segunda-feira, 25 de março de 2019

Acórdão da Relação de Évora de 28.02.2019

Processo n.º 2288/08.0TBPTM.E1

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Sumário:

1 – O meio processual próprio para a parte reagir contra uma omissão do tribunal que, no seu entendimento, constitua nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC, é a reclamação para o mesmo tribunal e não o recurso da sentença proferida posteriormente ao momento em que a referida omissão ocorreu.

2 – Nas hipóteses de intervenção principal provocada, a sentença que conhecer do mérito da causa deverá apreciar a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, sob pena de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC.

3 – Se a parte contra a qual o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura e a parte que o apresentar não provar a sua veracidade, nos termos do n.º 2 do artigo 374.º do Código Civil, a consequência é o mesmo documento não fazer prova plena quanto ao conteúdo das declarações atribuídas ao seu autor, nos termos do n.º 1 do artigo 376.º do mesmo código. Tal circunstância não impede que o documento seja livremente apreciado pelo tribunal, nos termos do n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

4 – É nulo o distrate que não seja celebrado por todas as partes do contrato cuja extinção se pretende.

5 – Constitui pressuposto da faculdade de o credor efectuar a interpelação admonitória prevista no n.º 1 do artigo 808.º a existência de mora do devedor.

6 – Ilide a presunção de culpa estabelecida no n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil o promitente-vendedor que demonstra que apenas vendeu o bem a terceiro porque, mercê da actuação enganosa de um dos promitentes-compradores, que o determinou, nomeadamente, a devolver o sinal em singelo, ficou convencido de que o contrato-promessa fora validamente revogado.

7 – Extinguindo-se o contrato-promessa de compra e venda por impossibilidade superveniente de cumprimento não imputável a qualquer das partes, a parte que constituiu sinal tem direito à restituição deste em singelo. Essa obrigação é parciária, activa e passivamente, e a determinação da quota-parte de cada devedor e de cada credor faz-se de acordo com o disposto na primeira parte do artigo 534.º do Código Civil.

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Relatório

MC propôs a presente acção declarativa, com processo comum sob a forma ordinária, contra BS, MM e SM, pedindo a condenação das rés a pagarem, aos autores, a quantia de € 94.771,16, nos termos do artigo 442, n.º 2, do Código Civil, a título de restituição em dobro do sinal prestado, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data dos factos até efectivo e integral pagamento. A autora requereu a intervenção principal provocada de JR, como seu associado.

As rés contestaram, pugnando pela improcedência da acção. Contudo, para a hipótese de procedência da acção, as rés deduziram reconvenção, pedindo a condenação dos autores: 1) Como litigantes de má-fé, em multa e indemnização não inferior a € 7.500; 2) A reconhecerem como validamente resolvido pelas rés o contrato-promessa junto à petição inicial e o sinal passado, seja no montante de € 39.903,88, seja no montante de € 47.385,80, pertença delas, rés; 3) A pagarem às rés a quantia de € 40.000, que estas entregaram aos autores em 16.05.2005; 4) A pagarem às rés juros legais sobre a quantia de € 40.000, contados desde 16.05.2005 até integral embolso, sendo os vencidos até 16.05.2008 no montante de € 5.200; 5) A pagarem às rés a quantia de € 12.100 como compensação pelo gozo e fruição do prédio prometido vencer no período de Abril de 2001 a Novembro de 2004, acrescido de juros legais desde a notificação da contestação; 6) Subsidiariamente, no caso de se entender que as rés não resolveram validamente, a pagarem a estas as quantias referidas em 1, 3, 4 e 5. As rés pediram ainda que se ordene, em qualquer caso, a compensação, até aos respectivos limites, com o montante que elas forem, eventualmente, condenadas a pagar aos autores.

A autora replicou, respondendo à excepções suscitadas pelas rés e pugnando pela improcedência da reconvenção.

As rés responderam às excepções suscitadas pela autora à matéria da reconvenção.

A intervenção principal provocada de JR, como associado da autora, foi admitida, tendo o interveniente declarado fazer seus os articulados desta última.

Após a realização de audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, no qual, além do mais, foi admitido o pedido reconvencional com excepção da parte respeitante à condenação dos autores como litigantes de má-fé. Procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e à elaboração da base instrutória.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou as rés a pagarem à autora a quantia de € 94.771,16, a título de restituição de sinal em dobro nos termos do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, acrescida de juros de mora contados desde a data da citação até integral pagamento. A reconvenção foi julgada totalmente improcedente.

As rés recorreram da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

A recorrida MC contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

(…)

O recorrido JR também contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

(…)

O recurso foi admitido.

Objecto do recurso

Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as questões a resolver são as seguintes:

- Nulidade por violação do contraditório no cumprimento da carta rogatória;

- Nulidade da sentença recorrida;

- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

- Revogação do contrato-promessa;

- Interpelação admonitória pelas recorrentes;

- Incumprimento do contrato-promessa pelas recorrentes;

- Mora das recorrentes no cumprimento da obrigação de restituição do sinal;

- Juros de mora sobre a obrigação de restituição do sinal em dobro;

- Prescrição da obrigação de juros;

- Regime da responsabilidade civil das recorrentes.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – VM, na qualidade de primeiro outorgante, e a autora e JR, na qualidade de segundos outorgantes, na altura casados no regime de comunhão de adquiridos, celebraram, a 28.07.2000, o acordo escrito junto a fls. 14 (alínea A da matéria assente).

2 – Do acordo escrito em 1 constam as seguintes cláusulas:

Pelo primeiro outorgante “foi dito que é dono e legítimo possuidor de uma moradia em fase de construção, sita em (…), com a área de 255 m2, descrita na Conservatória do Registo Predial de (…) s/o n.º 2536 de (…) e inscrito na matriz s/o n.º 4904.”

“1.º Nessa qualidade promete vender ao 2.º outorgante e este promete comprar livre de ónus e encargos a dita moradia (…), pelo preço de 34.500.000$00.

2.º No acto deste contrato o 2.º outorgante entregará ao 1.º outorgante a quantia de 8.000.000$00 (…), a título de sinal e princípio de pagamento.

3.º Em fim de Dezembro o 2.º outorgante entregará um reforço de mais 3.500.000$00 (…).

4.º No acto da Escritura, a realizar até fins de Fevereiro de 2001, o 2.º outorgante pagará o restante que é de vinte e três mil contos (…). (…)” (alínea B da matéria assente).

3 – No acto de assinatura do acordo referido em 1 e 2, a autora e o seu marido entregaram a VM a quantia de 8.000.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento, conforme cláusula 2ª do contrato promessa (alínea C da matéria assente);

4 – VM faleceu no dia 12 de Agosto de 2001, tendo deixado como únicas e universais herdeiras as ora rés, BS, sua mulher, e MM e SM, suas filhas (alínea D da matéria assente);

5 – Em 20.06.2002, a autora enviou a missiva junta a fls. 15, dirigido ao Sr. Dr. AF, mandatário das rés à data, constando do mesmo o seguinte:

“(…) Tal como tinha escrito estou e como sempre estive na disposição de cumprir as obrigações decorrentes no contrato promessa supre referido e relativo a moradia sita (…).

E estou na disposição e condição de fazer a escritura quando lhe for possível.

Se por acaso da vossa parte não houver interesse de cumprir com o contrato estou disposta a ouvir uma proposta ou alternativa.

O meu marido não tem de modo algum a minha autorização, nem procuração da minha parte de anular o contrato ou alterar ou mesmo de receber o dinheiro da entrada (…).” (alínea E da matéria assente).

6 – Dr. DG enviou à autora a missiva junta a fls. 17, datada de 22.06.2004, com o seguinte teor:

“Em 28 de Julho de 2000, outorgou, com VM, contrato promessa respeitante a uma moradia em construção, sita em (…), descrito na conservatória do registo predial de (…) sob o n.º 2536, de (…), e inscrito na matriz s/o n.º 4904.

A referida moradia encontra-se concluída, tendo sido emitida, em 10/10/2002, licença de utilização.

Por várias razões não foi possível efectuar a escritura até fins de Fevereiro de 2001, conforme previsto no referido contrato promessa, como é, aliás, do seu acordo e conhecimento.

Entretanto, em Agosto de 2001 faleceu VM, mas os seus herdeiros estão prontos a querem celebrar a escritura.

Em nome dos herdeiros de VM venho notificá-lo para celebrar até 15/07/2004 a escritura pública a que se refere o contrato promessa de 28 de Julho de 2000. (…)” (alínea F da matéria assente).

7 – A autora enviou ao Dr. DG a missiva, junta a fls. 18, datada de 05.07.2004, com o seguinte teor:

“(…) Fiquei muito surpreendida ao receber no dia 04.07.04 uma carta do senhor que me é completamente desconhecido.

Até agora correspondemos com o senhor AF Advogado de Sr. BS.

Peço portanto que mande uma procuração original passada por a vendedora da moradia. (…)

Quero mais uma vez mencionar, que foi a sua cliente, que não cumpriu a promessa do contrato de compra e venda, e agora sem prévio aviso marca a escritura.

Apresente por favor a proposta junta enviada à sua cliente, para se possível, chegarmos a um acordo que seja prestável para ambas as partes (…).” (alínea G da matéria assente).

8 – Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de (…), sob o n.º 2536/061196, da Freguesia de (…), o prédio rústico – Bemposta, composto por lote de terreno para construção urbana, n.º 94, com os seguintes Averbamentos:

Av. 01-Ap. 01/030599 – o lote passou a ter a área de 255 m2; confrontando do norte – lote 93; nascente – lote 99 e poente – caminho público.

Av. 02 – AP. 15/060900 – o prédio está inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4904.

Av. 03 – Ap. 33/11/07/01 – foi construído um urbano de rés-do-chão e primeiro andar (alínea H da matéria assente);

9 – A ficha da Conservatória referida em 8 tem as seguintes inscrições:

G-2. Ap. 15/060900 – Aquisição – A favor de VM c.c. BS – comunhão de adquiridos, (..) por compra.

G-3 Ap. 34/110701 – Aquisição – Provisória por natureza – art.º 92º, n.º 1, g) - a favor de MC c.c. JR – comunhão de adquiridos, (..) por compra.

G-3 An. 01-110405 – Caducou.

G-4 Ap. 01/110405 – Aquisição – em comum e sem determinação de parte ou direito - a favor de BS, viúva (…), MM (…) e SM (…), por dissolução por morte da comunhão conjugal e sucessão hereditária.

G-5 Ap. 02/110405 – Aquisição – Provisória por natureza – art.º 92º, n.º 1, g) - a favor de SG (…) por compra.

G-5 Av.01- Ap. 39/010705 – Convertida (alínea I da matéria assente).

10 – Após a morte de VM, o Sr. Dr. AF passou a assessorar juridicamente as rés (alínea J da matéria assente).

11 – Por escrito particular denominado “contrato promessa de compra e venda”, a ré BS prometeu vender a SG o prédio referido em 2 e 8 – cfr. documento de fls. 101 e 102 (alínea K da matéria assente).

12 – Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Concelho de (…), em 17 de Maio de 2005, as rés declararam vender o prédio referido em 2 e 8 a SG, da mesma constando que a licença de utilização n.º 309 foi passada pela Câmara Municipal de (…) em 10/10/2002 – cfr. documento de fls. 104 a 110 (alínea L da matéria assente).

13 – O casamento da autora e JR foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 16 de Setembro de 2004, transitada em julgado em 28 de Outubro de 2004 (alínea M da matéria assente).

14 – Em 6 de Novembro de 2000, a autora e o seu marido entregaram a VM a quantia de esc. 1.500.000$00 (resposta ao n.º 1 da base instrutória).

15 – Como reforço da quantia referida em 3 já entregue (resposta ao nº 2 da base instrutória).

16 – A autora e JR receberam a missiva junta a fls. 96, datada de 20/12/2004, subscrita pelo Dr. DG, junta a fls. 18, datada de 05.07.2004 com o seguinte teor:

“(…) Por mandato dos herdeiros de VM e na sequência da minha carta de 22/06/2004, da vossa resposta de 29/06/2004, da minha carta de 09/11/2004 endereçada ao Sr. RR e perante o silêncio do Sr. Dr. PM, após a minha carta de 14/12/2004, venho notificá-los de que, não sendo a escritura realizada até ao dia 14 de Janeiro de 2005, o contrato promessa celebrado em 28/07/2000 com o falecido VM será havido como definitivamente incumprido” (resposta ao n.º 3 da base instrutória).

17 – JR subscreveu e enviou às rés a missiva junta a fls. 99, datada de 01.02.2005, com o seguinte teor

“(…) em virtude de problemas profissionais, não tenho como continuar com o contrato em vigor, reafirmando, por mim e pela outra outorgante que, como já transmitido por carta nossa e dos nossos advogados aos seus advogados, é nossa vontade rescindir o contrato, esperando que aceite esta nossa rescisão. Para nós desde que nos devolvam o sinal entregue, não queremos mais nada, seja em ao sinal, seja em relação à casa ou aos melhoramentos que vos pedimos para fazerem. Por tudo o exposto, venho por meio desta carta pedir a devolução do sinal, ficando o contrato desde já rescindido.” (resposta ao nº 4 da base instrutória).

18 – As rés e JR acordaram que o valor do sinal a devolver era de € 40.000 (resposta ao nº 5 da base instrutória).

19 – As rés devolveram a JR o valor de € 40.000 em 16.05.2005 (resposta ao nº 6 da base instrutória).

20 – O que este aceitou (resposta ao nº 7 da base instrutória).

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

A) A autora tinha conhecimento do referido em 17 a 20 dos factos provados.

B) A autora e JR habitaram o imóvel referido em 2 e 8 desde 2001 até Novembro de 2004.

C) Sendo o valor locativo de tal imóvel de € 500 mensais.

D) À data do referido em 17 a 20 dos factos provados, as rés tinham conhecimento do referido em 13.

Fundamentação

1 – Nulidade por violação do contraditório no cumprimento da carta rogatória:

As recorrentes sustentam que, não tendo as partes sido notificadas para, querendo, estarem presentes na diligência de inquirição de testemunhas mediante carta rogatória, foi violado o princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º do CPC. Mais, as recorrentes consideram que a omissão da referida notificação é directamente imputável ao tribunal a quo porquanto o despacho que admitiu e ordenou a expedição da carta rogatória não continha – como, em obediência ao princípio da gestão processual, devia conter – instruções dirigidas à entidade rogada quanto à necessidade de cumprimento do contraditório. Concluem as recorrentes que, em consequência, deverá ser anulado todo o processado subsequente à ocorrência dessa nulidade.

Neste segmento do recurso, as recorrentes insurgem-se, não directamente contra o conteúdo da sentença recorrida, mas sim contra a prévia omissão de um acto processual que, no seu entendimento, a lei impunha. Logo, as recorrentes estão a invocar uma nulidade processual, como decorre do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, segundo o qual, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Note-se que a sentença recorrida nada decidiu sobre essa pretensa nulidade processual, o que é natural dado que a mesma não foi arguida antes da sua prolação.

Sendo assim, o meio processual próprio para as recorrentes reagirem contra a omissão da notificação das partes com vista a, querendo, estarem presentes na diligência em que foram inquiridas testemunhas por carta rogatória, não é o recurso da sentença proferida após a referida omissão, mas sim a reclamação perante o tribunal a quo, nos termos do artigo 199.º do CPC. Ora, as recorrentes não arguiram a nulidade processual em questão, mediante reclamação, nem na sessão da audiência final em que foi proferido o despacho que ordenou a inquirição de testemunhas por carta rogatória, na qual estiveram representadas por advogado, nem posteriormente, nomeadamente após a recepção da referida carta rogatória. Tal reclamação teria de ser apreciada pelo tribunal a quo, nos termos dos artigos 200.º e 201.º do CPC, e apenas dessa decisão, caso fosse desfavorável às recorrentes, caberia recurso. É este o sistema estabelecido pela nossa lei processual civil em matéria de articulação entre a reclamação por nulidade processual e o recurso, usualmente expresso através do aforismo “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”. Sistema esse que se harmoniza com a regra, básica em matéria de recursos ordinários, segundo a qual estes têm como função o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, ou seja, não suscitadas neste último, embora sem prejuízo do conhecimento, pelo tribunal ad quem, das questões que o devam ser oficiosamente – cfr. o disposto nos artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º do CPC.

Flui do exposto que decorreu, há muito, o prazo para as recorrentes arguirem a hipotética nulidade processual que vimos analisando e que não é mediante a interposição de recurso da sentença que tal arguição pode ser feita. Consequentemente, não se conhecerá da referida arguição de nulidade.

2 – Nulidade da sentença recorrida:

As recorrentes sustentam que a sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, quer por não ter apreciado a acção na perspectiva dos direitos do recorrido JR, quer por não ter apreciado a reconvenção na parte em que foi dirigida contra o mesmo recorrido.

Relativamente a esta questão, as recorrentes têm razão. Quer no julgamento da acção, quer no da reconvenção, a sentença ignorou, pura e simplesmente, a existência do recorrido JR, centrando-se exclusivamente nos direitos e deveres da recorrida MC. Nomeadamente, as recorrentes foram condenadas a pagarem a quantia de € 94.771,16, a título de restituição do sinal em dobro, acrescida de juros de mora, apenas à recorrida MC, o mesmo tendo acontecido relativamente à reconvenção, da qual apenas esta recorrida foi absolvida. Num e noutro casos, a sentença recorrida omitiu qualquer referência aos direitos e deveres do recorrido JR, não obstante este, por efeito da admissão da intervenção principal provocada, também ser autor. Com essa omissão, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 320.º do CPC, o qual dispõe que, nas hipóteses de intervenção principal provocada, a sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado. Consequentemente, a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC.   

No que concerne às consequências processuais da apontada nulidade da sentença recorrida, rege o artigo 665.º do CPC. Interessa-nos o disposto no n.º 1, segundo o qual, ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal ad quem deve conhecer do objecto da apelação. É o que iremos fazer, já que o processo contém todos os elementos para o efeito necessários e as questões a resolver foram debatidas nas alegações.

3 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

As recorrentes consideram que o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento no que concerne à matéria dos n.ºs 1, 2 e 8 da base instrutória, que deram origem aos factos provados acima reproduzidos sob os n.ºs 14 e 15 e ao facto não provado acima reproduzido sob a alínea A. As recorrentes pretendem que os factos 14 e 15 sejam julgados não provados e o facto A seja julgado provado.

O tribunal a quo formou a sua convicção sobre os factos 14 e 15 com base no depoimento da testemunha DS e no documento de fls. 704, que é uma declaração de quitação emitida e assinada pelo promitente vendedor. As recorrentes pretendem que estes meios de prova não sejam valorados. O documento, porque o impugnaram e não foi produzida qualquer prova com vista ao convencimento da sua genuinidade ou autenticidade. O depoimento de DS, quer pelo seu conteúdo, que entendem ser contraditório, quer porque foi prestado por meio da carta rogatória à qual apontaram o vício anteriormente analisado.

As recorrentes não têm razão.

Relativamente ao documento, a circunstância de as recorrentes o terem impugnado e os recorridos não terem provado a sua veracidade, nos termos do n.º 2 do artigo 374.º do Código Civil (diploma ao qual pertencem as normas doravante mencionadas sem indicação da sua proveniência), tem apenas como consequência o mesmo documento não fazer prova plena quanto ao conteúdo das declarações atribuídas ao seu autor, nos termos do n.º 1 do artigo 376.º. Tal circunstância não impede que o documento seja livremente apreciado pelo tribunal, nos termos do n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

No que concerne ao depoimento da testemunha DS, já vimos que uma nulidade processual eventualmente cometida aquando da solicitação e/ou do cumprimento da carta rogatória mediante a qual o mesmo foi prestado não é invocável neste momento e nesta sede. Por outro lado, a pretensa contradição no depoimento desta testemunha, que fala num terreno num primeiro momento e numa casa posteriormente, não passa de um pormenor que, por si só, não afecta a credibilidade do mesmo depoimento. Tal divergência não incide sobre um facto controvertido, pois é pacífico que se trata de uma casa (ainda em construção à data da celebração do contrato-promessa) e não de um terreno, e pode ter-se devido a um lapso da testemunha, ou da própria transcrição do depoimento desta, em qualquer caso sem importância. Sobre a divergência entre os Esc. 3.500.000$00 estipulados no contrato-promessa e os Esc. 1.500.000$00 entregues, a testemunha nem sequer foi inquirida.

O forma como o tribunal a quo valorou o depoimento da testemunha DS, corroborado pelo da testemunha MS, como é referido na sentença recorrida, em conjugação com o documento de fls. 704, não merece qualquer crítica. Todos esses meios de prova apontam no sentido da veracidade do conteúdo dos n.ºs 14 e 15 dos factos provados e não foram contrariados por qualquer outro meio de prova.

O tribunal a quo julgou não provado que a recorrida MC tivesse conhecimento do referido nos n.ºs 17 a 20 dos factos provados devido à ausência de meios de prova nesse sentido. Tenha-se em conta que, atento o disposto no n.º 2 do artigo 342.º, cabia às recorrentes o ónus da prova do referido facto. Nas suas alegações, as recorrentes pretendem fundamentar a tese de que aquele facto devia ter sido julgado provado invocando, não um qualquer meio de prova nesse sentido, que efectivamente não existiu, mas o conteúdo de alguns artigos da petição inicial que não possuem conteúdo confessório do mesmo facto. É, pois, manifesta a falta de razão das recorrentes.

Em conclusão, inexiste fundamento para alterar a decisão sobre a matéria de facto, a qual se mantém na íntegra.

4 – Revogação do contrato-promessa:

Provou-se que o recorrido JR subscreveu e enviou às rés a missiva junta a fls. 99, datada de 01.02.2005, com o seguinte teor: “(…) em virtude de problemas profissionais, não tenho como continuar com o contrato em vigor, reafirmando, por mim e pela outra outorgante que, como já transmitido por carta nossa e dos nossos advogados aos seus advogados, é nossa vontade rescindir o contrato, esperando que aceite esta nossa rescisão. Para nós desde que nos devolvam o sinal entregue, não queremos mais nada, seja em ao sinal, seja em relação à casa ou aos melhoramentos que vos pedimos para fazerem. Por tudo o exposto, venho por meio desta carta pedir a devolução do sinal, ficando o contrato desde já rescindido.” As recorrentes e o recorrido JR acordaram que o valor do sinal a devolver seria de € 40.000, tendo as primeiras, em 16.05.2005, procedido à entrega dessa quantia ao segundo, que aceitou.

O tribunal a quo considerou que:

- Estes factos integram, à luz da teoria dos comportamentos concludentes e da declaração de vontade tácita, nos termos dos artigos 217.º a 219.º, um acordo de revogação ou distrate;

- A revogação do contrato, que tem eficácia extintiva da relação contratual, inclui-se nas estipulações posteriores previstas no n.º 2 do artigo 221.º e, consequentemente, está sujeita ao regime aí estabelecido, segundo o qual as estipulações posteriores ao documento só estão sujeitas à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhe forem aplicáveis;

- Em regra, a validade da revogação do contrato não depende da observância da forma legalmente prescrita para a celebração deste último, desde que seja imediatamente executada; mas já assim não será se contiver as chamadas “cláusulas compensatórias” ou “outras cláusulas acessórias”;

- No caso sub judice, o recorrido JR e as recorrentes não quiseram uma revogação pura e simples, antes a tendo condicionado à restituição do sinal, pelo que tal revogação devia ter sido reduzida a escrito, por ser essa a forma legalmente exigida para a celebração do contrato-promessa; não tendo sido observada a forma escrita, a revogação é nula, nos termos do artigo 220.º;

- Ainda que tivesse sido observada a forma legalmente exigida, a revogação não vincularia a recorrida MC, pois esta não a subscreveu, nem conferiu, ao recorrido JR, poderes de representação.

Em síntese, o tribunal a quo entendeu que:

- Os factos acima enunciados apenas não consubstanciam uma válida revogação do contrato-promessa devido à inobservância da forma legalmente estabelecida;

- Não fora esse vício de natureza formal, tal revogação seria válida, embora ineficaz (em sentido estrito) em relação à recorrida MC porque esta não a subscreveu nem conferiu poderes de representação ao recorrido JR; em relação a este último, depreende-se da fundamentação da sentença recorrida que nada obstaria à eficácia da revogação.

A isto, as recorrentes contrapõem que a revogação do contrato-promessa de compra e venda de imóvel não está sujeita a forma especial, antes vigorando, relativamente a ela, o princípio geral da liberdade de forma, consagrado no artigo 219.º.

É nosso entendimento que a revogação do contrato-promessa, que o recorrido JR e as recorrentes indiscutivelmente pretenderam celebrar, padece de um vício de natureza substancial que o inquina de raiz, pelo que a questão da forma acaba por não ser relevante.

O n.º 1 do artigo 406.º estabelece que o contrato deve ser pontualmente cumprido e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.

Decorre desta norma, por um lado, que os contratos não têm de se manter inalterados desde a sua celebração até à sua completa execução, isto é, até que sejam cumpridas todas as obrigações deles decorrentes (sem prejuízo, naturalmente, das hipóteses de extinção das obrigações por causas diversas do cumprimento). Após a sua celebração, os contratos podem ser modificados ou extintos por vontade das partes. O acordo mediante o qual um contrato é extinto designa-se revogação contratual ou distrate e constitui, em si mesmo, um novo contrato. Em vez de ser fonte de obrigações, a revogação ou distrate extingue obrigações criadas por um contrato anterior. Ainda aqui, estamos no domínio de aplicação do princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405.º.

Resulta do n.º 1 do artigo 406.º, por outro lado, a proibição de revogação de um contrato sem a intervenção de todos os sujeitos que o celebraram (ou, naturalmente, dos seus sucessores, inter vivos ou mortis causa). Se assim não fosse, isto é, se pudesse ser livremente revogado sem o acordo de todos os sujeitos que nele são partes, ficaria posta em causa a própria função do contrato. Estamos, pois, perante um aspecto essencial do regime legal do contrato. Este, uma vez celebrado, só por acordo de todos os sujeitos que nele são partes poderá ser extinto, salvo nos casos em que uma norma legal prescinda desse acordo. Não se verificando esta última hipótese, a revogação de um contrato sem o acordo de todos os sujeitos que nele são partes viola o disposto no referido n.º 1 do artigo 406.º.

No caso sub judice, estamos perante uma revogação celebrada entre um dos promitentes-compradores e as sucessoras do primitivo promitente-vendedor (de novo salientamos que abstraímos da questão da validade formal dessa revogação, que não chega a colocar-se porquanto se verifica um vício de natureza substancial). A outra promitente compradora, a recorrida MC, não interveio, pessoalmente ou através de representante, e, por isso, é fora de dúvida que não poderá ser afectada pela revogação. Por outras palavras, a recorrida MC tem direito a que se mantenha inalterada a situação jurídica que para si resultou da celebração do contrato-promessa de compra e venda, não obstante a aludida revogação.

Pergunta-se: De que forma poderá a ordem jurídica garantir a integridade da posição contratual da recorrida MC, isto é, do conjunto de direitos e deveres que para esta resultaram do contrato-promessa de compra e venda?

Tal garantia não resultará do reconhecimento da validade substancial da revogação celebrada entre o recorrido JR e as recorrentes e da mera ineficácia (em sentido estrito) dessa revogação relativamente à recorrida MC. Aparentemente, o resultado de uma tal solução seria a extinção da relação obrigacional estabelecida entre o recorrido JR e as recorrentes através da celebração do contrato-promessa, saindo o primeiro deste contrato e aí permanecendo as segundas apenas em relação com a recorrida MC. Ora, esta solução não garante a integridade da posição contratual desta última. A hipotética desoneração do recorrido JR da promessa de comprar o imóvel, ou seja, de emitir a declaração negocial necessária à perfeição do contrato prometido, afectaria, e muito, a posição da recorrida MC, pois esta ficaria sozinha na posição de promitente compradora, o que implicaria ter de suportar a obrigação de pagamento da totalidade do preço da compra e venda e, se o não fizesse, incorrer em incumprimento. Não pode ser esta a solução legal. No fundo, a mesma equivaleria a uma modificação subjectiva do contrato que implicaria a alteração objectiva da posição da recorrida MC, em violação do disposto no n.º 1 do artigo 406.º.

A garantia da integridade da posição contratual da recorrida MC apenas se consegue através da nulidade da revogação celebrada entre o recorrido JR e as recorrentes, nos termos do artigo 294.º. Do que se trata, verdadeiramente, é de um contrato que carece de idoneidade para produzir o efeito extintivo pretendido através da sua celebração e, por isso, a única forma de salvaguardar a integridade da posição contratual da recorrida MC é a sua erradicação da ordem jurídica, fulminando-o com o valor negativo da nulidade.

Em conclusão, a revogação do contrato-promessa celebrada entre o recorrido JR e as recorrentes é nula, desde logo, por razões de natureza substancial. Adiante analisaremos os efeitos dessa nulidade, considerando que as recorrentes, em execução da revogação do contrato-promessa, entregaram € 40.000 ao recorrido JR.

5 – Interpelação admonitória pelas recorrentes:

As recorrentes sustentam que, estando provado que elas notificaram os recorridos, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 808.º, para estes cumprirem a sua obrigação, marcando a escritura pública de compra e venda até ao dia 14.01.2005 e nela outorgando, e não o tendo os recorridos feito, deve concluir-se que estes incorreram em incumprimento definitivo do contrato-promessa. Tanto mais que, afirmam as recorrentes, também está provado que os recorridos já anteriormente tinham sido por eles notificados para a realização da escritura até ao dia 15.07.2004.

O tribunal a quo rejeitou este entendimento com o fundamento de que nenhuma das comunicações descritas nos n.ºs 6 e 16 da matéria de facto provada pode ser qualificada como interpelação admonitória, nos termos do n.º 1 do artigo 808.º, porquanto não mencionam que as recorrentes tivessem agendado a celebração do contrato prometido, sendo, ambas, omissas no que se refere, quer à data e hora previstas para a realização da escritura pública, quer ao cartório notarial onde esta última seria realizada.

Nas suas alegações, as recorrentes contrapõem que o entendimento do tribunal a quo assenta numa incorrecta interpretação do n.º 1 do artigo 808.º, pois, não se tendo convencionado a quem competia a marcação da escritura, qualquer das partes podia tomar a iniciativa da sua marcação, enquanto dever acessório.

O n.º 1 do artigo 808.º estabelece que se o credor, em consequência da mora do devedor, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, se considera, para todos os efeitos, não cumprida a obrigação. A lei confere, assim, ao credor que, apesar da mora do devedor, mantenha um interesse objectivo na prestação, a faculdade de fazer cessar aquela mora fixando um prazo razoável para o devedor cumprir a sua obrigação, sob pena de a mesma mora se transformar em incumprimento definitivo. Tratando-se de um contrato sinalagmático em que as obrigações de ambas as partes tenham de ser cumpridas simultaneamente, como acontece com o contrato-promessa celebrado entre VM e os recorridos, a parte interpelante deverá, por seu turno, estar preparada para cumprir a sua própria obrigação, sob pena de ser ela a cair em mora.

Constitui pressuposto da faculdade de o credor efectuar a interpelação admonitória prevista no n.º 1 do artigo 808.º a existência de mora do devedor. Isto resulta, quer da redacção, quer do enquadramento sistemático daquela norma. Estamos perante um instrumento jurídico de conversão da mora em incumprimento definitivo imputável ao devedor e não de uma permissão legal de interpelação do devedor de uma obrigação pura para cumprir esta última sob pena de incorrer imediatamente em incumprimento definitivo. Nos termos do n.º 2 do artigo 804.º, o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.

No contrato-promessa dos autos, ficou estipulado que o contrato prometido deveria realizar-se “até fins de Fevereiro de 2001”. Porém, este prazo foi ultrapassado, aliás ainda em vida do primitivo promitente-vendedor, que faleceu em 12.08.2001, sem que seja possível, a partir da matéria de facto provada, concluir se houve culpa de alguma das partes na inobservância do mesmo prazo. Ambas as partes se remeteram, aparentemente, a uma atitude de alguma inércia, embora acusando-se mutuamente de serem as causadoras do atraso na celebração do contrato-prometido, como resulta dos n.ºs 5 a 7 e 16 da matéria de facto provada. Sendo assim, no momento em que a comunicação descrita no n.º 16 teve lugar, inexistia mora de qualquer das partes, circunstância que, por si só, obsta à qualificação dessa mesma comunicação como interpelação admonitória e, logicamente, a que lhe seja reconhecida a produção dos efeitos jurídicos desta última.

Porém, ainda que, no momento da comunicação descrita no n.º 16 dos factos julgados provados, os recorridos estivessem em mora, a mesma comunicação continuaria a não poder valer como interpelação admonitória, devido ao seu conteúdo.

Ao prever a fixação unilateral, pelo credor, de um prazo razoável para o devedor cumprir a sua obrigação, o n.º 1 do artigo 808.º inculca que se trata de uma comunicação que prescinde de ulterior concretização, tendo, assim, de conter todos os elementos necessários para o devedor ficar ciente do tempo que lhe é concedido para sair da situação de mora. Tratando-se do cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, a comunicação em causa deverá mencionar a data, hora e local da realização da escritura pública de compra e venda, que o credor terá o ónus de marcar previamente. Sem isso, não poderá a mesma comunicação ser qualificada como uma interpelação admonitória.

A circunstância de não se ter convencionado, no contrato-promessa, a quem competia a marcação da escritura pública de compra e venda e, por via disso, qualquer das partes poder tomar a iniciativa da marcação desta, em nada contende com aquilo que acabámos de afirmar. Ao contrário, apenas confirma a conclusão de que, se queriam desencadear o mecanismo previsto no n.º 1 do artigo 808.º, as recorrentes tinham o ónus de marcar previamente a escritura, informando os recorridos em conformidade. A tese das recorridas de que lhes bastava fixar um prazo para a realização da escritura, sem a marcar, e de que, por via disso, passava a ser aos recorridos que cabia o dever de marcar a mesma escritura e, logicamente, o de, feito isso, lhes comunicar a data, hora e local da mesma, sob pena de incorrerem em incumprimento definitivo, não faz sentido, pois não encontra suporte, nem na lei, nem no contrato-promessa. Este, ao ser omisso sobre a qual das partes incumbiria a marcação da escritura, coloca-as em pé de igualdade sobre essa matéria, com a consequente inadmissibilidade de imposição da realização dessa marcação à contraparte fosse em que circunstâncias fosse. Perante o estipulado no contrato-promessa dos autos, a parte que quisesse desencadear o cumprimento deste último tinha o ónus de marcar a escritura, o mesmo acontecendo, por igualdade de razão, se se chegasse à fase prevista no n.º 1 do artigo 808.º.

Concluindo, inexistiu uma interpelação admonitória das recorrentes dirigida aos recorridos, pelo que estes não incorreram em incumprimento definitivo do contrato-promessa. Aliás, nem sequer em mora incorreram, como decorre da exposição anterior.

6 – Incumprimento do contrato-promessa pelas recorrentes:

O tribunal a quo considerou ter-se verificado uma situação de impossibilidade definitiva de cumprimento do contrato-promessa imputável às recorrentes, geradora de responsabilidade civil obrigacional perante a recorrida MC. Foi julgado que, além da impossibilidade objectiva de realização da prestação devida, decorrente da venda do imóvel a terceiro, as recorrentes agiram com culpa, sob a forma de negligência. Com fundamento na referida responsabilidade civil obrigacional, as recorrentes foram condenadas a restituir, à recorrida MC, o sinal em dobro, nos termos do n.º 2 do artigo 442.º, acrescido de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento. As recorrentes insurgem-se contra o juízo de censura formulado pelo tribunal a quo, sustentando que, atentas as circunstâncias em que venderam o imóvel a terceiro, agiram sem culpa.

O tribunal a quo equacionou a questão da culpa das recorrentes nos seguintes termos: não haverá culpa das recorrentes na impossibilidade objectiva de celebração do contrato prometido se puder concluir-se que elas já haviam sido desoneradas do dever de celebrarem desse contrato por efeito da revogação do contrato-promessa. A consequência desta forma de colocar o problema foi a sentença recorrida analisar conjuntamente as questões da culpa e da validade e eficácia da revogação do contrato-promessa. Nesta lógica, ao concluir pela nulidade da revogação, a sentença recorrida deveria ter, sem mais, julgado negligente a conduta das recorrentes. Contudo, isso não aconteceu. Após concluir pela nulidade da revogação, a sentença recorrida passou a analisar a questão da culpa com autonomia, concluindo que, ao confiarem que o recorrido JR representava a recorrida MC aquando daquela revogação, em vez de auscultarem directamente a vontade desta última, e tendo em conta que sempre estiveram representadas por um advogado, as recorrentes não agiram com a diligência que lhes era exigível.

Impõe-se precisar conceitos. Se a revogação do contrato-promessa fosse válida e eficaz em relação a ambos os recorridos, não teria havido culpa das recorrentes na impossibilidade objectiva de celebração do contrato prometido pela simples razão de que faltaria, desde logo, o pressuposto da ilicitude. Nessa hipótese, não vigorando já o contrato-promessa dos autos, as recorridas seriam livres de vender o imóvel a terceiro sem violarem qualquer obrigação. Tal venda seria lícita, pelo que nem sequer faria sentido a ponderação da culpa das vendedoras. Portanto, a validade e a eficácia da revogação do contrato-promessa relevam ao nível da discussão sobre o pressuposto da ilicitude e não do da culpa. Trata-se de questão já resolvida, no sentido da nulidade da revogação, pelo que não há dúvida de que, ao venderem o imóvel a terceiro estando ainda vinculadas ao contrato-promessa dos autos, as recorridas praticaram um acto ilícito.

A indagação sobre a culpa das recorridas deve fazer-se num nível diferente, que a sentença recorrida, apesar da perspectiva desfocada sob a qual analisou esta matéria, acabou por aflorar. Interessa ajuizar se, ao convencerem-se de que a revogação era válida e eficaz em relação a ambos os recorridos e, com base nesse convencimento, terem vendido o imóvel a terceiro, as recorridas violaram o seu dever de diligência.

O n.º 2 do artigo 799.º estabelece que, no domínio da responsabilidade civil obrigacional, a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil extraobrigacional, ou seja, pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487.º, n.º 2). A posição do devedor é, porém, agravada pelo n.º 1 do artigo 799.º, de acordo com o qual incumbe àquele provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, assim estabelecendo uma presunção de culpa. É este o quadro legal a ter em conta para a aferição da culpa das recorridas.

Não obstante ser nula, a revogação existiu, isto é, ocorreu na vida real, no plano dos factos. Por causa dela, as recorrentes entregaram € 40.000 ao recorrido JR e convenceram-se de que estavam desoneradas do dever de efectuar a venda a este e à recorrida MC. Importa recordar, resumidamente, os antecedentes dessa revogação, o quadro factual em que a mesma aconteceu.

Os recorridos foram casados um com o outro e foi nessa situação que celebraram, em 2000, o contrato-promessa dos autos com VM. Em finais de 2000, os recorridos entregaram a VM uma quantia para reforço do sinal. Após a morte de VM, em meados de 2001, ocorreram conversações entre as recorrentes, suas herdeiras, e os recorridos, descritas nos n.ºs 5 a 7 e 16. Em Setembro de 2004, os recorridos divorciaram-se, mas não se provou que tal facto fosse do conhecimento das recorrentes. Na proposta de revogação do contrato-promessa, datada de 01.02.2005, o recorrido JR declarou que falava em seu nome e no da recorrida MC. Estamos, portanto, perante uma relação contratual que perdurou por cerca de quatro anos e meio e durante a qual, não obstante a parte final da carta parcialmente reproduzida no n.º 5 da matéria de facto provada, os recorridos actuaram em sintonia. A proposta de revogação subscrita e enviada pelo recorrido JR não surgiu do nada, antes constituindo o culminar de conversações que se arrastaram por muito tempo, nos termos descritos.

O circunstancialismo que acabámos de descrever não é suficiente para alterar a decisão sobre a matéria de facto no que concerne ao alegado conhecimento do referido nos n.ºs 17 a 20 dos factos provados por parte da recorrida MC, no sentido de julgar provado esse conhecimento, como vimos no ponto 3 desta fundamentação. Também não é suficiente para considerar válida e eficaz, relativamente a ambos os recorridos, a revogação do contrato-promessa, como as recorrentes também pretendem. Diga-se, a propósito, que a proposta de recurso à ideia de sistema móvel, constante do parecer de CARLOS LACERDA BARATA junto aos autos pelas recorrentes, embora interessante, não é aceitável se, com ela, se pretender a dispensa do assentimento da recorrida MC para a validade e plena eficácia da revogação do contrato-promessa. A falta desse assentimento é, neste contexto, inultrapassável. Aliás, o parecer não é conclusivo neste ponto, pois, à ponderação da tutela da confiança das recorrentes, apenas reconhece, genericamente, potencialidade para conduzir a uma eventual “não responsabilização” destas, o que, reconheça-se, é bem menos que afirmar que se deveria concluir pela validade e eficácia da revogação relativamente à recorrida MC. Essa não responsabilização será alcançada, mas por outra via, como veremos em seguida.

O circunstancialismo descrito é, porém, decisivo no contexto da apreciação da culpa das recorrentes.

Note-se, logo à partida, que não resulta da matéria de facto provada que as recorrentes tenham sido representadas ou, sequer, aconselhadas por advogado quando receberam a proposta de revogação do contrato-promessa e a aceitaram, entregando a quantia de € 40.000 ao recorrido JR. Portanto, o argumento do tribunal a quo segundo o qual as recorrentes sempre estiveram representadas por um advogado carece de suporte factual.

Realcemos, por outro lado, a actuação do recorrido JR. Na proposta de revogação, este afirmou que quer ele, quer a recorrida MC, queriam “rescindir o contrato” e que, desde que o sinal fosse devolvido, eles nada mais pretenderiam. Ou seja, embora, na realidade, sem poderes de representação da recorrida MC, o recorrido JR falou em nome de ambos e, posteriormente, recebeu a totalidade do valor acordado como constituindo a restituição do sinal em singelo, ou seja, como se actuasse também em representação da recorrida MC. No pressuposto, que se impõe em face da matéria de facto julgada provada, de que, afinal, actuou à revelia da recorrida MC e se apropriou da totalidade da quantia entregue pelas recorrentes, conclui-se que o recorrido JR adoptou uma conduta flagrantemente desonesta perante as recorrentes, que dolosamente enganou de forma a que as mesmas lhe entregassem uma quantia a que não tinha direito e, a seguir, praticassem um acto – a venda do imóvel a terceiro – que as prejudicava, na medida em que as fazia incorrer em responsabilidade civil obrigacional. Perante esta actuação do recorrido JR, que, repetimos, participava em conversações sobre a execução do contrato-promessa havia vários anos e, por via disso, não era um estranho para as recorrentes, será de censurar a confiança destas na sua seriedade? Seria exigível, às recorrentes, perceber que o recorrido JR estava a enganá-las nos termos descritos, praticando actos que, eventualmente, até poderiam ser criminalmente relevantes? Parece-nos que não. No contexto dos contactos que vinham sendo mantidos entre as partes do contrato-promessa dos autos, a descrita actuação do recorrido JR surge como absolutamente inesperada e evidentemente reprovável, não sendo, por isso, censurável, à luz do critério da diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso, a confiança das recorrentes de que o referido contrato-promessa ficara efectivamente revogado e, por via disso, podiam vender o imóvel a terceiro sem violarem o mesmo contrato. Por outras palavras, não faz sentido assacar culpa, na modalidade de negligência, às sucessoras do promitente-vendedor, por se terem deixado enganar, nos termos descritos, por um dos promitentes-compradores.

Flui do exposto que carece de justificação a formulação de um juízo de censura em relação à realização, pelas recorrentes, do contrato de compra e venda que tornou impossível o cumprimento do contrato-promessa. Elas fizeram-no por terem acreditado, fundadamente, que o contrato-promessa já não vigorava, não tendo, portanto, actuado culposamente. Por outras palavras, as recorrentes conseguiram ilidir a presunção de culpa decorrente do n.º 1 do artigo 799.º. 

Sendo assim, há que concluir que as recorrentes não incorreram em responsabilidade civil obrigacional perante qualquer dos recorridos, por faltar o pressuposto da culpa. O contrato-promessa dos autos extinguiu-se por impossibilidade superveniente de cumprimento não imputável às recorrentes, nos termos dos artigos 791.º e 795.º.

7. Consequências das conclusões a que chegámos nos pontos anteriores:

Em consequência da extinção do contrato-promessa por impossibilidade superveniente de cumprimento não imputável às recorrentes, estas ficaram com a obrigação de restituir o sinal em singelo aos recorridos. O montante total do sinal foi de Esc. 9.500.000$00, a que correspondem € 47.385,80.

Atenta a pluralidade de credores e de devedores da referida obrigação e tendo em consideração a natureza divisível desta, coloca-se a questão de saber se a mesma obrigação é, relativamente a cada uma das partes, solidária ou parciária. O n.º 1 do artigo 512.º estabelece que a obrigação é solidária quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles. O artigo 513.º dispõe que a solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes. Ora, inexiste norma legal que estabeleça a solidariedade, activa ou passiva, da obrigação de restituição do sinal em singelo. É, por outro lado, óbvia a inexistência de estipulação das partes sobre esta matéria. Sendo assim, impõe-se concluir que a obrigação de restituição do sinal em singelo é parciária, activa e passivamente, o que significa que cada credor apenas tem direito a receber a sua quota-parte do crédito e cada devedor apenas está adstrito ao cumprimento da sua quota-parte do débito. A determinação da quota-parte de cada devedor e de cada credor faz-se de acordo com o disposto na primeira parte do artigo 534.º: são iguais as partes que têm na obrigação divisível os vários credores ou devedores, pois inexiste lei ou convenção das partes de que resulte proporção diversa. Não é aplicável o regime estabelecido na segunda parte da mesma norma por duas razões, qualquer delas suficiente para o afastamento desse regime. Em primeiro lugar, porque as recorrentes não são herdeiras do devedor, mas sim, elas próprias, as devedoras, pois foram elas que praticaram o acto que constitui a fonte da obrigação de restituição do sinal em singelo. Em segundo lugar, porque não está provado que a partilha da herança de VM já tenha sido partilhada.

Concretizando, o crédito de cada um dos recorridos é de € 23.692,90. As recorrentes já entregaram € 40.000 ao recorrido JR, a título de restituição do sinal em singelo. Não obstante tal restituição ter sido efectuada em contexto diverso do presente, ou seja, em execução de uma revogação contratual nula, nada obsta à sua imputação na dívida de restituição do sinal em singelo acima liquidada. Atenta essa imputação e porque a referida entrega de € 40.000 não tem carácter liberatório das recorrentes relativamente à obrigação de entrega de metade do sinal à recorrida MC, conclui-se que o recorrido JR recebeu mais € 16.307,10 que aquilo a que tem direito, pelo que está obrigado a restituir esta quantia às recorrentes a título de enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 473.º, n.ºs 1 e 2, 476.º e 479.º, n.ºs 1 e 2, procedendo a reconvenção nessa medida. O recorrido JR deverá, assim, ser condenado a entregar a quantia de € 5.435,70 a cada uma das recorrentes. As recorrentes, por seu turno, estão obrigadas a pagar os acima referidos € 23.692,90 à recorrida MC, sendo cada uma delas responsável pelo pagamento de € 7.897,63.

Sobre todas as quantias em dívida, as recorrentes e o recorrido JR são devedores de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde as datas em que foram citados, nos termos dos artigos 805.º, n.º 1, e 806.º, n.ºs 1 e 2.

No que concerne aos juros de mora, as recorrentes arguiram a prescrição. Trata-se, porém, de uma questão nova, ou seja, não suscitada no tribunal a quo, e que não é de conhecimento oficioso, atento o disposto no artigo 303.º. Consequentemente, não pode ser conhecida em sede de recurso.

Ainda em matéria de juros de mora, as recorrentes sustentam que, sendo elas alheias à demora da justiça, não lhe pode o retardamento ser-lhes imputado, mostrando-se violado o n.º 2 do artigo 804.º ao não se considerar que, se a prestação não foi efectuada, não foi por sua causa. Esta argumentação é manifestamente improcedente. A obrigação de restituição de metade do sinal à recorrida MC é uma obrigação pura, pelo que se venceu com a citação das recorridas, nos termos do n.º 1 do artigo 805.º. Há mora desde então, independentemente do tempo de pendência do processo.

As restantes questões suscitadas estão prejudicadas pela solução dada à questão da responsabilidade civil das rés.

Em conclusão, o recurso deve ser julgado parcialmente procedente, anulando-se a sentença recorrida, pelo fundamento previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, e julgando-se a acção e a reconvenção parcialmente procedentes nos termos acima expostos.

Decisão

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente, anulando a sentença recorrida nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, e julgando a acção e a reconvenção parcialmente procedentes nos seguintes termos:

A) Condena-se o recorrido JR a pagar a quantia de € 16.307,10 às recorrentes, sendo € 5.435,70 a cada uma delas;

B) Condena-se cada uma das recorrentes a pagar a quantia de € 7.897,63 à recorrida MC;

C) Sobre as quantias referidas em A) e B) são devidos juros de mora, à taxa supletiva legal, desde as datas em que os respectivos devedores foram citados até integral pagamento;

D) No mais, vão as recorrentes e os recorridos absolvidos dos pedidos contra eles formulados.

Custas da acção e da reconvenção, incluindo as do presente recurso, a cargo das recorrentes e dos recorridos, na proporção do respectivo decaimento.

Notifique.

*

Évora, 28 de Fevereiro de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta 


Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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