Processo n.º 2288/08.0TBPTM.E1
*
Sumário:
1 – O meio processual próprio
para a parte reagir contra uma omissão do tribunal que, no seu entendimento,
constitua nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC, é a reclamação
para o mesmo tribunal e não o recurso da sentença proferida posteriormente ao
momento em que a referida omissão ocorreu.
2 – Nas hipóteses de intervenção
principal provocada, a sentença que conhecer do mérito da
causa deverá apreciar a relação jurídica de que seja titular o chamado a
intervir, sob pena de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do
artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC.
3
– Se a parte contra a qual o documento é apresentado impugnar a veracidade da
letra ou da assinatura e a parte que o apresentar não provar a sua veracidade,
nos termos do n.º 2 do artigo 374.º do Código Civil, a consequência é o mesmo
documento não fazer prova plena quanto ao conteúdo das declarações atribuídas
ao seu autor, nos termos do n.º 1 do artigo 376.º do mesmo código. Tal
circunstância não impede que o documento seja livremente apreciado pelo
tribunal, nos termos do n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
4
– É nulo o distrate que não seja celebrado por todas as partes do contrato cuja
extinção se pretende.
5
– Constitui pressuposto da faculdade de o credor efectuar a interpelação
admonitória prevista no n.º 1 do artigo 808.º a existência de mora do devedor.
6
– Ilide a presunção de culpa estabelecida no n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil o
promitente-vendedor que demonstra que apenas vendeu o bem a terceiro porque,
mercê da actuação enganosa de um dos promitentes-compradores, que o determinou,
nomeadamente, a devolver o sinal em singelo, ficou convencido de que o
contrato-promessa fora validamente revogado.
7 – Extinguindo-se o
contrato-promessa de compra e venda por impossibilidade superveniente de
cumprimento não imputável a qualquer das partes, a parte que constituiu sinal
tem direito à restituição deste em singelo. Essa obrigação é parciária, activa
e passivamente, e a determinação da quota-parte de cada devedor e de cada
credor faz-se de acordo com o disposto na primeira parte do artigo 534.º do
Código Civil.
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Relatório
MC propôs a presente acção
declarativa, com processo comum sob a forma ordinária, contra BS, MM e SM,
pedindo a condenação das rés a pagarem, aos autores, a quantia de € 94.771,16,
nos termos do artigo 442, n.º 2, do Código Civil, a título de restituição em
dobro do sinal prestado, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data
dos factos até efectivo e integral pagamento. A autora requereu a intervenção
principal provocada de JR, como seu associado.
As rés contestaram, pugnando
pela improcedência da acção. Contudo, para a hipótese de procedência da acção,
as rés deduziram reconvenção, pedindo a condenação dos autores: 1) Como litigantes
de má-fé, em multa e indemnização não inferior a € 7.500; 2) A reconhecerem
como validamente resolvido pelas rés o contrato-promessa junto à petição
inicial e o sinal passado, seja no montante de € 39.903,88, seja no montante de
€ 47.385,80, pertença delas, rés; 3) A pagarem às rés a quantia de € 40.000,
que estas entregaram aos autores em 16.05.2005; 4) A pagarem às rés juros
legais sobre a quantia de € 40.000, contados desde 16.05.2005 até integral
embolso, sendo os vencidos até 16.05.2008 no montante de € 5.200; 5) A pagarem
às rés a quantia de € 12.100 como compensação pelo gozo e fruição do prédio
prometido vencer no período de Abril de 2001 a Novembro de 2004, acrescido de
juros legais desde a notificação da contestação; 6) Subsidiariamente, no caso
de se entender que as rés não resolveram validamente, a pagarem a estas as
quantias referidas em 1, 3, 4 e 5. As rés pediram ainda que se ordene, em
qualquer caso, a compensação, até aos respectivos limites, com o montante que
elas forem, eventualmente, condenadas a pagar aos autores.
A autora replicou, respondendo à
excepções suscitadas pelas rés e pugnando pela improcedência da reconvenção.
As rés responderam às excepções
suscitadas pela autora à matéria da reconvenção.
A intervenção principal
provocada de JR, como associado da autora, foi admitida, tendo o interveniente
declarado fazer seus os articulados desta última.
Após a realização de audiência
preliminar, foi proferido despacho saneador, no qual, além do mais, foi
admitido o pedido reconvencional com excepção da parte respeitante à condenação
dos autores como litigantes de má-fé. Procedeu-se à selecção
da matéria de facto assente e à elaboração da base instrutória.
Realizou-se
a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a
acção procedente, condenou as rés a pagarem à autora a quantia de € 94.771,16,
a título de restituição de sinal em dobro nos termos do n.º 2 do artigo 442.º
do Código Civil, acrescida de juros de mora contados desde a data da citação
até integral pagamento. A reconvenção foi julgada totalmente improcedente.
As
rés recorreram da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:
(…)
A
recorrida MC contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
(…)
O
recorrido JR também contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
(…)
O
recurso foi admitido.
Objecto
do recurso
Tendo em conta as conclusões das
alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da
intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento
oficioso se imponha, as questões a resolver são as seguintes:
- Nulidade por violação do contraditório
no cumprimento da carta rogatória;
- Nulidade da sentença recorrida;
- Impugnação da decisão sobre a matéria
de facto;
- Revogação do contrato-promessa;
- Interpelação admonitória pelas recorrentes;
- Incumprimento do contrato-promessa
pelas recorrentes;
- Mora das recorrentes no cumprimento da
obrigação de restituição do sinal;
- Juros de mora sobre a obrigação de
restituição do sinal em dobro;
- Prescrição da obrigação de juros;
- Regime da responsabilidade civil das recorrentes.
Factualidade
apurada
Na sentença recorrida, foram julgados
provados os seguintes factos:
1 – VM, na qualidade de primeiro
outorgante, e a autora e JR, na qualidade de segundos outorgantes, na altura
casados no regime de comunhão de adquiridos, celebraram, a 28.07.2000, o acordo
escrito junto a fls. 14 (alínea A da matéria assente).
2 – Do acordo escrito em 1 constam as
seguintes cláusulas:
Pelo primeiro outorgante “foi dito que é
dono e legítimo possuidor de uma moradia em fase de construção, sita em (…), com
a área de 255 m2, descrita na Conservatória do Registo Predial de (…) s/o n.º
2536 de (…) e inscrito na matriz s/o n.º 4904.”
“1.º Nessa qualidade promete vender ao
2.º outorgante e este promete comprar livre de ónus e encargos a dita moradia
(…), pelo preço de 34.500.000$00.
2.º No acto deste contrato o 2.º
outorgante entregará ao 1.º outorgante a quantia de 8.000.000$00 (…), a título
de sinal e princípio de pagamento.
3.º Em fim de Dezembro o 2.º outorgante
entregará um reforço de mais 3.500.000$00 (…).
4.º No acto da Escritura, a realizar até
fins de Fevereiro de 2001, o 2.º outorgante pagará o restante que é de vinte e
três mil contos (…). (…)” (alínea B da matéria assente).
3 – No acto de assinatura do acordo
referido em 1 e 2, a autora e o seu marido entregaram a VM a quantia de 8.000.000$00
a título de sinal e princípio de pagamento, conforme cláusula 2ª do contrato
promessa (alínea C da matéria assente);
4 – VM faleceu no dia 12 de Agosto de
2001, tendo deixado como únicas e universais herdeiras as ora rés, BS, sua
mulher, e MM e SM, suas filhas (alínea D da matéria assente);
5 – Em 20.06.2002, a autora enviou a
missiva junta a fls. 15, dirigido ao Sr. Dr. AF, mandatário das rés à data,
constando do mesmo o seguinte:
“(…) Tal como tinha escrito estou e como
sempre estive na disposição de cumprir as obrigações decorrentes no contrato
promessa supre referido e relativo a moradia sita (…).
E estou na disposição e condição de
fazer a escritura quando lhe for possível.
Se por acaso da vossa parte não houver
interesse de cumprir com o contrato estou disposta a ouvir uma proposta ou
alternativa.
O meu marido não tem de modo algum a
minha autorização, nem procuração da minha parte de anular o contrato ou
alterar ou mesmo de receber o dinheiro da entrada (…).” (alínea E da matéria
assente).
6 – Dr. DG enviou à autora a missiva
junta a fls. 17, datada de 22.06.2004, com o seguinte teor:
“Em 28 de Julho de 2000, outorgou, com VM,
contrato promessa respeitante a uma moradia em construção, sita em (…),
descrito na conservatória do registo predial de (…) sob o n.º 2536, de (…), e
inscrito na matriz s/o n.º 4904.
A referida moradia encontra-se
concluída, tendo sido emitida, em 10/10/2002, licença de utilização.
Por várias razões não foi possível
efectuar a escritura até fins de Fevereiro de 2001, conforme previsto no
referido contrato promessa, como é, aliás, do seu acordo e conhecimento.
Entretanto, em Agosto de 2001 faleceu VM,
mas os seus herdeiros estão prontos a querem celebrar a escritura.
Em nome dos herdeiros de VM venho
notificá-lo para celebrar até 15/07/2004 a escritura pública a que se refere o
contrato promessa de 28 de Julho de 2000. (…)” (alínea F da matéria assente).
7 – A autora enviou ao Dr. DG a missiva,
junta a fls. 18, datada de 05.07.2004, com o seguinte teor:
“(…) Fiquei muito surpreendida ao
receber no dia 04.07.04 uma carta do senhor que me é completamente
desconhecido.
Até agora correspondemos com o senhor AF
Advogado de Sr. BS.
Peço portanto que mande uma procuração
original passada por a vendedora da moradia. (…)
Quero mais uma vez mencionar, que foi a
sua cliente, que não cumpriu a promessa do contrato de compra e venda, e agora
sem prévio aviso marca a escritura.
Apresente por favor a proposta junta
enviada à sua cliente, para se possível, chegarmos a um acordo que seja
prestável para ambas as partes (…).” (alínea G da matéria assente).
8 – Encontra-se descrito na
Conservatória do Registo Predial de (…), sob o n.º 2536/061196, da Freguesia de
(…), o prédio rústico – Bemposta, composto por lote de terreno para construção
urbana, n.º 94, com os seguintes Averbamentos:
Av. 01-Ap. 01/030599 – o lote passou a
ter a área de 255 m2; confrontando do norte – lote 93; nascente – lote 99 e
poente – caminho público.
Av. 02 – AP. 15/060900 – o prédio está
inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4904.
Av. 03 – Ap. 33/11/07/01 – foi
construído um urbano de rés-do-chão e primeiro andar (alínea H da matéria assente);
9 – A ficha da Conservatória referida em
8 tem as seguintes inscrições:
G-2. Ap. 15/060900 – Aquisição – A favor
de VM c.c. BS – comunhão de adquiridos, (..) por compra.
G-3 Ap. 34/110701 – Aquisição –
Provisória por natureza – art.º 92º, n.º 1, g) - a favor de MC c.c. JR –
comunhão de adquiridos, (..) por compra.
G-3 An. 01-110405 – Caducou.
G-4 Ap. 01/110405 – Aquisição – em comum
e sem determinação de parte ou direito - a favor de BS, viúva (…), MM (…) e SM
(…), por dissolução por morte da comunhão conjugal e sucessão hereditária.
G-5 Ap. 02/110405 – Aquisição –
Provisória por natureza – art.º 92º, n.º 1, g) - a favor de SG (…) por compra.
G-5 Av.01- Ap. 39/010705 – Convertida
(alínea I da matéria assente).
10 – Após a morte de VM, o Sr. Dr. AF
passou a assessorar juridicamente as rés (alínea J da matéria assente).
11 – Por escrito particular denominado
“contrato promessa de compra e venda”, a ré BS prometeu vender a SG o prédio
referido em 2 e 8 – cfr. documento de fls. 101 e 102 (alínea K da matéria
assente).
12 – Por escritura pública lavrada no
Cartório Notarial do Concelho de (…), em 17 de Maio de 2005, as rés declararam
vender o prédio referido em 2 e 8 a SG, da mesma constando que a licença de
utilização n.º 309 foi passada pela Câmara Municipal de (…) em 10/10/2002 –
cfr. documento de fls. 104 a 110 (alínea L da matéria assente).
13 – O casamento da autora e JR foi
dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 16 de Setembro de
2004, transitada em julgado em 28 de Outubro de 2004 (alínea M da matéria
assente).
14 – Em 6 de Novembro de 2000, a autora
e o seu marido entregaram a VM a quantia de esc. 1.500.000$00 (resposta ao n.º
1 da base instrutória).
15 – Como reforço da quantia referida em
3 já entregue (resposta ao nº 2 da base instrutória).
16 – A autora e JR receberam a missiva
junta a fls. 96, datada de 20/12/2004, subscrita pelo Dr. DG, junta a fls. 18,
datada de 05.07.2004 com o seguinte teor:
“(…) Por mandato dos herdeiros de VM e
na sequência da minha carta de 22/06/2004, da vossa resposta de 29/06/2004, da
minha carta de 09/11/2004 endereçada ao Sr. RR e perante o silêncio do Sr. Dr.
PM, após a minha carta de 14/12/2004, venho notificá-los de que, não sendo a
escritura realizada até ao dia 14 de Janeiro de 2005, o contrato promessa
celebrado em 28/07/2000 com o falecido VM será havido como definitivamente
incumprido” (resposta ao n.º 3 da base instrutória).
17 – JR subscreveu e enviou às rés a
missiva junta a fls. 99, datada de 01.02.2005, com o seguinte teor
“(…) em virtude de problemas
profissionais, não tenho como continuar com o contrato em vigor, reafirmando,
por mim e pela outra outorgante que, como já transmitido por carta nossa e dos
nossos advogados aos seus advogados, é nossa vontade rescindir o contrato,
esperando que aceite esta nossa rescisão. Para nós desde que nos devolvam o sinal
entregue, não queremos mais nada, seja em ao sinal, seja em relação à casa ou
aos melhoramentos que vos pedimos para fazerem. Por tudo o exposto, venho por
meio desta carta pedir a devolução do sinal, ficando o contrato desde já
rescindido.” (resposta ao nº 4 da base instrutória).
18 – As rés e JR acordaram que o valor
do sinal a devolver era de € 40.000 (resposta ao nº 5 da base instrutória).
19 – As rés devolveram a JR o valor de €
40.000 em 16.05.2005 (resposta ao nº 6 da base instrutória).
20 – O que este aceitou (resposta ao nº
7 da base instrutória).
A sentença recorrida julgou não provados
os seguintes factos:
A) A autora tinha conhecimento do
referido em 17 a 20 dos factos provados.
B) A autora e JR habitaram o imóvel referido
em 2 e 8 desde 2001 até Novembro de 2004.
C) Sendo o valor locativo de tal imóvel
de € 500 mensais.
D) À data do referido em 17 a 20 dos
factos provados, as rés tinham conhecimento do referido em 13.
Fundamentação
1 – Nulidade por violação do contraditório
no cumprimento da carta rogatória:
As recorrentes sustentam que, não tendo
as partes sido notificadas para, querendo, estarem presentes na diligência de inquirição
de testemunhas mediante carta rogatória, foi violado o princípio do contraditório,
consagrado no artigo 3.º do CPC. Mais, as recorrentes consideram que a omissão
da referida notificação é directamente imputável ao tribunal a quo porquanto o despacho que admitiu e
ordenou a expedição da carta rogatória não continha – como, em obediência ao
princípio da gestão processual, devia conter – instruções dirigidas à entidade
rogada quanto à necessidade de cumprimento do contraditório. Concluem as
recorrentes que, em consequência, deverá ser anulado todo o processado
subsequente à ocorrência dessa nulidade.
Neste segmento do recurso, as recorrentes insurgem-se,
não directamente contra o conteúdo da sentença recorrida, mas sim contra a
prévia omissão de um acto processual que, no seu entendimento, a lei impunha.
Logo, as recorrentes estão a invocar uma nulidade processual, como decorre do
n.º 1 do artigo 195.º do CPC, segundo o qual, fora dos casos previstos nos
artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a
omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem
nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa
influir no exame ou na decisão da causa. Note-se que a sentença recorrida nada
decidiu sobre essa pretensa nulidade processual, o que é natural dado que a
mesma não foi arguida antes da sua prolação.
Sendo assim, o meio processual
próprio para as recorrentes reagirem contra a omissão da notificação das partes
com vista a, querendo, estarem presentes na diligência em que foram inquiridas
testemunhas por carta rogatória, não é o recurso da sentença proferida após a referida omissão, mas sim
a reclamação perante o tribunal a quo,
nos termos do artigo 199.º do CPC. Ora, as recorrentes não arguiram a nulidade
processual em questão, mediante reclamação, nem na sessão da audiência final em
que foi proferido o despacho que ordenou a inquirição de testemunhas por carta
rogatória, na qual estiveram representadas por advogado, nem posteriormente,
nomeadamente após a recepção da referida carta rogatória. Tal reclamação teria
de ser apreciada pelo tribunal a quo,
nos termos dos artigos 200.º e 201.º do CPC, e apenas dessa decisão, caso fosse
desfavorável às recorrentes, caberia recurso. É este o sistema estabelecido
pela nossa lei processual civil em matéria de articulação entre a reclamação
por nulidade processual e o recurso, usualmente expresso através do aforismo
“dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”. Sistema esse que se
harmoniza com a regra, básica em matéria de recursos ordinários, segundo a qual
estes têm como função o reexame de questões que foram submetidas à
apreciação do tribunal a quo e não o
conhecimento de questões novas, ou seja, não suscitadas neste último, embora sem prejuízo do
conhecimento, pelo tribunal ad quem,
das questões que o devam ser oficiosamente – cfr. o disposto nos artigos 627.º,
n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º do CPC.
Flui
do exposto que decorreu, há muito, o prazo para as recorrentes arguirem a
hipotética nulidade processual que vimos analisando e que não é mediante a
interposição de recurso da sentença que
tal arguição pode ser feita. Consequentemente, não se conhecerá da referida
arguição de nulidade.
2
– Nulidade da sentença recorrida:
As
recorrentes sustentam que a sentença recorrida é nula, por omissão de
pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, quer
por não ter apreciado a acção na perspectiva dos direitos do recorrido JR, quer por não ter apreciado a
reconvenção na parte em que foi dirigida contra o mesmo recorrido.
Relativamente
a esta questão, as recorrentes têm razão. Quer no julgamento da acção, quer no
da reconvenção, a sentença ignorou, pura e simplesmente, a existência do
recorrido JR,
centrando-se exclusivamente nos direitos e deveres da recorrida MC. Nomeadamente, as
recorrentes foram condenadas a pagarem a quantia de € 94.771,16, a título de
restituição do sinal em dobro, acrescida de juros de mora, apenas à recorrida
MC, o mesmo tendo
acontecido relativamente à reconvenção, da qual apenas esta recorrida foi
absolvida. Num e noutro casos, a sentença recorrida omitiu qualquer referência
aos direitos e deveres do recorrido JR, não obstante este, por efeito da admissão da
intervenção principal provocada, também ser autor. Com essa omissão, a sentença
recorrida violou o disposto no artigo 320.º do CPC, o qual dispõe que, nas
hipóteses de intervenção principal provocada, a sentença
que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de
que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso
julgado. Consequentemente,
a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1,
al. d), 1.ª parte, do CPC.
No que concerne às consequências
processuais da apontada nulidade da sentença recorrida, rege o artigo 665.º do
CPC. Interessa-nos o disposto no n.º 1, segundo o qual, ainda que declare nula
a decisão que põe termo ao processo, o tribunal ad quem deve conhecer do objecto da apelação. É o que iremos fazer,
já que o processo contém todos os elementos para o efeito necessários e as
questões a resolver foram debatidas nas alegações.
3
– Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
As recorrentes consideram que o tribunal
a quo cometeu um erro de julgamento
no que concerne à matéria dos n.ºs 1, 2 e 8 da base instrutória, que deram
origem aos factos provados acima reproduzidos sob os n.ºs 14 e 15 e ao facto
não provado acima reproduzido sob a alínea A. As recorrentes pretendem que os
factos 14 e 15 sejam julgados não provados e o facto A seja julgado provado.
O
tribunal a quo formou a sua convicção
sobre os factos 14 e 15 com base no depoimento da testemunha DS e no documento
de fls. 704, que é uma declaração de quitação emitida e assinada pelo
promitente vendedor. As recorrentes pretendem que estes meios de prova não
sejam valorados. O documento, porque o impugnaram e não foi produzida qualquer
prova com vista ao convencimento da sua genuinidade ou autenticidade. O
depoimento de DS, quer pelo seu conteúdo, que entendem ser contraditório, quer
porque foi prestado por meio da carta rogatória à qual apontaram o vício
anteriormente analisado.
As
recorrentes não têm razão.
Relativamente
ao documento, a circunstância de as recorrentes o terem impugnado e os
recorridos não terem provado a sua veracidade, nos termos do n.º 2 do artigo
374.º do Código Civil (diploma ao qual pertencem as normas doravante
mencionadas sem indicação da sua proveniência), tem apenas como consequência o
mesmo documento não fazer prova plena quanto ao conteúdo das declarações
atribuídas ao seu autor, nos termos do n.º 1 do artigo 376.º. Tal circunstância
não impede que o documento seja livremente apreciado pelo tribunal, nos termos
do n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
No
que concerne ao depoimento da testemunha DS, já vimos que uma nulidade
processual eventualmente cometida aquando da solicitação e/ou do cumprimento da
carta rogatória mediante a qual o mesmo foi prestado não é invocável neste
momento e nesta sede. Por outro lado, a pretensa contradição no depoimento
desta testemunha, que fala num terreno num primeiro momento e numa casa
posteriormente, não passa de um pormenor que, por si só, não afecta a
credibilidade do mesmo depoimento. Tal divergência não incide sobre um facto
controvertido, pois é pacífico que se trata de uma casa (ainda em construção à
data da celebração do contrato-promessa) e não de um terreno, e pode ter-se
devido a um lapso da testemunha, ou da própria transcrição do depoimento desta,
em qualquer caso sem importância. Sobre a divergência entre os Esc.
3.500.000$00 estipulados no contrato-promessa e os Esc. 1.500.000$00 entregues,
a testemunha nem sequer foi inquirida.
O
forma como o tribunal a quo valorou o
depoimento da testemunha DS, corroborado pelo da testemunha MS, como é referido
na sentença recorrida, em conjugação com o documento de fls. 704, não merece
qualquer crítica. Todos esses meios de prova apontam no sentido da veracidade
do conteúdo dos n.ºs 14 e 15 dos factos provados e não foram contrariados por
qualquer outro meio de prova.
O
tribunal a quo julgou não provado que
a recorrida MC
tivesse conhecimento do referido nos n.ºs 17 a 20 dos factos provados devido à
ausência de meios de prova nesse sentido. Tenha-se em conta que, atento o
disposto no n.º 2 do artigo 342.º, cabia às recorrentes o ónus da prova do
referido facto. Nas suas alegações, as recorrentes pretendem fundamentar a tese
de que aquele facto devia ter sido julgado provado invocando, não um qualquer
meio de prova nesse sentido, que efectivamente não existiu, mas o conteúdo de
alguns artigos da petição inicial que não possuem conteúdo confessório do mesmo
facto. É, pois, manifesta a falta de razão das recorrentes.
Em
conclusão, inexiste fundamento para alterar a decisão sobre a matéria de facto,
a qual se mantém na íntegra.
4
– Revogação do contrato-promessa:
Provou-se
que o recorrido JR subscreveu e enviou às rés a missiva junta a fls. 99, datada
de 01.02.2005, com o seguinte teor: “(…) em virtude de problemas profissionais,
não tenho como continuar com o contrato em vigor, reafirmando, por mim e pela
outra outorgante que, como já transmitido por carta nossa e dos nossos
advogados aos seus advogados, é nossa vontade rescindir o contrato, esperando
que aceite esta nossa rescisão. Para nós desde que nos devolvam o sinal
entregue, não queremos mais nada, seja em ao sinal, seja em relação à casa ou
aos melhoramentos que vos pedimos para fazerem. Por tudo o exposto, venho por
meio desta carta pedir a devolução do sinal, ficando o contrato desde já
rescindido.” As recorrentes e o recorrido JR acordaram que o valor do sinal a
devolver seria de € 40.000, tendo as primeiras, em 16.05.2005, procedido à
entrega dessa quantia ao segundo, que aceitou.
O
tribunal a quo considerou que:
- Estes
factos integram, à luz da teoria dos comportamentos concludentes e da
declaração de vontade tácita, nos termos dos artigos 217.º a 219.º, um acordo
de revogação ou distrate;
- A
revogação do contrato, que tem eficácia extintiva da relação contratual,
inclui-se nas estipulações posteriores previstas no n.º 2 do artigo 221.º e,
consequentemente, está sujeita ao regime aí estabelecido, segundo o qual as
estipulações posteriores ao documento só estão sujeitas à forma legal prescrita
para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhe forem
aplicáveis;
- Em
regra, a validade da revogação do contrato não depende da observância da forma
legalmente prescrita para a celebração deste último, desde que seja
imediatamente executada; mas já assim não será se contiver as chamadas
“cláusulas compensatórias” ou “outras cláusulas acessórias”;
- No
caso sub judice, o recorrido JR e as
recorrentes não quiseram uma revogação pura e simples, antes a tendo
condicionado à restituição do sinal, pelo que tal revogação devia ter sido
reduzida a escrito, por ser essa a forma legalmente exigida para a celebração
do contrato-promessa; não tendo sido observada a forma escrita, a revogação é
nula, nos termos do artigo 220.º;
-
Ainda que tivesse sido observada a forma legalmente exigida, a revogação não
vincularia a recorrida MC, pois esta não a subscreveu, nem conferiu, ao recorrido JR,
poderes de representação.
Em
síntese, o tribunal a quo entendeu
que:
- Os
factos acima enunciados apenas não consubstanciam uma válida revogação do
contrato-promessa devido à inobservância da forma legalmente estabelecida;
- Não
fora esse vício de natureza formal, tal revogação seria válida, embora ineficaz
(em sentido estrito) em relação à recorrida MC porque esta não a subscreveu nem conferiu poderes
de representação ao recorrido JR; em relação a este último, depreende-se
da fundamentação da sentença recorrida que nada obstaria à eficácia da
revogação.
A
isto, as recorrentes contrapõem que a revogação do contrato-promessa de compra
e venda de imóvel não está sujeita a forma especial, antes vigorando,
relativamente a ela, o princípio geral da liberdade de forma, consagrado no
artigo 219.º.
É
nosso entendimento que a revogação do contrato-promessa, que o recorrido JR e
as recorrentes indiscutivelmente pretenderam celebrar, padece de um vício de
natureza substancial que o inquina de raiz, pelo que a questão da forma acaba
por não ser relevante.
O
n.º 1 do artigo 406.º estabelece que o contrato deve ser pontualmente cumprido
e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes
ou nos casos admitidos na lei.
Decorre
desta norma, por um lado, que os contratos não têm de se manter inalterados
desde a sua celebração até à sua completa execução, isto é, até que sejam
cumpridas todas as obrigações deles decorrentes (sem prejuízo, naturalmente,
das hipóteses de extinção das obrigações por causas diversas do cumprimento). Após
a sua celebração, os contratos podem ser modificados ou extintos por vontade
das partes. O acordo mediante o qual um contrato é extinto designa-se revogação
contratual ou distrate e constitui, em si mesmo, um novo contrato. Em vez de
ser fonte de obrigações, a revogação ou distrate extingue obrigações criadas
por um contrato anterior. Ainda aqui, estamos no domínio de aplicação do
princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405.º.
Resulta
do n.º 1 do artigo 406.º, por outro lado, a proibição de revogação de um
contrato sem a intervenção de todos os sujeitos que o celebraram (ou,
naturalmente, dos seus sucessores, inter
vivos ou mortis causa). Se assim
não fosse, isto é, se pudesse ser livremente revogado sem o acordo de todos os
sujeitos que nele são partes, ficaria posta em causa a própria função do
contrato. Estamos, pois, perante um aspecto essencial do regime legal do
contrato. Este, uma vez celebrado, só por acordo de todos os sujeitos que nele
são partes poderá ser extinto, salvo nos casos em que uma norma legal prescinda
desse acordo. Não se verificando esta última hipótese, a revogação de um
contrato sem o acordo de todos os sujeitos que nele são partes viola o disposto
no referido n.º 1 do artigo 406.º.
No
caso sub judice, estamos perante uma
revogação celebrada entre um dos promitentes-compradores e as sucessoras do
primitivo promitente-vendedor (de novo salientamos que abstraímos da questão da
validade formal dessa revogação, que não chega a colocar-se porquanto se verifica
um vício de natureza substancial). A outra promitente compradora, a recorrida MC, não interveio,
pessoalmente ou através de representante, e, por isso, é fora de dúvida que não
poderá ser afectada pela revogação. Por outras palavras, a recorrida MC tem direito a que se
mantenha inalterada a situação jurídica que para si resultou da celebração do
contrato-promessa de compra e venda, não obstante a aludida revogação.
Pergunta-se: De que forma poderá
a ordem jurídica garantir a integridade da posição contratual da recorrida
MC, isto é, do
conjunto de direitos e deveres que para esta resultaram do contrato-promessa de
compra e venda?
Tal garantia não resultará do
reconhecimento da validade substancial da revogação celebrada entre o recorrido
JR e as recorrentes e da mera ineficácia (em sentido estrito) dessa revogação
relativamente à recorrida MC. Aparentemente, o resultado de uma tal solução seria a extinção da
relação obrigacional estabelecida entre o recorrido JR e as recorrentes
através da celebração do contrato-promessa, saindo o primeiro deste contrato e aí permanecendo
as segundas apenas em relação com a recorrida MC. Ora, esta solução não garante a integridade
da posição contratual desta última. A hipotética desoneração do recorrido
JR da promessa de comprar o imóvel, ou seja, de emitir a declaração negocial
necessária à perfeição do contrato prometido, afectaria, e muito, a posição da
recorrida MC, pois
esta ficaria sozinha na posição de promitente compradora, o que implicaria ter
de suportar a obrigação de pagamento da totalidade do preço da compra e venda
e, se o não fizesse, incorrer em incumprimento. Não pode ser esta a solução
legal. No fundo, a mesma equivaleria a uma modificação subjectiva do contrato
que implicaria a alteração objectiva da posição da recorrida MC, em violação do
disposto no n.º 1 do artigo 406.º.
A garantia da integridade da
posição contratual da recorrida MC apenas se consegue através da nulidade da
revogação celebrada entre o recorrido JR e as recorrentes, nos termos do artigo
294.º. Do que se trata, verdadeiramente, é de um contrato que carece de
idoneidade para produzir o efeito extintivo pretendido através da sua
celebração e, por isso, a única forma de salvaguardar a integridade da posição contratual da recorrida
MC é a sua
erradicação da ordem jurídica, fulminando-o com o valor negativo da
nulidade.
Em
conclusão, a revogação do contrato-promessa celebrada entre o recorrido JR e as
recorrentes é nula, desde logo, por razões de natureza substancial. Adiante
analisaremos os efeitos dessa nulidade, considerando que as recorrentes, em
execução da revogação do contrato-promessa, entregaram € 40.000 ao recorrido JR.
5
– Interpelação admonitória pelas recorrentes:
As
recorrentes sustentam que, estando provado que elas notificaram os recorridos,
nos termos previstos no n.º 1 do artigo 808.º, para estes cumprirem a sua
obrigação, marcando a escritura pública de compra e venda até ao dia 14.01.2005
e nela outorgando, e não o tendo os recorridos feito, deve concluir-se que
estes incorreram em incumprimento definitivo do contrato-promessa. Tanto mais
que, afirmam as recorrentes, também está provado que os recorridos já
anteriormente tinham sido por eles notificados para a realização da escritura
até ao dia 15.07.2004.
O
tribunal a quo rejeitou este
entendimento com o fundamento de que nenhuma das comunicações descritas nos n.ºs
6 e 16 da matéria de facto provada pode ser qualificada como interpelação
admonitória, nos termos do n.º 1 do artigo 808.º, porquanto não mencionam que
as recorrentes tivessem agendado a celebração do contrato prometido, sendo,
ambas, omissas no que se refere, quer à data e hora previstas para a realização
da escritura pública, quer ao cartório notarial onde esta última seria realizada.
Nas
suas alegações, as recorrentes contrapõem que o entendimento do tribunal a quo assenta numa incorrecta
interpretação do n.º 1 do artigo 808.º, pois, não se tendo convencionado a quem
competia a marcação da escritura, qualquer das partes podia tomar a iniciativa
da sua marcação, enquanto dever acessório.
O
n.º 1 do artigo 808.º estabelece que se o credor, em consequência da mora do
devedor, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada
dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, se considera, para
todos os efeitos, não cumprida a obrigação. A lei confere, assim, ao credor
que, apesar da mora do devedor, mantenha um interesse objectivo na prestação, a
faculdade de fazer cessar aquela mora fixando um prazo razoável para o devedor
cumprir a sua obrigação, sob pena de a mesma mora se transformar em
incumprimento definitivo. Tratando-se de um contrato sinalagmático em que as
obrigações de ambas as partes tenham de ser cumpridas simultaneamente, como
acontece com o contrato-promessa celebrado entre VM e os recorridos, a parte
interpelante deverá, por seu turno, estar preparada para cumprir a sua própria
obrigação, sob pena de ser ela a cair em mora.
Constitui
pressuposto da faculdade de o credor efectuar a interpelação admonitória
prevista no n.º 1 do artigo 808.º a existência de mora do devedor. Isto
resulta, quer da redacção, quer do enquadramento sistemático daquela norma.
Estamos perante um instrumento jurídico de conversão da mora em incumprimento definitivo
imputável ao devedor e não de uma permissão legal de interpelação do devedor de
uma obrigação pura para cumprir esta última sob pena de incorrer imediatamente
em incumprimento definitivo. Nos termos do n.º 2 do artigo 804.º, o devedor
considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a
prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
No
contrato-promessa dos autos, ficou estipulado que o contrato prometido deveria
realizar-se “até fins de Fevereiro de 2001”. Porém, este prazo foi
ultrapassado, aliás ainda em vida do primitivo promitente-vendedor, que faleceu
em 12.08.2001, sem que seja possível, a partir da matéria de facto provada,
concluir se houve culpa de alguma das partes na inobservância do mesmo prazo. Ambas
as partes se remeteram, aparentemente, a uma atitude de alguma inércia, embora
acusando-se mutuamente de serem as causadoras do atraso na celebração do
contrato-prometido, como resulta dos n.ºs 5 a 7 e 16 da matéria de facto
provada. Sendo assim, no momento em que a comunicação descrita no n.º 16 teve
lugar, inexistia mora de qualquer das partes, circunstância que, por si só,
obsta à qualificação dessa mesma comunicação como interpelação admonitória e,
logicamente, a que lhe seja reconhecida a produção dos efeitos jurídicos desta
última.
Porém,
ainda que, no momento da comunicação descrita no n.º 16 dos factos julgados
provados, os recorridos estivessem em mora, a mesma comunicação continuaria a não
poder valer como interpelação admonitória, devido ao seu conteúdo.
Ao
prever a fixação unilateral, pelo credor, de um prazo razoável para o devedor
cumprir a sua obrigação, o n.º 1 do artigo 808.º inculca que se trata de uma
comunicação que prescinde de ulterior concretização, tendo, assim, de conter
todos os elementos necessários para o devedor ficar ciente do tempo que lhe é
concedido para sair da situação de mora. Tratando-se do cumprimento de um
contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, a comunicação em causa deverá
mencionar a data, hora e local da realização da escritura pública de compra e
venda, que o credor terá o ónus de marcar previamente. Sem isso, não poderá a
mesma comunicação ser qualificada como uma interpelação admonitória.
A
circunstância de não se ter convencionado, no contrato-promessa, a quem
competia a marcação da escritura pública de compra e venda e, por via disso,
qualquer das partes poder tomar a iniciativa da marcação desta, em nada
contende com aquilo que acabámos de afirmar. Ao contrário, apenas confirma a
conclusão de que, se queriam desencadear o mecanismo previsto no n.º 1 do
artigo 808.º, as recorrentes tinham o ónus de marcar previamente a escritura,
informando os recorridos em conformidade. A tese das recorridas de que lhes
bastava fixar um prazo para a realização da escritura, sem a marcar, e de que,
por via disso, passava a ser aos recorridos que cabia o dever de marcar a mesma
escritura e, logicamente, o de, feito isso, lhes comunicar a data, hora e local
da mesma, sob pena de incorrerem em incumprimento definitivo, não faz sentido,
pois não encontra suporte, nem na lei, nem no contrato-promessa. Este, ao ser
omisso sobre a qual das partes incumbiria a marcação da escritura, coloca-as em
pé de igualdade sobre essa matéria, com a consequente inadmissibilidade de
imposição da realização dessa marcação à contraparte fosse em que
circunstâncias fosse. Perante o estipulado no contrato-promessa dos autos, a
parte que quisesse desencadear o cumprimento deste último tinha o ónus de
marcar a escritura, o mesmo acontecendo, por igualdade de razão, se se chegasse
à fase prevista no n.º 1 do artigo 808.º.
Concluindo,
inexistiu uma interpelação admonitória das recorrentes dirigida aos recorridos,
pelo que estes não incorreram em incumprimento definitivo do contrato-promessa.
Aliás, nem sequer em mora incorreram, como decorre da exposição anterior.
6
– Incumprimento do contrato-promessa pelas recorrentes:
O
tribunal a quo considerou ter-se
verificado uma situação de impossibilidade definitiva de cumprimento do
contrato-promessa imputável às recorrentes, geradora de responsabilidade civil
obrigacional perante a recorrida MC. Foi julgado que, além da impossibilidade objectiva de realização
da prestação devida, decorrente da venda do imóvel a terceiro, as recorrentes
agiram com culpa, sob a forma de negligência. Com fundamento na referida responsabilidade civil
obrigacional, as recorrentes foram condenadas a restituir, à recorrida MC, o sinal em dobro,
nos termos do n.º 2 do artigo 442.º, acrescido de juros de mora desde a data da
citação até integral pagamento. As recorrentes insurgem-se contra o juízo de
censura formulado pelo tribunal a
quo, sustentando
que, atentas as circunstâncias em que venderam o imóvel a terceiro, agiram sem
culpa.
O tribunal a quo equacionou a questão da culpa das
recorrentes nos seguintes termos: não haverá culpa das recorrentes na
impossibilidade objectiva de celebração do contrato prometido se puder
concluir-se que elas já haviam sido desoneradas do dever de celebrarem desse
contrato por efeito da revogação do contrato-promessa. A consequência desta
forma de colocar o problema foi a sentença recorrida analisar conjuntamente as
questões da culpa e da validade e eficácia da revogação do contrato-promessa.
Nesta lógica, ao concluir pela nulidade da revogação, a sentença recorrida
deveria ter, sem mais, julgado negligente a conduta das recorrentes. Contudo, isso
não aconteceu. Após concluir pela nulidade da revogação, a sentença recorrida
passou a analisar a questão da culpa com autonomia, concluindo que, ao
confiarem que o recorrido JR representava a recorrida MC aquando daquela revogação, em vez de
auscultarem directamente a vontade desta última, e tendo em conta que sempre
estiveram representadas por um advogado, as recorrentes não agiram com a
diligência que lhes era exigível.
Impõe-se precisar conceitos. Se
a revogação do contrato-promessa fosse válida e eficaz em relação a ambos os
recorridos, não teria havido culpa das recorrentes na
impossibilidade objectiva de celebração do contrato prometido pela simples
razão de que faltaria, desde logo, o pressuposto da ilicitude. Nessa hipótese,
não vigorando já o contrato-promessa dos autos, as recorridas seriam livres de
vender o imóvel a terceiro sem violarem qualquer obrigação. Tal venda seria
lícita, pelo que nem sequer faria sentido a ponderação da culpa das vendedoras.
Portanto, a validade e a eficácia da revogação do contrato-promessa relevam ao
nível da discussão sobre o pressuposto da ilicitude e não do da culpa. Trata-se
de questão já resolvida, no sentido da nulidade da revogação, pelo que não há
dúvida de que, ao venderem o imóvel a terceiro estando ainda vinculadas ao
contrato-promessa dos autos, as recorridas praticaram um acto ilícito.
A
indagação sobre a culpa das recorridas deve fazer-se num nível diferente, que a
sentença recorrida, apesar da perspectiva desfocada sob a qual analisou esta
matéria, acabou por aflorar. Interessa ajuizar se, ao convencerem-se de que a
revogação era válida e eficaz em relação a ambos os recorridos e, com base
nesse convencimento, terem vendido o imóvel a terceiro, as recorridas violaram
o seu dever de diligência.
O n.º 2 do artigo 799.º
estabelece que, no domínio da responsabilidade civil obrigacional, a culpa é
apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil extraobrigacional, ou
seja, pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de
cada caso (artigo 487.º, n.º 2). A posição do devedor é, porém, agravada pelo
n.º 1 do artigo 799.º, de acordo com o qual incumbe àquele provar que a falta
de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa
sua, assim estabelecendo uma presunção de culpa. É este o quadro legal a ter em
conta para a aferição da culpa das recorridas.
Não obstante ser nula, a
revogação existiu, isto é, ocorreu na vida real, no plano dos factos. Por causa
dela, as recorrentes entregaram € 40.000 ao recorrido JR e convenceram-se
de que estavam desoneradas do dever de efectuar a venda a este e à recorrida MC. Importa recordar,
resumidamente, os antecedentes dessa revogação, o quadro factual em que a mesma
aconteceu.
Os recorridos foram casados um
com o outro e foi nessa situação que celebraram, em 2000, o contrato-promessa
dos autos com VM. Em finais de 2000, os recorridos entregaram a VM uma quantia
para reforço do sinal. Após a morte de VM, em meados de 2001, ocorreram conversações
entre as recorrentes, suas herdeiras, e os recorridos, descritas nos n.ºs 5 a 7
e 16. Em Setembro de 2004, os recorridos divorciaram-se, mas não se provou que
tal facto fosse do conhecimento das recorrentes. Na proposta de revogação do
contrato-promessa, datada de 01.02.2005, o recorrido JR declarou que
falava em seu nome e no da recorrida MC. Estamos, portanto, perante uma relação
contratual que perdurou por cerca de quatro anos e meio e durante a qual, não
obstante a parte final da carta parcialmente reproduzida no n.º 5 da matéria de
facto provada, os recorridos actuaram em sintonia. A proposta de revogação
subscrita e enviada pelo recorrido JR não surgiu do nada, antes
constituindo o culminar de conversações que se arrastaram por muito tempo, nos
termos descritos.
O
circunstancialismo que acabámos de descrever não é suficiente para alterar a
decisão sobre a matéria de facto no que concerne ao alegado conhecimento do
referido nos n.ºs 17 a 20 dos factos provados por parte da recorrida MC, no sentido de julgar
provado esse conhecimento, como vimos no ponto 3 desta fundamentação. Também
não é suficiente para considerar válida e eficaz, relativamente a ambos os
recorridos, a revogação do contrato-promessa, como as recorrentes também
pretendem. Diga-se, a propósito, que a proposta de recurso à ideia de sistema
móvel, constante do parecer de CARLOS LACERDA BARATA junto aos autos pelas recorrentes,
embora interessante, não é aceitável se, com ela, se pretender a dispensa do
assentimento da recorrida MC para a validade e plena eficácia da revogação do contrato-promessa. A
falta desse assentimento é, neste contexto, inultrapassável. Aliás, o parecer
não é conclusivo neste ponto, pois, à ponderação da tutela da confiança das
recorrentes, apenas reconhece, genericamente, potencialidade para conduzir a
uma eventual “não responsabilização” destas, o que, reconheça-se, é bem menos que
afirmar que se deveria concluir pela validade e eficácia da revogação
relativamente à recorrida MC. Essa não responsabilização será alcançada, mas por outra via, como
veremos em seguida.
O circunstancialismo descrito é,
porém, decisivo no contexto da apreciação da culpa das recorrentes.
Note-se, logo à partida, que não
resulta da matéria de facto provada que as recorrentes tenham sido
representadas ou, sequer, aconselhadas por advogado quando receberam a proposta
de revogação do contrato-promessa e a aceitaram, entregando a quantia de €
40.000 ao recorrido JR. Portanto, o argumento do tribunal a quo segundo o qual as recorrentes sempre estiveram representadas
por um advogado carece de suporte factual.
Realcemos, por outro lado, a
actuação do recorrido JR. Na proposta de revogação, este afirmou que quer ele,
quer a recorrida
MC, queriam
“rescindir o contrato” e que, desde que o sinal fosse devolvido, eles nada mais
pretenderiam. Ou seja, embora, na realidade, sem poderes de representação da recorrida
MC, o recorrido JR
falou em nome de ambos e, posteriormente, recebeu a totalidade do valor
acordado como constituindo a restituição do sinal em singelo, ou seja, como se
actuasse também em representação da recorrida MC. No pressuposto, que se impõe em face da
matéria de facto julgada provada, de que, afinal, actuou à revelia da recorrida
MC e se apropriou
da totalidade da quantia entregue pelas recorrentes, conclui-se que o recorrido
JR adoptou uma conduta flagrantemente desonesta perante as recorrentes, que
dolosamente enganou de forma a que as mesmas lhe entregassem uma quantia a que
não tinha direito e, a seguir, praticassem um acto – a venda do imóvel a
terceiro – que as prejudicava, na medida em que as fazia incorrer em
responsabilidade civil obrigacional. Perante esta actuação do recorrido JR, que,
repetimos, participava em conversações sobre a execução do contrato-promessa
havia vários anos e, por via disso, não era um estranho para as recorrentes,
será de censurar a confiança destas na sua seriedade? Seria exigível, às
recorrentes, perceber que o recorrido JR estava a enganá-las nos termos
descritos, praticando actos que, eventualmente, até poderiam ser criminalmente
relevantes? Parece-nos que não. No contexto dos contactos que vinham sendo
mantidos entre as partes do contrato-promessa dos autos, a descrita actuação do
recorrido JR surge como absolutamente inesperada e evidentemente reprovável,
não sendo, por isso, censurável, à luz do critério da diligência de um bom pai
de família em face das circunstâncias do caso, a confiança das recorrentes de
que o referido contrato-promessa ficara efectivamente revogado e, por via
disso, podiam vender o imóvel a terceiro sem violarem o mesmo contrato. Por
outras palavras, não faz sentido assacar culpa, na modalidade de negligência,
às sucessoras do promitente-vendedor, por se terem deixado enganar, nos termos
descritos, por um dos promitentes-compradores.
Flui do exposto que carece de justificação
a formulação de um juízo de censura em relação à realização, pelas recorrentes,
do contrato de compra e venda que tornou impossível o cumprimento do
contrato-promessa. Elas fizeram-no por terem acreditado, fundadamente, que o
contrato-promessa já não vigorava, não tendo, portanto, actuado culposamente.
Por outras palavras, as recorrentes conseguiram ilidir a presunção de culpa
decorrente do n.º 1 do artigo 799.º.
Sendo assim, há que concluir que
as recorrentes não incorreram em responsabilidade civil obrigacional perante
qualquer dos recorridos, por faltar o pressuposto da culpa. O contrato-promessa
dos autos extinguiu-se por impossibilidade superveniente de cumprimento não
imputável às recorrentes, nos termos dos artigos 791.º e 795.º.
7. Consequências das conclusões a que chegámos nos pontos anteriores:
Em consequência da extinção do contrato-promessa por impossibilidade superveniente de cumprimento não imputável às recorrentes, estas ficaram com a obrigação de restituir o sinal em singelo aos recorridos. O montante total do sinal foi de Esc. 9.500.000$00, a que correspondem € 47.385,80.
Atenta a pluralidade de credores
e de devedores da referida obrigação e tendo em consideração a natureza
divisível desta, coloca-se a questão de saber se a mesma obrigação é,
relativamente a cada uma das partes, solidária ou parciária. O n.º 1 do artigo
512.º estabelece que a obrigação é solidária quando cada um dos devedores
responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos
credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta
libera o devedor para com todos eles. O artigo 513.º dispõe que a solidariedade
de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das
partes. Ora, inexiste norma legal que estabeleça a solidariedade, activa ou
passiva, da obrigação de restituição do sinal em singelo. É, por outro lado,
óbvia a inexistência de estipulação das partes sobre esta matéria. Sendo assim,
impõe-se concluir que a obrigação de restituição do sinal em singelo é
parciária, activa e passivamente, o que significa que cada credor apenas tem
direito a receber a sua quota-parte do crédito e cada devedor apenas está
adstrito ao cumprimento da sua quota-parte do débito. A determinação da
quota-parte de cada devedor e de cada credor faz-se de acordo com o disposto na
primeira parte do artigo 534.º: são iguais as partes que têm na obrigação
divisível os vários credores ou devedores, pois inexiste lei ou convenção das
partes de que resulte proporção diversa. Não é aplicável o regime estabelecido
na segunda parte da mesma norma por duas razões, qualquer delas suficiente para
o afastamento desse regime. Em primeiro lugar, porque as recorrentes não são
herdeiras do devedor, mas sim, elas próprias, as devedoras, pois foram elas que
praticaram o acto que constitui a fonte da obrigação de restituição do sinal em
singelo. Em segundo lugar, porque não está provado que a partilha da herança de
VM
já tenha sido partilhada.
Concretizando,
o crédito de cada um dos recorridos é de € 23.692,90. As recorrentes já entregaram € 40.000 ao
recorrido JR, a título de restituição do sinal em singelo. Não obstante tal
restituição ter sido efectuada em contexto diverso do presente, ou seja, em
execução de uma revogação contratual nula, nada obsta à sua imputação na dívida
de restituição do sinal em singelo acima liquidada. Atenta essa imputação e
porque a referida entrega de € 40.000 não tem carácter liberatório das
recorrentes relativamente à obrigação de entrega de metade do sinal à recorrida
MC, conclui-se que
o recorrido JR recebeu mais € 16.307,10 que aquilo a que tem direito, pelo que
está obrigado a restituir esta quantia às recorrentes a título de
enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 473.º, n.ºs 1 e 2, 476.º e
479.º, n.ºs 1 e 2, procedendo a reconvenção nessa medida. O recorrido JR deverá,
assim, ser condenado a entregar a quantia de € 5.435,70 a cada uma das
recorrentes. As recorrentes, por seu turno, estão obrigadas a pagar os acima
referidos € 23.692,90 à recorrida MC, sendo cada uma delas responsável pelo pagamento
de € 7.897,63.
Sobre todas as quantias em
dívida, as recorrentes e o recorrido JR são devedores de juros de mora, à taxa
supletiva legal, desde as datas em que foram citados, nos termos dos artigos
805.º, n.º 1, e 806.º, n.ºs 1 e 2.
No que concerne aos juros de
mora, as recorrentes arguiram a prescrição. Trata-se, porém, de uma questão
nova, ou seja, não suscitada no tribunal a
quo, e que não é de conhecimento oficioso, atento o disposto no artigo
303.º. Consequentemente, não pode ser conhecida em sede de recurso.
Ainda em matéria de juros de
mora, as recorrentes sustentam que, sendo elas alheias à demora da
justiça, não lhe pode o retardamento ser-lhes imputado, mostrando-se violado o
n.º 2 do artigo 804.º ao não se considerar que, se a prestação não foi
efectuada, não foi por sua causa. Esta argumentação é manifestamente
improcedente. A obrigação de restituição de metade do sinal à recorrida MC é uma obrigação pura,
pelo que se venceu com a citação das recorridas, nos termos do n.º 1 do artigo
805.º. Há mora desde então, independentemente do tempo de pendência do
processo.
As restantes questões suscitadas
estão prejudicadas pela solução dada à questão da responsabilidade civil das
rés.
Em conclusão, o recurso deve ser
julgado parcialmente procedente, anulando-se a sentença recorrida, pelo
fundamento previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC,
e julgando-se a acção e a reconvenção parcialmente procedentes nos termos acima
expostos.
Decisão
Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação
de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente, anulando a sentença recorrida
nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, e julgando
a acção e a reconvenção parcialmente procedentes nos seguintes termos:
A)
Condena-se o recorrido JR a pagar a quantia de € 16.307,10 às recorrentes, sendo € 5.435,70 a
cada uma delas;
B) Condena-se cada uma das
recorrentes a pagar a quantia de € 7.897,63 à recorrida MC;
C) Sobre as quantias referidas
em A) e B) são devidos juros de mora, à taxa supletiva legal, desde as datas em
que os respectivos devedores foram citados até integral pagamento;
D) No mais, vão as recorrentes e
os recorridos absolvidos dos pedidos contra eles formulados.
Custas
da acção e da reconvenção, incluindo as do presente recurso, a cargo das
recorrentes e dos recorridos, na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
*
Évora, 28 de Fevereiro de 2019
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª
adjunta