 787.º, n.º 1, do C. P. Civil, que o juiz conhece do mérito da causa no
despacho saneador, sempre que o estado do processo permita a apreciação total
ou parcial do/s pedido/s, sem necessidade de mais provas. Neste juízo de
cognoscibilidade imediata o juiz não poderá deixar de ter sempre presentes, por
um lado, a desnecessidade de mais provas e, por outro, sem prejuízo do
princípio jura novit curia, consagrado no art.º 664.º do C. P. Civil, as
várias soluções plausíveis da questão de direito, como determina o art.º 511.º,
n.º 1, do C. P. Civil.”
Portanto, a tese da recorrente sobre a admissibilidade
de conhecimento do mérito da causa no despacho saneador não sofre contestação.
Tal conhecimento só será possível se o processo já contiver todos os
elementos necessários para uma decisão conscienciosa segundo as várias soluções
plausíveis de direito. A verdadeira controvérsia reside em saber se, aquando da
prolação do saneador-sentença recorrido, o processo se encontrava nessas
condições. Como acima referimos, a recorrente entende que não, por haver necessidade de produzir mais prova
sobre aquela que entende ser a questão central em discussão, a saber, a
qualificação da sua posse sobre o prédio dos autos, ao que os recorridos
contrapõem que resulta dos articulados a inexistência de posse por parte da
recorrente, por falta de animus
possidendi, donde resulta a irrelevância da questão da qualificação dessa
hipotética posse como de boa ou má-fé e a inviabilidade, em qualquer caso, da
aquisição do direito de propriedade sobre o prédio dos autos por usucapião.
Para resolver esta questão, temos de
atentar na forma como a recorrente alegou a sua hipotética posse sobre o prédio
dos autos na contestação. Segundo a recorrente, estando o prédio devoluto já
antes de 1999, “um grupo/um colectivo de cidadãs e cidadãos” uniu-se para dar
melhor ocupação àquele devoluto prédio (artigo 24.º). Para tanto, “tal
grupo/colectivo tomou a posse do prédio” (artigo 25.º), aí passando a,
continuadamente e até à presente data, “promover, realizar e levar a cabo
várias actividades (vg. lúdicas, culturais, sociais, assistenciais), de
manifesto interesse público (artigo 26.º). A recorrente “fez desde o início
parte desse grupo/colectivo, e continuou sempre, ininterruptamente, a dele
fazer parte integrante e nuclear, até à presente data” (artigo 28.º). “O
grupo/colectivo que tomou posse do referido prédio tem assim, naturalmente,
pelo decurso do tempo e das insondáveis vicissitudes da vida, sofrido ampla
variação na composição concreta e individualizada dos seus membros” (artigo
29.º). “(…) os possuidores, perante um prédio há alguns anos devoluto e em
adiantado estado de degradação, aparente res
nulius, manifestamente ignoravam, ao adquirir aquela posse, para aqueles
meritórios fins de interesse público, que lesavam o direito de outrem” (artigo
35.º). A recorrente “tem a posse de boa-fé do prédio em causa, desde 1999, e,
incontestavelmente, pelo menos, desde 13 de Outubro de 2000 até à data em que
foi citada, 15 de Outubro de 2015 (…)” (artigo 50.º).
Resulta desta exposição que, segundo a
recorrente, a ocupação do prédio dos autos foi levada a cabo por um grupo de
pessoas que, assim, “tomou a posse” do mesmo. Ela, recorrente, é, desde o
início, um dos membros desse grupo. O mesmo grupo é caracterizado como tendo
sofrido ampla variação na composição concreta e individualizada dos seus
membros.
Coloca-se a questão de saber se o
referido grupo pode adquirir a posse de um imóvel. O artigo 1266.º do Código
Civil estabelece que podem adquirir posse todos os que têm uso da razão, e
ainda os que o não têm, relativamente às coisas susceptíveis de ocupação.
Essencial, porém, é que se trate de entidade com personalidade jurídica, sem a
qual não é possível adquirir direitos. Em face da descrição da natureza do
grupo de pessoas que ocupou o prédio dos autos que é feita pela própria
recorrente, podemos concluir, com segurança, que esse grupo não tem
personalidade jurídica e, logo, não pode adquirir direitos, nomeadamente a
posse.
Resta, assim, a hipótese de a posse do
prédio ter sido adquirida pelas pessoas que integravam o grupo que, em 1999, o
ocupou. Sendo a recorrente uma dessas pessoas e não tendo abandonado o grupo
até à actualidade, coloca-se a questão de saber se ela tem vindo a exercer uma
posse sobre o prédio nos termos do direito de propriedade, já que é este o
direito real que ela pretende adquirir através da usucapião. É esta a tese da
recorrente.
Nos
termos do artigo 1251.º do Código Civil, “posse é o poder que se manifesta
quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de
propriedade ou de outro direito real”. A
posse tem como elementos o corpus, que
é a componente material, e o animus,
a componente psicológica. O primeiro consiste nos actos materiais praticados
sobre a coisa e o segundo na intenção de se comportar como titular do direito
correspondente.
Tendo a recorrente feito parte do grupo que, em
1999, ocupou o prédio dos autos e permanecendo ela no seio desse grupo,
mantendo a referida ocupação, é de concluir que se verifica, relativamente a
ela, o corpus da posse. Em conjunto
com outras pessoas, a recorrente vem ocupando aquele prédio, privando do gozo
deste os respectivos proprietários. Assim se entendeu na sentença recorrida e,
acerca disso, não há controvérsia.
Já a existência de animus por parte da recorrente é problemática.
Na sentença recorrida, entendeu-se que o animus é excluído pelo facto de a
recorrente, aquando da ocupação do prédio, não poder desconhecer que este
último pertencia a terceiros, já que a titularidade do mesmo se encontrava
inscrita no registo predial desde 15.01.1991, não sendo, portanto, concebível
que a recorrente “estivesse convencida que exercia os poderes de facto por
direito próprio”.
Salvo o devido respeito, esta argumentação não
colhe, pois baseia-se numa concepção do animus
que não é correcta. “Em caso nenhum o animus
poderia ser confundido com a convicção
de ser titular do direito. Não há que excluir como possuidor quem age de má fé;
todavia, ele sabe que está lesando o direito de outrem. (…) O animus só poderia ser assim a intenção
de agir como o titular do direito a que o exercício do poder de facto se
refere.”[2]
Assim esclarecido que o possuidor de má fé ainda é
um verdadeiro possuidor, o que pressupõe que ele tenha o animus correspondente ao direito real em cujos termos actua, animus esse compatível com o
conhecimento de que está a lesar o direito de outrem sobre a coisa que possui, não
seria por aí que se encontraria sustentação para a tese de que a recorrente não
é possuidora do prédio dos autos. A razão pela qual a recorrente não tem a
posse, devido à inexistência do animus
correspondente ao direito que pretende adquirir através da usucapião, ou seja,
ao direito de propriedade, é outra.
Atente-se, novamente, na descrição da ocupação do
prédio dos autos que é feita na contestação. Em vão procuraremos a alegação de
que a recorrente, ao participar naquela ocupação, em conjunto com os restantes
membros do grupo de cidadãos que a levou a cabo, actuou com o animus correspondente ao exercício do
direito de propriedade privada, ou seja, com a intenção de se comportar como se
fosse proprietária ou comproprietária (tendo em conta a concorrência dos
restantes ocupantes) do prédio dos autos. Muito pelo contrário, do que se tratou,
de acordo com a contestação, foi de um grupo de cidadãos, perante o facto de o
prédio se encontrar devoluto, passar a ocupá-lo com a finalidade de “promover, realizar e levar a cabo
várias actividades (vg. lúdicas, culturais, sociais, assistenciais), de
manifesto interesse público”, mas sem intenção de se comportarem como se fossem
eles os proprietários do prédio. Não se quis – nomeadamente, a recorrente não
quis – actuar como se se fosse titular do direito de propriedade privada sobre
o prédio, mas sim como se este último fosse uma zona livre de direitos dessa
natureza e afecta àquilo que se considerou serem “meritórios fins de interesse
público”. É esta a única interpretação possível da descrição que é feita na
contestação sobre a ocupação do prédio dos autos.
Comprova
esta interpretação da descrição da situação de ocupação que é feita na
contestação a ponderação das consequências de se entender que a recorrente é
uma verdadeira possuidora (com corpus
e animus, portanto) do prédio dos
autos nos termos do direito de propriedade. Uma vez decorrido o tempo
necessário para a usucapião, a recorrente adquiriria, por essa via, o direito
de propriedade privada sobre o prédio. E adquiri-lo-ia sozinha, ficando
proprietária exclusiva deste último. Coteje-se este resultado jurídico com
aquela que, de acordo com a contestação, foi a intenção dos autores da ocupação
do prédio em 1999. É gritante a desconformidade entre os fins visados pela
ocupação e o referido resultado, ou seja, a aquisição, por um dos ocupantes, do
direito de propriedade privada e exclusiva sobre o prédio, a quem, nesta última
hipótese, teria de ser reconhecido, entre outros, o direito a reivindicar o
prédio só para si, expulsando os restantes ocupantes. Prova evidente de que,
perante uma ocupação com os contornos daquela que é descrita na acusação, não é
concebível reconhecer, porque se trataria de uma evidente ficção, em cada um
dos seus autores, o animus
correspondente ao exercício do direito de propriedade privada.
Flui do
exposto que, por falta deste animus, em
caso algum a recorrente poderia vir a ser considerada possuidora do prédio dos
autos. Tal como os restantes ocupantes do prédio, a recorrente nunca foi mais
que uma mera detentora do prédio, nos termos do artigo 1253.º, al. a), do Código
Civil.
Ora, tudo
isto já é evidente em face dos elementos constantes do processo, mormente do
teor da contestação. Logo, não faria sentido o processo continuar a correr os
seus termos até à audiência final para se produzir prova sobre a qualificação
da hipotética posse da recorrente sobre o prédio dos autos. Esta qualificação
não é, como a recorrente afirma, a questão central em discussão, porquanto,
sendo já evidente que inexiste posse, nem sequer se coloca.
Em
conclusão, verificavam-se os pressupostos da prolação de saneador-sentença no
momento em que este foi proferido e a forma como o mesmo decidiu a causa,
julgando a acção procedente e a reconvenção improcedente, não merece censura,
apenas se discordando do segmento da fundamentação que acima se referiu.
Consequentemente, deverá o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se o
saneador-sentença recorrido, embora com fundamentação parcialmente diversa.
Decisão
Acordam os juízes da
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso
improcedente, confirmando a decisão recorrida, embora com fundamentação parcialmente diversa.
Custas
pela recorrente.
Notifique.
*
Évora, 24 de Maio de 2018
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto
[1] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA
e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo
Civil, 2.ª edição revista e actualizada, p. 385)
[2] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Reais, 5.ª edição, p. 85.