sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 26.10.2023

Processo n.º 988/19.8T8TMR.E2

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Sumário:

1 – As declarações de parte constituem um meio de prova que não pode ser desvalorizado a priori, antes lhes devendo ser atribuído um valor probatório autónomo e podendo, consequentemente, fundar a convicção do julgador sobre um facto sem necessidade de corroboração por outros meios de prova.

2 – Vivendo duas pessoas em união de facto durante cerca de 13 anos, é normal que existam documentos que liguem cada uma delas à casa que alegadamente constituía a residência comum.

3 – Não apresentando a parte onerada com o ónus da prova da união de facto qualquer documento dessa natureza, tal défice de prova documental deve, ele próprio, ser valorado pelo tribunal para formar a sua convicção, como indiciador de que aquela união não se verificava.

4 - Não basta a parte afirmar que vivia em união de facto com determinada pessoa e duas testemunhas corroborarem essa afirmação para que tal fique demonstrado.

(Sumário elaborado apenas para publicação neste blog)

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Autor: Caixa Geral de Aposentações, I.P..

Ré: Margarida.

Pedido: Declaração de inexistência de uma união de facto entre a ré e Fernando.

Sentença: Julgou a acção procedente, declarando a inexistência de união de facto entre a ré e Fernando.

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A ré interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto – concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados:

A Recorrente discorda em absoluto da decisão sobre a matéria de facto que julgou não provados os seguintes factos por si alegados:

1 – A ré viveu efectivamente em união de facto com o falecido Fernando, com quem residiu em casa deste sita em (…), Tomar, desde Abril de 2002 ininterruptamente até à data da sua morte.

2 – A ré e Fernando viviam como se de marido e mulher se tratasse partilhando cama, mesa e habitação.

4 – A ré e Fernando auxiliavam-se e respeitavam-se mutuamente como se de marido e mulher se tratasse.

5 – Trocavam mensagens de cariz amoroso e íntimo pelo telemóvel e deixava-lhe bilhetes escritos em casa.

6 – Saíam juntos para fora da cidade, onde eram vistos a passear, almoçar e jantar e no café como se de marido e mulher se tratasse.

8 – Enquanto a ré manteve o seu relacionamento amoroso com Fernando este já não exercia como padre.

11 - No último ano de vida de Fernando, este e a sua companheira, ora ré, contrataram uma empregada de serviço doméstico para fazer a limpeza da casa e tratar da roupa de ambos.

2 – Pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma auto-suficiente, assumindo um valor probatório autónomo.

CATARINA GOMES PEDRA, A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil. Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito, Universidade do Minho, 2014, p. 145, afirma que:

Texto de 20.1.2017, acessível em

https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia536.html#links.

3 – Com maior abertura ao protagonismo das declarações de partes, MARIANA FIDALGO, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, p. 80, afirma claramente que:

«(…) ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objeto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. (…) defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova.»

Por nós, entendemos que a posição mais correta radica na tese mais ampla e permissiva sobre a potencialidade e centralidade das declarações de parte na formação da convicção do juiz.

4 – É do conhecimento público a existência de padres que mantêm relacionamentos amorosos, além de, por outro lado, termos ainda notícia a nível nacional e internacional de abusos de cariz sexual sobre menores, que, em virtude do seu elevado número deram lugar à constituição de comissões de inquérito para averiguação destes casos, pelo que, causa “estranheza” à recorrente que a meritíssima juíza a quo tenha manifestado a sua “estranheza” (passamos a redundância) pelo facto de Fernando ser padre (e, manter consigo um relacionamento como se de marido e mulher se tratasse, vivendo em união de facto), pois antes de o ser, é um ser humano, como qualquer um de nós, com sentimentos, emoções, carências…

5 – E, como a própria recorrente teve oportunidade de explicar ao tribunal no início do seu depoimento, só passados alguns anos após o óbito do seu companheiro, requereu ao Caixa Geral de Aposentações a atribuição da sua pensão de sobrevivência, por uma questão de ponderação pessoal, pois tem a consciência de que iria ter de enfrentar o preconceito de se ter envolvido emocionalmente com um padre e ter vivido com ele, como se fossem marido e mulher, no entanto, ainda assim, muniu-se da coragem necessária para se manifestar junto de instituições públicas, a quem relatou esta realidade com verdade, que, de resto já era do conhecimento público da cidade onde vivia com Fernando, no intuito de fazer valer o direito que assiste, a ser reconhecida esta união de facto.

6 – Crê-se assim que a valoração dos depoimentos da recorrente e das suas testemunhas pelo tribunal a quo foi feita de forma parcial (eivada de preconceitos e de considerações de ordem moral que não competem ao tribunal tecer e muito menos utilizá-los para fundamentar decisões judiciais, que, no entendimento da recorrente se devem fazer com recurso à legislação, doutrina e jurisprudência!

7 – Sobre a alegada circunstância de a recorrente não se mostrar emocionalmente afectada quando se falou do dia do óbito – tal justifica-se pelo decurso do tempo ocorrido desde a data do óbito – 01.09.2014 e a data da realização da audiência de julgamento – 07.07.2020!!!

8 – Quanto ao facto de o corpo de Fernando ter sido detectado por terceiros e não pela recorrente, deve-se ao facto desta, na altura, se encontrar a dar apoio à sua mãe com 100 anos de idade!

9 – A actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, que, quer a recorrente (em sede de declarações de parte) quer as suas testemunhas demonstraram conhecer ampla e aprofundadamente!

10 – Com efeito, amiúde se não na maioria dos casos, quem tem melhor razão de ciência do que a própria parte?

Em terceiro lugar, o texto do artigo 466.º não degradou o valor probatório das declarações de parte, nem pretendeu vincar o seu caráter subsidiário e/ou meramente integrativo e complementar de outros meios de prova.

11 – O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés.

12 – A credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas, sob pena de esvaziarmos a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal de que foi exemplo o brocardo testis unis, testis nullus (uma só testemunha, nenhuma testemunha).

13 – As declarações da parte podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar – congruentemente – outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento.

14 – Inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações da parte e a prova testemunhal, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada segundo os parâmetros explicitados.

15 – Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.

16 – As partes que presenciaram diretamente factos ou neles intervieram são tecnicamente testemunhas dos mesmos.

Em suma, a testemunha e a parte integram o testemunho em sentido lato enquanto prova pessoal e histórica dos factos em discussão.

A parte é a primeira das testemunhas, é de antever que sejam removidas as anacrónicas reservas à admissibilidade do testemunho de parte como meio epistemologicamente válido da formação da convicção do julgador.

17 – Uma vez que os depoimentos das testemunhas arroladas pela recorrente, prestados de forma isenta, coerente e convincente serviram para formar a convicção do tribunal quanto a estes factos, por maioria de razão também deveriam ter servido, para dar como provados os factos indicados sob os números 1 a 11.

18 – Analisadas as passagens das declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas, assinaladas a negrito, verificamos que foram unânimes a confirmar a ocorrência dos factos que, na sentença sub judice não foram considerados provados – 1 a 11.

19 – Verifica-se ter havido aqui erro de julgamento e erro na apreciação da prova.

20 – Violou a decisão recorrida o disposto nos arts. 644.º do CPC, 341.º, 342.º do CC.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido.

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Questão a resolver: Se devem ser julgados provados os factos que permitiriam concluir que a ré e Fernando viviam um com o outro em união de facto à data da morte deste.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Fernando faleceu em 1 de Setembro de 2014.

2. Em 23 de Fevereiro de 2016, a autora, na qualidade de companheira do falecido, veio habilitar-se à pensão de sobrevivência, juntando para o efeito a documentação legalmente exigida: certidão de nascimento do falecido, certidão de nascimento de si própria, declaração sob compromisso de honra e declaração emitida pela junta de freguesia de atestando que à data do óbito, residia em união de facto com o falecido há mais de dois anos.

3. Em 04 de Março de 2016, a Caixa Geral de Aposentações recebeu uma denúncia anónima, informando que “A senhora em questão foi apenas empregada de limpeza do referido falecido e pode-se comprovar através dos seus familiares (irmão), o qual recebeu o subsídio de funeral. Caso venham a contactar este irmão ou familiares do falecido também comprovam que a senhora D. Margarida foi, pelo próprio falecido, afastado definitivamente de sua empregada cerca de 1 ano antes do seu falecimento e encontrado sozinho na sua residência”.

4. Por ofício de 10 de março de 2016, a Caixa Geral de Aposentações solicitou a VM, irmão do falecido Fernando, solicitar o esclarecimento sobre o motivo pelo qual, aquando o pedido de reembolso das despesas de funeral, informou não existirem familiares com direito a prestações familiares.

5. Por mail de 20 de março de 2016, VM veio informar a Caixa Geral de Aposentações do seguinte: “Tendo eu conhecimento que esta senhora foi empregada do meu irmão, tratando-lhe das limpezas da casa, e era remunerada com descontos para a S.S. e que foi despedida mais de um ano antes do seu falecimento. Quando o meu irmão fez a operação para colocar uma prótese numa perna Agosto de 2013 esta pessoa já lá não trabalhava, e por não ter lá ninguém que tratasse dele, esteve a fazer a recuperação na minha casa, bem como noutras alturas quando se encontrava mais débil e ainda viveu muito tempo depois deste episódio. Foi como empregada que o meu irmão sempre me falou dela. Por esta razão penso que não tinha nada mais a declarar. Até porque na altura do falecimento era outra empregada que estava a fazer este serviço. E foi esta nova empregada que foi chamada para abrir a porta de casa, para a polícia (PSP) entrar, depois de os vizinhos darem falta dele três dias, quando foi encontrado morto sozinho. Não sei como o meu irmão sendo Padre Católico Apostólico Romano pudesse estar a viver em união de facto!...”

6. Entretanto, a Caixa enviou um ofício à Ré informando-a dos novos factos trazidos ao procedimento administrativo.

7. A Ré, em resposta, contestou as declarações do irmão do falecido declarando que não foi empregada da limpeza do falecido o que poderá ser comprovado pela família e amigo e que viveu em união da facto com o falecido tendo pernoitado algumas noites fora nos últimos 3 a 4 meses antes do óbito por a sua mãe estar doente e precisar de ajuda mas não apresentou documentos comprovativos de tais factos.

8. A R. tinha e tem o seu emprego a tempo inteiro como assistente operacional na (…), onde trabalha desde 2004 até à presente data, embora tenha tido anteriormente outros empregos.

9. A R e o falecido fizeram férias juntos, viajaram juntos e faziam férias juntos nomeadamente na Madeira e também foram passar várias vezes temporadas à praia no Algarve.

10. A R. confeccionava as refeições para os dois a maior parte das vezes bem e ocupava-se da lide doméstica.

11. Fernando já não exercia como Padre, nem tinha uma Paróquia atribuída desde Abril de 2002.

Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:

1. A R. viveu efectivamente em união de facto com o falecido Fernando com quem residiu em casa deste sita em (…), Tomar, desde Abril de 2002 ininterruptamente até à data da sua morte.

2. A R. e Fernando viviam como se de marido e mulher se tratasse partilhando cama, mesa e habitação.

3. A R nunca foi empregada de serviço doméstico do seu companheiro que também nunca lhe fez descontos para a Segurança Social nesta qualidade.

4. A R. e Fernando auxiliavam-se e respeitavam-se mutuamente como se de marido e mulher se tratassem.

5. Trocavam mensagens com cariz amoroso e íntimo pelo telemóvel e deixava-lhe bilhetes escritos em casa.

6. Saíam juntos para fora da cidade, onde eram vistos a passear, almoçar e jantar e no café como se de marido e mulher se tratasse.

7. Embora com um certo recato devido à profissão de Padre do Fernando que por este motivo nunca assumiu perante a sua família, designadamente junto dos irmãos o relacionamento amoroso que mantinha com a R. dando-lhes até a entender que esta era apenas sua empregada, para justificar a sua presença constante em sua casa.

8. Enquanto a R. manteve o seu relacionamento amoroso com Fernando este já não exercia como Padre.

9. Nos últimos três ou quatro meses que precederam a sua morte, a R. teve de se ausentar de casa algumas noites para pernoitar em casa de sua mãe, na altura com 100 anos que, entretanto, adoecera.

10. Apesar do que manteve a mesma relação de marido/mulher que mantinha com Fernando.

11. No último ano de vida de Fernando, este e a sua companheira, ora, R. contrataram uma empregada de serviço doméstico para fazer a limpeza da casa e tratar da roupa de ambos.

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Nas suas alegações, a recorrente apresenta extensa argumentação tendente a demonstrar que as declarações de parte constituem um meio de prova que não deve ser desvalorizado a priori, antes lhe devendo ser atribuído um valor probatório autónomo e podendo, consequentemente, fundar a convicção do julgador sobre um facto sem necessidade de corroboração por outros meios de prova.

Concordamos com esta orientação e, lendo a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, parece-nos que o mesmo acontece com o tribunal a quo, pois todos os reparos que este fez às declarações de parte da recorrente se basearam no concreto conteúdo destas, que foi considerado não credível em vários aspectos. Logo, é exclusivamente no plano da apreciação da prova concretamente produzida que a análise da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto terá de ser feita.

Na conclusão 1, a recorrente afirma que a sua discordância tem por objecto a forma como foi julgada a matéria que consta dos n.ºs 1, 2, 4, 5, 6, 8 e 11 dos factos não provados. Todavia, quer do corpo das alegações, quer das conclusões 17 e 18, resulta que a recorrente pretende que todos os factos julgados não provados pelo tribunal a quo (n.ºs 1 a 11) sejam julgados provados.

Como fundamento da sua pretensão, a recorrente invoca o teor das suas declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas SG e IL, considerando que de tais meios de prova, concordantes entre si, resulta a matéria de facto que o tribunal a quo julgou não provada.

A primeira observação a fazer é a de que as declarações de parte da recorrente e os depoimentos das testemunhas SG e IL não foram os únicos meios de prova produzidos na audiência final. Também aí depuseram as testemunhas VM e AF, as quais apresentaram uma versão dos factos muito diferente. Portanto, contrariamente à ideia que a recorrente pretende transmitir nas suas alegações de recurso, o tribunal a quo não decidiu contra a prova produzida, mas apenas contra uma parte desta.

A segunda observação que se impõe é a de que a crítica, que a recorrente dirige ao tribunal a quo, segundo a qual este valorou as suas declarações de parte e os depoimentos das testemunhas SG e IL de forma parcial e eivada de preconceitos e considerações de ordem moral, fundados no facto de Fernando ser padre, não tem razão de ser. Aquilo que o tribunal a quo observou, a propósito da alegada percepção, pelos habitantes de Tomar, de que a recorrente e Fernando constituíam um casal, é que a afirmação de tal percepção por parte da primeira lhe causou estranheza, considerando que o segundo era padre. Não há, nesta observação, qualquer valoração de ordem moral por parte do tribunal a quo. Este não afirmou ou deu a entender que reprovava a alegada união de facto com um padre. Aquilo que causou estranheza ao tribunal a quo foi que as pessoas de Tomar tivessem a percepção de que a recorrente e Fernando formassem um casal, atendendo a que este era padre. O que se compreende, dado que o facto de um homem ser padre impede, à partida, que o mesmo viva em união de facto com uma mulher, pelo que as pessoas contam com essa normalidade na leitura que fazem da realidade. Mais, num passo ulterior da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal a quo desvalorizou expressamente o facto de Fernando ser padre, ao afirmar que, a ter existido uma união de facto, a família daquele conheceria tal situação, tanto mais que aquele já nem sequer exercia.

O tribunal a quo especificou as razões que o levaram a desvalorizar as declarações de parte da recorrente e os depoimentos das testemunhas SG e IL no que concerne à questão central desta acção, que é a existência de uma situação de união de facto entre a recorrente e Fernando à data da morte deste. Ouvida a totalidade da prova produzida na audiência final, acompanhamos a generalidade das reservas feitas pelo tribunal a quo.

Comecemos pela análise das circunstâncias em que Fernando morreu. Este foi encontrado morto em casa, na sequência de um vizinho (Cardoso) ter estranhado não o ver durante algum tempo e, por isso, ter alertado a autoridade policial. Nas suas declarações de parte, a recorrente admitiu que foram estas as circunstâncias em que a morte de Fernando ocorreu.

As circunstâncias descritas inculcam que Fernando não vivia em união de facto com a recorrente à data da sua morte.

A justificação dada pela recorrente para o facto de Fernando ter morrido sozinho em casa e ela só ter tomado conhecimento desse facto quando foi alertada por um telefonema de Cardoso, foi a de que ela, no período que antecedeu a morte, passava períodos de alguns dias em casa de sua mãe, muito idosa, para cuidar desta. Daí a recorrente, segundo afirmou, ter de viver alternadamente em casa de sua mãe e na casa onde alegadamente vivia com o falecido, tendo a morte ocorrido durante uma das suas ausências.

Esta justificação não é credível.

Fernando estava sozinho em casa quando morreu e foi o seu vizinho Cardoso quem estranhou não o ver, ao ponto de solicitar a intervenção da autoridade policial. De acordo com as regras da experiência, uma situação como esta não acontece imediatamente após a morte. Só algum tempo depois desta os vizinhos estranham a ausência do falecido. E é ainda mais algum tempo depois que os vizinhos ficam suficientemente alarmados para tomarem a iniciativa de alertarem as autoridades. Ainda que se trate de um vizinho com quem se tenha um relacionamento próximo, ele só estranhará a ausência se esta se prolongar e só chamará as autoridades quando tal estranheza se avolumar com o decurso do tempo. Pelo menos dois ou três dias de dilação entre a morte e a intervenção das autoridades parecem-nos inevitáveis. Esta ilação encontra corroboração no depoimento da testemunha AF, cunhada de Fernando, segundo o qual este esteve vários dias morto dentro de casa, pois o cadáver já estava a entrar em decomposição quando foi descoberto. Foi AF quem limpou o local de onde o cadáver foi retirado, pelo que estava em boas condições para se aperceber do estado do mesmo.

Foi Cardoso quem alertou a recorrente, através de uma chamada telefónica. Contudo, não foi a recorrente quem Cardoso alertou em primeiro lugar. Segundo a própria recorrente, depois do telefonema de Cardoso, foi à casa de Fernando, onde entrou com a sua chave. Porém, quando a recorrente chegou, já aí se encontravam várias pessoas: a polícia, o médico de família do falecido e um juiz amigo do falecido. A porta da casa tinha sido aberta com a chave da empregada doméstica. Após a recorrente se identificar, um agente da PSP ordenou-lhe que esta entregasse a sua chave, o que ela fez.

Esquematicamente: a recorrente encontrava-se em casa de sua mãe, Fernando morreu sozinho em sua casa, foi um vizinho quem estranhou a ausência deste e, quando foi necessário abrir a porta da casa, foi chamada a empregada doméstica.

A estes factos, adicionemos quatro outros.

Quer a casa da mãe da recorrente, quer a casa de Fernando, situam-se em Tomar. Segundo a testemunha IL, bastam oito minutos para percorrer, de automóvel, a distância que as separa.

Segundo relatou a recorrente, sua mãe era muito idosa à data do óbito de Fernando, mas só viria a falecer cerca de cinco anos depois. Em 2014, a mãe da recorrente teve um problema de visão e, em consequência disso, não podia cuidar de si e de sua casa. Daí que necessitasse do auxílio da recorrente. Todavia, não estava acamada.

Foi o irmão do falecido, VM, quem tratou do funeral e pagou o respectivo custo. VM residia em S. Romão, na Serra da Estrela, tendo tomado conhecimento de que o irmão falecera através do já anteriormente referido amigo deste que era juiz, o qual lhe telefonou. Logo de seguida, telefonou-lhe um agente da PSP, solicitando-lhe que se apresentasse em Tomar, para tratar dos assuntos relacionados com a morte do irmão, o que fez. Tudo isto foi relatado por VM, ouvido na qualidade de testemunha, cujo depoimento nos pareceu absolutamente espontâneo e credível.

Fernando tinha sérios problemas de saúde, como a própria recorrente relatou, ainda que só em parte. Nomeadamente, teve em infarto em 2001.

Ficamos assim com o cenário completo, que nos suscita as observações que se seguem.

É, no mínimo, duvidoso que a necessidade – que não colocamos em causa – de a recorrente auxiliar sua mãe impusesse que ela passasse noites seguidas em casa desta. Se a mãe da recorrente não estava acamada e a razão da sua incapacidade para cuidar de si e da casa era um problema de visão, bastaria a presença da filha durante o dia, ou durante a parte do dia em que não estivesse no seu posto de trabalho. Residindo a oito minutos de automóvel da casa de sua mãe, a recorrente poderia circular entre uma casa e a outra sem grande dificuldade. Não precisava de passar períodos superiores a uma semana em casa de sua mãe, como afirmou fazer.

A circunstância de Fernando ter uma saúde frágil torna ainda menos compreensíveis as alegadas ausências da recorrente durante vários dias seguidos para cuidar de sua mãe. No decurso das suas declarações de parte, a recorrente justificou o facto de Fernando lhe deixar frequentemente recados escritos em casa, entre os quais aquele que juntou com a contestação, nos seguintes termos: ele sabia mais ou menos a hora a que eu chegava e, se saísse, se fosse ver futebol com vizinho do 2.º andar, ou se fosse caminhar, deixava recados a dizer que não estava no momento em casa e para eu não me preocupar, pois estava tudo bem; em 2001 ele teve um infarto e sabia que eu me preocupava com ele. É evidente o contraste entre esta alegada preocupação exacerbada da recorrente com o estado de saúde de Fernando, que levaria este a deixar-lhe recados escritos para que ela não ficasse preocupada com o simples facto de chegar a casa e ele lá não estar, e a displicência com que a mesma recorrente, na última fase da vida de Fernando, o teria deixado em casa sozinho durante dias a fio. Mais, durante o tempo em que Fernando esteve morto em casa, a recorrente, não só não apareceu lá, ainda que de passagem, como nem sequer deve ter telefonado para perguntar se aquele estava bem. Se tiver telefonado e as suas chamadas não tiverem sido atendidas, é incompreensível, caso vivesse com o falecido em união de facto, que não tenha ido a casa averiguar se algo de anormal se passava.

As circunstâncias em que Fernando morreu e o seu corpo foi encontrado apontam, pois, decisivamente, no sentido de que ele não vivia com a recorrente em união de facto, ao menos à data da sua morte. Não é crível que, se essa união de facto existisse, a recorrente estivesse ausente de casa durante vários dias seguidos, sem sequer lá passar ao menos uma vez por dia. Como não é crível que a recorrente não falasse com Fernando através do telefone durante vários dias seguidos. Tendo Fernando morrido sozinho em casa e o seu cadáver aí permanecido vários dias (não sabemos quantos), até que um vizinho estranhasse a sua ausência e alertasse a autoridade policial, parece-nos evidente que a recorrente, que se encontrava na mesma localidade mas completamente alheada em relação à situação daquele, não vivia em união de facto com o mesmo. É esta a única explicação plausível para o facto de ter sido necessário que um vizinho alertasse a autoridade policial sobre a ausência de Fernando para que o corpo deste fosse encontrado, enquanto a recorrente de nada se apercebeu e só apareceu em casa daquele quando foi avisada.   

Indício evidente de que a recorrente não vivia em união de facto com Fernando à data da morte deste foi também a circunstância de ter sido a empregada doméstica daquele a pessoa chamada para abrir a porta de casa e não a recorrente, como decerto aconteceria se fosse reconhecida como companheira do falecido. Quando a recorrente chegou a casa de Fernando, já lá estavam outras pessoas, além de, pelo menos, um agente da PSP. E, quando lá chegou, foi-lhe retirada a chave da casa.

Sintomático da ausência de uma relação de união de facto entre a recorrente e Fernando à data da morte deste é também o facto de ter sido o irmão daquele a tratar do funeral e a pagar o respectivo custo. A justificação dada pela recorrente foi a de que ficou impedida de tratar do funeral ao ser-lhe vedado o acesso à casa onde alegadamente viveria com Fernando, através da retirada da chave da porta. Esta justificação não convence. Primeiro, porque a própria retirada da chave sem oposição da recorrente, que nada fez para a recuperar, indicia, em si mesma, que a recorrente não vivia em união de facto com o falecido. Segundo, porque, se a recorrente pretendesse tratar do funeral e pagar o respectivo custo, seria normal, no mínimo, procurar conversar sobre esse assunto com o irmão do falecido. Toda a descrita actuação da recorrente seria deveras estranha se ela vivesse em união de facto com o falecido.

Concluímos, assim, pela inexistência de prova segura de que a recorrente vivesse em união de facto com Fernando quando este morreu.

Mais, nem sequer pode ser julgado provado que tal união de facto alguma vez tenha existido.

As declarações de parte da recorrente foram parcas em pormenores sobre a alegada vida em comum com Fernando. A recorrente produziu um depoimento defensivo, omitindo pormenores importantíssimos da vida daquele, os quais, a ter havido vida em comum, a teriam seguramente marcado. Só através das testemunhas VM e AF foi possível saber, por exemplo, que Fernando teve cancro no colon e, por isso, teve de usar um saco de ostomia durante algum tempo.

Já os depoimentos das testemunhas VM e AF nos pareceram espontâneos e foram corroborados por diversas circunstâncias que se apuraram, pelo que merecem credibilidade.

Segundo a recorrente, VM nunca foi à casa onde ela e Fernando viviam. Os contactos entre os dois irmãos eram apenas através do telefone. Pessoalmente, só quando Fernando ia visitá-lo a S. Romão, na Serra da Estrela, o que acontecia, sobretudo, no Natal.

VM descreveu o seu relacionamento com o irmão de forma completamente diversa. Segundo esta testemunha, tinha com Fernando um relacionamento normal de irmãos, ou seja, falavam ao telefone de vez em quando e visitavam-se mutuamente com a periodicidade que a distância entre as suas residências permitia. VM deslocava-se a Tomar para visitar o irmão uma média de três vezes por ano, embora pudesse passar mais de um ano sem o fazer. Para o fim da vida do irmão, ia visitá-lo mais frequentemente. Visitava-o sempre em casa dele, que identificou. Encontrou o irmão sempre sozinho em sua casa. Foi-lhe perguntado se havia em casa do irmão objectos que sugerissem que aí residia uma mulher, ao que respondeu que não conseguia responder porque não frequentava os quartos e não estava atento a pormenores dessa natureza. Ter-lhe-ia sido fácil responder simplesmente que não, sem ter o cuidado de desvalorizar a sua própria resposta, o que corrobora a honestidade no seu testemunho.

Segundo VM, o irmão também o visitava em sua casa e aí costumava ficar durante alguns dias. Fazia-o “uma meia dúzia de vezes por ano”. Ia normalmente sozinho, mas houve uma vez em que foi com um juiz que era muito amigo dele. Nunca levou outra pessoa. Uma dessas visitas ocorreu pouco tempo antes da morte do irmão.

VM também relatou que seu irmão passou períodos em sua casa a recuperar de intervenções cirúrgicas a que foi submetido.

Sobre a recorrente, VM afirmou que o irmão lhe disse que ela era sua empregada doméstica e que só a viu duas vezes. Disse-lhe também o irmão que a recorrente trabalhou para ele durante alguns anos e que a despediu “um ano, um ano e tal, antes de falecer”, devido a um “desvio de dinheiros”. Um amigo do irmão arranjou-lhe então uma senhora que fazia limpeza em casa dele. Fazia lá umas horas às quintas-feiras. Só viu esta senhora uma vez. Esta senhora trabalhou para o irmão mais ou menos no meio ano que antecedeu a morte deste.

Sobre a morte do irmão, VM disse que dela tomou conhecimento através de um telefonema do juiz que era amigo daquele. Ou seja, observamos nós, Fernando tinha o irmão como pessoa de referência para ser avisada se alguma coisa lhe acontecesse, tendo, tudo o indica, fornecido o contacto deste àquele que parece ter sido o seu amigo mais chegado. Nada disto faria sentido se Fernando e a recorrente vivessem um com o outro em união de facto. Sintomaticamente, logo a seguir ao telefonema do amigo do irmão, um agente da PSP telefonou a VM, solicitando-lhe que se apresentasse em Tomar a fim de tratar dos assuntos relacionados com a morte do irmão. VM assim fez, tendo-lhe a PSP entregue a chave da casa do irmão.

AF, casada com VM, descreveu o relacionamento entre este e o irmão como sendo próximo, ao contrário da ideia que a recorrente pretendeu transmitir. Segundo AF, Fernando ia visitá-los a S. Romão muitas vezes, nunca tendo levado a recorrente consigo. Também passou períodos em casa da testemunha e do marido para recuperar de intervenções cirúrgicas, por viver sozinho e não ter quem dele cuidasse. Após o transplante de coração, que AF calculou ter sido realizado em 2008, Fernando esteve três meses na sua casa em recuperação.

AF acompanhou o marido em algumas das visitas que este fez ao cunhado. Este disse-lhes que tinha uma empregada. Visitavam o cunhado em casa deste, onde nunca viram a recorrente. Nunca viu qualquer objecto ou peça de roupa em casa do cunhado que sugerisse que lá vivia uma mulher, o que confirmou quando, juntamente com as irmãs daquele, esvaziou a casa após o óbito.

Acerca da recorrente, AF afirmou que Fernando disse, a si e ao seu marido, que se tratava de uma empregada doméstica e que “a tinha posto de lá para fora” cerca de um ano antes de morrer. Quando despediu a recorrente, Fernando contratou outra empregada, que ia fazer a limpeza às quintas feiras.

É evidente a incompatibilidade das declarações prestadas pela recorrente com os depoimentos das testemunhas VM e AF. E, repetimos, ao contrário da recorrente, estas duas testemunhas prestaram depoimentos espontâneos e circunstanciados, em termos que não nos suscitam qualquer reserva.

Já os depoimentos das testemunhas SG e IL, amigas da recorrente, suscitam as maiores reservas. Ambas afirmaram que a recorrente viveu com Fernando até à morte deste. Porém, pouco sabiam, por conhecimento directo, acerca dessa alegada vida em comum. Aquilo que relataram baseou-se quase exclusivamente naquilo que a recorrente lhes disse. Nomeadamente, nenhuma delas alguma vez esteve com o suposto casal ou se relacionou directamente com Fernando.

Os factos de que aquelas duas testemunhas revelaram ter conhecimento directo são insuficientes para que se possa considerar que a recorrente e Fernando alguma vez viveram um com o outro em união de facto.

Numa ocasião, a recorrente levou SG à casa de Fernando, que aí se não encontrava. A recorrente mostrou-lhe o interior da casa, nomeadamente “o quarto deles, onde ambos dormiam”. Ou seja, SG viu aquilo que a recorrente lhe mostrou e ouviu aquilo que a recorrente lhe disse. Dessa visita nada de útil resultou para a prova de que a recorrente efectivamente vivia nessa casa. O facto de a recorrente ter a chave da casa de Fernando não demonstra que ela aí residisse. Se fosse empregada doméstica, seria natural que tivesse a chave. Também é possível que a recorrente, em algum momento, tenha mantido alguma proximidade ou, mesmo, intimidade com Fernando, o que explicaria a posse da chave. Por si só, a posse da chave não demonstra que a recorrente vivesse na casa em questão, em união de facto com o proprietário desta.

Outro facto de que SG tinha conhecimento directo é o seguinte: como residia numa casa que dá para as traseiras da de Fernando, via, de vez em quando, este e a recorrente à janela. Também este facto pode ser explicado pelo facto de a recorrente ser empregada doméstica de Fernando, ou de, em algum momento, estes terem mantido um relacionamento íntimo, ou até de serem, simplesmente, amigos. Não demonstra que eles vivessem um com o outro em união de facto.

O facto de SG ter encontrado a recorrente e Fernando a fazer compras também não demonstra que eles vivessem um com o outro em união de facto. Se a recorrente fosse apenas empregada doméstica de Fernando, seria normal irem ambos às compras, para mais tendo este problemas cardíacos e motores.

No mais, o conhecimento de SG baseou-se exclusivamente naquilo que ouviu da recorrente: a suspeita de gravidez, a suposta vivência em comum com Fernando, a suposta alternância entre a casa da mãe e a deste último durante o período que antecedeu o óbito, a negação de que a recorrente fosse empregada doméstica de Fernando, os relatos de “coisas íntimas”, as supostas visitas a Fernando quando este esteve internado num hospital em Coimbra, os factos relativos à morte de Fernando.

Os factos de que IL teve conhecimento directo foram apenas os seguintes: encontrou, duas ou três vezes, a recorrente a almoçar com Fernando num restaurante na Nazaré, e viu-os algumas vezes a andar de automóvel juntos. No mais, só sabia aquilo que a recorrente lhe ia dizendo.

Uma das coisas que a recorrente lhe disse até é algo bizarra. Disse IL que a recorrente a convidou para ir a casa dela ver “o nosso quarto”, ou seja, o quarto onde ela e Fernando dormiriam. Porquê o quarto, especificamente?

Outros convites se seguiram, mas IL nunca foi à casa onde a recorrente supostamente viveria com Fernando. IL também nunca convidou o suposto “casal” para ir a sua casa, apesar de se apresentar como amiga íntima e de longa data da recorrente.

Igualmente bizarras eram as repetidas referências, relatadas por IL, que, nas suas conversas com a recorrente, esta fazia ao “nosso quarto”. Porquê esta obsessão com o quarto?

Em suma, os depoimentos das testemunhas SG e IL pouca utilidade têm para a prova dos factos em análise. No essencial, o que estas testemunhas sabiam baseava-se exclusivamente naquilo que a recorrente lhes dizia.

A recorrente juntou aos autos um escrito, a si dirigido, que, numa ocasião, Fernando deixou em casa. O teor desse escrito é o seguinte: “Margarida, bem vinda! Estás em tua casa! Um beijo muito muito grande!”. Este documento inculca precisamente o contrário daquilo que a recorrente pretende. Não faz sentido pôr à vontade, escrevendo “bem vinda” e “estás em tua casa”, a quem já lá resida. Pelo contrário, aquilo que se pretende com uma mensagem como esta é receber afavelmente, em casa, alguém que aí não reside. A parte final do referido escrito inculca o mesmo que o facto, provado, de a recorrente e Fernando terem viajado e passado férias um com o outro: em algum momento, eles mantiveram uma relação mais próxima ou, mesmo, íntima, um com o outro. A natureza exacta dessa relação não é clara, mas é seguro que, durante o tempo em que a mesma perdurou, a recorrente era mais que uma simples empregada doméstica de Fernando. O que, obviamente, não significa que eles tenham, alguma vez, vivido um com o outro em união de facto.

Por outro lado, surpreende a falta de documentos comprovativos de que a recorrente residisse, em algum momento, na mesma casa que Fernando. A recorrente alegou ter vivido com este em união de facto desde o final do ano de 2001 até 01.09.2014, data da morte. Quase 13 anos. Seria natural que a recorrente tivesse em seu nome algum contrato de fornecimento de serviços à alegada residência comum. Ou, ao menos, que algum contrato por si celebrado, respeitante à sua pessoa, estivesse domiciliado nessa morada. Por exemplo, decorre da prova produzida que a recorrente tinha uma viatura automóvel, pelo que se parte do princípio de que tinha carta de condução e seguro. Seria normal que a morada fornecida à entidade emitente da carta de condução e à seguradora fosse a da alegada residência comum. Também está provado que a recorrente trabalhava a tempo inteiro por conta de outrem, pelo que deveria fazer descontos para a segurança social. Seria normal que a morada indicada à entidade patronal e à segurança social fosse a da alegada residência comum. O mesmo se diga relativamente à situação fiscal da recorrente. Seria normal que a morada indicada à Autoridade Tributária e Aduaneira fosse a da alegada residência comum. Também é natural que a recorrente tivesse uma conta bancária, mais não seja para receber o seu vencimento. Seria normal que a morada fornecida ao banco fosse a da alegada residência comum. Em todas estas hipóteses, gerar-se-iam documentos indicando, como domicílio da recorrente, a casa onde esta afirma ter vivido com Fernando em união de facto. Todavia, nem um só documento dessa natureza foi junto aos autos. Este défice de prova documental tem de ser valorado no sentido de indiciar que a recorrente nunca viveu na mesma casa que Fernando.

Por último, abordemos a questão da aparente contradição resultante de ter sido, por um lado, julgado provado que a recorrente confeccionava as refeições para si e para Fernando a maior parte das vezes e se ocupava da lida doméstica, e, por outro, julgado não provado que, entre Abril de 2002 e a data da morte de Fernando, este e a recorrente vivessem na mesma casa como se fossem marido e mulher, partilhando cama e mesa. A explicação mais plausível seria, à partida, a de a recorrente ter sido empregada doméstica de Fernando. Contudo, ficou provado que a recorrente tinha e tem, desde 2004, um emprego a tempo inteiro, como assistente operacional, na (…), o que, em princípio, afastaria aquela hipótese. A isso se soma o facto de se ter provado que a recorrente e Fernando fizeram viagens e passaram férias juntos, nomeadamente na Madeira e no Algarve.

Lida a fundamentação expendida pelo tribunal a quo e ouvida a totalidade da prova produzida, parece-nos possível harmonizar os referidos factos.

A necessidade que Fernando tinha de uma empregada doméstica era limitada, o que é demonstrado pelo facto, referido pelas testemunhas VM e AF, de a empregada que aquele teve nos últimos meses da sua vida apenas trabalhar para si uma vez por semana, durante “umas horas”, às quintas-feiras. Sendo assim, era possível a recorrente ter um emprego a tempo inteiro e trabalhar, durante curtos períodos do dia, como empregada doméstica de Fernando.

A objecção de que não é habitual a entidade patronal e a empregada doméstica fazerem viagens e passarem férias um com o outro não tem um valor absoluto. Não é normal, mas é possível. Pode, na realidade, acontecer que duas pessoas ligadas entre si por um vínculo laboral passem a ter, em determinada altura, uma relação mais próxima, seja de amizade, seja mesmo mais íntima, que os leve a estar um com o outro fora do âmbito da prestação de trabalho, nomeadamente passeando e passando férias juntos. Tanto quanto isso pode acontecer com duas pessoas sem o referido vínculo laboral. Em qualquer caso, sem que tal implique a existência de uma união de facto entre essas duas pessoas. O facto de duas pessoas passarem férias e passearem juntas repetidamente poderá indiciar a existência de uma situação de união de facto, mas não mais do que isso. No caso da recorrente e de Fernando, tal indiciação é contrariada pelo conjunto de circunstâncias que acima analisámos, que não se compatibilizam com a existência da alegada situação de união de facto.

Inexiste, assim, fundamento para julgar provado qualquer dos factos que o tribunal a quo julgou não provados. Não basta a recorrente afirmar que vivia em união de facto com Fernando e duas testemunhas corroborarem essa afirmação para que isso fique demonstrado. Verificam-se demasiadas incongruências para que tal versão factual possa ser julgada provada.

Concluindo, a sentença recorrida deverá ser mantida na íntegra, improcedendo o recurso.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

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Évora, 26.10.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 12.10.2023

Processo n.º 3601/18.7T8LLE.E1

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Sumário:

1 – Numa situação em que o direito de propriedade sobre um imóvel faça parte, em regime de comunhão, de duas heranças distintas, importa distinguir o direito que faz parte de cada herança do direito de cada herdeiro à respectiva herança. O artigo 1405.º, n.º 2, do Código Civil é aplicável no primeiro nível. Os artigos 2078.º e 2091.º, n.º 1, do Código Civil, são aplicáveis no segundo nível.

2 – Se o proprietário de um prédio urbano, onde reside, e de um prédio rústico adjacente, acordar, com os membros de um agregado familiar, que estes passarão a residir consigo e a poder utilizar o prédio rústico com a contrapartida de lhe prestarem os cuidados pessoais de que necessita, os segundos tornar-se-ão possuidores dos prédios em nome do proprietário, nos termos do artigo 1253.º, al. c), do Código Civil. Serão, pois, meros detentores ou possuidores precários.

3 – Se, após a morte do proprietário e possuidor, continuarem a utilizar os prédios em termos idênticos àqueles em que o faziam em vida daquele, os membros daquele agregado familiar continuarão a ser meros detentores ou possuidores precários. Para se tornarem verdadeiros possuidores nos termos do direito de propriedade, terão de inverter o título da posse.

4 – A inversão do título da posse tem de consistir numa oposição expressa através de actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como proprietário) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem.

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Autores/reconvindos: PG e MG.

Réus: HC e SC.

Reconvinte: SC.

Intervenientes principais, como associadas dos autores/reconvindos: MC, MCC e MS.

Pedido dos autores: Condenação dos réus a reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre os dois prédios identificados na petição inicial e a restituírem os mesmos prédios, livres de pessoas e coisas.

Pedido reconvencional: Declaração de que os réus são os legítimos possuidores dos prédios reclamados nos autos; condenação dos autores a reconhecerem que os réus são os legítimos proprietários dos prédios; reconhecimento, aos réus, do direito de propriedade dos prédios por via da usucapião; que seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor dos autores.

Sentença: Julgou a acção procedente, declarando os autores, na qualidade de herdeiros de TH, titulares, em comum e sem determinação de parte, do direito de compropriedade, na proporção de ½, dos dois prédios identificados na petição inicial, e condenando os réus a restituírem os mesmos prédios aos autores, livres de pessoas e coisas; julgou a reconvenção improcedente, absolvendo os autores/reconvindos e as chamadas/reconvindas do pedido.

*

Os réus interpuseram recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A. Uma vez que a douta decisão ordena a restituição da casa de habitação dos réus, nos termos do art.º 647º, nº 3 do CPC deve ser dado efeito devolutivo ao presente recurso.

B. A meritíssima Juiz a quo não teve em devida consideração os depoimentos das testemunhas:

− JBB – Em 22 de novembro pelas 13:21h;

− NFS – Em 22 de novembro, pelas 13:31h;

− MPG - Em 22 de novembro, pelas 13:48h;

− JDC: - Em 22 de novembro, pelas 13:59h;

− JCP (filho da ré): - Em 22 de novembro, pelas 14:40h;

− AAA – em 6 de dezembro pelas 13:50.

C. Dos depoimentos destas testemunhas, resulta claramente que deveria ter sido dados como provados os seguintes factos:

- Os Réus deram continuidade à posse que tinha sido dada pelos anteriores proprietários desde 1991;

- Desde 1991 os Réus agiram com a intenção dar continuidade a essa posse;

- Só com a citação os Réus tiveram conhecimento de que existiam interessados nos prédios;

- Até à data da propositura da acção ninguém reclamou a propriedade dos prédios aos Réus;

- Os Autores nunca reclamaram contra a presença e utilização dos imóveis por parte dos Réus.

D. Deve, nos termos do art.º 662.º, nº 1 do CPC determinar-se a alteração da matéria de facto dada como provado pela sentença em recurso e dar-se como provados estes factos.

E. E sendo assim, como se considera, não podia a meritíssima Juiz deixar de considerar que os réus são os verdadeiros proprietários do prédio sub judice, nos termos do art.º 1296.º do CC.

F. A sentença a quo considera que os autores sendo proprietários de metade do prédio deverão ser empossados da totalidade do prédio.

G. Pelo art.º 1405.º, nº 2 do Código Civil - Cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro.

H. Porém, no presente caso não estamos perante um caso de compropriedade em que se possa determinar que os AA., são proprietários de metade, nem os AA., fazem esse pedido ou invocam essa qualidade de comproprietários.

I. A presente ação é intentada como herdeiros do prédio e o normativo a aplicar terá de ser o art.º 2091.º do C. C. que determina que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.

J. Ao não ter em conta este regime normativo, a douta sentença produz um problema que não vai ser possível resolver já que os réus se intitulam proprietários e sendo determinado que os AA., são proprietários de metade terão de interpor ação de divisão de coisa comum nos termos do art.º 925.º do CPC.

K. Resulta claramente que a presente ação não cumpre a exigência do art.º 33º do CPC já que ao não respeitar o citado art.º 2091º do CC, a decisão não produz “o seu efeito útil normal” (nº 2 do art.º 33.º), ou seja não “regula definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado” (n.º 3 do art.º 33.º).

L. Os AA., teriam de vir em conjunto com todos os herdeiros, proceder à reivindicação da propriedade e da respetiva entrega e se alguns não quisessem intervir, cabia-lhes deitar mão da ação de suprimento nos termos do art.º 1000.º a 1005.º do CPC.

M. A própria meritíssima juiz a quo, no decorrer do processo “voltou atrás” e quis corrigir o erro inicial de chamar a juízo as restantes herdeiras, sendo que os autos já se encontravam inquinado - basta cfr., despacho datado de 15.06.2020.

N. Por mera cautela de patrocínio, cumpre, em acréscimo, demonstrar cabalmente que mesmo que se pudesse considerar que algum destes fundamentos configurasse uma efetiva causa de procedência da ação, a mesma não seria apta a produzir os efeitos pretendidos pelos Autores, atenta a sua insusceptibilidade de se fazer por exemplo a tradição de metade de um bem imóvel da forma como o tribunal a quo determinou.

O. Por sua vez, nas Cadernetas Prediais Urbanas, é referido que é TH o cabeça de casal com propriedade plena.

P. Os Autores afirmaram ainda na petição inicial no seu artigo sétimo que “Os bens imóveis supramencionados foram adquiridos por via de sucessão mortis causa pelos descendentes do de cujus, PG e MG, de ora avante os Autores”.

Q. O que é totalmente falso, porque os Autores a adquirir algo apenas adquiriram metade do quinhão hereditário, o que decorre expressamente dos documentos que os próprios Autores juntam nos presentes autos.

R. Não obstante, os Autores no artigo 19.º da petição inicial, posteriormente aperfeiçoada, reconheceram MCC, residente em (…), como uma das herdeiras e que desconheciam os restantes herdeiros cujas identidades se desconhece. Por essa razão, não conseguiram os Autores registar a propriedade plena dos referidos imóveis.

S. É inegável, que os Autores não são os proprietários plenos dos bens imóveis objeto dos presentes autos.

T. Com efeito, todas as dúvidas foram dissipadas com o ofício do Serviço de Finanças de Loulé, que juntou o processo de imposto sucessório n.º 35502 de MMC ocorrido a 23/04/1992.

U. Do processo de imposto sucessório acima referido, resulta que a falecida deixou o seu quinhão hereditário (bens imóveis dos presentes autos) a MC, MCC e MVC (esta também falecida à data do mesmo) e que as mesmas deixarão aos sobrinhos da testadora, suas filhas e irmãs.

V. Mais uma razão pela qual os Autores não conseguiram registar a propriedade plena dos referidos imóveis, nem tão pouco sabiam deste testamento, ou não o quiseram juntar. Juntaram apenas o testamento que mais lhes servia.

W. Não obstante, do ofício do Serviço de Finanças de Loulé, que consta dos presentes autos - conclui-se que existem vários herdeiros legítimos e não apenas os próprios Autores que a todo o custo pretendem “só para si” a propriedade dos bens imóveis que são discutidos nos presentes autos.

Y. Em última instância, nunca poderiam os Autores retirar os Réus de metade dos bens imóveis, pelo menos!

X. Não podem os Autores despejar os Réus de um imóvel em que apenas alegam metade do mesmo.

Z. O novo facto trazido ao processo por parte do Serviço de Finanças de Loulé, demonstra claramente que a doação, pelo proprietário/autor do testamento, dos imóveis aos réus, que está na origem da usucapião alegada nos autos, é posterior ao testamento.

AA. A vontade expressa, pelo proprietário/autor do testamento, já posteriormente à outorga do testamento a favor dos AA, de aprovar a ocupação dos prédios pelos RR como seus proprietários e com animus de aquisição, configura uma evidente revogação do testamento.

BB. Essa ocupação pelos RR., com animus de aquisição é feita desde há mais de 20 anos, à vista de todos e sem oposição de ninguém, designadamente, dos Autores.

CC. Os beneficiários do testamento desinteressaram-se pelos seus quinhões hereditários.

DD. O que também consubstancia uma vontade expressa de aceitar a revogação do testamento e aceitação da usucapião pelos RR..

EE. Como é comummente sabido e resulta da lei, a aquisição da propriedade, por usucapião do identificado imóvel está dependente da verificação destes requisitos legalmente exigidos: a posse em nome próprio do bem, ininterruptamente, por determinado período (de cinco a vinte anos), à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que é o seu exclusivo dono.

FF. Dúvidas pois não podem restar que há muito se constituiu por via da usucapião o direito de propriedade privada dos Réus sobre os prédios identificados na petição inicial.

GG. Conforme, singelamente já se percebeu pelo depoimento das testemunhas até ao momento, a vontade expressa por BFA foi que os RR., ficassem com a propriedade para estes, em compensação da assistência que lhe prestavam na velhice.

HH. Assim, existe fundamento jurídico para se considerar nula a ação em causa e, consequentemente, não se poderia ter decidido pelo deferimento “ainda que parcial” da mesma.

II- Até a simples questão do IMI foi mal interpretada pelo Tribunal a quo, já que os RR., juntaram prova documental do pagamento.

JJ. O carácter necessário do litisconsórcio dimana da ausência no processo, como parte, de alguém cuja intervenção na relação controvertida é exigida pela lei ou pelo negócio jurídico por forma a obter uma decisão apta a produzir, sobre a relação material controvertida, o seu efeito útil normal.

KK. É inquestionável que todos os herdeiros são titulares da relação material controvertida a propriedade do bem reivindicado para a herança e que todos têm interesse direto em demandar.

LL. Deve assim ser revogada a sentença em recurso por ter violado o art.º 1296.º do Código Civil, que permita concluir pela propriedade do imóvel por parte dos réus e ainda por ter violado o art.ºs 33.º do CPC, conjugado com o art.º 2091.º do CC., que obriga a litisconsórcio de todos os herdeiros, absolvendo-se os réus do pedido.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.

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Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as questões a resolver são as seguintes:

- Legitimidade processual dos recorridos PG e MG;

- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

- Verificação dos pressupostos da usucapião.

*

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1) Encontra-se inscrito a favor dos Autores, em comum e sem determinação de parte ou direito, por sucessão hereditária por óbito de TH, ½ do direito de propriedade do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo (…) e ½ do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo (…), ambos sitos em (…), freguesia de (…), concelho de Loulé, e descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs (…) e (…), respectivamente.

2) Os prédios identificados em 1) faziam parte do património conjugal de MMC e BFA, casados que foram entre si sob o regime de comunhão geral de bens, falecidos em 23.04.1992 e 03.06.1994, respectivamente, sem terem deixado descendentes.

3) Por testamento lavrado em 26.10.1978, MMC instituiu como seu herdeiro o marido BFA, com a condição de o mesmo conservar os bens que compreendem a meação da testadora, não podendo deles dispor, por acto entre vivos ou mortis causa, e revertendo os mesmos, por óbito daquele, para os sobrinhos da testadora.

4) Por testamento lavrado em 25.06.1991, BFA instituiu TH como seu único e universal herdeiro.

5) Em 23.08.2013 faleceu TH, tendo deixado como únicos e universais herdeiros o filho PG e a neta MG, filha da sua pré-falecida filha MM.

6) Em data não concretamente apurada, no ano de 1991, a Ré e o seu agregado familiar, do qual o Réu seu filho fazia parte, foram autorizados por BFA a residir e utilizar os prédios referidos em 1) acordando, como contrapartida, prestar-lhe os cuidados pessoais que o mesmo carecesse bem como realizar as actividades relacionadas com a agricultura.

7) O de cujus BFA manteve a posse, como proprietário, dos prédios identificados em 1) até à data da sua morte, ali tendo a sua residência.

8) Os Réus estavam cientes do referido em 7).

9) Após o óbito de BFA os Réus continuaram, ininterruptamente, de forma pacífica e à vista de todos, a ali residir e a tratar e cultivar o terreno conforme faziam em vida daquele.

10) A Ré celebrou contrato de fornecimento de energia eléctrica para o local em seu nome e que se encontra em vigor desde, pelo menos, 20.04.2010.

11) Em 19.01.2018 a Ré inscreveu-se no recenseamento eleitoral indicando a morada do prédio urbano referido em 1) como sendo a sua residência.

12) No ano de 2014, em datas não concretamente apuradas e em diferentes momentos temporais, MS e posteriormente os ora Autores deslocaram-se aos prédios e, identificando-se como proprietários, interpelaram os Réus solicitando que os desocupassem, o que estes que recusaram.

13) Desde a data do óbito de TH que os Autores, herdeiros deste, pagam o IMI referente aos imóveis.

14) Os Autores intentaram a presente acção em 15.11.2018, tendo a Ré sido citada em 21.11.2018 e o Réu em 21.04.2019.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

a) Os Réus deram continuidade à posse que tinha sido dada pelos anteriores proprietários desde 1991.

b) Desde 1991 os Réus agiram com a intenção referida em a).

c) Só com a citação os Réus tiveram conhecimento de que existiam interessados nos prédios.

d) Por várias vezes TH solicitou aos Réus que saíssem dos prédios.

e) Até à data da propositura da acção ninguém reclamou a propriedade dos prédios aos Réus.

f) Os Autores nunca reclamaram contra a presença e utilização dos imóveis por parte dos Réus.

g) Os Réus pagam o IMI relativo aos prédios.

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Questão prévia:

A questão, suscitada pelos recorrentes, do efeito da interposição do recurso, encontra-se ultrapassada. Tal como aqueles pretendiam, foi atribuído efeito suspensivo ao recurso.

Legitimidade processual dos recorridos PG e MG:

Os recorrentes sustentam que os recorridos PG e MG carecem de legitimidade processual devido a preterição de litisconsórcio necessário, nos termos do artigo 33.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC). Fundamentam esta tese com argumentação que assim se resume: 1) Os recorridos PG e MG propuseram a acção na qualidade de herdeiros de TH, pelo que é aplicável, não o artigo 1405.º, n.º 2, do Código Civil (CC), mas sim o artigo 2091.º do mesmo código, que determina que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros; 2) Consequentemente, os recorridos PG e MG tinham de propor a acção acompanhados pelos restantes herdeiros; 3) O desrespeito pelo disposto no artigo 2091.º do CC impede a sentença de produzir o seu efeito útil normal; 4) Com efeito, tendo os recorridos PG e MG, em conjunto, direito a metade de cada prédio, não poderão ser empossados na totalidade destes; mas também não podem ser empossados em metade de cada prédio, por ser impossível a tradição de metade de um imóvel.

Esta argumentação não procede, por várias razões.

Desde logo, os recorrentes confundem dois níveis distintos de direitos: por um lado, o direito de propriedade sobre cada um dos prédios dos autos; por outro, os direitos de cada grupo de herdeiros sobre a respectiva herança. A questão da aplicabilidade do artigo 1405.º, n.º 2, do CC, coloca-se no primeiro nível. A questão da aplicabilidade do 2091.º do CC coloca-se no segundo nível. Desenvolvamos esta ideia.

Os direitos de propriedade sobre os prédios dos autos integravam o património conjugal de MMC e BFA, casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens e falecidos, respectivamente, em 23.04.1992 e 03.06.1994, sem descendentes. Por testamento lavrado em 26.10.1978, MMC instituiu BFA como seu herdeiro, com o encargo de conservar a herança, para que esta revertesse, por sua morte, para os sobrinhos da testadora. Por testamento lavrado em 25.06.1991, BFA instituiu TH como seu único e universal herdeiro.  Em 23.08.2013, morreu TH, tendo deixado, como únicos e universais herdeiros, o recorrido PG, seu filho, e a recorrida MG, sua neta.

Portanto, TH herdou a meação de BFA e as sobrinhas de MMC herdaram a meação desta, com a particularidade de isso ter acontecido na sequência da morte, não da testadora, mas de BFA. Não obstante, é fora de dúvida que as sobrinhas de MMC são herdeiras desta e não de BFA. Estamos perante um fideicomisso (artigos 2286.º a 2296.º do CC), sendo BFA o fiduciário e as sobrinhas de MMC fideicomissárias[1].

Passou, assim, a existir uma situação de comunhão, entre duas heranças distintas, na titularidade do direito de propriedade sobre cada prédio, à qual, nos termos do artigo 1404.º do CC, são aplicáveis as regras da compropriedade, com as necessárias adaptações. Uma dessas regras é a estabelecida pelo artigo 1405.º, n.º 2, do CC: cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro. Logo, qualquer das heranças pode reivindicar os prédios objecto da comunhão.

Passamos ao segundo nível de direitos, dentro de cada uma das heranças. Coloca-se a questão de saber se os recorridos PG e MG têm legitimidade para, por si sós, proporem esta acção na qualidade de herdeiros de TH. Como anteriormente referimos, é neste âmbito que se coloca a questão da aplicabilidade do artigo 2091.º do CC. O n.º 1 deste artigo estabelece que, fora dos casos declarados nos artigos anteriores e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.

TH foi o único herdeiro de BFA. Os herdeiros de TH são apenas os recorridos PG e MG. Facilmente se conclui que a exigência feita pelo artigo 2091.º, n.º 1, do CC, se encontra cumprida. Todos os herdeiros de TH pretendem exercer, em conjunto, o direito da herança deste sobre os prédios dos autos. 

Mais, o artigo 2091.º, n.º 1, do CC, ressalva o disposto no artigo 2078.º do mesmo código. O n.º 1 deste artigo estabelece que, sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens não lhe pertencem por inteiro. Logo, quer o recorrido PG, quer a recorrida MG, têm legitimidade para, sem o outro, pedir a restituição dos bens que constituem a herança de TH. No que concerne à meação de BFA sobre os prédios dos autos, trata-se de um pedido de restituição através do exercício sucessivo do direito à herança de TH e do direito, integrado nesta herança, sobre os prédios dos autos. Como decorre da exposição anterior, qualquer dos referidos recorridos tem legitimidade para exercer o direito da herança de TH sobre os prédios dos autos e, quer esta herança, quer a de MMC, têm legitimidade para, através de qualquer dos seus herdeiros, reivindicar aqueles prédios.

Mais ainda, as herdeiras de MMC são as intervenientes principais, como associadas dos recorridos PG e MG, pelo que, ainda que a acção tivesse de ser proposta, em conjunto, pelos herdeiros, quer de TH, quer de MMC, todos eles figuram como autores. Em caso algum ocorreria preterição de litisconsórcio necessário.

Argumentam os recorrentes, por outro lado, que, integrando a herança de TH apenas a meação de BFA nos direitos de propriedade sobre os prédios dos autos e não a totalidade desses direitos, não poderá ser entregue, aos recorridos PG e MG, a totalidade dos prédios. Não sendo, todavia, possível entregar, a estes recorridos, apenas metade de cada prédio, a sentença não poderá produzir o seu efeito útil normal. Daí a ilegitimidade dos mesmos recorridos, nos termos do artigo 33.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.

Mesmo abstraindo da circunstância de se encontrarem em juízo, na qualidade de autores e reconvindos, quer os herdeiros de TH, quer as herdeiras de MMC, os recorrentes não têm razão. O sentido da permissão contida no artigo 1405.º, n.º 2, do CC, é precisamente o de qualquer consorte poder obter a restituição da coisa comum, ou seja, da totalidade desta. Se assim não fosse, esta norma ficaria esvaziada de conteúdo, por impossibilidade, física ou legal, de divisão da generalidade das coisas. Logo, a sentença que julgasse procedente acção proposta pelos recorridos PG e MG, ou até mesmo só por um deles, produziria o seu efeito útil normal.

Concluindo, os recorridos PG e MG Guerreiro têm legitimidade processual.

Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Os recorrentes pretendem que o conteúdo das als. a) a c), e) e f) dos factos não provados seja julgado provado em sede de recurso.

Está em causa a seguinte matéria:

a) Os réus deram continuidade à posse que tinha sido dada pelos anteriores proprietários desde 1991.

b) Desde 1991 os réus agiram com a intenção referida em a).

c) Só com a citação os réus tiveram conhecimento de que existiam interessados nos prédios.

e) Até à data da propositura da acção ninguém reclamou a propriedade dos prédios aos réus.

f) Os autores nunca reclamaram contra a presença e utilização dos imóveis por parte dos réus.

A al. a) contém apenas matéria de direito, razão suficiente para não poder ser incluída no enunciado dos factos provados (nem no dos não provados, acrescente-se). Como veremos no ponto seguinte da fundamentação, a questão, evidentemente jurídica, de saber se os recorrentes são possuidores, nos termos do direito real que pretendem adquirir através da usucapião, que é o direito de propriedade, dos prédios dos autos, e, na hipótese afirmativa, desde quando, ocupa lugar central na análise jurídica da causa. Não faria sentido trazer para a matéria de facto provada, antecipando-a, a conclusão a que, na sede própria, chegaremos sobre tal questão.

A al. b) fica prejudicada pelo que afirmámos relativamente à al. a). Sendo a alegada intenção dos recorrentes referida, não a um facto, mas à qualificação jurídica de um facto, não pode ser julgada provada ou não provada. Não obstante, fazendo um esforço no sentido de divisar que facto os recorrentes têm em vista através da referência da intenção à “posse”, podemos concluir que se trata da intenção de actuar nos termos descritos nos n.ºs 6 e 9 a 12 do enunciado dos factos provados. Ora, a referência autónoma a tal intenção neste enunciado é inútil. A existência de tal intenção já resulta daqueles pontos da matéria de facto provada, pois nenhum dos factos aí descritos faria sentido sem ela. No ponto seguinte da fundamentação, caracterizaremos tais factos e a intenção com que foram praticados.

O conteúdo das als. c), e) e f) foi desmentido pelos próprios recorrentes, nos seus depoimentos de parte. Ambos afirmaram que, antes da propositura desta acção, os recorridos foram aos prédios dos autos e lhes disseram que estes lhes pertenciam, pretendendo a sua desocupação. Estranha-se que, ainda assim, pretendam que seja julgada provada a referida matéria.

Concluindo, não há fundamento para proceder às alterações que os recorrentes pretendem ver introduzidas na decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto.

Verificação dos pressupostos da usucapião:

Para fundamentar a sua pretensão de ver qualificada a sua actuação sobre os prédios dos autos, desenvolvida desde 1991, como uma posse, em nome próprio, nos termos do direito de propriedade, os recorrentes invocam vários argumentos, que passamos a analisar.

Os recorrentes afirmam que, posteriormente à outorga do testamento a favor de TH, BFA manifestou, de forma expressa, a vontade de aprovar a ocupação dos prédios pelos recorrentes, como seus proprietários e com animus de aquisição. Acrescentam os recorrentes que tal manifestação de vontade configura uma evidente revogação do testamento.

A referida manifestação de vontade por parte de BFA não consta da matéria de facto provada. Aquilo que se provou foi que, em 1991, BFA autorizou a recorrente HC e os restantes membros do agregado familiar desta a habitar e utilizar os prédios dos autos, tendo ficado acordado que, como contrapartida, os membros do referido agregado familiar passariam a prestar-lhe os cuidados pessoais de que ele carecesse, bem como a realizar as actividades relacionadas com a agricultura. BFA continuou a residir nos prédios, mantendo-se como possuidor destes nos termos do direito de propriedade. Em momento algum BFA abandonou os prédios ou cedeu a sua posse aos membros do agregado familiar dos recorrentes. Estes foram, simplesmente, autorizados a habitar e a utilizar os prédios como contrapartida por uma prestação de serviços. BFA e, certamente, os membros adultos do agregado familiar dos recorrentes em 1991, celebraram um contrato mediante o qual estipularam aquelas obrigações. Uma vez que passaram, a partir de então, a exercer poderes de facto sobre os prédios, os réus e os restantes membros do seu agregado familiar tornaram-se possuidores dos mesmos, mas em nome de BFA, o qual manteve a sua posse em nome próprio. Ora, nos termos do artigo 1253.º, al. c), do CC, quem possui em nome alheio não é um verdadeiro possuidor, mas um mero detentor ou possuidor precário.

Com a morte de BFA, a sua posse sobre os prédios foi continuada por TH, seu único herdeiro, e pelas herdeiras do falecido cônjuge daquele. Relativamente a TH, isto resulta directamente do artigo 1255.º do CC, que estabelece que, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa. Relativamente às herdeiras de MMC, resulta da conjugação dos artigos 1255.º, 2286.º, 2290.º, n.º 1, e 2293.º, n.º 1, do CC. Com a morte de TH, os recorridos PG e MG continuaram a posse deste, nos termos do artigo 1255.º do CC. Os recorrentes e os restantes membros do seu agregado familiar permaneceram nos prédios. Actualmente, apenas os recorrentes o fazem.

Coloca-se a questão de saber se, após a morte de BFA, os recorrentes inverteram o título da posse e, assim, se tornaram possuidores, em nome próprio, nos termos do direito de propriedade. O artigo 1263.º, al. d), do CC, prevê, como forma de aquisição da posse, a inversão do título da posse. O artigo 1265.º do CC estabelece que a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse. Não basta uma mera alteração da intenção com que se exerce o poder de facto sobre a coisa para que se verifique a inversão do título da posse. “A inversão do título da posse tem de consistir numa oposição expressa através de actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como proprietário) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem”[2].

Tanto quanto resulta da matéria de facto provada, em momento algum os recorrentes inverteram o título da posse, convertendo a detenção em posse em nome próprio nos termos do direito de propriedade. Limitaram-se a exercer poderes de facto sobre os prédios nos exactos termos em que o faziam em vida de BFA, ou seja, como meros detentores.

Até 2014, é evidente que assim foi. No ano de 2014, em datas não concretamente apuradas e em diferentes momentos temporais, MS e, posteriormente, PG e MG, deslocaram-se aos prédios dos autos e, identificando-se como proprietários, interpelaram os recorrentes, solicitando que estes os desocupassem. Os recorrentes recusaram-se a desocupar os prédios. Contudo, não resulta da matéria de facto se os recorrentes invocaram algum fundamento para essa recusa, nomeadamente que se consideravam proprietários dos prédios. Apenas que se recusaram a desocupar os prédios. Ora, a recusa de entrega dos prédios, sem mais, não configura uma inversão do título da posse. O detentor pode recusar-se a entregar a coisa ao proprietário por razão diversa da de pretender exercer, sobre ela, uma posse nos termos do direito de propriedade. Por exemplo, pode recusar a entrega por duvidar que quem se apresentou perante si, arrogando-se proprietário da coisa, o seja realmente, ou por não estar em condições de entregar a coisa no momento em que para tanto é interpelado (o que é normal tratando-se de uma casa utilizada para habitação), sem que tenha, ele próprio, a intenção de actuar sobre a coisa como se fosse o seu proprietário. Daí que, nem sequer em 2014, os recorrentes tenham invertido o título da posse.

A 1.ª parte do artigo 1290.º do CC estabelece que os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse. Não tendo os recorrentes invertido o título da posse, não poderão adquirir o direito de propriedade sobre os prédios dos autos por usucapião.

A conclusão seria idêntica se se considerasse que os recorrentes inverteram o título da posse em data indeterminada do ano de 2014. Em tal hipótese, por força da 2.ª parte do artigo 1290.º do CC, o tempo necessário para a usucapião só começaria a contar desde a data da inversão do título. Tendo os recorrentes sido citados em 21.11.2018 (HC) e 13.04.2019 (SC), nem sequer 5 anos desse hipotético prazo teriam decorrido até à sua interrupção por efeito do disposto nos artigos 1292.º e 323.º, n.ºs 1 e 2, do CC. Ora, o prazo mais curto de usucapião de imóveis é de 5 anos e é contado desde a data do registo da mera posse, nos termos do artigo 1295.º, n.º 1, al. a), do CC, registo esse que, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, pressupõe uma posse pacífica e pública por tempo não inferior a 5 anos, assim se explicando a excepcional curteza daquele prazo.

Concluímos, assim, que o pedido reconvencional não pode proceder e, por outro lado, que os recorrentes não têm título capaz de obstar à pretensão dos recorridos PG e MG de que os prédios lhes sejam restituídos. Sendo assim, a sentença recorrida deverá manter-se, improcedendo o recurso.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.

*

Évora, 12.10.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto



[1] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Sucessões, 4.ª edição, revista, Coimbra Editora, Limitada, 1989, p. 256.

[2] Acórdão do STJ de 17.12.2014 (Maria Clara Sottomayor).

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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