quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 08.02.2024

Processo n.º 105/23.0T8VRS.E1

*

Sumário:

(...)

6 – Até à entrada em vigor do NRAU, a posição contratual do arrendatário não se comunicava ao cônjuge deste, qualquer que fosse o regime de bens do casamento.

7 – Tendo o primitivo arrendatário morrido em 24.12.2005, no estado de casado, a sua posição em contrato de arrendamento habitacional transmitiu-se para o seu cônjuge, nos termos do artigo 85.º, n.º 1, al. a), do RAU.

8 – Daí que o cônjuge beneficiário da transmissão referida em 7, falecido em 21.05.2022, não possa ser qualificado como primitivo arrendatário para o efeito previsto no artigo 57.º, n.º 1, al. e), do NRAU, na redacção em vigor naquela data.


Texto integral: link


terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 08.02.2024

Temas:

- Contrato de prestação de serviços de contabilidade;

- Estatuto de residente não habitual;

- Responsabilidade contratual;

- União de contratos.

*

Processo n.º 2246/21.9T8PTM.E1

Autores:

- AK;

- TK.

Réus:

- Sociedade 1, Lda.;

- Rui Loureiro;

- Daniel Silva;

- Companhia de Seguros GG, S.A..

Pedidos:

A) Condenação dos réus a pagarem aos autores € 77.424,06 por danos causados pelo incumprimento das obrigações assumidas e € 1.855,00 como consequência da violação das obrigações dos réus, no âmbito da responsabilidade civil contratual;

B) Caso assim não se entenda, condenação dos réus a pagarem aos autores € 77.424,06 pelos danos causados pelo incumprimento das obrigações assumidas e € 1.855,00 como consequência da violação das obrigações dos réus no âmbito da responsabilidade civil extracontratual;

C) Em todo o caso, condenação dos réus a pagarem uma indemnização por danos não patrimoniais no valor mínimo de € 10.000,00.

Sentença:

- Acção julgada parcialmente procedente;

- Condenação dos réus Sociedade 1, Lda. e Daniel Silva a, solidariamente, indemnizarem os autores dos prejuízos que estes sofreram em virtude de os respectivos rendimentos do ano de 2021 terem sido tributados como de residentes habituais, em vez de residentes não habituais, em montante a liquidar e correspondente à respectiva diferença (imposto pago como residente habitual/imposto a pagar como residente não habitual);

- Absolvição dos réus Sociedade 1, Lda., e Daniel Silva do restante pedido;

- Absolvição do réu Rui Loureiro do pedido;

- Absolvição da ré Companhia de Seguros GG, S.A., da instância.

*

Os réus Sociedade 1, Lda. e Daniel Silva interpuseram recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – A Mma. Juíza, a fls. 18 da sentença recorrida, assume a existência, entre os autores e os recorrentes, de uma relação próxima da existente com a empresa daqueles, para depois, a fls. 19, afirmar que vigorou, entre os autores e Sociedade 1, Lda., um contrato de prestação de serviços! Afinal, em que ficamos?

2 – O fundamento dessa conclusão, aliás conclusões (aparência de contrato e contrato), foi a intervenção de Daniel Silva em relação à AT, relativamente aos autores, aqui recorridos.

3 – Todavia e como foi provado no ponto 12 da factualidade provada, tal intervenção ocorria a pedido dos autores e não como obrigação contratualmente assumida.

4 – Dos pontos 15, 21 e 25 dos factos provados resulta que os autores, em Novembro de 2018, quando já tinham residência permanente em Portugal, pediram a Daniel Silva que tratasse do estatuto de residente não habitual, mas não o dotaram de qualquer procuração para o efeito, sendo certo que era obrigatória a intervenção pessoal dos autores, não havendo qualquer prova de que Daniel Silva tenha aceite essa incumbência.

5 – De resto, a Mma. Juíza a quo manifesta dúvidas quanto à eventual existência de um contrato de prestação de serviços relativo ao tratamento do processo de residente não habitual, já que, a fls. 14 da sentença, refere que Daniel Silva teria ficado de tratar do processo de residentes não habituais dos autores, quando estes já eram residentes permanente em Portugal.

6 – A expressão “teria ficado de tratar” (e não, ficou de tratar) traduz uma conjugação verbal no condicional, o que significa que esse tratamento estava na dependência de uma condição necessária para a sua realização, algo em relação ao qual nada foi provado.

7 – Daí não ter sido feita qualquer prova quanto à existência de um contrato, ou aparência de contrato (?), relativamente ao tratamento do processo de residente não habitual dos autores por Daniel Silva, o que é assumido na sentença.

8 – Assim, a invocação do artigo 799.º do Código Civil carece de fundamento, já que se refere ao incumprimento do devedor e, para haver devedor, é necessário que a dívida tenha sido contratualizada, o que não está provado.

9 – Não se percebe a condenação referente ao IRS de 2021, porquanto se o processo tivesse sido tratado (pelos autores) aplicava-se ao IRS de 2019 e o IRS referido no ponto 41 dos factos provados refere-se a 2019, nada tendo a ver com o de 2021.

10 – Por outro lado, o artigo 16.º do CIRS considera como residentes não habituais em Portugal os sujeitos passivos que não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, sendo certo que os autores, desde o dia 07.11.2018 (ponto 25 dos factos provados), passaram a ter residência permanente em Portugal.

11 – Assim, em 2019, os autores estavam já legalmente impedidos de obter o estatuto de residentes não habituais, independentemente de o processo ser ou não tratado e por quem, inexistindo, por isso, fundamento para a condenação dos aqui recorrentes pelo incumprimento de uma obrigação que não assumiram, muito menos em relação ao IRS de 2021.

Os recorridos apresentaram contra-alegações, com as seguintes conclusões:

A. A alegada impugnação da matéria de facto, aparentemente feita pelos recorrentes, não cumpre com as exigências legais impostas pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil considerando a falta de indicação dos factos incorrectamente julgados e os meios probatórios que impunham decisão distinta.

B. Os recorrentes apontam contradições de forma vaga e genérica sem qualquer indicação dos factos provados ou não provados e dos meios de prova relevantes, pelo que o recurso deve ser imediatamente rejeitado nesta parte.

Sem conceder,

C. A apreciação da prova assenta na livre convicção do julgador, nas regras da experiência comum e no princípio da imediação. O tribunal a quo fundamentou exaustivamente a sua convicção, analisando criticamente o conjunto da prova, elaborando uma decisão inatacável.

D. Da produção de prova em audiência de julgamento o tribunal constatou existir uma relação contratual de prestação de serviços, geradora de obrigações, com a especificidade de os recorrentes terem optado, por sua iniciativa, por não cobrar honorários pelos serviços que se obrigaram a prestar. Existindo, portanto, uma prestação de serviços sem retribuição admitida pelo artigo 1154.º do Código Civil.

E. Os pontos provados 12 e 13 indicam claramente que, a partir de 2013, os recorrentes iniciaram a prestação de serviços relativamente à contabilidade pessoal dos recorridos, ficando incumbidos de diligenciar junto da Autoridade Tributária para efeitos fiscais, logo entregar um resultado através do seu trabalho.

F. A douta sentença também esclarece, e bem, que a gratuitidade do serviço foi unilateralmente estabelecida pelos réus e, assim, constituindo obrigações geradoras de resultado sob pena de produzirem prejuízos para os clientes, aqui recorridos.

G. A escolha dos recorrentes em não cobrarem honorários quanto à contabilidade pessoal dos autores, aqui recorridos, jamais poderá ser imputada a estes últimos como aqueles pretendem.

H. Os inúmeros emails juntos aos autos com a petição inicial demonstram, de forma clara e inequívoca, a existência de uma prestação de serviços dos recorrentes que, anualmente, a pedido e também por sua livre iniciativa, faziam diligências junto das autoridades fiscais relativamente à contabilidade pessoal dos recorridos.

I. Em momento algum o tribunal a quo demonstrou incerteza na existência do contrato, tendo descrito, em inúmeras vezes, a apreciação da prova produzida em audiência de julgamento que permitiu concluir pela existência de uma relação de prestação de serviços entre recorrentes e recorridos.

J. Por conseguinte, a impugnação da matéria de facto deverá ser totalmente improcedente e, consequentemente, a factualidade dada como provada deve ser mantida na íntegra por resultar da apreciação da prova produzida e analisada pelo tribunal a quo.

K. Os recorrentes equivocam-se quanto à condenação respeitante ao IRS de 2021, confundindo o ano em que os recorridos foram informados da não submissão do formulário para obtenção do estatuto de residente não habitual, em 2019, com o petitório feito nos presentes autos.

L. Inexiste qualquer erro no processo de formação da convicção do julgador a quo, estando perante uma decisão proferida que não merece qualquer censura ou reparo.

M. Na petição inicial os recorridos solicitaram a condenação dos réus no pagamento dos danos patrimoniais que consistiam nos impostos que teriam de suportar nos dez anos seguintes enquanto residentes habituais em Portugal, ou seja: foram peticionados danos relativos aos IRS de 2019 a 2029.

N. Pelo que o douto tribunal a quo estava obrigado a pronunciar-se sobre todos esses anos, o que fez de forma fundamentada.

O. Quanto à concessão do estatuto de residente não habitual, a douta sentença também esclarece, uma vez mais, que o facto relevante relativo à residência em território português se preenche com a residência fiscal nos termos do artigo 16.º, n.º 1, do Código de IRS. E, nesse sentido, encontra-se demonstrado nos autos que a residência fiscal dos autores se iniciou em Janeiro de 2019, por instrução dada pelo recorrente Daniel Silva.

P. A intenção de obter o estatuto de residente não habitual iniciou-se por conselho do recorrente Daniel Silva, que orientou todo o procedimento e a quem foi delegada a função de dar entrada do pedido na página pessoal da Autoridade Tributária dos recorridos, que tinha acesso ilimitado e sem controlo desde 2013 conforme factos provados 12 e 13.

Q. Pelo que, se encontravam preenchidos os requisitos para a obtenção do estatuto de residente não habitual conforme sugerido e tratado pelo recorrente, e inclusive assumido pelo sócio-gerente da 1.ª recorrente por email junto aos autos.

R. Desta facie, o recurso nesta parte também deverá improceder atendendo que o tribunal procedeu à análise dos factos, decidindo bem pela procedência do pedido quanto ao prejuízo relativo à tributação dos rendimentos do ano de 2021.

S. Em suma, jamais poderia ser acolhida a pretensão dos recorrentes resultando de toda a prova produzida que a decisão proferida quer quanto à matéria de facto quer de direito desmerece qualquer censura, pelo que deverá manter-se integralmente a douta e lúcida decisão.

O recurso foi admitido.

*

Questões a decidir:

1 – Existência de um contrato de prestação de serviços entre os recorrentes e os recorridos;

2 – Danos sofridos pelos recorridos.

*

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Por volta do ano de 2003/2004, os autores decidiram vir a Portugal e aproveitar para investir em alguns negócios imobiliários, tendo criado uma sociedade comercial juntamente com outro sócio holandês denominada Sociedade 2, Lda., com o NIPC (…), com vista à prossecução do seu objecto social.

2. Os autores residiam habitualmente nos Países Baixos, de onde são naturais, e regressavam a Portugal esporadicamente ao longo do ano para controlo dos seus negócios, repartindo assim o seu tempo entre os dois países.

3. Necessitando de ajuda especializada ao nível da contabilidade e fiscalidade, decidiram contratar os serviços da Sociedade 1, Lda., para que tratasse de todas as questões respeitantes à empresa desde o ano de 2006.

4. Com o apoio dos serviços prestados pela 1.ª ré que, inclusivamente, auxiliou contabilisticamente os autores para a concretização de uma alteração societária no ano de 2011, altura em que foi celebrado um contrato-promessa de cessão de quotas entre os autores e o sócio HN, no qual adquiriram a quota deste. O contrato definitivo de cessão de quotas foi celebrado a 14.07.2011 e, seguidamente, inscrito no registo comercial conforme anotação do depósito 143/2011-07-27 e 144/2011-07-21.

5. Para a suprarreferida alteração societária, os autores foram aconselhados ao nível contabilístico pela 1ª Ré, na pessoa do seu responsável técnico Rui Loureiro, então técnico oficial de contas e hoje designado por contabilista certificado, tendo também sido trocadas algumas impressões entre este e o advogado dos autores, DD, na altura e posteriormente.

6. Em 2012 e nos anos seguintes, era também Daniel Silva, que não era técnico oficial de contas ou contabilista certificado, mas técnico colaborador a trabalhar para Sociedade 1, Lda., quem trocava emails e telefonemas com os autores sobre os assuntos contabilísticos e fiscais da empresa, desde o envio das guias para pagamento das prestações de impostos até ao pedido de documentos de suporte da contabilidade.

7. Após tais alterações societárias em que adquiriram a quota do seu anterior sócio, foi igualmente alterado o nome da firma para Sociedade 3, Lda., conforme Ap. 34/20130701.

8. A sede social da empresa foi até 2021 nos escritórios da sociedade ré.

9. Os autores tinham na altura a técnica oficial de contas (TOC/CC) JJ, com número de inscrição na OCC n.º 40863, para tratamento de todas as questões respeitantes à sua fiscalidade pessoal, desde apresentação das declarações fiscais, pagamento de impostos até à representação fiscal.

10. A autora teve como representantes fiscais:

- PP (2004 a 2007), tendo depois sido alterada a morada fiscal da autora para Ferragudo, em Lagoa;

- JJ (30/11/2008 a 2/1/2019), depois de ter sido alterada a morada fiscal para a Holanda e em 2019 para (…).

11. E o autor teve como representantes fiscais:

- TT (2003 a 2006), com alteração de morada em 2006 para Ferragudo, em Lagoa;

- JJ (2008 a 2014), altura em que foi anulada a representação fiscal.

Em 02/01/2019 foi efetuada a alteração de morada para (…).

12. A partir de 2013, Daniel Silva, a pedido dos autores, passou a realizar algumas interacções com a Autoridade Tributária, designadamente, através do portal na “área reservada”, como a apresentação das declarações anuais de rendimentos, pagamento de impostos IRS, IMI, IUC, IS, IMT e a prestar informações solicitadas pelos autores ou pelo seu contabilista na Holanda.

13. Os autores confiavam que Daniel Silva tinha acesso a todas as informações e documentos necessários à realização das tarefas que lhe solicitavam.

14. Os autores sempre pagaram todos os honorários devidos pela empresa e despesas pedidas cada vez que Daniel Silva o solicitava.

15. Daniel Silva sugeriu aos autores a obtenção do estatuto de residentes não habituais caso quisessem residir em Portugal, evitando assim a tributação nos Países Baixos.

16. No dia 18 de julho de 2018, Daniel Silva enviou um email ao 2.º autor com o assunto RNH (sigla de “residência não habitual”).

17. No dia 18 de Setembro, Daniel Silva respondeu a KK, assegurando que a residência não habitual significava que o 2.º autor teria de declarar todos os seus rendimentos sendo que alguns estariam isentos de acordo com o anexo. Uma das isenções está relacionada com as pensões (categoria H). Resumindo, essas pensões não seriam tributadas na fonte por ser não residente e também ficariam isentas de impostos aqui devido à condição de RNH.

18. A 20 de Setembro de 2018, o contabilista holandês dos autores KK enviou novo email a Daniel Silva, alertando que o tratado tributário bilateral entre os Países Baixos e Portugal estatui que o primeiro poderá taxar a pensão se Portugal não o fizer e questionava se o 3.º réu tem outros clientes com essa situação e se teria conhecimento se a pensão seria taxada quando o país de residência fosse Portugal.

19. Nesse mesmo dia Daniel Silva respondeu a KK esclarecendo que as pensões são taxadas em Portugal para depois internamente darem isenções, todavia refere que deveriam verificar diretamente com as autoridades holandesas porque seria esse o país a interpretar a regra.

20. Ainda em 2018, os autores ficaram convencidos da vantagem do regime da residência não habitual, tendo solicitado verbalmente a Daniel Silva que tratasse desse assunto.

21. No dia 7 de Novembro de 2018 a 1.ª autora questiona expressamente Daniel Silva por email, se aquele poderia ir à Câmara Municipal na semana seguinte para tratar da documentação necessária, sob o assunto “residência”, e informando de que tinham vendido a casa na Holanda.

22. Daniel Silva responde, no dia seguinte, só ser possível tratar desse assunto após a chegada dos autores a Portugal considerando que estava a tratar das declarações de IVA durante aquela semana.

23. Após regressarem a Portugal, a 1.ª autora enviou um email ao 3.º réu a perguntar se poderiam ir tratar do assunto naquela semana, conforme email de 24.11.2018.

24. O 3.º réu responde afirmativamente, tendo a 1.ª autora questionado se seria necessário fazer uma marcação, ao que aquele responde negativamente. Assim, Daniel Silva acompanhou os autores à Câmara Municipal de Lagoa, onde eles obtiveram e lhes foi entregue para obtenção do seu certificado de registo de cidadão da União Europeia, já procedimento com vista ao estatuto de residente não habitual a que se iriam candidatar.

25. No dia 7 de Dezembro de 2018, os autores venderam a sua casa nos Países Baixos sita em (…), e deixaram de ter seguro naquele país (elemento obrigatório para a tributação como residentes nos Países Baixos) e passaram a residir apenas em Portugal.

26. A 27.12.2018 a 1.ª autora volta a questionar o 3.º réu sobre o procedimento de residência não habitual mormente se necessitariam de ir ao serviço de finanças, tendo aquele respondido que um colega seu poderia acompanhá-los ao serviço de finanças de Silves, caso quisessem, ou poderiam deslocar-se sozinhos devendo apresentar o documento de residência obtido na Câmara Municipal para actualizarem a morada fiscal desde 1 de Janeiro.

27. A 1.ª autora questionou se tal teria de ser feito de imediato ou se poderiam aguardar pelo regresso de Daniel Silva de modo a que fosse este a tratar do assunto, tendo este esclarecido que, se esperassem pelo seu regresso o início dos efeitos começaria apenas a 2 de Janeiro, conforme email de 27.12.2018.

28. No dia 9 de Dezembro de 2019, Daniel Silva informou que iria deixar de trabalhar na empresa da 1.ª ré e que seria a sua colega Laura que ficaria encarregue das suas contas.

29. A 13 de Abril de 2020 a 1.ª autora indagou Laura como estava a situação do IRS de 2019, tendo aquela no mesmo dia respondido que iriam proceder à apresentação da declaração que antes era feita pelo réu Daniel Silva.

30. A 30 de Junho de 2020 foi reencaminhado um email para os autores que continha uma conversa entre Daniel Silva e Laura sobre a verificação feita à declaração de IRS daqueles, confirmando que o IRS foi aceite como não residente sem divergência e que o pedido de residente não habitual com início em 2020 tinha sido indeferido mas estavam a aguardar justificação.

31. O réu Daniel Silva mais indicava que deveriam efectuar a reclamação do indeferimento do pedido com base no facto de o IRS de 2019 ter sido aceite como não residente e apresentar justificação para o facto de terem vindo viver para Portugal somente em 2020.

32. No mesmo dia, Laura responde ao 3.º réu explanando que seria necessário entregar a declaração de rendimentos de 2019 nos Países Baixos e só com os comprovativos das declarações dos últimos cinco anos poderiam fazer a reclamação sugerida.

33. No dia 7 de Julho de 2020, Daniel Silva enviou novamente um email a Laura, o qual foi posteriormente reencaminhado por esta para a 1.ª autora, explicando que a residência não habitual não tinha sido aceite por ter sido ultrapassado o prazo para submeter os últimos formulários, pelo que desde 01.01.2019 os autores eram considerados residentes habituais em Portugal.

34. Daniel Silva sugeriu procedimento com vista a que os autores ainda viessem a obter o estatuto pretendido (provando que foram residentes nos Países Baixos nos últimos cinco anos, pelo que a consequência era que o período de 10 anos com um regime fiscal mais vantajoso começaria somente em 2020, ao que o autor lhe comunicou que não seria possível já pagar impostos nos Países Baixos.

35. No dia 15 de Julho de 2020, Daniel Silva respondeu, assumindo que os formulários deveriam ter sido submetidos até 31.03.2020 porém, após a sua saída do escritório e passagem dos processos para a sua colega Laura, todos os assuntos pessoais dos autores ficaram esquecidos devido ao facto de apenas a Sociedade 3, Lda. estar na lista de clientes da 1.ª ré.

36. A 20 de Julho de 2020, Laura enviou um email a KK questionando se poderia fazer uma declaração de substituição de 2019 com estatuto de residente nos Países Baixos.

37. A 28, KK responde negativamente por email, por os autores não estarem inscritos como residentes e não terem seguro de saúde lá desde 2019 (condição essencial e obrigatória nos Países Baixos quando se detém um imóvel e para ser considerado residente fiscal).

38. Alguns dias depois, a 24.08.2020 Laura envia novo email a KK questionando a possibilidade de os autores entregaram o IRS nos Países Baixos.

39. No dia seguinte, Laura informa os autores que dada a resposta negativa de KKiria submeter declaração substitutiva de IRS e iriam receber nova notificação para pagar a diferença.

40. Assim, a 28.08.2020 a 1.ª autora volta a questionar se já tinha sido apresentado o IRS de 2019 e qual o montante total.

41. No mesmo dia, Laura esclarece que apresentaram o IRS dos autores como não residente e que o valor a pagar seria de € 1.800, correspondente ao rendimento recebido apenas em território nacional, sendo a única opção face à informação prestada pelo contabilista holandês. Todavia para regularizar a situação de 2019 seria necessário substituir a declaração de IRS e incluindo os rendimentos obtidos nos Países Baixos, alterando o estatuto para residentes habituais, tudo por email.

42. Nesse mesmo dia, o gerente da 1.ª ré intervém pela primeira vez neste processo, remetendo um email de fls. 92.

43. No dia 2 de Junho de 2021 procedeu-se à interpelação extra-judicial dos 1.º e 3.º réus conforme cartas registadas com aviso de receção, cartas que foram recebidas no dia 4.

44. Daniel Silva não respondeu e Sociedade 1, Lda. respondeu, mas nada acrescentando.

45. Os autores têm o estatuto de residentes e pagaram impostos nessa qualidade.

46. Os autores computaram os danos em € 77.424,06, resultantes da diferença de impostos que pagariam como residentes e residentes não habituais, nos próximos dez anos.

47. Os autores solicitaram os serviços contabilísticos do contabilista KK, nos Países Baixos, para aconselhamento fiscal e também com vista a auxiliar os réus com todos os elementos para a obtenção do estatuto fiscal de residente não habitual, tendo o contabilista declarado ter recebido a quantia de € 1.855.

48. Os autores ficaram muito zangados com a perspectiva de terem de pagar impostos em Portugal, e que contavam não pagar perante a perspectiva de obter o estatuto de residentes não habituais.

49. Entre a Ordem dos Contabilistas Certificados e a Companhia de Seguros GG, S.A. foi celebrado um contrato de seguro de grupo obrigatório de responsabilidade civil dos contabilistas certificados, titulado pela apólice n.º 206107776 através do qual a ora contestante assumiu para si transferido, nos termos, com os limites e exclusões aí mencionados, o risco de «responsabilidade civil que, ao abrigo da legislação aplicável, seja imputável ao Segurado na sua qualidade de Contabilista Certificado.»

50. A responsabilidade – cfr. ponto 2 das condições particulares da apólice – está limitada a € 50.000 por contabilista certificado e por sinistro. Tal contrato ficou ainda sujeito a uma franquia, ou parte primeira de qualquer indemnização que seja devida sempre a cargo do segurado de € 5.000, por sinistro individualmente considerado.

51. O presente contrato garante, «até ao limite do capital fixado nas Condições Particulares, as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, com fundamento em responsabilidade civil decorrente do exercício da sua atividade profissional de Contabilista Certificado.» - cfr. artigo 3.º das condições gerais da apólice.

52. Para efeitos da presente apólice, entende-se por segurado «a pessoa singular, titular do interesse seguro na qualidade de Contabilista Certificado, que exerça efetivamente a profissão» - cfr. artigo 1.º, alínea d) das condições gerais da apólice.

53. Acrescentando a alínea e) do aludido artigo 1º das condições gerais que é considerado contabilista certificado para efeitos do contrato de seguro ajuizado, «o profissional inscrito na Ordem dos Contabilistas Certificados, nos termos do respetivo Estatuto, sendo-lhe atribuído, em exclusividade, o uso desse título profissional».

54. O contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, celebrado entre a OCC e a Companhia de Seguros GG, S.A., tal como os demais seguros de responsabilidade civil profissional celebrados com outras ordens profissionais (médicos, advogados, engenheiros, etc.), garantindo a indemnização por prejuízos causados a terceiros pelos contabilistas certificados e com inscrição em vigor na referida Ordem dos Contabilistas Certificados, configura um contrato de seguro de grupo.

Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:

- Que algum dos réus tenha assumido formalmente e perante a Autoridade Tributária a representação fiscal dos autores;

- Que os autores pagassem os honorários devidos pelos serviços prestados a cada um dos autores, a nível individual, ou que tais honorários tivessem sido solicitados;

- Que algum dos réus cobrasse dos autores individualmente pelos serviços pessoais que não diziam respeito à sociedade;

- Que Daniel Silva, depois de sair da Sociedade 1, Lda., tenha continuado a tratar dos assuntos relacionados com os autores, em específico a entrega da declaração de IRS e pedido de residência não habitual;

- Quais os montantes concretos em impostos que os autores estão obrigados a suportar nos próximos dez anos em virtude de não terem o estatuto de residente não habitual (diferença entre os impostos pagos/a pagar em função do estatuto de residente/residente não habitual);

- Que os autores tivessem contratado expressamente a prestação de serviços a título individual com a Sociedade 1, Lda..

*

1 – Existência de um contrato de prestação de serviços entre os recorrentes e os recorridos:

Os recorrentes afirmam que a conclusão, a que o tribunal a quo chegou, de que vigorou um contrato de prestação de serviços gratuito entre a recorrente Sociedade 1, Lda. e os recorridos, não encontra sustentação na matéria de facto provada.

Não têm razão. A matéria de facto provada inculca, sem margem para dúvidas, que aquele contrato foi celebrado e vigorou entre 2013 e 2020. Passamos a justificar esta afirmação.

Os recorridos, então residentes nos Países Baixos, criaram uma sociedade comercial em Portugal por volta de 2003/2004, aqui vindo esporadicamente. Em 2006, contrataram a recorrente Sociedade 1, Lda. para tratar da contabilidade e fiscalidade daquela sociedade. A partir de 2012, a recorrente Sociedade 1, Lda. passou a tratar da contabilidade e da fiscalidade da mesma sociedade através do recorrente Daniel Silva, seu colaborador.

A partir de 2013, o recorrente Daniel Silva, a pedido dos recorridos, passou a realizar algumas interacções com a Autoridade Tributária, designadamente através da área reservada do portal desta, como a apresentação das declarações anuais de rendimentos, pagamento de impostos IRS, IMI, IUC, IS, IMT. Também a partir de 2013, o recorrente Daniel Silva passou a prestar informações solicitadas pelos recorridos ou pelo seu contabilista na Holanda. O recorrente Daniel Silva actuava nos termos descritos na qualidade de colaborador da recorrente Sociedade 1, Lda., como vinha fazendo no que respeitava aos assuntos da sociedade criada pelos recorridos. Tanto assim era que, quando o recorrente Daniel Silva deixou de trabalhar para a recorrente Sociedade 1, Lda., a situação tributária pessoal dos recorridos passou a ser acompanhada por outra colaboradora dessa mesma recorrente, Laura.

Sendo os assuntos de natureza fiscal relativos à pessoa de cada um dos recorridos tratados, ao longo de oito anos, por uma sociedade que se dedica a essa actividade, através de colaboradores seus (o recorrente Daniel Silva e, posteriormente, Laura), é de concluir que isso acontecia em execução de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a recorrente sociedade e os recorridos. A natureza gratuita desse contrato explica-se pela coexistência com um contrato de prestação de serviços oneroso que vigorava entre a recorrente sociedade e a sociedade criada pelos recorridos.

É neste sentido que, na sentença recorrida, se afirma que «Existiu uma relação contratual entre os autores e a Sociedade 1, Lda., próxima da existente com a Sociedade 3, Lda.”». Próxima, não porque o contrato existente entre os recorridos (na qualidade de pessoas singulares e não de representantes de uma sociedade comercial) e a recorrente Sociedade 1, Lda. não existisse ou não merecesse a qualificação jurídica de prestação de serviços, mas sim porque esse contrato foi celebrado entre as mesmas pessoas, ainda que, do lado dos recorridos, em qualidade diversa, em circunstâncias tais que a existência do contrato de prestação de serviços que os recorridos celebraram em nome próprio se explica pela coexistência com o contrato de prestação de serviços que os recorridos celebraram em nome da sociedade. Podemos, sem esforço, concluir que nos encontramos perante uma união de contratos, na qual o contrato de que os recorridos são partes se encontra dependente da subsistência daquele em que estes outorgaram em nome da sociedade. Do ponto de vista económico, a recorrente Sociedade 1, Lda. obtinha a compensação pelo trabalho desenvolvido em execução dos dois contratos através da retribuição estipulada em apenas um deles. Prática esta que não é inédita, longe disso.

Não se verifica, portanto, a contradição que os recorrentes apontam à sentença recorrida. Em ponto algum desta o tribunal a quo vacila na conclusão de que, entre a recorrente Sociedade 1, Lda. e os recorridos, tenha sido celebrado um contrato de prestação de serviços de natureza gratuita.

Os recorrentes argumentam que, entre a recorrente Sociedade 1, Lda. e os recorridos, não foi celebrado um contrato de prestação de serviços escrito, e que os segundos não constituíram os primeiros como seus procuradores. É verdade que aquele contrato não foi reduzido a escrito e que os recorridos não constituíram qualquer dos recorrentes como seu procurador, mas nada disso obsta à sua existência e validade.

Os recorrentes também argumentam que o tribunal a quo demonstrou “claramente não ter a certeza da existência de qualquer contrato, ou sequer aparência de contrato, pois refere que Daniel Silva teria ficado de tratar do procedimento para a obtenção do estatuto de residente não habitual”, e não que “o Daniel Silva ficou de tratar”. Também este argumento não procede. A utilização do condicional explica-se pela circunstância de o tribunal a quo estar a resumir as declarações de parte dos autores e não a enunciar um facto julgado provado, sendo, por isso, justificada e não lhe podendo ser atribuído o significado que os recorrentes pretendem.

Pelo exposto, concluímos, como o tribunal a quo, que resulta da matéria de facto provada que vigorou um contrato de prestação de serviços gratuito entre a recorrente Sociedade 1, Lda. e os recorridos. As ilações que os recorrentes pretendem retirar da alegada falta de sustentação daquela conclusão na matéria de facto provada carecem, elas sim, de fundamento.

2 – Danos sofridos pelos recorridos:

2.1. Os recorrentes argumentam que, em 2019, não se verificavam os pressupostos legais da aquisição do estatuto de residente não habitual pelos recorridos, porquanto estes tinham residência permanente em Portugal desde o dia 07.11.2018 e o artigo 16.º do CIRS considerava como residentes não habituais em Portugal os sujeitos passivos que não tivessem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores. Daí que, segundo os recorrentes, em 2019, os recorridos já estivessem legalmente impedidos de obter o estatuto de residentes não habituais, independentemente de o processo ser ou não tratado e por quem. Concluem que, também por esta razão, inexiste fundamento para a sua condenação.

Não é assim.

O n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, entretanto revogado, estabelecia que se consideravam residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tivessem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

Os recorridos passaram a residir exclusivamente em Portugal em 07.12.2018 (e não 07.11.2018, como os recorrentes afirmam), mas, como se explica na sentença recorrida, só em 02.01.2019 passaram a ter residência fiscal em Portugal. Daí que, ao abrigo do disposto no referido n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, estivessem em condições de adquirir o estatuto de residentes não habituais em Portugal.

2.2. Por outro lado, os recorrentes afirmam não perceberem a condenação referente ao IRS de 2021, porquanto se o processo tivesse sido tratado (pelos autores) aplicava-se ao IRS de 2019 e o IRS referido no ponto 41 dos factos provados refere-se a 2019, nada tendo a ver com o de 2021”.

A incapacidade de percepção dos recorrentes não é imputável ao tribunal a quo, porquanto este explicitou as razões deste segmento da decisão. Assim, diz-se na sentença recorrida:

“(…) é possível concluir que os autores podem ter sofrido um prejuízo relativamente à tributação dos rendimentos de 2019, 2020 e 2021, mas já não relativamente aos futuros, quer tendo em conta a volatilidade da lei quer o desconhecimento dos concretos rendimentos futuros dos autores.

Os autores não demonstraram os efetivos danos decorrentes de terem os respetivos rendimentos sido tributados enquanto residentes habituais (e não, como esperavam, residentes não habituais) de 2019 a 2021. Para isso, deveriam ter alegado e demonstrado os rendimentos elegíveis e a diferença de aplicação de um e outro regime nos anos de 2020 (relativamente a rendimentos de 2019) e de 2021 (relativamente a rendimentos de 2020) – note-se que a ação entrou em juízo em outubro de 2021, data em que terão declarado já os rendimentos à Autoridade Tributária. Não o fizeram – a tabela junta com a petição não foi suficiente. Por essa razão, não deve o Tribunal remeter tal apuramento para liquidação.

Relativamente aos rendimentos de 2021, poderiam ter vindo com articulado superveniente, mas optaram por não o fazer até porque da sua perspetiva os danos estariam já apurados. O Tribunal poderá condenar os réus em montante a liquidar – art. 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.”

Ou seja:

a) Não era possível demonstrar que os recorridos viessem a sofrer danos relativamente à tributação dos rendimentos que auferissem nos anos de 2022 e seguintes;

b) Era possível demonstrar os danos sofridos pelos recorridos relativamente à tributação dos rendimentos que auferissem nos anos de 2019 a 2021; porém, os recorridos não o fizeram;

c) Tendo em conta que a acção foi proposta em Outubro de 2021, a ausência de demonstração, pelos recorridos, dos concretos danos que sofreram relativamente à tributação dos rendimentos que auferiram nos anos de 2019 e 2020, impede que se relegue a sua liquidação para a execução da sentença;

d) Em relação aos danos decorrentes de os rendimentos auferidos pelos recorridos no ano de 2021 terem sido tributados ao abrigo do regime dos residentes habituais e não, como esperavam, do regime dos residentes não habituais, é admissível a condenação dos recorrentes em montante a liquidar em execução da sentença, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º do CPC, porquanto se trata de danos supervenientes.

O entendimento do tribunal a quo descrito nas alíneas a) a c) é favorável aos recorrentes. Tanto assim foi, que determinou a sua absolvição relativamente a danos respeitantes aos anos de 2019, 2020 e 2022 e seguintes.

Só o entendimento descrito na alínea d) é desfavorável aos recorrentes. Ora, a argumentação que estes apresentam não se destina a refutá-lo. Os recorrentes apenas estranham a sua absolvição do pedido de condenação no ressarcimento dos danos sofridos pelos recorridos relativamente aos rendimentos por estes auferidos no ano de 2020. Porém, o fundamento dessa absolvição e de o mesmo não ter acontecido relativamente aos rendimentos auferidos pelos recorridos no ano de 2021 é explicitada na sentença recorrida e não merece crítica.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.

*

Évora, 08.02.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.º adjunto)


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 25.01.2024

Processo n.º 545/18.6T8EVR.E3

*

Sumário:

1 – Recai sobre quem invoca a aquisição do direito de propriedade sobre uma coisa por usucapião o ónus da prova dos factos que constituem pressuposto desta.

2 – São pressupostos da usucapião a posse nos termos do direito real que por essa forma se pretende adquirir e o prolongamento dessa posse por certo lapso de tempo, variável em função dos atributos da mesma posse.

3 – O animus da posse não consiste na convicção de que se é titular do direito real nos termos do qual se possui, mas sim na intenção de agir como titular daquele direito, independentemente da convicção que se tenha acerca dessa titularidade.

*

Autores: Marco e mulher, Elsa.

Réus: Isidro e mulher, Odete.

Pedidos dos autores: 1) Declaração de que os autores são titulares do direito de propriedade do prédio misto denominado Quinta das Favas, com a área de 0,5000 hectares, a parte rústica inscrita na matriz da freguesia da (…) sob o artigo 240, da Secção K e a parte urbana sob o artigo 5200 da União das Freguesias de (…), descrito na referida Conservatória sob o nº 4917/19910614 daquela freguesia, sendo os RR. condenados a reconhecerem esse direito; 2) Condenação dos réus a entregarem imediatamente aos autores, livre e devoluta, a parcela de terreno com a área de 0,1500 hectares correspondente à parte indicada a tracejado na planta junta sob documento n.º 7 que instrui a petição inicial.

Pedido reconvencional: Condenação dos autores a reconhecerem o direito de propriedade dos réus sobre a parcela de terreno com a área de 0,1500 hectares, correspondente à parte indicada a tracejado na planta junta sob a designação de doc. 7 e que instruiu a petição inicial.

Sentença: Julgou a acção improcedente, absolvendo os réus dos pedidos formulados pelos autores; julgou a reconvenção procedente, condenando os autores a reconhecerem que os réus adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parcela de terreno com a área de 0,1500 hectares, correspondente à parte indicada a tracejado na planta junta com a petição inicial sob o documento 7, a fls. 15 verso dos autos.

*

Os autores interpuseram recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. A sentença da qual se recorre não procedeu, no nosso entendimento, com a diligência que se impunha quanto à sua fundamentação; leva à factualidade provada diversos factos que deveriam constar da factualidade não provada (facto provado n.º 16.º e 18º a 23º);

2. A sentença da qual se recorre também não retira as devidas consequências quanto à valoração de um documento essencial, existindo, desta forma, manifesto erro na apreciação da prova e flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do douto Tribunal a quo sobre matéria de facto, que afecta e vicia a decisão proferida;

3. Acresce que, a douta Sentença da qual se recorre não procedeu com a diligência que se impunha quanto ao efeito a extrair das referidas declarações das testemunhas, pois que a mesma ao valorar as declarações de parte prestadas pelo A. Marco, bem como no que diz respeito às declarações prestadas pelas testemunhas Rui; Carlos; e João, a mesma mais uma vez teria de considerar provada a não intenção dos RR. de agirem (ou terem intenção de agir) de acordo com a pretensão de exercer o direito de propriedade sobre a referida parcela de terreno.

4. Também ao desconsiderar como faz a isenção das testemunhas apresentadas pelos RR., tendo estas interesse na decisão da causa, não poder levar (como levou) aos factos provados os artigos 18 a 20.

5. Ao considerar na sua fundamentação as referências às declarações prestadas pelas testemunhas, como fez, o douto Tribunal a quo parece incorrer numa contradição na valoração da prova realizada.

6. Mas quando explana a sua fundamentação sobre a prova produzida em sede de audiência de julgamento, o douto Tribunal a quo, desta forma, incorre em manifesto erro na apreciação da prova e flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis que afecta e vicia a decisão proferida.

7. A declaração emitida no dia 26 de Janeiro de 2007 pelo R. Isidro, incorporada no documento nº 5 junto com a petição inicial, deveria sempre ser considerada eficaz entre as partes pleiteantes nos autos.

8. Em algum momento, anterior ou posterior à emissão do documento, nenhum dos RR. colocou em causa o teor dessa declaração, nem nunca invocou a sua falta de legitimidade por ausência da intervenção da R. mulher.

9. Desta forma, atento o supra exposto, essencial seria considerar controvertida a questão da consciência e do animus adquirendi dos RR., como consequência directa da referida declaração assinada pelo Réu Isidro, a qual teria forçosamente de levar a conclusão distinta daquela que resulta do facto provado n.º 16 e 18 a 23 (al. a) do n.º 1 do art.º 640.º CPC).

10. A entender-se como se entendeu na douta Sentença teria o valor probatório do referido documento, assinado, pelo R. Isidro, de ser relevado para efeitos probatórios, por isso andou mal o Tribunal a quo ao decidir de forma distinta, ao considerar que os RR. e recorridos teriam «(…) a consciência que aquela parcela de terreno lhes pertencia.».

11. A planta anexa à declaração assinada pelo Réu Isidro (Documento n.º 05, página 06 da Petição Inicial) era a constante do cadastro predial (Documento n.º 04 da Petição Inicial), correspondendo a delimitação feita no terreno.

12. Nos casos específicos em que a prova documental tem força probatória plena, a lei impõe que a demonstração da realidade de facto contrário ao que resulta plenamente provado por esses meios de prova se faça através de mecanismos específicos (art.º 347.º in fine CC) — a falsidade para a prova documental (art.º 372.º do CC).

13. Ora, os RR. não lograram produzir este resultado, pois nem tão pouco sequer alegaram a falsidade do documento, aceitando-o, desta forma, no que à declaração de vontade resultante do mesmo diz respeito.

14. Em termos processuais, o art.º 607.º n.º 5 CPC exclui da livre apreciação do juiz os factos já provados por documento ad substantiam (arts.º 220.º e 364.º n.º 1 CC), os já provados por documento ad probationem (art.º 364.º n.º 2 CC) e os por confissão ou acordo das partes (art.º 358.º CC e art.º 567.º n.º 2 CPC). Em resumo, os limites são os que resultam das manifestações do sistema de prova legal no nosso direito.

15. Estamos perante uma confissão extrajudicial dos RR. e recorridos. Perante o documento em causa, está subtraída a livre apreciação do Tribunal a quo, devendo este ter feito constar como provado o teor e sentido das ditas declarações (cfr. art.º 358.º n.º 1 e 2 CC). Acresce que o referido documento foi aceite por ambos os RR. e recorridos, não tendo impugnado o mesmo.

16. Não retira a douta Sentença recorrida, desta forma, as devidas consequências quanto à valoração do documento e das declarações prestadas pelas testemunhas Rui, Carlos e João, existindo, desta forma, manifesto erro na apreciação da prova e flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão que afecta e vicia a decisão proferida.

17. Acresce ser pacífico que a exterioridade do direito real que tem por base dois elementos: o corpus (elemento material). Mas omite manifestamente o animus (elemento volitivo). A aquisição da posse tem lugar com a verificação dos dois elementos. Elementos este que, nas palavras de MANUEL RODRIGUES, “são autónomos, subsistentes por si próprios; mas que a sua junção é absolutamente necessária para que a posse exista”, entendendo ainda que, sem o corpus (…) o animus é um fenómeno puramente interno; sem o animus o corpus é mera exterioridade, simples facto material sem significado jurídico” (MANUEL RODRIGUES, ob. cit., p. LVIII. Cfr., também, MANUEL RODRIGUES, ibidem, págs. 75-76).

18. E quando os RR. e recorridos se vinculam ao teor da declaração do documento aqui identificado, não é possível afirmar que esta convicção está implicitamente contida no poder de facto que se exerce sobre a coisa possuída, mas precisamente o seu contrário.

19. E à questão de saber se realidades de natureza psicológica podem ou não integrar realidades de facto tem a jurisprudência do S.T.J. dado resposta positiva, considerando que “factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais e os eventos do foro interno, psíquico”, tendo também aqui como expoente as declarações do R. e recorrido Isidro quando à restituição e negociação de permuta de terrenos com os AA. e recorrentes.

20. Não obstante o entendimento do insigne Professor Menezes Cordeiro, que o papel a dar ao animus não poderá ser senão um papel meramente secundário, a “Declaração” assinada pelo Réu Isidro desde logo ilidir a presunção constante do art.1252º, nº 2 do Código Civil, sendo manifesta a convicção dos RR. e recorridos em como não eram, de facto, proprietários do terreno ocupado.

21. Sobre o que o douto Tribunal a quo não se pronuncia e cujo documento (cfr. Documento n.º 05 - páginas 06 e 07 -, da petição inicial) e testemunhos prestados estão em flagrante conflito e contradição com a prova consumada dos factos n.º 16 e 18 a 23, o qual teriam de ser dados como não provados (al. c) do n.º 1 do art.º 640.º CPC).

22. Ou seja, é por demais evidente do teor das declarações das testemunhas, Gilberto, Carlos e João, bem como das declarações de parte do A. Marco, e do valor probatório do documento a fls 65, que os RR. recorridos não actuavam sobre a parcela com a intenção de exercer os poderes que integram o direito de propriedade.

23. Esta conclusão – para além dos demais argumentos aqui enunciados – faz claudicar um dos elementos essenciais (cumulativos) da figura jurídica alegada pelos RR. e recorridos no seu douto pedido reconvencional, nomeadamente o animus adquirendi. O que forçosamente teria de fazer com que fosse levado aos «-FACTOS PROVADOS:» que os RR. e recorridos não actuaram com intenção de exercer os poderes que integram o conteúdo do direito de propriedade. O que não foi feito pelo douto Tribunal a quo.

24. Com o devido respeito, é entendimento dos AA. e recorrentes estarmos perante um erro notório na apreciação da prova e na aplicação do Direito substantivo.

25. Com o devido respeito pelo douto Tribunal, a Sentença é parca, no nosso entendimento, na fundamentação.

26. Da fundamentação deve resultar, com clareza, o caminho próprio que o Tribunal seguiu para formar a sua própria convicção, não podendo ser suficiente uma remissão ou enunciação genérica, como destacou, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/09/2013 (Proc.º nº 1965/04.9TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt ).

27. O douto Tribunal recorrido não indica os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado, sendo que existe uma flagrante contradição entre aqueles que são os elementos de prova disponíveis e a fundamentação sobre a convicção realizada sobre os mesmos.

28. Mas mais: mais uma vez, com o devido respeito pelo douto Tribunal, a douta Sentença enferma de ilegalidade na valoração da prova, porque a Lei impõe vários limites ao juiz no que toca ao julgamento da matéria de facto.

29. Estando excluída da livre apreciação do juiz os factos já provados por documento ad substantiam (arts.º 220.º e 364.º/1 C. Civ.), os já provados por documento ad probationem (art.º 364.º/2 C. Civ.) e os por confissão ou acordo das partes (art.º 358.º C. Civ. e art.º 567.º/2 C. Proc. Civ.), mas perante um documento de natureza particular assinado pelo Réu Isidro e o mesmo não ter sido impugnado por este, forçoso seria que o douto Tribunal não poderia decidir como decidiu porquanto a livre apreciação não abrange este facto 16., devendo ser consideradas provadas as declarações constantes do referido documento, nomeadamente que o Réu Isidro sabia e tinha consciência que a referida área constante da planta Cadastral não era parte integrante do prédio sua propriedade.

30. Forçoso seria que o douto Tribunal concluísse de forma distinta daquela que verteu na douta Sentença, por estarmos perante uma confissão extrajudicial do Réu, ao afirmar «(…) concordo com a demarcação efectuada em 30 de Outubro de 2006, relativamente ao prédio 224, sito na freguesia de (...), concelho de (…), o qual passou a ter uma área de 5000 m2, devido a integrar a área de 1500 m2 que pertencia ao prédio 228» (cfr. Documento n.º 05 - página 07 -, da petição inicial), e que está subtraída a livre apreciação do Tribunal recorrido, devendo este ter feito constar como provado o teor e sentido das ditas declarações (cfr. art.º 358.º/1 e 2 C. Civ.).

31. A força probatória dos documentos particulares é determinada pelo art.º 376.º/1 e 2 C. Civil, nos termos do qual este faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor quando a sua assinatura tenha sido reconhecida ou não tenha sido impugnada a genuinidade do documento.

32. É manifesto que o douto Tribunal se pronuncia sobre a exterioridade do direito real que tem por base o corpus (elemento material), omitindo manifestamente o animus adquirendi (elemento volitivo) que é claramente contraditado pelo teor da declaração do documento por este assinado.

33. Acresce que ao decurso de um prazo de usucapião aplicam-se, por expressa remissão do art.º 1292.º do CC, as regras respeitantes à suspensão e interrupção da prescrição.

34. Desta forma, este elemento probatório essencial da exteriorização do animus non adquirendi do R. Isidro, plasmado no identificado documento e elemento probatório, interrompe o prazo de usucapião aí em curso, nos termos do art.º 323.º, nº 1 do CC.

35. Essa interrupção, por força do disposto no art.º 326º, nº 1 do CC, inutiliza todo o prazo de usucapião decorrido até à “DECLARAÇÃO” que consta do número 17 dos “-FACTOS PROVADOS:” (documento de fls. 65), originando a contagem de um novo prazo, após a data e assinatura do mesmo, por não ter decorrido o prazo de usucapião considerado aplicável. É isto o que resulta do disposto no nº 1 do artigo 327º do CC.

36. Até à data de 26-01-2007, não tendo então decorrido o prazo de usucapião nem o mesmo alguma vez ter sido invocado pelos RR. recorridos, em vista da aquisição do direito de propriedade sobre a parcela de terreno, a declaração de vontade constante do documento assinado pelo R. recorrido Isidro vale como facto interruptivo da prescrição aquisitiva e neutraliza qualquer consideração (soma) do tempo decorrido anteriormente a essa declaração, no quadro da afirmação da existência de um direito de propriedade constituído por usucapião.

37. O mesmo é dizer que, ao contrário do supra enunciado pelo douto Tribunal “a quo”, não estavam excedidos os prazos do artº. 1296º CC para a posse sem registo de título ou de mera posse, mesmo de 15 anos, sendo que entre a data da Declaração (em 26-01-2007) e o início dos autos (17-03-2018), decorreu o período de tempo aproximado de 11 anos.

38. Não se encontrando verificado, desta forma, um dos elementos essenciais da figura jurídica da usucapião, nomeadamente o corpus por um período mínimo de 15 anos (art.º 1296.º CC) e, com o devido respeito, assim, mal andou o douto Tribunal a quo ao decidir conforme supra se transcreve.

39. O douto Tribunal a quo nem tão pouco se pronuncia ou invoca o elemento psicológico (animus) para fundamentar a aplicação do art.º 1287.º CC, nomeadamente pronunciando-se (e erradamente, conforme supra explanado) sobre o período da posse da parcela de terreno pelos RR. recorridos (supra transcrito).

40. Para além da douta sentença recorrida desconsiderar sequer pronunciar-se sobre um dos elementos cumulativos desta figura jurídica, constata-se que o RR. não logram provar (como lhes competia) elementos susceptíveis de serem capazes de justificar a intenção de agirem (ou terem intenção de agir) de acordo com a pretensão de exercer o direito de propriedade sobre a referida parcela de terreno.

41. Resulta com relativa clareza, de mera leitura do disposto no art.º 1287º CC, que a orientação seguida pelo legislador foi no sentido de atribuir ao possuidor não o próprio direito real correspondente, mas a faculdade de o adquirir. Significa isto que a usucapião não opera ipso jure, para que a mesma se verifique é necessário que seja invocada (No mesmo sentido, cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa n.º 2337/2007-6 de 26-04-2007, (Pereira Rodrigues), sumário: ponto VI.).

42. Os RR. e recorridos declararam o seu oposto no documento junto a fls. 65 e constante dos factos provados n.º 17, bem como, em momento posterior, de viva voz, perante o A. recorrente Marco e de várias testemunhas. E invocaram esta pretensão adquirente unicamente no seu douto Pedido Reconvencional, cerca de 11 anos após o reinício do prazo, conforme supra explanado.

43. Para que haja animus, no verdadeiro sentido do termo, enquanto elemento caracterizador da posse ad usucapionem, ou seja, animus possidendi, é necessário que o poder factual ou empírico exercido pelo agente seja correspondente ao direito real e que esse exercício traduza a sua vontade.

44. Ora, os RR. recorridos não demonstraram uma vontade de agir como titulares de um direito real, expressando precisamente o seu oposto… duas vezes.

45. A vontade dos RR. recorridos não pode ser aferida através de uma introspecção psicológica. Esta é aferida sim, analisando o seu comportamento, que o mesmo é dizer, a vontade destes tem de ser determinada pela sua exteriorização, revelada em função dos actos que estes tenham praticado.

46. Actos esses que, por sua vez, traduzem a vontade de agir ou não como titulares de um direito real.

47. É por demais evidente que os RR. recorridos não logram provar o animus possidendi, como lhes competia demonstrar (art.º 342.º CC – ónus da prova no pedido reconvencional).

48. Ou seja, competia aos RR. recorridos provar o animus possidendi, sendo o entendimento do douto Tribunal a quo que tendo-o considerado como não provado, por via disso, considerou ainda assim procedente o pedido reconvencional por aqueles deduzido.

49. Existe assim um erro manifesto e uma contradição frontal e insanável com a lei substantiva, nomeadamente com os requisitos cumulativos do art.º 1287.º CC, porquanto os RR. recorridos não podem adquirir o direito de propriedade sobre a parcela reclamada pelos AA. Recorrentes porque não só o elemento temporal se encontra verificado (11 anos), como a sua posse não é manifestamente correspondente aquele direito.

50. Acresce ser palpável e evidente a contradição existente entre o facto supra transcrito dado como não provado (o qual faz em absoluto claudicar o alegado como causa de pedir da reconvenção apresentada pelos RR. recorridos) e a decisão final e respectiva fundamentação da decisão do Tribunal a quo.

51. Ora, resultando dos factos considerados provados (conforme ponto 17 da douta sentença recorrida) e dos não provados (conforme ponto único identificado como a), da douta sentença recorrida), que os RR. recorridos, não agem na plena convicção, de serem os donos do prédio em questão, sem lesar o direito de outrem, sem a «consciência que aquela parcela de terreno lhes pertencia» dúvidas não podem restar que tal requisito não se encontra preenchido.

52. Pelo que, a douta sentença recorrida não deveria nem poderia ter reconhecido os RR. recorridos como proprietários da dita parcela de terreno, o que tendo-o feito, violou o disposto no art.º 1287.º CC, devendo por isso ser revogada por outra que declare improcedente o pedido reconvencional por eles deduzido.

53. Por outro lado, deve igualmente resultar provado, que na data da reunião entre o A. Marco, as testemunhas Gilberto e João e Carlos, na companhia do R. Pastor, este concedeu e aceitou na devolução da parcela de terreno ao A. Marco, conforme resulta do depoimento de parte deste e das declarações das testemunhas, e demais elementos de prova, designadamente toda a prova documental junta com a PI.

54. Como tal, mal andou, também por isso, o Tribunal a quo, que deveria ter considerado como não provado que os RR. e recorridos não agissem ou tivessem intenção de agir como titulares do direito de propriedade sobre a parcela de terreno em questão, tendo a sentença em apreço também violado o disposto no art.º 1265.º CC.

55. A aquisição da propriedade por usucapião tem como pressuposto a existência de uma posse em nome próprio, não apenas com corpus, mas também com o animus adquirendi que os RR. Recorridos manifestamente não lograram provar no seu pedido. Da apreciação conjugada do documento e dos testemunhos prestados, resulta claro que nenhum dos elementos cumulativos da usucapião existia.

56. Assim entendemos, que para além de existir uma contradição nesta sede entre a factualidade dada como provada e os elementos de prova existentes nos autos, existe também uma valoração ilegal dos elementos probatórios disponíveis nos autos.

Como tal e respigando tudo o que supra se deixa dito, deverá ser considerada improcedente, por não provada, a excepção peremptória de aquisição por usucapião deduzida pelos RR. recorridos e consequentemente declarado improcedente, por não provado, o pedido reconvencional por estes deduzido.

Venerandos Desembargadores, deverão V. Exas. substituir a sentença recorrida, substituindo-a por outra em que reconheça aos AA. Recorrentes o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno, conforme ab initio peticionado, nomeadamente que declare:

a) que os Autores são titulares do direito de propriedade do prédio misto denominado Quinta das Favas, com a área de 0,5000 hectares, a parte rústica inscrita na matriz da freguesia da (…) sob o artigo 240, da Secção K e a parte urbana sob o artigo 5200 da União das Freguesias de (…), descrito na referida Conservatória sob o nº 4917/19910614 daquela freguesia, sendo os Réus condenados a reconhecer esse direito;

b) serem os Réus condenados a entregarem imediatamente aos Autores, livre e devoluta a parcela de terreno com a área de 0,1500 hectares correspondente à parte indicada a tracejado na planta sob documento nº 7 que instrui a petição inicial.

Os recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido.

*

Questões a decidir:

- Admissibilidade do conhecimento da questão da interrupção do prazo de usucapião;

- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

- Verificação dos pressupostos da usucapião.

*

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – Na Conservatória do Registo Predial de Évora encontra-se inscrito a favor dos Autores, pela apresentação 2122 de 20160912 a aquisição do prédio misto denominado Quinta das Favas, com a área de 0,5000 hectares, a parte rústica inscrita na matriz da freguesia da (…) sob o artigo 240 da Secção K e a parte urbana sob o artigo 5200 da União das Freguesias de (...), descrito na referida Conservatória sob o nº 4912/ 19910614 daquela freguesia.

2 – Os Autores adquiriram aquele prédio por compra efectuada a Rui e Guilherme, sendo estes vendedores os herdeiros de Teresa.

3 – Em Agosto de 2003 da Matriz Cadastral constava que o prédio com o artº. 224 da Secção K propriedade de Teresa tinha a área total de 0,3500ha.

4 – Em Setembro de 2003 Teresa requereu a rectificação da área daquele prédio, junto da Repartição de Évora por ter a área de 5000m2.

5 – Do processo cadastral instaurado no Serviço de Finanças de Évora sob o nº (…) consta que o prédio rústico com o nº 224 K da freguesia da (…) e que proveio do artº. 209 tem a área de 5000m2.

6 – Este prédio foi desanexado do prédio inscrito na matriz da freguesia da (…), concelho de Évora, sob o artº. 126º da Secção K com a área total de 4,000 hectares mediante escritura celebrada em 9 de Janeiro de 1987 no 1.º Cartório Notarial de Évora.

7 – Nessa escritura Teresa vendeu a Manuel casado com Isabel sob o regime de comunhão geral de bens, 2 parcelas de terreno com as áreas de 2,500 hectares (parcela 1) e de 1,000hectares (parcela 2) a desanexar da parte rústica do prédio com parte rústica e parte urbana, denominado "Quinta das Favas", com a área de 4,000hectares, sito na freguesia da (…), concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora, sob o número 18.134, a fls. 79v, do Livro B-48, registada a favor da vendedora pela inscrição 39.579, a fls. 28v, do Livro G-51, inscrito na respectiva matriz, a parte rústica sob o artº. 126º da Secção K e a parte urbana sob o artº. 912.

8 – O prédio desanexado, com a área de 3,500 hectares, foi descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o número 01985 da freguesia da (…), ficando a sua aquisição registada a favor de Manuel, pela inscrição G-1, apresentação nº 4/250687.

9 – Por escritura pública de 2 de Outubro de 1991 lavrada no 1º Cartório Notarial de Évora, Manuel e mulher Isabel venderam aos Réus e a André, casado sob o regime de comunhão de adquiridos com Vitória, o prédio rústico "... com a área de três hectares e cinco mil centiares, sito na Quinta das Favas, freguesia da Sé, deste concelho de, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora, sob o número mil novecentos e oitenta e cinco, daquela freguesia ...".

10 – O artigo 227, Secção K da freguesia da Sé, concelho de Évora está inscrito na matriz rústica em nome do Réu Isidro, nela constando ter a área de 1,8250 hectares.

11 – Este artigo confronta a norte com o artigo 239-K.

12 – Antes da instauração do processo de cadastro 50/2003 os Réus promoveram alterações à configuração e limites do prédio que haviam adquirido a Manuel e mulher.

13 – Os Réus submeteram à apreciação da Câmara Municipal de Évora, no âmbito do processo n. 1.11916, projecto para licenciamento de obras no artigo 239-K.

14 – A Câmara Municipal de Évora não reconheceu os limites constantes da planta de implantação com que os Réus instruíram aquele processo, por não corresponderem aos limites do artigo 239-K constantes na planta cadastral.

15 – Pelo menos desde a data da escritura pública de 2 de Outubro de 1991 que o prédio dos Réus manteve aquela configuração e área.

16 – Os Réus pelo menos desde aquela data que decidiram do uso e utilização a dar aquele prédio, providenciando pelo amanho da terra.

17 – Do documento de fls.65 dos autos sob a epígrafe “DECLARAÇÃO” consta o seguinte:

Eu, Isidro, casado, residente em Évora na Quinta do Peres, Estrada da Igrejinha, com o Bilhete de Identidade nº 2366335, concordo com a demarcação efectuada em 30 de Outubro de 2006, relativamente ao prédio 224, sito na freguesia de (...), concelho de Évora, o qual passou a ter uma área de 5000m2, devido a integrar a área de 1500m2 que pertencia ao prédio 228.

Évora, 26 de Janeiro de 2007

(segue assinatura autógrafo de Isidro).

18 – Desde a data da compra em 09.01.1987, da parcela de terreno com a área de 3,500 hectares, por Manuel, sempre o prédio esteve na posse primeiro do próprio, depois do filho e do genro e depois do filho, o actual Réu marido.

19 – Eram estes anteriores proprietários e o actual Réu e mulher que decidiram o uso a dar ao terreno, procedendo à cultura das espécies que entendiam lá plantar ou deixando o terreno em pousio, conforme entendessem, procedendo ao amanho da terra e conservação do espaço.

20 – Sempre foram eles que mandaram fazer os trabalhos necessários ao amanho da terra e conservação do espaço quando achavam oportuno, retirando os produtos hortícolas e fruta que o terreno proporciona.

21 – Pelo menos desde 2017 que os Réus têm conhecimento que aquela parcela de terreno que os Autores reclamam não lhes pertence.

22 – Apenas os Autores manifestaram oposição ao uso do prédio por parte dos Réus.

23 – E só após a aquisição do imóvel identificado no artigo primeiro dos factos provados pelos Autores.

Na sentença recorrida, foi julgado não provado o seguinte facto:

a) Os Réus após a compra do terreno pelos Autores em 2016 providenciaram pelo amanho da terra com a consciência que aquela parcela de terreno lhes pertencia.

*

Admissibilidade do conhecimento da questão da interrupção do prazo de usucapião:

Nas conclusões 33 a 38, os recorrentes opõem, à causa de pedir da reconvenção, a excepção peremptória da interrupção do prazo da usucapião por via do disposto nos artigos 323.º, n.º 1, 326, n.º 1, 327.º, n.º 1, e 1292.º do Código Civil (CC). Coloca-se a questão da admissibilidade do conhecimento desta questão no presente recurso.

Resulta dos artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2, e 640.º do Código de Processo Civil (CPC) que os recursos ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, ou seja, suscitadas pela primeira vez perante o tribunal ad quem. Isto, naturalmente, sem prejuízo do conhecimento, por este último, das questões que o devam ser oficiosamente. “Os recursos são meios de obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento. (…) pretende-se um novo exame da causa, por parte de órgão jurisdicional hierarquicamente superior.”[1] Esta é uma regra básica em matéria de recursos, que define a própria natureza destes.

A questão da interrupção do prazo da usucapião não é de conhecimento oficioso, como o não é a da prescrição e a da interrupção do prazo desta. É o que decorre do artigo 303.º, aplicável ex vi artigo 1292.º, ambos do CC. Daí que a admissibilidade do seu conhecimento pelo tribunal ad quem dependa de ela ter sido suscitada no tribunal a quo.

Ora, isso não aconteceu. A usucapião foi invocada na contestação/reconvenção e, na réplica, os recorrentes limitaram-se a defender-se por impugnação. Daí que, nas sentenças sucessivamente proferidas, o tribunal a quo não tenha conhecido da questão da interrupção do prazo da usucapião. Estava-lhe vedado fazê-lo, precisamente por se tratar de questão cujo conhecimento depende da sua invocação pela parte a quem aproveita.

Sendo assim, ao invocarem a interrupção do prazo da usucapião apenas em sede de recurso (e, mesmo aqui, apenas nos 2.º e 3.º recursos), os recorrentes estão a suscitar uma questão nova, que não pode ser conhecida pelo tribunal ad quem.

Pelo exposto, não conheceremos da questão da interrupção do prazo da usucapião.

Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A forma como as alegações de recurso se encontram organizadas não facilita a identificação dos pontos da matéria de facto que os recorrentes consideram terem sido incorrectamente julgados. A forma correcta de proceder a tal identificação passa por especificar, nas conclusões, de forma condensada, os referidos pontos. Por exemplo, escrevendo que “o recorrente considera incorrectamente julgada a matéria dos n.ºs 1, 3, 5 do enunciado dos factos provados e das als. a), c) e e) do enunciado dos factos não provados”. Se se pretender o aditamento de determinados factos, não discriminados pelo tribunal a quo, a forma de o dizer claramente é: “o recorrente pretende o aditamento dos seguintes factos ao elenco dos factos julgados provados:”, especificando-os em seguida. Trata-se da forma mais simples e clara de cumprir o disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. a), do CPC, simplicidade e clareza essas que a todos (recorrente, recorrido e tribunal) aproveitam.

Quer no corpo das alegações, quer nas conclusões, os recorrentes adoptaram o método inverso: à medida que expunham os seus argumentos, foram concluindo, de forma dispersa e repetitiva, os pontos da matéria de facto que consideram terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal a quo. Assim:

- Na conclusão 1, afirmam que a matéria dos n.ºs 16 e 18 a 23 dos factos provados deverá ser julgada não provada;

- Na parte final da conclusão 3, parece que pretendem o aditamento, ao enunciado dos factos provados, da “não intenção dos RR. de agirem (ou terem intenção de agir) de acordo com a pretensão de exercer o direito de propriedade sobre a referida parcela de terreno”;

- Na conclusão 4, reafirmam a pretensão de que o conteúdo dos n.ºs (a que chamam artigos) 18 a 20 dos factos provados seja julgado não provado;

- Na conclusão 21, reafirmam que a matéria constante dos n.ºs 16 e 18 a 23 deverá ser julgada não provada;

- Na conclusão 29, reafirmam que a matéria constante do n.º 16 deverá ser julgada não provada e que devem “ser consideradas provadas as declarações constantes do referido documento, nomeadamente que o Réu Isidro sabia e tinha consciência que a referida área constante da planta Cadastral não era parte integrante do prédio sua propriedade”, reportando-se ao documento transcrito no n.º 17;

- Na conclusão 30, os recorrentes repetem que deverá ser julgado provado “o teor e sentido das ditas declarações”, reportando-se ao documento transcrito no n.º 17;

- Na conclusão 53, os recorrentes expressam a pretensão de que seja aditado, ao enunciado dos factos provados, que, em reunião realizada com o recorrente Marco e as testemunhas Rui, João e Carlos, o recorrido Isidro concedeu e aceitou a devolução da parcela ao primeiro.

Sendo o objecto do recurso, também no que concerne à matéria de facto, delimitado pelas conclusões dos recorrentes, concluímos que estes pretendem que:

- O conteúdo dos n.ºs 16 e 18 a 23 dos factos provados seja julgado não provado;

- Seja aditado, ao enunciado dos factos provados:

- Que os recorridos não tiveram a intenção de agir “de acordo com a pretensão de exercer o direito de propriedade sobre a referida parcela de terreno”;

- O conteúdo do documento transcrito no n.º 17;

- Que o recorrente Isidro “sabia e tinha consciência que a referida área constante da planta Cadastral não era parte integrante do prédio sua propriedade”;

- Que, em reunião realizada com o recorrente Marco e as testemunhas Rui, João e Carlos, o recorrido Isidro concedeu e aceitou a devolução da parcela ao primeiro.

Os recorrentes notam que o tribunal a quo julgou provados os factos n.ºs 18 a 23 com base em meios de prova cuja credibilidade lhe suscitou reservas. Têm razão, mas apenas relativamente aos factos n.ºs 18 a 20. E, acrescentamos nós, tal incongruência também se verifica relativamente ao facto n.º 16. Transcrevemos a parte relevante da sentença recorrida:

“(…) estes depoimentos prestados pelos familiares dos Réus, revelaram algum interesse em como a causa viesse a ser decidida a favor dos Réus (…)”.

A matéria de facto dada como provada sob o n.º 16 deve-se às declarações de parte do Réu e depoimentos das testemunhas dos Réus que esclareceram que estes e seus familiares sempre cultivaram aquele terreno desde a venda realizada a estes por Manuel e mulher em 2 Outubro de 1991 aos actuais Réus e a André genro de Manuel e mulher.

A matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 18 a 20 resulta dos depoimentos das testemunhas dos Réus que demonstraram conhecimento directo destes factos.”

Uma vez que, apesar de ter considerado não isentos os depoimentos prestados pelas testemunhas que são familiares dos recorridos, se baseou neles para fundar a sua convicção relativamente a alguns factos, o tribunal a quo devia ter explicado por que razão os considerou credíveis nessa parte. Contudo, esta incongruência da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto não terá consequências. O tribunal ad quem ouviu a totalidade da prova gravada, tendo formado a sua própria convicção sobre os factos em questão, que fundamentará.

Comecemos pelos factos que os recorrentes pretendem ver julgados não provados. São eles os seguintes:

“16 – Os Réus pelo menos desde aquela data que decidiram do uso e utilização a dar aquele prédio, providenciando pelo amanho da terra.

18 – Desde a data da compra em 09.01.1987, da parcela de terreno com a área de 3,500 hectares, por Manuel, sempre o prédio esteve na posse primeiro do próprio, depois do filho e do genro e depois do filho, o actual Réu marido.

19 – Eram estes anteriores proprietários e o actual Réu e mulher que decidiram o uso a dar ao terreno, procedendo à cultura das espécies que entendiam lá plantar ou deixando o terreno em pousio, conforme entendessem, procedendo ao amanho da terra e conservação do espaço.

20 – Sempre foram eles que mandaram fazer os trabalhos necessários ao amanho da terra e conservação do espaço quando achavam oportuno, retirando os produtos hortícolas e fruta que o terreno proporciona.

21 – Pelo menos desde 2017 que os Réus têm conhecimento que aquela parcela de terreno que os Autores reclamam não lhes pertence.

22 – Apenas os Autores manifestaram oposição ao uso do prédio por parte dos Réus.

23 – E só após a aquisição do imóvel identificado no artigo primeiro dos factos provados pelos Autores.”

Relativamente à matéria dos n.ºs 16 e 18 a 20, todos os meios de prova produzidos vão no sentido da sua correspondência com a realidade. Com efeito, todas as testemunhas que se pronunciaram sobre aquela matéria afirmaram que, desde que compraram o seu prédio, os recorridos o utilizam, o mesmo fazendo com a parcela em disputa (doravante designada apenas por “parcela”), como se esta fizesse parte daquele, sendo apenas eles quem decide sobre os termos em que tal utilização ocorre. Afirmaram ainda que o mesmo faziam o pai do recorrido Isidro e, posteriormente, este último e a recorrida Odete, a meias com um cunhado. Foram nesse sentido os depoimentos das testemunhas André, Vera, Antonieta, Alberto e Tiago, não contrariados por qualquer meio de prova. O documento transcrito no n.º 17 não contraria os referidos depoimentos, pois não versa sobre a utilização da parcela, mas sim sobre uma delimitação entre os prédios dos autos que terá sido efectuada em 30.10.2006. Atentos aqueles depoimentos, é certo que, antes e depois da data aposta no documento (26.01.2007) e não obstante a existência deste, os réus e os seus antecessores tomavam e continuaram a tomar as decisões relativas ao uso do seu prédio e da parcela, sem qualquer interferência dos sucessivos proprietários do prédio que actualmente pertence aos recorrentes.

Uma vez que as testemunhas André, Vera, Antonieta e Alberto são familiares dos recorridos, cumpre dizer que considerámos os seus depoimentos credíveis. É certo que, por se tratar de pessoas ligadas aos recorridos por laços familiares, se impõe, ao julgador, um cuidado acrescido na valoração dos seus depoimentos, pois dizem-nos as regras da experiência ser habitual procurar favorecer quem nos é próximo face a quem o não é. Todavia, não nos pareceu ser o caso das referidas testemunhas, sobretudo no que concerne à utilização que os recorridos e os seus antecessores vêm fazendo, desde 1987, do seu prédio e, especificamente, da parcela. Acresce que foi no mesmo sentido o depoimento da testemunha Tiago, que não é familiar dos recorridos, mas sim vizinho destes.

Sendo assim, a decisão do tribunal a quo de julgar provada a matéria dos n.ºs 16 e 18 a 20 foi correcta, devendo manter-se.

Os recorrentes consideram que o conteúdo do n.º 21 deveria “constar da factualidade não provada” (conclusão 1). Não se percebe que utilidade teria, para os recorrentes, a exclusão do facto em questão da matéria de facto provada. Trata-se, aparentemente, de um facto favorável aos próprios recorrentes, pois consiste no conhecimento, pelos recorridos, desde pelo menos 2017, de que a parcela não lhes pertence. Na pior das hipóteses, sob o ponto de vista do interesse dos recorrentes, trata-se de um facto irrelevante para a decisão da causa. Aquilo que nos parece seguro é que a sua exclusão da matéria de facto provada não proporcionaria um enquadramento jurídico desta matéria que fosse mais favorável aos recorrentes. Aliás, estes não explicam que vantagem retirariam daquela exclusão. Daí que a apreciação desta questão se traduzisse num acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC. Deverá, pois, manter-se o n.º 21 da matéria de facto provada.

O mesmo se passa relativamente aos factos constantes dos n.ºs 22 e 23. Resulta da sentença recorrida que estes factos não foram relevantes para o tribunal a quo decidir como decidiu. Na apreciação que fazemos, a sua exclusão do enunciado dos factos provados em nada altera o enquadramento jurídico destes. E, também em relação a eles, os recorrentes não explicam que vantagem retirariam daquela exclusão.

A única hipótese em que a exclusão dos factos constantes dos n.ºs 22 e 23 da matéria de facto provada poderia ser relevante, seria a de os recorrentes pretenderem a inclusão, nesta matéria, de factos que fossem além do âmbito daqueles. Em tal hipótese, aqueles factos, que têm uma vertente limitativa (“apenas os autores”; “só após”), seriam excluídos da matéria de facto provada para dar lugar a factos com um alcance mais amplo, assim se evitando contradições. Por exemplo, se os recorrentes pretendessem que fosse julgado provado que, além deles próprios, outras pessoas tivessem manifestado oposição ao uso do prédio, ou de parte dele, pelos recorridos, e/ou que tal oposição, da sua parte ou de terceiros, tivesse começado em momento anterior ao referido no n.º 23. Todavia, não é isso que resulta das conclusões do recurso, como decorre da exposição anterior. Nenhum dos factos que os recorrentes pretendem ver aditados à matéria de facto provada constitui uma ampliação daqueles que constam dos n.ºs 22 e 23.

Consequentemente, a apreciação da decisão do tribunal a quo sobre o conteúdo dos n.ºs 22 e 23 da matéria de facto provada também se traduziria num acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC. Deverão, pois, manter-se os referidos n.ºs 22 e 23.

Passemos aos factos que os recorrentes pretendem ver aditados à matéria de facto provada.

A pretensão de que o conteúdo do documento transcrito no n.º 17 seja aditado à matéria de facto provada não faz sentido. Já estando o documento em causa transcrito no n.º 17, nada mais é possível fazer.

Note-se, a propósito, que, na conclusão 11, os recorrentes dão por assente que existia uma planta anexa ao documento transcrito no n.º 17, afirmando que essa planta “era a constante do cadastro predial (Documento n.º 04 da Petição Inicial), correspondendo a delimitação feita no terreno”. Porém, nada disso resulta da matéria de facto provada, certamente porque o recorrido Isidro, no seu depoimento de parte, negou que aquele documento tivesse uma planta anexa e não foi produzido qualquer meio de prova desse facto. Com efeito, nenhuma das testemunhas ouvidas presenciou a assinatura do referido documento pelo recorrido Isidro.

Inexiste fundamento para julgar provado que se realizou uma reunião entre o recorrente Marco, o recorrido Isidro e as testemunhas Rui, João e Carlos, e que, nessa reunião o recorrido Isidro tenha concedido e aceite a devolução da parcela aos recorrentes.

O tribunal a quo ficou convencido de que essa reunião ocorreu e de que, nela, o recorrido reconheceu que a parcela faz parte do prédio dos recorrentes e aceitou devolvê-la, mas não levou esse facto à matéria provada. Aquela convicção é expressa apenas na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto. Daí a pretensão dos recorrentes de que aquela matéria passe a constar do elenco dos factos provados.

Ouvida a gravação da prova produzida nas várias sessões da audiência final, não partilhamos a convicção do tribunal a quo segundo a qual a referida reunião ocorreu efectivamente.

O recorrente Marco afirmou que a reunião se realizou e o recorrido Isidro afirmou não ter participado em qualquer reunião. Quanto às testemunhas, apenas Carlos, João e Rui afirmaram que a reunião se realizou. Mais, estas testemunhas afirmaram terem participado nessa reunião.

Se é verdade que quase todas as testemunhas arroladas pelos recorridos se encontram ligadas a estes por laços de natureza familiar, não é menos verdade que as testemunhas Carlos, João e Rui têm algum envolvimento na situação dos autos, que pode ter afectado a sua isenção. Os dois primeiros intervieram na angariação e negociação do contrato de compra e venda que teve por objecto o prédio de que os recorrentes são proprietários, pelo que poderão ter sido tentados a prestar depoimentos que favoreçam os seus ex-clientes, assim salvaguardando a sua própria imagem profissional. O terceiro é um dos vendedores desse prédio, pelo que poderá, eventualmente, ser demandado pelos recorrentes (com ou sem razão) em caso de improcedência da acção.

Clarificado este aspecto, atentemos na descrição que Carlos, João e Rui fizeram da suposta reunião.

No seu primeiro depoimento, prestado em 16.10.2020, Carlos afirmou que o objectivo da reunião era esclarecer a situação do terreno que pertencia ao prédio dos recorrentes que ficava do lado de lá do muro e que as pessoas que nela estiveram presentes foram, além de si próprio, João, o recorrido Isidro e o recorrente Marco. Tendo-lhe sido perguntado se Rui esteve presente, Carlos respondeu negativamente (sessão de 16.10.2020, minuto 5.15 a 5.45). Afirmou ainda que, no decurso da reunião, foi dito que, como a anterior proprietária do prédio dos recorrentes não usava a parcela, eram os recorridos que o faziam; não obstante, a parcela pertencia ao prédio dos recorrentes, o que foi reconhecido pelo recorrido Isidro. Acrescentou que, depois da reunião, ninguém ficou com dúvidas acerca deste facto.

No seu segundo depoimento, prestado em 10.03.2022, Carlos afirmou nunca ter visto o documento transcrito no n.º 17. Sobre a reunião, afirmou que o recorrido Isidro aí declarou que fizera um acordo com a anterior proprietária do prédio dos recorrentes, Teresa, no sentido que ele ir utilizando aquela parte do terreno dela, mas, logo que o recorrente Marco solicitasse, a restituiria. O recorrente Marco teria respondido que, nessa altura, não precisava que a parcela lhe fosse restituída e que, quando precisasse, combinariam a restituição.

No seu terceiro depoimento, prestado em 06.07.2023, Carlos reafirmou que o recorrido Isidro declarou, na reunião, que Teresa o autorizara a usar a parcela para aí ter as suas ovelhas, por não precisar dela. Reafirmou ainda o compromisso do recorrido Isidro de devolver a parcela ao recorrente Marco quando este o solicitasse.

No seu primeiro depoimento, prestado em 16.10.2020, João afirmou, em síntese, o seguinte: a reunião foi motivada pela verificação de que existia uma divergência nas áreas; nela estiveram presentes, além de si próprio, o recorrente Marco, o recorrido Isidro, Carlos e Rui; após falarem um pouco, todos concordaram que havia uma divergência de áreas, pois o prédio dos recorrentes tinha, de acordo com os documentos (nomeadamente uma planta antiga, que mostrava qual a parte do prédio dos recorrentes que estava ocupado pelos recorridos), 5.000 m2 e, no terreno, tinha menos.

No seu segundo depoimento, prestado em 10.03.2022, João afirmou nunca ter visto o documento transcrito no n.º 17. Sobre a reunião, afirmou que, após alguma conversa, o recorrido Isidro reconheceu que a parcela pertencia ao prédio dos recorrentes e que tinha feito um acordo com Teresa no sentido de esta o deixar utilizar aquela parte do terreno dela. O recorrido Isidro disse ainda ao recorrente Marco que, quando ele quisesse, se resolvia o problema, pois sabia que a parcela não lhe pertencia.

Rui pronunciou-se sobre a suposta reunião no depoimento que prestou em 10.03.2022, o qual não merece qualquer credibilidade. As contradições em que ele incorreu sobre o documento transcrito no n.º 17 foram de tal ordem, que, após o tribunal o confrontar com elas, acabou por se justificar alegando ter sofrido um AVC, que lhe afectou a memória. Não pomos isto em causa, mas ficamos esclarecidos acerca da fiabilidade deste depoimento. No que concerne à hipotética reunião, Rui afirmou, genericamente, que, nela, o recorrente Marco e o recorrido Isidro, após falarem entre si sobre se a parcela é propriedade dos recorrentes ou dos recorridos, concluíram que a mesma pertence aos primeiros.

O depoimento de Rui não pode ser considerado, pelas razões já referidas. Não se tratou, simplesmente, de um problema de falta de memória. A falta de fiabilidade deste depoimento resultou, sobretudo, da tendência, demonstrada pela testemunha, para inventar quando não sabia responder ao que lhe era perguntado.

Em matéria de prova testemunhal, ficamos, assim, apenas com os depoimentos de Carlos e João.

É, desde logo, estranho que o primeiro tenha afirmado que Rui não esteve presente na reunião e o segundo tenha afirmado o contrário. Tratando-se de uma reunião tão restrita, tal divergência não é normal.

Por outro lado, a descrição que as testemunhas Carlos e João fizeram do que o recorrido Isidro teria dito na suposta reunião não se coaduna, nem com a posição assumida pelos recorrentes nos seus articulados, nem com o teor do documento transcrito no n.º 17. Segundo aquelas testemunhas, o recorrido Isidro teria dito que ocupava a parcela porque Teresa o autorizara a fazê-lo.

Nos articulados que apresentaram, os recorrentes não alegaram que os recorridos ocupassem a parcela em disputa em virtude de, para tanto, terem sido autorizados por Teresa. Ao contrário, alegaram, no artigo 27.º da petição inicial, que os recorridos “não têm qualquer título que lhes permita utilizar e permanecer na parcela de terreno referida no artigo 8.º do presente articulado”.

Por outro lado, através do documento transcrito no n.º 17, o recorrido Isidro declarou concordar com uma demarcação, efectuada pouco tempo antes, dos prédios dos autos, da qual resultara que uma área de 1.500 m2 que antes integrava o prédio de que então era comproprietário passava a integrar o prédio que hoje pertence aos recorrentes. Área esta que, supõe-se, seria aquela que se encontra em disputa neste processo. Não declarou que ocupava a referida área de 1.500 m2 porque a então proprietária o autorizara a fazê-lo e que se comprometia a devolver a mesma área logo que esta lho solicitasse. São situações diferentes. Uma coisa seria os recorridos ocuparem a parcela devido à existência de um erro de demarcação que a incluísse no seu prédio. Outra, seria os recorridos ocuparem a parcela porque a proprietária do prédio de que esta fazia parte os autorizou a fazerem-no.

Se, como Carlos e João afirmaram, o recorrido Isidro declarou que utilizava aquela faixa de terreno do prédio que hoje pertence aos recorrentes porque fizera um acordo com a anterior proprietária mediante o qual esta autorizou tal utilização, não se compreenderia que, em 2007, essa mesma proprietária, Teresa, tenha pedido, ao recorrido Isidro, que declarasse, por escrito, concordar com uma demarcação alegadamente efectuada em 30.10.2006, por efeito da qual o mesmo prédio teria passado a ter uma área de 5.000 m2 devido a integrar uma área de 1.500 m2 que pertencia ao prédio de que o recorrente era comproprietário. Se a parcela se encontrava, simplesmente, emprestada ao recorrido Isidro, a pedir-se uma declaração escrita deste, seria de reconhecimento de que ocupava a parcela devido a esse empréstimo, não uma declaração de concordância com uma demarcação, nessa hipótese desnecessária.

Portanto, os depoimentos das testemunhas Carlos, João e Rui, por um lado, e o documento transcrito no n.º 17, por outro, não se harmonizam.

Poderia pensar-se na hipótese de a suposta autorização da então proprietária do prédio hoje pertencente aos recorrentes ter sido contemporânea da assinatura do documento transcrito no n.º 17. Ou seja, até à data da assinatura do documento, os recorridos teriam ocupado a parcela devido a um erro de demarcação. Depois da assinatura do documento, os recorridos teriam passado a fazê-lo ao abrigo de uma autorização concedida pela então proprietária do prédio que hoje pertence aos recorrentes. Porém, esta hipótese constitui pura especulação. Nem os recorrentes a alegaram nos seus articulados, nem a mesma encontra o mínimo apoio na prova produzida.

Perante tudo isto, é altamente duvidoso que a suposta reunião se tenha efectivamente realizado, não podendo, assim, julgar-se provada essa realização.

Os recorrentes pretendem que seja julgado provado que o recorrido Isidro “sabia e tinha consciência que a referida área constante da planta Cadastral não era parte integrante do prédio sua propriedade”. Coloca-se, antes de mais, a questão da utilidade desta alteração da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto.

O ónus da prova dos pressupostos da usucapião recai sobre os recorridos, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CC. Esses pressupostos são o exercício, pelos recorridos, de uma posse sobre a parcela em disputa, nos termos do direito de propriedade, mantida durante determinado prazo. Como este prazo varia em função dos atributos da posse, cabe também aos recorridos o ónus da prova dos factos que encurtem o prazo da usucapião. A extensão deste prazo depende, nomeadamente, de a posse, a existir, ser de boa ou má fé, atento o disposto nos artigos 1294.º e 1296.º do CC. Nos termos do artigo 1260.º, n.º 1, do CC, a posse diz-se de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem. Portanto, cabia aos recorridos o ónus da prova dos factos que permitiriam a qualificação da sua posse como de boa fé. Não conseguindo fazer tal prova, ficarão sujeitos a um prazo de usucapião mais longo.

Não consta da matéria provada qualquer facto que permita concluir que a posse dos recorridos, a existir, seja de boa fé. Concretamente, não se provou que os recorridos tenham ocupado e utilizado a parcela com a convicção de a mesma integrar o seu prédio e, em consequência disso, de serem eles os seus proprietários. Pelo contrário, foi julgado provado que, pelo menos desde 2017, os recorridos têm conhecimento de que a parcela não lhes pertence. E o único facto julgado não provado é o de que, após os recorrentes, em 2016, terem comprado o seu prédio, os recorridos providenciaram pelo amanho da terra com a consciência que a parcela em disputa lhes pertencia. Consequentemente, a posse dos recorridos, a existir, terá de ser considerada de má fé.

Sendo assim, a inclusão, na matéria provada, do facto de o recorrente Isidro ter consciência de que a parcela não era parte integrante do seu prédio, não teria qualquer utilidade. O único efeito que, em abstracto, poderia ter, que seria a qualificação da sua posse como de má fé, já está assegurado. Daí que, mais uma vez, a alteração pretendida pelos recorrentes se traduzisse num acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC.

Os recorrentes pretendem, finalmente, que seja julgado provado que os recorridos não tiveram a intenção de agir “de acordo com a pretensão de exercer o direito de propriedade sobre a referida parcela de terreno”, ou seja, a intenção de exercerem poderes de facto sobre a parcela como se fossem proprietários desta.

Como os próprios recorrentes afirmam na conclusão 45, a vontade dos recorridos não pode ser aferida através de uma introspecção psicológica. A prova dessa vontade faz-se através da análise do comportamento dos recorridos, da forma como eles vêm actuando sobre a parcela.

Está provado que, pelo menos desde 02.10.1991, são os recorridos quem decide do uso e utilização a dar à parcela, providenciando pelo amanho da terra (n.º 16); desde 09.01.1987, data da compra do prédio actualmente pertencente aos recorridos por Manuel, sempre esse prédio esteve na posse, primeiro de Manuel, depois do filho e do genro e, finalmente, do filho, o recorrido Isidro (n.º 18); eram os anteriores proprietários e, depois, os recorridos, quem decidia o uso a dar ao terreno, procedendo à cultura das espécies que entendiam lá plantar ou deixando o terreno em pousio, conforme entendessem, procedendo ao amanho da terra e conservação do espaço (n.º 19); sempre foram os anteriores proprietários e, depois, os recorridos, que mandaram fazer os trabalhos necessários ao amanho da terra e conservação do espaço quando achavam oportuno, retirando os produtos hortícolas e fruta que o terreno proporciona (n.º 20). Fundamentámos, no local próprio, a nossa convicção de que todos estes factos correspondem à realidade.

Resulta desta matéria de facto que, desde 09.01.1987, os recorridos e os seus antecessores exercem, sobre o seu prédio, bem como sobre a parcela, os poderes de facto correspondentes ao exercício do direito de propriedade, comportando-se, pois, como se fossem os titulares deste direito sobre a totalidade da área que ocupam. Esta actuação dos recorridos e dos seus antecessores revela uma vontade de actuarem como se fossem proprietários, quer do seu prédio, quer da parcela, explorando ambos indistintamente. Em contraponto, pelo menos desde 09.01.1987, a então proprietária e os sucessores desta não exercem qualquer poder de facto sobre a parcela.

Os recorrentes sustentam que o documento transcrito no n.º 17 demonstra que os recorridos ocuparam e utilizaram a parcela sem a intenção de o fazerem como se fossem os seus proprietários. Não têm razão.

Os recorrentes parecem confundir a intenção de exercer poderes de facto sobre a parcela como se se fosse seu proprietário com a convicção de que se é efectivamente proprietário da parcela (atente-se nas conclusões 10, 20 a 23, 29, 44, 48, 50 e 51). Trata-se de realidades distintas. Uma pessoa pode actuar sobre uma coisa com a intenção de o fazer como se fosse sua proprietária, não obstante saber que o não é.

O documento transcrito no n.º 17 apenas demonstra que o recorrido Isidro, desde a data em que o assinou (26.01.2007), sabe que a parcela não faz parte do prédio de que então era comproprietário e de que hoje, em conjunto com a recorrida, é proprietário. Nada diz acerca da intenção com que ele exerceu, antes e depois de 26.01.2007, poderes de facto sobre a parcela. No terreno, nada mudou em 26.01.2007. O recorrido Isidro continuou a ocupar e a explorar a parcela como fazia até então.

Note-se, por outro lado, que, ainda que assim não fosse, o documento transcrito no n.º 17 não vincularia a recorrida Odete, nada demonstrando sobre a intenção com que esta ocupava e explorava a parcela. A actuação da recorrida Odete sobre esta tem de ser apreciada com autonomia em relação àquilo que o recorrido Isidro tenha dito e escrito. Os recorrentes parecem menosprezar este dado (atente-se nas conclusões 7 a 9, 15, 18, 23, 42, 44 e 51), que é fundamental para a apreciação da situação dos autos. O argumento de que os recorrentes adquiriram a convicção de que aquilo que o recorrido Isidro dissesse e escrevesse vinculava a recorrida Odete, não colhe. Tal crença ou expectativa, a existir, carece de fundamento válido. A recorrida Odete em nada poderá ser prejudicada pela actuação do recorrido Isidro, que pode, até, desconhecer.

Pelo exposto, não poderá ser julgado provado que os recorridos não tiveram a intenção de agir sobre a parcela, ocupando-a e explorando-a, como se dela fossem proprietários. Na realidade, provou-se precisamente o contrário.

Concluindo este ponto, a matéria de facto julgada provada e não provada na sentença recorrida deverá manter-se inalterada.

Verificação dos pressupostos da usucapião:

O artigo 1287.º do CC dispõe que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”. A redacção do preceito não é a melhor, pois não se possuem direitos, mas coisas. Aquilo que se pretende dizer é que a posse de uma coisa nos termos de um determinado direito real de gozo durante certo lapso de tempo faculta, ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito real nos termos do qual exerce a posse. Portanto, são pressupostos da usucapião a posse nos termos do direito real que por essa forma se pretende adquirir e o prolongamento dessa posse por certo lapso de tempo, variável em função dos atributos da mesma posse, como resulta dos artigos 1294.º a 1296.º e 1298.º a 1300.º do CC.

Nos termos do artigo 1251.º do CC, “posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”. A posse tem como elementos o corpus, que é a componente material, e o animus, a componente psicológica. O primeiro consiste nos actos materiais praticados sobre a coisa. O segundo consiste na intenção de o agente se comportar como titular do direito correspondente. Perante a aparente confusão dos recorrentes, a que anteriormente aludimos, entre essa intenção e a convicção de que se é titular do direito real em cujos termos se actua sobre a coisa, frisamos que o animus da posse não consiste nesta convicção. O possuidor de má fé tem corpus e animus.

Os recorrentes sustentam que, aos recorridos, falta o animus da posse.

Não têm razão.

Como vimos no ponto anterior, desde 09.01.1987 que os recorridos e os seus antecessores exercem, sobre o seu prédio, bem como sobre a parcela, os poderes de facto correspondentes ao exercício do direito de propriedade, comportando-se, pois, como se fossem os titulares deste direito sobre a totalidade da área que ocupam. Esta actuação dos recorridos e dos seus antecessores revela uma vontade de actuarem como se fossem proprietários, quer do seu prédio, quer da parcela, explorando ambos indistintamente. Em contraponto, pelo menos desde 09.01.1987, a então proprietária do prédio dos recorrentes e os seus sucessores não exercem qualquer poder de facto sobre a parcela. Verificam-se, assim, quer o corpus, quer o animus da posse.

A posse dos recorridos sobre a parcela não se fundou em qualquer título legítimo de adquirir, pelo que, atento o disposto no artigo 1259.º, n.º 1, do CC, deve ser qualificada como não titulada. Daí que, nos termos do artigo 1260.º, n.º 2, do CC, se presuma de má fé, presunção esta não ilidida, pois não se provou que os recorridos actuem com a convicção de que esta lhes pertence. Mais, provou-se que, pelo menos desde 2017, os recorridos têm conhecimento que a parcela não lhes pertence.

Sendo a posse dos recorridos sobre a parcela qualificável como não titulada e de má fé, ao prazo de usucapião é de 20 anos, nos termos do artigo 1296.º do CC.

Está provado que, desde 09.01.1987, primeiro Manuel, depois o recorrido Isidro, um cunhado deste e os respectivos cônjuges e, por fim, apenas os dois recorridos, exerceram a posse sobre o prédio que actualmente pertence a estes últimos, bem como sobre a parcela. Por via do disposto no artigo 1256.º, n.º 1, do CC, a posse dos recorridos começa a contar-se da referida data, pelo que o prazo de usucapião se completou em 09.01.2007. Tendo os recorridos invocado a usucapião, adquiriram, por essa via, o direito de propriedade sobre a parcela. Daí que não tenham de a restituir aos recorrentes.

Resulta do exposto que o tribunal a quo decidiu correctamente ao julgar procedente o pedido reconvencional e improcedente a acção e que, consequentemente, a sentença recorrida deverá ser confirmada, improcedendo o recurso.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.

*

Évora, 25.01.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.ª adjunta)



[1] JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), p. 212.

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 376/23.1T8TMR.E1 * Sumário: 1 – O regime estabelecido no artigo 1406.º, n.º 1, do Código Civil, é aplicável, ex vi artig...