terça-feira, 31 de outubro de 2017

Acórdão da Relação de Évora de 12.10.2017

Processo n.º 110/14.7TBETZ.E1

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Sumário:

1 – As janelas distinguem-se das frestas, não só pelas suas dimensões, mas também pelo fim a que umas e outras se destinam.

2 – Não obstante excederem quinze centímetros em todas as suas dimensões, devem ser qualificadas como frestas, embora irregulares, as aberturas, existentes na parede de um edifício, que não disponham de parapeito onde as pessoas possam apoiar-se, debruçar-se ou desfrutar de vistas, não permitam, através delas, projectar a parte superior do corpo humano, introduzir a cabeça de uma pessoa adulta, conversar com alguém que esteja do lado de fora ou visualizar o prédio vizinho, e tenham, como única função, permitir a entrada de luz e arejamento.

3 – A existência de frestas, ainda que excedendo quinze centímetros em todas as suas dimensões, não poderá importar a constituição de uma servidão de vistas por usucapião, nos termos do artigo 1362.º, n.º 1, do Código Civil.

4 – O proprietário do prédio vizinho tem o direito de exigir a redução do tamanho das frestas irregulares de forma a que as mesmas passem a respeitar o disposto no artigo 1363.º, n.º 2, do Código Civil.

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Relatório

AL e IL propuseram a presente acção declarativa, com processo comum, contra JB e IP, pedindo a condenação destes últimos a procederem, no prazo de oito dias, à tapagem, em alvenaria, dos vãos das janelas abertas no muro divisório dos respectivos prédios. Os autores alegaram, em síntese, que os réus, sem a sua autorização e em violação do disposto no artigo 1360.º, n.º 1, do Código Civil, abriram oito janelas que deitam directamente para o quintal do seu prédio, janelas essas que permitem devassar totalmente o mesmo quintal e, por outro lado, são aptas para a futura constituição de uma servidão de vistas por usucapião.

Os réus contestaram, alegando, em síntese, que o local onde foram agora abertos os orifícios na parede contra os quais os autores se insurgem foi, anteriormente, durante um período de vinte e oito anos, uma varanda, razão pela qual se constituiu uma servidão de vistas; posteriormente, em 2003, essa varanda foi fechada e foram abertas duas janelas com gradeamento em ferro na parede daí resultante que dá para o quintal dos autores, com o consentimento destes últimos; em 2008, os autores, sem autorização dos réus, procederam ao fecho dos vãos das referidas janelas; nessa altura, os réus apresentaram um projecto para legalização das obras do seu prédio junto da câmara municipal, no qual estavas previstas aberturas a 1,80 metros de altura da fachada confinante com os autores, para efeitos de ventilação e iluminação do compartimento resultante do fecho da varanda; essa obra foi licenciada e foi nessa sequência que os réus executaram as aberturas na parede em causa; tais aberturas não são janelas, tendo, como única função, permitir a entrada de luz e arejamento; a pretensão dos autores traduz-se num venire contra factum proprium e, por essa via, num abuso do direito; pelo que a acção deverá ser julgada improcedente, por não provada.

Os réus deduziram ainda pedido reconvencional.

Os autores replicaram, mantendo a posição assumida na petição inicial e pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.

Foi proferido despacho saneador, no qual, além do mais, se julgou a reconvenção inadmissível.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença julgando a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição dos réus do pedido.

Os autores não se conformaram com a sentença e interpuseram recurso para este tribunal. As suas alegações contêm as seguintes conclusões:

A) As aberturas que os réus levaram a cabo no seu prédio não foram autorizadas pelos autores, deitam para o quintal do prédio destes, que é paralelo ao dos réus, e, em qualquer das suas dimensões, largura e altura, ultrapassam os quinze centímetros;

B) Assim, considerando o disposto no artigo 1363.º do Código Civil, aquelas aberturas, que, de acordo com a lei, são janelas, são violadoras do disposto no artigo 1360.º do mesmo diploma legal e passíveis de fundamento futuro para a constituição de servidão de vistas;

C) Mostrando-se tais janelas abertas em contravenção ao disposto no artigo 1360.º do Código Civil, têm os autores direito a exigir dos réus a sua tapagem;

D) Constitui decisão contrária à lei e abuso de direito por parte dos réus “exigir” que sejam os autores a ter necessidade de efectuar construção para tapar tais janelas se pretenderem impedir eventual constituição de servidão de vistas ou, tão só, impedir que existam aberturas para o seu quintal em violação à lei.

Houve lugar a resposta, tendo os recorridos pugnado pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido.                                                         

Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a resolver são as seguintes:

1 – Se os orifícios que os recorridos abriram na parede do seu prédio que confina com o prédio dos recorrentes devem ser qualificados como janelas, para o efeito do disposto no artigo 1360.º, n.º 1, do Código Civil, ou, em vez disso, devem ser qualificados como frestas, seteiras ou óculos para luz e ar;

2 – Se a permanência dos orifícios referidos em 1 poderia levar à constituição de uma servidão de vistas sobre o prédio dos recorrentes e em que medida a resposta a tal questão deverá influir no julgamento sobre a admissibilidade legal da abertura dos mesmos orifícios;

3 – Se se constituiu, em benefício do prédio dos recorridos, uma servidão de vistas sobre o prédio dos recorrentes;

4 – Se a pretensão dos recorrentes se traduz num venire contra factum proprium e, por essa via, num abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil;

5 – Quais devem ser as consequências jurídicas da qualificação referida em 1.   

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – Os autores são proprietários do prédio urbano sito em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…);

2 – Os réus são proprietários do prédio urbano sito em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…);

3 – Os referidos prédios são confinantes;

4 – Em Novembro de 2013, os réus abriram oito janelas/frestas numa parede existente no limite dos dois prédios que, da parte correspondente aos autores, corresponde a quintal;

5 – O vão de cada uma das janelas/frestas tem aberturas com medidas entre 22 e 25 cm de largura por 27 a 28 cm de altura;

6 – Tais janelas/frestas foram abertas sem autorização dos autores;

7 – As janelas/frestas encontram-se à face da parede que separa os dois prédios sem qualquer intervalo;

8 – Os prédios são paralelos entre si;

9 – Pouco tempo após terem adquirido o seu prédio, os réus efectuaram obras de modificação e ampliação do seu imóvel que implicaram a criação de várias dependências no 1.º andar, designadamente uma varanda na parede que confina com os autores e que deita para o quintal destes;

10 – A referida varanda tinha uma largura de 2,75 metros e situava-se a cerca de 1,50 metros de altura do solo do 1.º andar dos réus;

11 – A obra foi executada e concluída no final de 1975, a coberto da Licença Municipal n.º 26 de 02.04.1975, apresentando a varanda a área de 10,45 metros;

12 – E assim se manteve durante 28 anos;

13 – Em 2003, os réus fecharam a varanda descrita em 10 e 11, abriram duas janelas e colocaram um gradeamento em ferro;

14 – Fizeram-no com autorização dos autores, que até facultaram o acesso ao seu quintal para a realização da obra;

15 – No início de Dezembro de 2008, os autores procederam ao fecho dos dois vãos das janelas dos réus;

16 – Os réus deram conhecimento desta situação à Camara Municipal de (…) em 5 de Dezembro de 2008;

17 – Nessa sequência, apresentaram projecto de legalização de obras do seu prédio junto da Camara Municipal de (…);

18 – No aludido projecto, encontram-se previstas aberturas a 1,80 metros de altura da fachada confinante com os autores, com a largura de 25 cm para efeitos de ventilação e iluminação do compartimento resultante do fecho da varanda;

19 – A obra foi licenciada sem condicionantes e emitido em 05.11.2011 o devido alvará de licença de construção n.º 32/2011;

20 – Apesar de interpelados pelos réus, os autores não permitiram o acesso ao seu quintal para execução dos trabalhos;

21 – Os autores, apesar de notificados pela Camara Municipal de (…) para reporem o edifício dos réus nas condições iniciais, nunca o fizeram;

22 – As aberturas feitas pelos réus não dispõem de parapeito onde as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se, nem desfrutar de vistas, quer em frente, quer para os lados, quer para baixo;

23 – Não se consegue, através delas, projectar a parte superior do corpo humano, nem introduzir a cabeça de uma pessoa adulta;

24 – Nem se consegue conversar com alguém que esteja do lado de fora ou visualizar o quintal dos autores;

25 – As aludidas aberturas têm como única função permitir a entrada de luz e arejamento.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

A) As janelas/frestas abertas pelos réus permitem devassar o quintal dos autores;

B) As janelas/frestas mostram-se abertas a menos de 1,80 metros de altura do sobrado dos réus;

C) A parede divisória entre os dois prédios tem características de parede de meação.

Fundamentação

1

O artigo 1360.º, n.º 1, do Código Civil (CC) estabelece que o proprietário que, no seu prédio, levantar edifício ou outra construção, não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.

O artigo 1363.º CC estabelece que não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas (n.º 1), e que as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar devem situar-se pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros, esclarecendo ainda que a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram (n.º 2).

No caso dos autos, os orifícios que os recorridos abriram na parede do seu prédio têm entre 22 e 25 cm de largura por 27 a 28 cm de altura. Não se provou que tais orifícios fiquem a menos de 1,80 metros de altura do sobrado do mesmo prédio.

Os recorrentes argumentam que os orifícios em causa devem ser qualificados como janelas porquanto têm mais de 15 centímetros em qualquer das suas dimensões. Porém, não têm razão. A distinção entre janelas e frestas, seteiras ou óculos para luz e ar não se faz, simplesmente, incluindo na primeira categoria todas as aberturas, feitas em paredes, que tenham mais de 15 centímetros em qualquer das suas dimensões. Não é esse, seguramente, o sentido das normas acima citadas.

A distinção entre janelas e frestas, seteiras ou óculos para luz e ar não decorre directamente da lei, tendo, por isso, vindo a ser levada a cabo pela jurisprudência e pela doutrina. A jurisprudência largamente maioritária vai, e bem, no sentido de que tal distinção não se deve fazer nos termos pretendidos pelos recorrentes, mas sim, conjugadamente, em função das dimensões e da finalidade das aberturas. Di-lo, com toda a clareza, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.02.2004 (processo n.º 03B3498, disponível, como os restantes adiante referenciados, em http://www.dgsi.pt/): “I – As janelas distinguem-se das frestas, não só pelas suas dimensões, mas também pelo fim a que umas e outras se destinam. II – As frestas são aberturas estreitas, cuja única função é permitir a entrada de ar e luz, sendo as janelas aberturas mais amplas, através das quais pode projectar-se a parte superior do corpo humano, e que dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo. III – Só este conceito de janela se adequa à dupla finalidade da restrição estabelecida no n.º 1 do artigo 1360.º do CC: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos, e impedir a sua fácil devassa com o arremesso de objectos.” Veja-se, em sentido idêntico, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.06.2008 (processo n.º 08B1716) e 01.04.2008 (processo n.º 07A3114), bem como os Acórdãos da Relação de Évora de 18.09.2008 (processo n.º 750/08-3) e 18.09.2008 (processo n.º 879/08-2).

À luz deste critério, é evidente que as aberturas feitas na parede do prédio dos recorridos não podem ser qualificadas como janelas, pois provou-se que as mesmas medem apenas entre 22 e 25 cm de largura por 27 a 28 cm de altura e não dispõem de parapeito onde as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se, nem desfrutar de vistas, quer em frente, quer para os lados, quer para baixo; não se consegue, através delas, projectar a parte superior do corpo humano, introduzir a cabeça de uma pessoa adulta, conversar com alguém que esteja do lado de fora ou visualizar o quintal dos recorrentes; tais aberturas têm como única função permitir a entrada de luz e arejamento.

Em face destas características e finalidades, tais aberturas merecem, antes, a qualificação de frestas. A isso não obsta o facto de, todas elas, terem dimensão superior à estabelecida no artigo 1363.º, n.º 2, CC. Tal facto não impede a referida qualificação, apenas acarretando um juízo de ilicitude de tais aberturas, com consequências jurídicas próprias, distintas das da abertura de janelas em violação do artigo 1360.º, n.º 1, CC, que adiante analisaremos.

2

Resolvida a questão da qualificação das aberturas levadas a cabo pelos recorridos no seu prédio como frestas, facilmente se conclui que a permanência destas nunca conduzirá à constituição de uma servidão de vistas sobre o prédio dos recorrentes. O artigo 1362.º, n.º 1, CC, é claro ao estabelecer que apenas a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião. Não se incluem nessas obras as frestas, qualquer que seja a sua dimensão. Não faria, aliás, sentido que tal acontecesse. Estando-se perante aberturas que, pelas suas dimensões e finalidade, não proporcionam vistas sobre o prédio confinante, seria, de todo, anormal, nos quadros do instituto da usucapião, que a sua permanência durante determinado prazo pudesse resultar na constituição de uma servidão de vistas. Como expressivamente se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.11.2008 (processo n.º 08B554), 1 – Sem vistas não pode haver servidão de... vistas. 2 – Para haver servidão é preciso, antes de mais, que haja uma utilidade que possa ser gozada pelo prédio dominante, o prédio que dela beneficie. 3 – Se não há a possibilidade de “ver e devassar” o prédio vizinho não pode constituir-se, por usucapião, uma servidão de vistas.” A jurisprudência dos nossos tribunais superiores é unânime nesta matéria, referenciando-se, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.02.2004 (processo n.º 03B3498), 20.05.2004 (processo n.º 04B1297), 01.04.2008 (processo n.º 07A3114) e 26.06.2008 (08B1716), bem como os Acórdãos da Relação de Évora de 27.11.2003 (processo n.º 587/03-2), 18.09.2008 (processo n.º 750/08-3), 28.02.2013 (processo n.º 459/07.5TBBJA.E1) e 30.11.2016 (processo n.º 318/14.5TBVRS.E1).

Fica, assim, demonstrado que não tem razão de ser o argumento dos recorrentes segundo o qual as aberturas realizadas pelos recorridos na parede do seu prédio não podem manter-se porque são passíveis de fundamento futuro para a constituição de servidão de vistas sobre o seu próprio prédio (cfr. alíneas B e D das suas conclusões). Em caso algum os recorrentes correm o risco de o seu prédio ficar onerado com uma servidão de vistas em consequência das referidas aberturas. Logo, é questão que não tem interesse para a decisão da causa.

3

Analisemos, em seguida, o argumento dos recorridos segundo o qual se constituiu, em benefício do seu prédio e onerando o prédio dos recorrentes, uma servidão de vistas, em consequência de o local onde foram agora abertos os orifícios na parede contra os quais os segundos se insurgem ter sido, anteriormente, durante um período de vinte e oito anos, uma varanda.

Este argumento improcede, desde logo, por falta de sustentação factual.

O n.º 2 do artigo 1360.º CC estende a restrição estabelecida no seu n.º 1, já citado, às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela. O também já citado artigo 1362.º, n.º 1, CC, inclui as varandas com essas características no âmbito da sua previsão, o que significa que a existência das mesmas pode importar, nos termos gerais, a constituição de uma servidão de vistas por usucapião.

No caso dos autos, a factualidade que os ora recorridos alegaram sobre esta matéria e, como decorrência disso, aquela que foi julgada provada, é insuficiente para, sequer, se poder concluir que se verificou o elemento objectivo da posse, o denominado corpus. Assim, foi alegado no artigo 7.º da contestação que a varanda em causa tinha uma largura de 2,75 m projectada a cerca de 1,50 m de altura do solo do 1.º andar dos recorridos. Esta alegação teve expressão no n.º 10 dos factos julgados provados na sentença recorrida, onde continua a falar-se em cerca de 1,50 metros de altura do solo do 1.º andar dos recorridos. Cerca de 1,50 metros, salientamos. Ora, a altura do parapeito da varanda é um facto fundamental para se saber se a varanda em causa estava nas condições previstas no n.º 2 do artigo 1360.º CC e, logo, se a sua existência durante vinte e oito anos deu origem a uma servidão de vistas nos termos do artigo 1362.º, n.º 1, CC. Daí ser exigível precisão nesta matéria, sendo certo que o ónus de alegação e prova da mesma estava a cargo dos recorridos (artigo 342.º, n.ºs 1 e 2, CC). Não se tendo provado que o parapeito da varanda tivesse menos de um metro e meio de altura, não pode concluir-se pela existência de uma posse nos termos exigidos pelas citadas disposições legais para a constituição da reclamada servidão de vistas a favor dos recorridos. A isto acresce a pura e simples falta de alegação e prova do animus dessa mesma posse, saliente-se.

Assim se conclui, sem necessidade de mais indagações, pela falta de fundamento do argumento em análise.

4

Os recorridos sustentam, por outro lado, que a pretensão dos recorrentes se traduz num venire contra factum proprium e, por essa via, num abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil. Isto porque, quando os recorridos fecharam a varanda e, na parede daí resultante que ficou a confinar com o prédio dos recorrentes, abriram duas janelas, estes últimos deram o seu consentimento.

Está provado, a este respeito, que, em 2003, os recorridos fecharam a varanda acima referida, abriram duas janelas e colocaram um gradeamento em ferro, tudo com autorização dos autores, que até facultaram o acesso ao seu quintal para a realização da obra.

Não obstante, não há fundamento para se concluir pela existência de uma situação de venire contra factum proprium. Note-se a conduta dos recorrentes que é visada por esta imputação não é o fecho, a que estes procederam no início de Dezembro de 2008, dos vãos das janelas construídas em 2003. Então sim, os recorrentes assumiram um comportamento contraditório com a posição que haviam tomado em 2003, com evidente prejuízo para os recorridos. Porém, não é isso que está em causa neste momento. Ao invocarem o abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, os recorridos reportam-se, obviamente, à oposição dos recorrentes à existência das aberturas construídas em Novembro de 2013 e têm como objectivo inviabilizar a pretensão destes que constitui objecto desta acção. Ora, aqui, não há qualquer comportamento contraditório por parte dos recorrentes, os quais sempre se opuseram – como, aliás, era previsível em face do ocorrido em Dezembro de 2008 – à obra realizada em Novembro de 2013. Logo, não há fundamento para se concluir no sentido da existência de abuso do direito por banda dos recorrentes.

Não se diga, contra isto, que a oposição dos recorrentes à obra realizada em Novembro de 2013 é contraditória com a autorização que concederam e à colaboração que prestaram para a realização da obra de 2003. Não há contradição, porque estamos a falar de obras diversas. Nem sequer se poderá contrapor que a obra de 2003 seria mais invasiva do prédio dos recorrentes que a de 2013, na medida em que se tratava de duas janelas, enquanto esta última consistiu em oito frestas, pois, por um lado, desconhece-se a exacta dimensão e altura em relação ao sobrado daquelas janelas e, por outro, tem de se ter em conta que as mesmas janelas eram gradadas, facto este da maior relevância neste contexto – cfr. o disposto no artigo 1364.º CC.

5

Recapitulando: Os orifícios que os recorridos abriram na parede do seu prédio são frestas; a existência destas frestas nunca poderá originar uma servidão de vistas a cargo do prédio dos recorrentes; nunca houve uma servidão de vistas, sobre o mesmo prédio, em benefício do prédio dos recorridos; e a pretensão dos recorrentes não constitui um abuso do direito. Temos, finalmente, o caminho aberto para chegar à decisão do presente litígio.

A sentença recorrida concluiu, bem, que os referidos orifícios são frestas e não janelas. Porém, daí extraiu, sem mais, a conclusão de que tais frestas, uma vez que não estão sujeitas às restrições estabelecidas no artigo 1360.º CC e foram abertas em parede de que os recorridos são proprietários exclusivos, podem manter-se tal qual se encontram, julgando, assim, a acção improcedente. Ora, nessa parte, a sentença recorrida merece crítica.

A posição assumida pela sentença recorrida redunda em equiparar as frestas construídas em violação do disposto no artigo 1363.º, n.º 2, CC, àquelas que o foram em conformidade com a mesma norma. Umas e outras poderiam ser construídas e manter-se, ainda que com a oposição do proprietário do prédio confinante. Todavia, esta equipação do ilícito ao lícito é juridicamente insustentável. A circunstância de as frestas abertas pelos recorridos terem, em todas as suas dimensões, mais de 15 centímetros, em violação do disposto no artigo 1363.º, n.º 2, CC, não pode deixar de ter consequências jurídicas. Não a consequência radical pretendida pelos recorrentes, ou seja, a eliminação das frestas, porque, por força da referida norma legal, os recorridos têm o direito de abrir frestas na parede do seu prédio. Em vez disso, deverá ser ordenada a redução da dimensão das frestas aos limites estabelecidos na mesma norma legal, ou seja, de forma a que, ao menos numa das suas dimensões, não tenham mais de 15 centímetros. É quanto basta para repor a legalidade.

Resta acrescentar que o facto de a obra realizada pelos recorridos em Novembro de 2013 ter sido licenciada sem condicionantes pela câmara municipal é irrelevante para a decisão a proferir neste processo. Como é sabido, As licenças de construção são emitidas "sob reserva de direitos de terceiros". Logo, qualquer vizinho pode, em caso de violação pelo construtor das regras de direito privado, fazer valer perante os Tribunais comuns os seus direitos emergentes de relação jurídicas privadas, independentemente da legalidade do licenciamento. (…) A licença apenas regula as relações entre a Administração e o titular e, por isso, não constitui, modifica ou extingue relações jurídicas privadas” (Acórdão da Relação de Évora de 18.11.2009 – processo n.º 30/2000.E1).

Em conclusão, o recurso deverá ser julgado parcialmente procedente, condenando-se os recorridos a procederem à redução da dimensão das frestas que abriram no seu prédio aos limites estabelecidos pelo artigo 1363.º, n.º 2, CC.

Decisão

Julga-se o recurso parcialmente procedente, condenando-se os recorridos a procederem à redução do tamanho das frestas que abriram no seu prédio de forma a que, ao menos numa das suas dimensões, as mesmas não tenham mais de quinze centímetros, em conformidade com o disposto no artigo 1363.º, n.º 2, do Código Civil.

Custas, em ambas as instâncias, a cargo dos recorrentes e dos recorridos, em partes iguais, sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.

Notifique.

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Évora, 12.10.2017

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto

 

Acórdão da Relação de Évora de 12.10.2017

Processo n.º 4006/16.0T8STB.E1

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Sumário:

1 – Nos regimes de comunhão de adquiridos e de comunhão geral, o património comum dos cônjuges é um património colectivo, uma comunhão de mão comum, não ficando, por isso, qualquer dos seus titulares com uma quota sobre cada um dos bens que o integram em cada momento. O património comum pertence, em bloco, a ambos os cônjuges.

2 – Daí que, não obstante o disposto no artigo 1714.º, n.º 3, do Código Civil, seja juridicamente inadmissível a dação em cumprimento, entre cônjuges, que tenha por objecto metade de um bem comum do casal.

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Relatório

JP, notário, com domicílio em (…), impugnou judicialmente, nos termos dos artigos 140.º e seguintes do Código do Registo Predial, a decisão proferida pelo conservador da 1.ª Conservatória do Registo Predial de (…) que recusou um pedido, por si efectuado, de registo de aquisição, por dação em cumprimento, de metade de duas fracções autónomas.

Após a prolação de despacho de sustentação por parte do conservador recorrido, nos termos do artigo 142.º-A, n.º 1, do Código do Registo Predial, o processo foi remetido ao Tribunal Judicial da Comarca de (…), nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.

O Ministério Público emitiu o parecer previsto no artigo 146.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e, em seguida, foi proferida sentença, que julgou o recurso improcedente.

O recorrente não se conformou com essa sentença, tendo dela recorrido para esta Relação, nos termos do artigo 147.º, n.º 1, do Código do Registo Predial. As suas alegações contêm as seguintes conclusões:

A) O Senhor Conservador recorrido praticou actos que a lei não admite (nulos) porque as irregularidades cometidas e os fundamentos invocados, dada a sua gravidade, não podem deixar de ser considerados como insanáveis, influindo na decisão da causa;

B) As doutas decisões recorridas padecem de um erro notório de apreciação do Direito que foi erroneamente aplicado;

C) O Senhor Conservador a quo claramente não soube valorar o conteúdo da escritura de dação em cumprimento, senão não teria concluído pela inexistência do direito que se pretende transmitir, que nitidamente consta da mesma;

D) O Senhor Conservador a quo claramente não deu preferência, a que por lei era obrigado a dar, ao suprimento de deficiências e à provisoriedade por dúvidas, nem à possibilidade de desistência do pedido de registo;

E) Proferindo a sentença ora em crise, a Mma. Sra. Juiz a quo deu cobertura legal a actos nulos do Sr. Conservador. Ao que acresce;

F) O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser dado provimento ao recurso, acompanhando a posição do ora apelante.

O recurso foi admitido.

Foram observados os vistos legais.                                                

Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a resolver são as seguintes:

1 – Natureza jurídica da comunhão de bens no âmbito do casamento celebrado sob os regimes da comunhão geral ou da comunhão de adquiridos;

2 – Admissibilidade legal da dação em cumprimento, entre pessoas casadas entre si sob um dos referidos regimes, de bens integrados na comunhão.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – No dia 05.04.2015, em (…), no Cartório Notarial de JP, JM e SP declararam que:

A) O primeiro é dono de metade de duas fracções autónomas correspondentes às letras JA e DL, inscritas na matriz sob o artigo (…) e descritas sob o artigo (…) da freguesia de (…), da Conservatória do Registo Predial de (…);

B) O primeiro é devedor à segunda da quantia de € 33.720, proveniente de empréstimos anteriores ao casamento;

C) O primeiro, para liquidação total da supra referida dívida, dá em cumprimento, à segunda, metade das referidas fracções autónomas;

D) A segunda aceita o presente contrato, ficando extinta a dívida, sendo que a fracção JA constitui a sua habitação própria e permanente, e já é proprietária da outra metade.

2 – JM e SP são casados sob o regime de comunhão geral de bens.

3 – Em 20.04.2016, o senhor notário JP apresentou, na 1.ª Conservatória do Registo de (…), pedido de registo de aquisição a favor de SP sobre as duas fracções autónomas correspondentes às letras JA e DL, inscritas na matriz sob o artigo (…) e descritas sob o artigo (…) da freguesia de (…), da Conservatória do Registo Predial de (…), titulado pela escritura referida em 1.

4 – Em 28.04.2016, o senhor Conservador da 1.ª Conservatória do Registo Predial de (…) proferiu despacho de qualificação com o seguinte teor: “Recusada a aquisição a favor de SP por inexistência do direito que se pretende transmitir face ao regime de comunhão geral de bens dos titulares inscritos, pois estamos perante bens comuns do património dos cônjuges. Artigos: 68.º, 69.º n.º 2 e 9.º n.º 1 do Código do Registo Predial”, para ambas as fracções autónomas.

Fundamentação

A situação dos autos resume-se assim: JM e SP são casados entre si sob o regime da comunhão geral; integram o património comum do casal duas fracções autónomas; JM, declarando dever determinada quantia a SP e com vista à extinção dessa dívida, efectuou, a favor desta, uma dação em cumprimento que teve por objecto metade das duas referidas fracções autónomas.

Será isto possível?

O recorrente entende que sim, invocando, em abono da sua tese, o disposto no artigo 1714.º, n.º 3, do Código Civil (diploma ao qual pertencem todos os artigos adiante mencionados sem indicação da fonte).

Este artigo tem, como epígrafe, “Imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei”, e estabelece o seguinte: 1. Fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais, nem os regimes de bens legalmente fixados. 2. Consideram-se abrangidos pelas proibições do número anterior os contratos de compra e venda e sociedade entre os cônjuges, excepto quando estes se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens. 3. É lícita, contudo, a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade de capitais, bem como a dação em cumprimento feita pelo cônjuge devedor ao seu consorte.

Perante uma redacção aparentemente linear como é a do n.º 3, o recorrente conclui não haver margem para dúvidas de que a dação em cumprimento em causa nestes autos é legalmente admissível, não obstante o facto de JM e SP serem casados sob o regime da comunhão geral. Sustenta o recorrente que entendimento diverso, como foi o adoptado na sentença recorrida, redunda em ignorar a regra hermenêutica segundo a qual, onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo.

Porém, o problema não se resolve de forma tão simples. Uma outra regra da hermenêutica jurídica, absolutamente fundamental, é a de que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (artigo 9.º, n.º 1). Reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, implica interpretar cada norma, não isoladamente, mas sim levando em consideração a globalidade do sistema normativo em que a mesma se insere. “Nenhum preceito pode ser interpretado isoladamente do contexto. (…) Cada um dos números dum artigo só é compreensível se o situarmos perante todo o texto do artigo, cada artigo perante os que o antecedem ou imediatamente o seguem. Atender ao contexto é situar uma disposição.”[1]

Portanto, o artigo 1714.º, n.º 3, como qualquer outra norma jurídica, tem de ser interpretado tendo em conta o conjunto de normas que regulam as relações patrimoniais entre os cônjuges e, em particular, aquelas que estabelecem o regime jurídico da comunhão de bens.

Para essa contextualização, é essencial, antes de mais, atentar no disposto no artigo 1730.º, inserido na subsecção que regula a comunhão de adquiridos, mas aplicável à comunhão geral de bens ex vi artigo 1734.º.

O n.º 1 do artigo 1730.º estabelece que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso. Em anotação a este artigo, ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA: “O comproprietário pode, na falta de convenção em contrário, sair a todo o momento do regime de contitularidade, exigindo a divisão da coisa comum (art. 1412.º). Outro tanto não podem fazer os cônjuges, visto a comunhão durar enquanto, persistindo o vínculo conjugal entre eles, se mantiverem as razões da afectação especial dos bens que a compõem. (…) na compropriedade, embora haja um único direito de propriedade, há várias quotas ideais desse direito (do direito e não da coisa) na titularidade dos comproprietários, enquanto na propriedade colectiva (correspondente à chamada propriedade de mão comum – Gemeinschaft zur gesammten Hand – do direito germânico), havendo também um único direito sobre o património, não há sequer uma divisão de quotas (ideais) desse direito entre os cônjuges, titulares do património. Não há quotas pertencentes a cada um dos cônjuges, porque o património comum pertence em bloco a ambos eles. É, hoc sensu, uma propriedade do casal, uma propriedade colectiva. (…) Quando, por conseguinte, no artigo 1730.º se prescreve que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista fixar a quota parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do património comum (…). Não se pretende de modo nenhum (…) definir o objecto do direito de cada cônjuge na constância do matrimónio”[2].

A conclusão idêntica se chega através da análise do regime contido no artigo 1685.º. O n.º 1 dispõe que cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários. O n.º 2 do mesmo artigo ressalva que a disposição que tenha por objecto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro. Ou seja, o n.º 1 admite a disposição mortis causa da meação nos bens comuns, não de uma pretensa quota de 50% sobre cada um destes bens. São coisas completamente diferentes, como vimos acima. O n.º 2, embora não ferindo de nulidade a disposição mortis causa que tenha por objecto um bem comum certo e determinado, como fazia o Código Civil de 1867, converte tal disposição num direito, que atribui ao beneficiário, a exigir o respectivo valor em dinheiro. A razão de ser desta conversão legal da disposição de coisa certa em legado pecuniário, que contrasta com o regime fixado pelo artigo 2252.º para o legado de coisa só em parte pertencente ao testador, é a mesma que vimos a propósito do artigo 1730.º: “O património comum dos cônjuges é um património colectivo (uma comunhão de mão comum) (…) que não confere a nenhum dos seus titulares, nem direitos sobre coisas certas e determinadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas. O facto de um prédio pertencer em comum a ambos os cônjuges não significa, por outras palavras, que qualquer deles se possa intitular dono do prédio ou sequer titular do direito a metade desse prédio. O património colectivo pode mudar continuamente de conteúdo e tão-pouco pode saber-se, com antecedência, quais são os bens que concretamente virão a pertencer a cada um dos seus titulares, na altura em que se proceda à sua partilha.”[3]

Só assim enquadrado, o artigo 1714.º, n.º 3, revela verdadeiramente a regra nele contida. O legislador não sentiu necessidade de restringir expressamente a admissibilidade da dação em cumprimento entre cônjuges aos bens próprios de cada um destes porque, devido à própria natureza jurídica da comunhão, tal dação não é, sequer, concebível se tiver por objecto bens integrados nesta última. A comunhão traduz-se numa propriedade colectiva e esta é, por definição, “una, indivisível, sem quotas[4]. Por outras palavras e recorrendo agora à lição de PEREIRA COELHO, “Os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela”[5]. Ou ainda à lição de MANUEL DOMINGUES DE ANDRADE: “(…) a massa patrimonial em questão não se reparte entre essas pessoas por quotas ideais, como na compropriedade ou comunhão de tipo romano. Antes, (…) ela pertence em bloco e só em bloco a todas essas pessoas, à colectividade por elas formada. Pertence-lhes solidariamente. Cada uma delas não tem qualquer fracção de direito que lhe corresponda individualmente e de que, como tal, possa dispor”.[6]

Sendo assim, tem de se concluir que todo o teor da dação em cumprimento descrita no ponto 1 da matéria de facto julgada provada assentou num equívoco: O de que o alegado devedor era dono de metade de cada uma das fracções autónomas em causa. Não o era, pelo que não podia, logicamente, transmitir essas pretensas quotas-partes sobre tais imóveis. Como acertadamente afirmou o conservador do registo predial, o direito que se pretendia transmitir não existe, pura e simplesmente. Consequentemente, o conservador não podia deixar de recusar o pedido de registo apresentado pelo recorrente, nos termos do disposto nos artigos 9.º, n.º 1, 68.º e 69.º, n.º 2, do Código do Registo Predial.

Resulta do exposto que o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.

Decisão

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Notifique.

*

Évora, 12.10.2017

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto



[1] OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 2.ª edição, p. 363.

[2] Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª edição revista e actualizada, p. 436-437.

[3] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, obra citada, p. 312-313.

[4] ANTUNES VARELA, Direito da Família, p. 375.

[5] Curso de Direito da Família, p. 478.

[6] Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 225.

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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