Processo n.º 988/19.8T8TMR.E2
*
Sumário:
1
– As declarações de parte constituem um meio de prova que não pode ser
desvalorizado a priori, antes lhes
devendo ser atribuído um valor probatório autónomo e podendo, consequentemente,
fundar a convicção do julgador sobre um facto sem necessidade de corroboração
por outros meios de prova.
2
– Vivendo duas pessoas em união de facto durante cerca de 13 anos, é normal que
existam documentos que liguem cada uma delas à casa que alegadamente constituía
a residência comum.
3
– Não apresentando a parte onerada com o ónus da prova da união de facto qualquer
documento dessa natureza, tal défice de prova documental deve, ele próprio, ser
valorado pelo tribunal para formar a sua convicção, como indiciador de que
aquela união não se verificava.
4
- Não basta a parte afirmar que vivia em união de facto com determinada pessoa e
duas testemunhas corroborarem essa afirmação para que tal fique demonstrado.
(Sumário elaborado apenas para
publicação neste blog)
*
Autor:
Caixa Geral de Aposentações, I.P..
Ré:
Margarida.
Pedido:
Declaração de inexistência de uma união de facto entre a ré e Fernando.
Sentença:
Julgou a acção procedente, declarando a inexistência de união de facto entre a
ré e Fernando.
*
A
ré interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes
conclusões:
1 – Da
impugnação da decisão sobre a matéria de facto – concretos pontos de facto que
considera incorrectamente julgados:
A
Recorrente discorda em absoluto da decisão sobre a matéria de facto que julgou
não provados os seguintes factos por si alegados:
1 – A
ré viveu efectivamente em união de facto com o falecido Fernando, com quem
residiu em casa deste sita em (…), Tomar, desde Abril de 2002 ininterruptamente
até à data da sua morte.
2 – A
ré e Fernando viviam como se de marido e mulher se tratasse partilhando cama,
mesa e habitação.
4 – A ré
e Fernando auxiliavam-se e respeitavam-se mutuamente como se de marido e mulher
se tratasse.
5 – Trocavam
mensagens de cariz amoroso e íntimo pelo telemóvel e deixava-lhe bilhetes
escritos em casa.
6 –
Saíam juntos para fora da cidade, onde eram vistos a passear, almoçar e jantar
e no café como se de marido e mulher se tratasse.
8 –
Enquanto a ré manteve o seu relacionamento amoroso com Fernando este já não
exercia como padre.
11 -
No último ano de vida de Fernando, este e a sua companheira, ora ré,
contrataram uma empregada de serviço doméstico para fazer a limpeza da casa e
tratar da roupa de ambos.
2 –
Pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem
estribar a convicção do juiz de forma auto-suficiente, assumindo um valor
probatório autónomo.
CATARINA
GOMES PEDRA, A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo
Civil. Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito,
Universidade do Minho, 2014, p. 145, afirma que:
Texto
de 20.1.2017, acessível em
https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia536.html#links.
3 –
Com maior abertura ao protagonismo das declarações de partes, MARIANA FIDALGO,
A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, p. 80, afirma claramente que:
«(…)
ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente
desprezado nem objeto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito
da lei e do princípio da livre apreciação da prova. (…) defendemos que será
admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação
da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios
de prova.»
Por
nós, entendemos que a posição mais correta radica na tese mais ampla e
permissiva sobre a potencialidade e centralidade das declarações de parte na
formação da convicção do juiz.
4 – É
do conhecimento público a existência de padres que mantêm relacionamentos
amorosos, além de, por outro lado, termos ainda notícia a nível nacional e
internacional de abusos de cariz sexual sobre menores, que, em virtude do seu
elevado número deram lugar à constituição de comissões de inquérito para
averiguação destes casos, pelo que, causa “estranheza” à recorrente que a meritíssima
juíza a quo tenha manifestado a sua
“estranheza” (passamos a redundância) pelo facto de Fernando ser padre (e,
manter consigo um relacionamento como se de marido e mulher se tratasse,
vivendo em união de facto), pois antes de o ser, é um ser humano, como qualquer
um de nós, com sentimentos, emoções, carências…
5 – E,
como a própria recorrente teve oportunidade de explicar ao tribunal no início
do seu depoimento, só passados alguns anos após o óbito do seu companheiro,
requereu ao Caixa Geral de Aposentações a atribuição da sua pensão de
sobrevivência, por uma questão de ponderação pessoal, pois tem a consciência de
que iria ter de enfrentar o preconceito de se ter envolvido emocionalmente com
um padre e ter vivido com ele, como se fossem marido e mulher, no entanto,
ainda assim, muniu-se da coragem necessária para se manifestar junto de
instituições públicas, a quem relatou esta realidade com verdade, que, de resto
já era do conhecimento público da cidade onde vivia com Fernando, no intuito de
fazer valer o direito que assiste, a ser reconhecida esta união de facto.
6 –
Crê-se assim que a valoração dos depoimentos da recorrente e das suas
testemunhas pelo tribunal a quo foi
feita de forma parcial (eivada de preconceitos e de considerações de ordem
moral que não competem ao tribunal tecer e muito menos utilizá-los para fundamentar
decisões judiciais, que, no entendimento da recorrente se devem fazer com
recurso à legislação, doutrina e jurisprudência!
7 –
Sobre a alegada circunstância de a recorrente não se mostrar emocionalmente
afectada quando se falou do dia do óbito – tal justifica-se pelo decurso do
tempo ocorrido desde a data do óbito – 01.09.2014 e a data da realização da
audiência de julgamento – 07.07.2020!!!
8 –
Quanto ao facto de o corpo de Fernando ter sido detectado por terceiros e não
pela recorrente, deve-se ao facto desta, na altura, se encontrar a dar apoio à
sua mãe com 100 anos de idade!
9 – A
actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma
multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade,
as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a
seriedade, o raciocínio, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos
de resposta, as coincidências, o acessório, as circunstâncias, o tempo
decorrido, o contexto sócio-cultural, que, quer a recorrente (em sede de declarações
de parte) quer as suas testemunhas demonstraram conhecer ampla e
aprofundadamente!
10 –
Com efeito, amiúde se não na maioria dos casos, quem tem melhor razão de
ciência do que a própria parte?
Em
terceiro lugar, o texto do artigo 466.º não degradou o valor probatório das
declarações de parte, nem pretendeu vincar o seu caráter subsidiário e/ou
meramente integrativo e complementar de outros meios de prova.
11 – O
julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só
depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e
depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés.
12 – A
credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em
observância de máximas abstratas pré-constituídas, sob pena de esvaziarmos a
utilidade e potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos,
novamente, a raciocínios típicos da prova legal de que foi exemplo o brocardo testis unis, testis nullus (uma só
testemunha, nenhuma testemunha).
13 –
As declarações da parte podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada
de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar –
congruentemente – outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de
julgamento.
14 –
Inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações da parte e a
prova testemunhal, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e
valorada segundo os parâmetros explicitados.
15 –
Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o
único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem
alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.
16 –
As partes que presenciaram diretamente factos ou neles intervieram são
tecnicamente testemunhas dos mesmos.
Em
suma, a testemunha e a parte integram o testemunho em sentido lato enquanto
prova pessoal e histórica dos factos em discussão.
A
parte é a primeira das testemunhas, é de antever que sejam removidas as
anacrónicas reservas à admissibilidade do testemunho de parte como meio
epistemologicamente válido da formação da convicção do julgador.
17 –
Uma vez que os depoimentos das testemunhas arroladas pela recorrente, prestados
de forma isenta, coerente e convincente serviram para formar a convicção do tribunal
quanto a estes factos, por maioria de razão também deveriam ter servido, para
dar como provados os factos indicados sob os números 1 a 11.
18 –
Analisadas as passagens das declarações de parte e dos depoimentos das
testemunhas, assinaladas a negrito, verificamos que foram unânimes a confirmar
a ocorrência dos factos que, na sentença sub judice não foram considerados
provados – 1 a 11.
19 – Verifica-se
ter havido aqui erro de julgamento e erro na apreciação da prova.
20 –
Violou a decisão recorrida o disposto nos arts. 644.º do CPC, 341.º, 342.º do
CC.
Não
foram apresentadas contra-alegações.
O
recurso foi admitido.
*
Questão
a resolver: Se devem ser julgados provados os factos que permitiriam concluir
que a ré e Fernando viviam um com o outro em união de facto à data da morte
deste.
*
Na
sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:
1. Fernando
faleceu em 1 de Setembro de 2014.
2. Em
23 de Fevereiro de 2016, a autora, na qualidade de companheira do falecido,
veio habilitar-se à pensão de sobrevivência, juntando para o efeito a
documentação legalmente exigida: certidão de nascimento do falecido, certidão
de nascimento de si própria, declaração sob compromisso de honra e declaração
emitida pela junta de freguesia de atestando que à data do óbito, residia em
união de facto com o falecido há mais de dois anos.
3. Em
04 de Março de 2016, a Caixa Geral de Aposentações recebeu uma denúncia
anónima, informando que “A senhora em questão foi apenas empregada de limpeza
do referido falecido e pode-se comprovar através dos seus familiares (irmão), o
qual recebeu o subsídio de funeral. Caso venham a contactar este irmão ou
familiares do falecido também comprovam que a senhora D. Margarida foi, pelo
próprio falecido, afastado definitivamente de sua empregada cerca de 1 ano
antes do seu falecimento e encontrado sozinho na sua residência”.
4. Por
ofício de 10 de março de 2016, a Caixa Geral de Aposentações solicitou a VM,
irmão do falecido Fernando, solicitar o esclarecimento sobre o motivo pelo
qual, aquando o pedido de reembolso das despesas de funeral, informou não
existirem familiares com direito a prestações familiares.
5. Por
mail de 20 de março de 2016, VM veio informar a Caixa Geral de Aposentações do
seguinte: “Tendo eu conhecimento que esta senhora foi empregada do meu irmão,
tratando-lhe das limpezas da casa, e era remunerada com descontos para a S.S. e
que foi despedida mais de um ano antes do seu falecimento. Quando o meu irmão
fez a operação para colocar uma prótese numa perna Agosto de 2013 esta pessoa
já lá não trabalhava, e por não ter lá ninguém que tratasse dele, esteve a
fazer a recuperação na minha casa, bem como noutras alturas quando se
encontrava mais débil e ainda viveu muito tempo depois deste episódio. Foi como
empregada que o meu irmão sempre me falou dela. Por esta razão penso que não
tinha nada mais a declarar. Até porque na altura do falecimento era outra
empregada que estava a fazer este serviço. E foi esta nova empregada que foi
chamada para abrir a porta de casa, para a polícia (PSP) entrar, depois de os
vizinhos darem falta dele três dias, quando foi encontrado morto sozinho. Não
sei como o meu irmão sendo Padre Católico Apostólico Romano pudesse estar a
viver em união de facto!...”
6.
Entretanto, a Caixa enviou um ofício à Ré informando-a dos novos factos
trazidos ao procedimento administrativo.
7. A
Ré, em resposta, contestou as declarações do irmão do falecido declarando que
não foi empregada da limpeza do falecido o que poderá ser comprovado pela
família e amigo e que viveu em união da facto com o falecido tendo pernoitado
algumas noites fora nos últimos 3 a 4 meses antes do óbito por a sua mãe estar
doente e precisar de ajuda mas não apresentou documentos comprovativos de tais
factos.
8. A
R. tinha e tem o seu emprego a tempo inteiro como assistente operacional na (…),
onde trabalha desde 2004 até à presente data, embora tenha tido anteriormente
outros empregos.
9. A R
e o falecido fizeram férias juntos, viajaram juntos e faziam férias juntos
nomeadamente na Madeira e também foram passar várias vezes temporadas à praia
no Algarve.
10. A
R. confeccionava as refeições para os dois a maior parte das vezes bem e
ocupava-se da lide doméstica.
11. Fernando
já não exercia como Padre, nem tinha uma Paróquia atribuída desde Abril de
2002.
Na
sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:
1. A
R. viveu efectivamente em união de facto com o falecido Fernando com quem
residiu em casa deste sita em (…), Tomar, desde Abril de 2002 ininterruptamente
até à data da sua morte.
2. A
R. e Fernando viviam como se de marido e mulher se tratasse partilhando cama,
mesa e habitação.
3. A R
nunca foi empregada de serviço doméstico do seu companheiro que também nunca
lhe fez descontos para a Segurança Social nesta qualidade.
4. A
R. e Fernando auxiliavam-se e respeitavam-se mutuamente como se de marido e
mulher se tratassem.
5. Trocavam
mensagens com cariz amoroso e íntimo pelo telemóvel e deixava-lhe bilhetes
escritos em casa.
6. Saíam
juntos para fora da cidade, onde eram vistos a passear, almoçar e jantar e no
café como se de marido e mulher se tratasse.
7. Embora
com um certo recato devido à profissão de Padre do Fernando que por este motivo
nunca assumiu perante a sua família, designadamente junto dos irmãos o
relacionamento amoroso que mantinha com a R. dando-lhes até a entender que esta
era apenas sua empregada, para justificar a sua presença constante em sua casa.
8. Enquanto
a R. manteve o seu relacionamento amoroso com Fernando este já não exercia como
Padre.
9. Nos
últimos três ou quatro meses que precederam a sua morte, a R. teve de se
ausentar de casa algumas noites para pernoitar em casa de sua mãe, na altura
com 100 anos que, entretanto, adoecera.
10. Apesar
do que manteve a mesma relação de marido/mulher que mantinha com Fernando.
11. No
último ano de vida de Fernando, este e a sua companheira, ora, R. contrataram
uma empregada de serviço doméstico para fazer a limpeza da casa e tratar da
roupa de ambos.
*
Nas
suas alegações, a recorrente apresenta extensa argumentação tendente a
demonstrar que as declarações de parte constituem um meio de prova que não deve
ser desvalorizado a priori, antes lhe
devendo ser atribuído um valor probatório autónomo e podendo, consequentemente,
fundar a convicção do julgador sobre um facto sem necessidade de corroboração
por outros meios de prova.
Concordamos
com esta orientação e, lendo a fundamentação da decisão sobre a matéria de
facto, parece-nos que o mesmo acontece com o tribunal a quo, pois todos os reparos que este fez às declarações de parte
da recorrente se basearam no concreto conteúdo destas, que foi considerado não
credível em vários aspectos. Logo, é exclusivamente no plano da apreciação da
prova concretamente produzida que a análise da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto terá de
ser feita.
Na
conclusão 1, a recorrente afirma que a sua discordância tem por objecto a forma
como foi julgada a matéria que consta dos n.ºs 1, 2, 4, 5, 6, 8 e 11 dos factos
não provados. Todavia, quer do corpo das alegações, quer das conclusões 17 e
18, resulta que a recorrente pretende que todos os factos julgados não provados
pelo tribunal a quo (n.ºs 1 a 11)
sejam julgados provados.
Como
fundamento da sua pretensão, a recorrente invoca o teor das suas declarações de
parte e dos depoimentos das testemunhas SG e IL, considerando que de tais meios
de prova, concordantes entre si, resulta a matéria de facto que o tribunal a quo julgou não provada.
A
primeira observação a fazer é a de que as declarações de parte da recorrente e
os depoimentos das testemunhas SG e IL não foram os únicos meios de prova
produzidos na audiência final. Também aí depuseram as testemunhas VM e AF, as
quais apresentaram uma versão dos factos muito diferente. Portanto, contrariamente
à ideia que a recorrente pretende transmitir nas suas alegações de recurso, o
tribunal a quo não decidiu contra a
prova produzida, mas apenas contra uma parte desta.
A
segunda observação que se impõe é a de que a crítica, que a recorrente dirige
ao tribunal a quo, segundo a qual este
valorou as suas declarações de parte e os depoimentos das testemunhas SG e IL
de forma parcial e eivada de preconceitos e considerações de ordem moral,
fundados no facto de Fernando ser padre, não tem razão de ser. Aquilo que o
tribunal a quo observou, a propósito
da alegada percepção, pelos habitantes de Tomar, de que a recorrente e Fernando
constituíam um casal, é que a afirmação de tal percepção por parte da primeira lhe
causou estranheza, considerando que o segundo era padre. Não há, nesta
observação, qualquer valoração de ordem moral por parte do tribunal a quo. Este não afirmou ou deu a
entender que reprovava a alegada união de facto com um padre. Aquilo que causou
estranheza ao tribunal a quo foi que
as pessoas de Tomar tivessem a percepção de que a recorrente e Fernando formassem
um casal, atendendo a que este era padre. O que se compreende, dado que o facto
de um homem ser padre impede, à partida, que o mesmo viva em união de facto com
uma mulher, pelo que as pessoas contam com essa normalidade na leitura que
fazem da realidade. Mais, num passo ulterior da fundamentação da decisão sobre
a matéria de facto, o tribunal a quo
desvalorizou expressamente o facto de Fernando ser padre, ao afirmar que, a ter
existido uma união de facto, a família daquele conheceria tal situação, tanto
mais que aquele já nem sequer exercia.
O
tribunal a quo especificou as razões
que o levaram a desvalorizar as declarações de parte da recorrente e os
depoimentos das testemunhas SG e IL no que concerne à questão central desta
acção, que é a existência de uma situação de união de facto entre a recorrente
e Fernando à data da morte deste. Ouvida a totalidade da prova produzida na
audiência final, acompanhamos a generalidade das reservas feitas pelo tribunal a quo.
Comecemos
pela análise das circunstâncias em que Fernando morreu. Este foi encontrado
morto em casa, na sequência de um vizinho (Cardoso) ter estranhado não o ver
durante algum tempo e, por isso, ter alertado a autoridade policial. Nas suas
declarações de parte, a recorrente admitiu que foram estas as circunstâncias em
que a morte de Fernando ocorreu.
As
circunstâncias descritas inculcam que Fernando não vivia em união de facto com
a recorrente à data da sua morte.
A
justificação dada pela recorrente para o facto de Fernando ter morrido sozinho
em casa e ela só ter tomado conhecimento desse facto quando foi alertada por um
telefonema de Cardoso, foi a de que ela, no período que antecedeu a morte,
passava períodos de alguns dias em casa de sua mãe, muito idosa, para cuidar
desta. Daí a recorrente, segundo afirmou, ter de viver alternadamente em casa
de sua mãe e na casa onde alegadamente vivia com o falecido, tendo a morte
ocorrido durante uma das suas ausências.
Esta
justificação não é credível.
Fernando
estava sozinho em casa quando morreu e foi o seu vizinho Cardoso quem estranhou
não o ver, ao ponto de solicitar a intervenção da autoridade policial. De acordo
com as regras da experiência, uma situação como esta não acontece imediatamente
após a morte. Só algum tempo depois desta os vizinhos estranham a ausência do
falecido. E é ainda mais algum tempo depois que os vizinhos ficam
suficientemente alarmados para tomarem a iniciativa de alertarem as
autoridades. Ainda que se trate de um vizinho com quem se tenha um
relacionamento próximo, ele só estranhará a ausência se esta se prolongar e só
chamará as autoridades quando tal estranheza se avolumar com o decurso do
tempo. Pelo menos dois ou três dias de dilação entre a morte e a intervenção
das autoridades parecem-nos inevitáveis. Esta ilação encontra corroboração no
depoimento da testemunha AF, cunhada de Fernando, segundo o qual este esteve
vários dias morto dentro de casa, pois o cadáver já estava a entrar em
decomposição quando foi descoberto. Foi AF quem limpou o local de onde o
cadáver foi retirado, pelo que estava em boas condições para se aperceber do
estado do mesmo.
Foi
Cardoso quem alertou a recorrente, através de uma chamada telefónica. Contudo,
não foi a recorrente quem Cardoso alertou em primeiro lugar. Segundo a própria
recorrente, depois do telefonema de Cardoso, foi à casa de Fernando, onde
entrou com a sua chave. Porém, quando a recorrente chegou, já aí se encontravam
várias pessoas: a polícia, o médico de família do falecido e um juiz amigo do
falecido. A porta da casa tinha sido aberta com a chave da empregada doméstica.
Após a recorrente se identificar, um agente da PSP ordenou-lhe que esta
entregasse a sua chave, o que ela fez.
Esquematicamente:
a recorrente encontrava-se em casa de sua mãe, Fernando morreu sozinho em sua
casa, foi um vizinho quem estranhou a ausência deste e, quando foi necessário
abrir a porta da casa, foi chamada a empregada doméstica.
A
estes factos, adicionemos quatro outros.
Quer
a casa da mãe da recorrente, quer a casa de Fernando, situam-se em Tomar.
Segundo a testemunha IL, bastam oito minutos para percorrer, de automóvel, a
distância que as separa.
Segundo
relatou a recorrente, sua mãe era muito idosa à data do óbito de Fernando, mas
só viria a falecer cerca de cinco anos depois. Em 2014, a mãe da recorrente
teve um problema de visão e, em consequência disso, não podia cuidar de si e de
sua casa. Daí que necessitasse do auxílio da recorrente. Todavia, não estava
acamada.
Foi
o irmão do falecido, VM, quem tratou do funeral e pagou o respectivo custo. VM residia
em S. Romão, na Serra da Estrela, tendo tomado conhecimento de que o irmão
falecera através do já anteriormente referido amigo deste que era juiz, o qual
lhe telefonou. Logo de seguida, telefonou-lhe um agente da PSP, solicitando-lhe
que se apresentasse em Tomar, para tratar dos assuntos relacionados com a morte
do irmão, o que fez. Tudo isto foi relatado por VM, ouvido na qualidade de
testemunha, cujo depoimento nos pareceu absolutamente espontâneo e credível.
Fernando
tinha sérios problemas de saúde, como a própria recorrente relatou, ainda que
só em parte. Nomeadamente, teve em infarto em 2001.
Ficamos
assim com o cenário completo, que nos suscita as observações que se seguem.
É,
no mínimo, duvidoso que a necessidade – que não colocamos em causa – de a
recorrente auxiliar sua mãe impusesse que ela passasse noites seguidas em casa
desta. Se a mãe da recorrente não estava acamada e a razão da sua incapacidade
para cuidar de si e da casa era um problema de visão, bastaria a presença da
filha durante o dia, ou durante a parte do dia em que não estivesse no seu
posto de trabalho. Residindo a oito minutos de automóvel da casa de sua mãe, a
recorrente poderia circular entre uma casa e a outra sem grande dificuldade.
Não precisava de passar períodos superiores a uma semana em casa de sua mãe,
como afirmou fazer.
A
circunstância de Fernando ter uma saúde frágil torna ainda menos compreensíveis
as alegadas ausências da recorrente durante vários dias seguidos para cuidar de
sua mãe. No decurso das suas declarações de parte, a recorrente justificou o
facto de Fernando lhe deixar frequentemente recados escritos em casa, entre os
quais aquele que juntou com a contestação, nos seguintes termos: ele sabia mais
ou menos a hora a que eu chegava e, se saísse, se fosse ver futebol com vizinho
do 2.º andar, ou se fosse caminhar, deixava recados a dizer que não estava no
momento em casa e para eu não me preocupar, pois estava tudo bem; em 2001 ele
teve um infarto e sabia que eu me preocupava com ele. É evidente o contraste
entre esta alegada preocupação exacerbada da recorrente com o estado de saúde
de Fernando, que levaria este a deixar-lhe recados escritos para que ela não
ficasse preocupada com o simples facto de chegar a casa e ele lá não estar, e a
displicência com que a mesma recorrente, na última fase da vida de Fernando, o
teria deixado em casa sozinho durante dias a fio. Mais, durante o tempo em que Fernando
esteve morto em casa, a recorrente, não só não apareceu lá, ainda que de
passagem, como nem sequer deve ter telefonado para perguntar se aquele estava
bem. Se tiver telefonado e as suas chamadas não tiverem sido atendidas, é
incompreensível, caso vivesse com o falecido em união de facto, que não tenha
ido a casa averiguar se algo de anormal se passava.
As
circunstâncias em que Fernando morreu e o seu corpo foi encontrado apontam,
pois, decisivamente, no sentido de que ele não vivia com a recorrente em união
de facto, ao menos à data da sua morte. Não é crível que, se essa união de
facto existisse, a recorrente estivesse ausente de casa durante vários dias
seguidos, sem sequer lá passar ao menos uma vez por dia. Como não é crível que
a recorrente não falasse com Fernando através do telefone durante vários dias
seguidos. Tendo Fernando morrido sozinho em casa e o seu cadáver aí permanecido
vários dias (não sabemos quantos), até que um vizinho estranhasse a sua
ausência e alertasse a autoridade policial, parece-nos evidente que a
recorrente, que se encontrava na mesma localidade mas completamente alheada em
relação à situação daquele, não vivia em união de facto com o mesmo. É esta a
única explicação plausível para o facto de ter sido necessário que um vizinho
alertasse a autoridade policial sobre a ausência de Fernando para que o corpo
deste fosse encontrado, enquanto a recorrente de nada se apercebeu e só
apareceu em casa daquele quando foi avisada.
Indício
evidente de que a recorrente não vivia em união de facto com Fernando à data da
morte deste foi também a circunstância de ter sido a empregada doméstica
daquele a pessoa chamada para abrir a porta de casa e não a recorrente, como
decerto aconteceria se fosse reconhecida como companheira do falecido. Quando a
recorrente chegou a casa de Fernando, já lá estavam outras pessoas, além de,
pelo menos, um agente da PSP. E, quando lá chegou, foi-lhe retirada a chave da
casa.
Sintomático
da ausência de uma relação de união de facto entre a recorrente e Fernando à
data da morte deste é também o facto de ter sido o irmão daquele a tratar do
funeral e a pagar o respectivo custo. A justificação dada pela recorrente foi a
de que ficou impedida de tratar do funeral ao ser-lhe vedado o acesso à casa
onde alegadamente viveria com Fernando, através da retirada da chave da porta. Esta
justificação não convence. Primeiro, porque a própria retirada da chave sem
oposição da recorrente, que nada fez para a recuperar, indicia, em si mesma,
que a recorrente não vivia em união de facto com o falecido. Segundo, porque,
se a recorrente pretendesse tratar do funeral e pagar o respectivo custo, seria
normal, no mínimo, procurar conversar sobre esse assunto com o irmão do
falecido. Toda a descrita actuação da recorrente seria deveras estranha se ela
vivesse em união de facto com o falecido.
Concluímos,
assim, pela inexistência de prova segura de que a recorrente vivesse em união
de facto com Fernando quando este morreu.
Mais,
nem sequer pode ser julgado provado que tal união de facto alguma vez tenha
existido.
As
declarações de parte da recorrente foram parcas em pormenores sobre a alegada
vida em comum com Fernando. A recorrente produziu um depoimento defensivo,
omitindo pormenores importantíssimos da vida daquele, os quais, a ter havido
vida em comum, a teriam seguramente marcado. Só através das testemunhas VM e AF
foi possível saber, por exemplo, que Fernando teve cancro no colon e, por isso,
teve de usar um saco de ostomia durante algum tempo.
Já
os depoimentos das testemunhas VM e AF nos pareceram espontâneos e foram
corroborados por diversas circunstâncias que se apuraram, pelo que merecem
credibilidade.
Segundo
a recorrente, VM nunca foi à casa onde ela e Fernando viviam. Os contactos
entre os dois irmãos eram apenas através do telefone. Pessoalmente, só quando Fernando
ia visitá-lo a S. Romão, na Serra da Estrela, o que acontecia, sobretudo, no
Natal.
VM
descreveu o seu relacionamento com o irmão de forma completamente diversa.
Segundo esta testemunha, tinha com Fernando um relacionamento normal de irmãos,
ou seja, falavam ao telefone de vez em quando e visitavam-se mutuamente com a
periodicidade que a distância entre as suas residências permitia. VM deslocava-se
a Tomar para visitar o irmão uma média de três vezes por ano, embora pudesse
passar mais de um ano sem o fazer. Para o fim da vida do irmão, ia visitá-lo
mais frequentemente. Visitava-o sempre em casa dele, que identificou. Encontrou
o irmão sempre sozinho em sua casa. Foi-lhe perguntado se havia em casa do
irmão objectos que sugerissem que aí residia uma mulher, ao que respondeu que
não conseguia responder porque não frequentava os quartos e não estava atento a
pormenores dessa natureza. Ter-lhe-ia sido fácil responder simplesmente que
não, sem ter o cuidado de desvalorizar a sua própria resposta, o que corrobora
a honestidade no seu testemunho.
Segundo
VM, o irmão também o visitava em sua casa e aí costumava ficar durante alguns
dias. Fazia-o “uma meia dúzia de vezes por ano”. Ia normalmente sozinho, mas
houve uma vez em que foi com um juiz que era muito amigo dele. Nunca levou
outra pessoa. Uma dessas visitas ocorreu pouco tempo antes da morte do irmão.
VM
também relatou que seu irmão passou períodos em sua casa a recuperar de
intervenções cirúrgicas a que foi submetido.
Sobre
a recorrente, VM afirmou que o irmão lhe disse que ela era sua empregada
doméstica e que só a viu duas vezes. Disse-lhe também o irmão que a recorrente
trabalhou para ele durante alguns anos e que a despediu “um ano, um ano e tal,
antes de falecer”, devido a um “desvio de dinheiros”. Um amigo do irmão arranjou-lhe
então uma senhora que fazia limpeza em casa dele. Fazia lá umas horas às
quintas-feiras. Só viu esta senhora uma vez. Esta senhora trabalhou para o
irmão mais ou menos no meio ano que antecedeu a morte deste.
Sobre
a morte do irmão, VM disse que dela tomou conhecimento através de um telefonema
do juiz que era amigo daquele. Ou seja, observamos nós, Fernando tinha o irmão
como pessoa de referência para ser avisada se alguma coisa lhe acontecesse,
tendo, tudo o indica, fornecido o contacto deste àquele que parece ter sido o
seu amigo mais chegado. Nada disto faria sentido se Fernando e a recorrente
vivessem um com o outro em união de facto. Sintomaticamente, logo a seguir ao
telefonema do amigo do irmão, um agente da PSP telefonou a VM, solicitando-lhe
que se apresentasse em Tomar a fim de tratar dos assuntos relacionados com a
morte do irmão. VM assim fez, tendo-lhe a PSP entregue a chave da casa do
irmão.
AF,
casada com VM, descreveu o relacionamento entre este e o irmão como sendo próximo,
ao contrário da ideia que a recorrente pretendeu transmitir. Segundo AF, Fernando
ia visitá-los a S. Romão muitas vezes, nunca tendo levado a recorrente consigo.
Também passou períodos em casa da testemunha e do marido para recuperar de
intervenções cirúrgicas, por viver sozinho e não ter quem dele cuidasse. Após o
transplante de coração, que AF calculou ter sido realizado em 2008, Fernando
esteve três meses na sua casa em recuperação.
AF
acompanhou o marido em algumas das visitas que este fez ao cunhado. Este
disse-lhes que tinha uma empregada. Visitavam o cunhado em casa deste, onde
nunca viram a recorrente. Nunca viu qualquer objecto ou peça de roupa em casa
do cunhado que sugerisse que lá vivia uma mulher, o que confirmou quando,
juntamente com as irmãs daquele, esvaziou a casa após o óbito.
Acerca
da recorrente, AF afirmou que Fernando disse, a si e ao seu marido, que se
tratava de uma empregada doméstica e que “a tinha posto de lá para fora” cerca
de um ano antes de morrer. Quando despediu a recorrente, Fernando contratou
outra empregada, que ia fazer a limpeza às quintas feiras.
É
evidente a incompatibilidade das declarações prestadas pela recorrente com os
depoimentos das testemunhas VM e AF. E, repetimos, ao contrário da recorrente,
estas duas testemunhas prestaram depoimentos espontâneos e circunstanciados, em
termos que não nos suscitam qualquer reserva.
Já
os depoimentos das testemunhas SG e IL, amigas da recorrente, suscitam as
maiores reservas. Ambas afirmaram que a recorrente viveu com Fernando até à
morte deste. Porém, pouco sabiam, por conhecimento directo, acerca dessa
alegada vida em comum. Aquilo que relataram baseou-se quase exclusivamente naquilo
que a recorrente lhes disse. Nomeadamente, nenhuma delas alguma vez esteve com
o suposto casal ou se relacionou directamente com Fernando.
Os
factos de que aquelas duas testemunhas revelaram ter conhecimento directo são
insuficientes para que se possa considerar que a recorrente e Fernando alguma
vez viveram um com o outro em união de facto.
Numa
ocasião, a recorrente levou SG à casa de Fernando, que aí se não encontrava. A
recorrente mostrou-lhe o interior da casa, nomeadamente “o quarto deles, onde
ambos dormiam”. Ou seja, SG viu aquilo que a recorrente lhe mostrou e ouviu
aquilo que a recorrente lhe disse. Dessa visita nada de útil resultou para a
prova de que a recorrente efectivamente vivia nessa casa. O facto de a
recorrente ter a chave da casa de Fernando não demonstra que ela aí residisse.
Se fosse empregada doméstica, seria natural que tivesse a chave. Também é
possível que a recorrente, em algum momento, tenha mantido alguma proximidade
ou, mesmo, intimidade com Fernando, o que explicaria a posse da chave. Por si
só, a posse da chave não demonstra que a recorrente vivesse na casa em questão,
em união de facto com o proprietário desta.
Outro
facto de que SG tinha conhecimento directo é o seguinte: como residia numa casa
que dá para as traseiras da de Fernando, via, de vez em quando, este e a
recorrente à janela. Também este facto pode ser explicado pelo facto de a
recorrente ser empregada doméstica de Fernando, ou de, em algum momento, estes
terem mantido um relacionamento íntimo, ou até de serem, simplesmente, amigos.
Não demonstra que eles vivessem um com o outro em união de facto.
O
facto de SG ter encontrado a recorrente e Fernando a fazer compras também não
demonstra que eles vivessem um com o outro em união de facto. Se a recorrente
fosse apenas empregada doméstica de Fernando, seria normal irem ambos às
compras, para mais tendo este problemas cardíacos e motores.
No
mais, o conhecimento de SG baseou-se exclusivamente naquilo que ouviu da
recorrente: a suspeita de gravidez, a suposta vivência em comum com Fernando, a
suposta alternância entre a casa da mãe e a deste último durante o período que
antecedeu o óbito, a negação de que a recorrente fosse empregada doméstica de Fernando,
os relatos de “coisas íntimas”, as supostas visitas a Fernando quando este
esteve internado num hospital em Coimbra, os factos relativos à morte de Fernando.
Os
factos de que IL teve conhecimento directo foram apenas os seguintes: encontrou,
duas ou três vezes, a recorrente a almoçar com Fernando num restaurante na
Nazaré, e viu-os algumas vezes a andar de automóvel juntos. No mais, só sabia
aquilo que a recorrente lhe ia dizendo.
Uma
das coisas que a recorrente lhe disse até é algo bizarra. Disse IL que a
recorrente a convidou para ir a casa dela ver “o nosso quarto”, ou seja, o
quarto onde ela e Fernando dormiriam. Porquê o quarto, especificamente?
Outros
convites se seguiram, mas IL nunca foi à casa onde a recorrente supostamente
viveria com Fernando. IL também nunca convidou o suposto “casal” para ir a sua
casa, apesar de se apresentar como amiga íntima e de longa data da recorrente.
Igualmente
bizarras eram as repetidas referências, relatadas por IL, que, nas suas
conversas com a recorrente, esta fazia ao “nosso quarto”. Porquê esta obsessão
com o quarto?
Em
suma, os depoimentos das testemunhas SG e IL pouca utilidade têm para a prova
dos factos em análise. No essencial, o que estas testemunhas sabiam baseava-se
exclusivamente naquilo que a recorrente lhes dizia.
A
recorrente juntou aos autos um escrito, a si dirigido, que, numa ocasião, Fernando
deixou em casa. O teor desse escrito é o seguinte: “Margarida, bem vinda! Estás
em tua casa! Um beijo muito muito grande!”. Este documento inculca precisamente
o contrário daquilo que a recorrente pretende. Não faz sentido pôr à vontade,
escrevendo “bem vinda” e “estás em tua casa”, a quem já lá resida. Pelo
contrário, aquilo que se pretende com uma mensagem como esta é receber
afavelmente, em casa, alguém que aí não reside. A parte final do referido
escrito inculca o mesmo que o facto, provado, de a recorrente e Fernando terem
viajado e passado férias um com o outro: em algum momento, eles mantiveram uma
relação mais próxima ou, mesmo, íntima, um com o outro. A natureza exacta dessa
relação não é clara, mas é seguro que, durante o tempo em que a mesma perdurou,
a recorrente era mais que uma simples empregada doméstica de Fernando. O que,
obviamente, não significa que eles tenham, alguma vez, vivido um com o outro em
união de facto.
Por
outro lado, surpreende a falta de documentos comprovativos de que a recorrente
residisse, em algum momento, na mesma casa que Fernando. A recorrente alegou
ter vivido com este em união de facto desde o final do ano de 2001 até
01.09.2014, data da morte. Quase 13 anos. Seria natural que a recorrente
tivesse em seu nome algum contrato de fornecimento de serviços à alegada
residência comum. Ou, ao menos, que algum contrato por si celebrado,
respeitante à sua pessoa, estivesse domiciliado nessa morada. Por exemplo,
decorre da prova produzida que a recorrente tinha uma viatura automóvel, pelo
que se parte do princípio de que tinha carta de condução e seguro. Seria normal
que a morada fornecida à entidade emitente da carta de condução e à seguradora
fosse a da alegada residência comum. Também está provado que a recorrente
trabalhava a tempo inteiro por conta de outrem, pelo que deveria fazer
descontos para a segurança social. Seria normal que a morada indicada à
entidade patronal e à segurança social fosse a da alegada residência comum. O
mesmo se diga relativamente à situação fiscal da recorrente. Seria normal que a
morada indicada à Autoridade Tributária e Aduaneira fosse a da alegada
residência comum. Também é natural que a recorrente tivesse uma conta bancária,
mais não seja para receber o seu vencimento. Seria normal que a morada
fornecida ao banco fosse a da alegada residência comum. Em todas estas hipóteses,
gerar-se-iam documentos indicando, como domicílio da recorrente, a casa onde
esta afirma ter vivido com Fernando em união de facto. Todavia, nem um só
documento dessa natureza foi junto aos autos. Este défice de prova documental
tem de ser valorado no sentido de indiciar que a recorrente nunca viveu na
mesma casa que Fernando.
Por
último, abordemos a questão da aparente contradição resultante de ter sido, por
um lado, julgado provado que a recorrente confeccionava as refeições para si e
para Fernando a maior parte das vezes e se ocupava da lida doméstica, e, por
outro, julgado não provado que, entre Abril de 2002 e a data da morte de Fernando,
este e a recorrente vivessem na mesma casa como se fossem marido e mulher,
partilhando cama e mesa. A explicação mais plausível seria, à partida, a de a
recorrente ter sido empregada doméstica de Fernando. Contudo, ficou provado que
a recorrente tinha e tem, desde 2004, um emprego a tempo inteiro, como
assistente operacional, na (…), o que, em princípio, afastaria aquela hipótese.
A isso se soma o facto de se ter provado que a recorrente e Fernando fizeram
viagens e passaram férias juntos, nomeadamente na Madeira e no Algarve.
Lida
a fundamentação expendida pelo tribunal a
quo e ouvida a totalidade da prova produzida, parece-nos possível harmonizar
os referidos factos.
A
necessidade que Fernando tinha de uma empregada doméstica era limitada, o que é
demonstrado pelo facto, referido pelas testemunhas VM e AF, de a empregada que
aquele teve nos últimos meses da sua vida apenas trabalhar para si uma vez por
semana, durante “umas horas”, às quintas-feiras. Sendo assim, era possível a
recorrente ter um emprego a tempo inteiro e trabalhar, durante curtos períodos
do dia, como empregada doméstica de Fernando.
A
objecção de que não é habitual a entidade patronal e a empregada doméstica
fazerem viagens e passarem férias um com o outro não tem um valor absoluto. Não
é normal, mas é possível. Pode, na realidade, acontecer que duas pessoas
ligadas entre si por um vínculo laboral passem a ter, em determinada altura,
uma relação mais próxima, seja de amizade, seja mesmo mais íntima, que os leve
a estar um com o outro fora do âmbito da prestação de trabalho, nomeadamente
passeando e passando férias juntos. Tanto quanto isso pode acontecer com duas
pessoas sem o referido vínculo laboral. Em qualquer caso, sem que tal implique
a existência de uma união de facto entre essas duas pessoas. O facto de duas
pessoas passarem férias e passearem juntas repetidamente poderá indiciar a
existência de uma situação de união de facto, mas não mais do que isso. No caso
da recorrente e de Fernando, tal indiciação é contrariada pelo conjunto de
circunstâncias que acima analisámos, que não se compatibilizam com a existência
da alegada situação de união de facto.
Inexiste,
assim, fundamento para julgar provado qualquer dos factos que o tribunal a quo julgou não provados. Não basta a
recorrente afirmar que vivia em união de facto com Fernando e duas testemunhas
corroborarem essa afirmação para que isso fique demonstrado. Verificam-se
demasiadas incongruências para que tal versão factual possa ser julgada
provada.
Concluindo,
a sentença recorrida deverá ser mantida na íntegra, improcedendo o recurso.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente,
confirmando-se a sentença recorrida.
Custas
a cargo da recorrente.
Notifique.
*
Évora, 26.10.2023
Vítor Sequinho dos
Santos (relator)
1.º adjunto
2.ª adjunta