Processo n.º 241/17.1T8FAR.E1
*
Sumário:
1 – Para, em sede de ressarcimento de
danos patrimoniais decorrentes de uma situação de incapacidade, temporária ou
definitiva, se poder concluir que o lesado necessita do auxílio de terceira pessoa
para a execução das suas tarefas quotidianas, deve verificar-se uma situação,
especialmente grave, em que aquele ficou com a sua capacidade de tal forma
limitada que nem sequer os actos mais básicos e pessoais do dia a dia consegue
executar sem aquele auxílio.
2 – As consequências patrimoniais
futuras do dano biológico não se resumem às perdas salariais que o lesado
previsivelmente sofrerá.
3 – Justifica-se a fixação de uma
indemnização no montante de € 60.000 por danos não patrimoniais perante um quadro
factual que assim se resume: submissão do lesado, com 57 anos de idade à data
da ocorrência do facto lesivo, a quatro intervenções cirúrgicas, duas das quais
à coluna vertebral; períodos de imobilização; uso de colar cervical durante
três meses; submissão a vinte sessões de fisioterapia; sequelas graves ao nível
da coluna cervical, com dores e significativa limitação de movimentos, que
incapacitaram o lesado, nomeadamente, de voltar a conduzir veículos automóveis;
grande sofrimento psicológico motivado, nomeadamente, por ter ficado
definitivamente incapacitado de desenvolver a sua profissão de motorista e
outras actividades que lhe proporcionavam prazer.
*
Nesta acção declarativa de
condenação, sob a forma de processo comum, proposta por GG contra KK –
Companhia de Seguros, S.A., foi proferida sentença cujo dispositivo é, na parte
que nos interessa, o seguinte:
«Por todo o exposto,
julga-se a acção parcialmente procedente, porque parcialmente provada, e, em
consequência, decido:
A) Condenar a ré/seguradora KK – Companhia de
Seguros, S.A., a pagar ao autor os seguintes montantes:
- O montante de € 2 121,10 (dois mil,
cento e vinte e um euros e dez cêntimos), a título de perdas salariais;
- O montante de € 150 000,00 (cento e
cinquenta mil euros), a título de dano patrimonial futuro pela perda de
capacidade de rendimento, denominado “dano biológico”;
- O montante de € 4 138,01 (quatro mil,
cento e trinta e oito euros e um cêntimo), pela aquisição de cama, colchão e
poltrona;
- O montante de € 60 000,00 (sessenta mil
euros), a título de danos não patrimoniais.
Tudo, no valor global de € 216 259,11
(duzentos e dezasseis mil, duzentos e cinquenta e nove mil e onze cêntimos)
sobre o qual deverá ser descontado o montante já adiantado (€ 24 800,00), bem
como os valores pagos no âmbito dos autos apensos.
B) Relegar para execução de sentença a
liquidação dos montantes a que se referem as consultas e tratamentos de que o
autor irá necessitar ao longo da sua vida, bem como o custo das deslocações que
terá de fazer e dos medicamentos que terá de tomar;
C) Sobre as quantias aludidas supra
atinentes a perdas salariais e despesas com aquisição de cama articulada,
colchão e poltrona os juros contar-se-ão, à taxa legal, a partir da citação da
ré para a acção até integral pagamento;
D) Sobre as demais quantias, os juros são
devidos apenas a partir da data desta decisão;
E) Absolver a ré/seguradora do demais
peticionado.»
Ambas
as partes recorreram da sentença.
As
conclusões do recurso interposto pelo autor são as seguintes:
(…)
As
conclusões do recurso interposto pela ré são as seguintes:
(…)
Autor
e ré apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso
interposto pela parte contrária.
Os
recursos foram admitidos.
*
Questões
a decidir:
1 –
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto no que concerne à necessidade de
o autor, em consequência das sequelas com que ficou, recorrer ao auxílio, a
tempo parcial e até à sua morte, de terceira pessoa para a realização de
diversos actos da sua vida diária;
2 –
Repercussão de uma eventual alteração da decisão sobre a matéria de facto no
montante indemnizatório;
3 –
Montante da indemnização devida pelo dano patrimonial futuro decorrente do dano
biológico;
4 –
Montante da indemnização devida pelos danos não patrimoniais.
*
Na
sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:
1 – A
responsabilidade civil inerente à circulação do veículo com a matrícula XX-AT-XX
encontra-se transferida para a ré, através da apólice n.º (…).
2 – O
autor nasceu em 04.12.1957.
3 – No
dia 17.03.2015, pelas 14 horas e 30 minutos, na Avenida (…), em (…), ocorreu um
sinistro em que foram intervenientes os veículos com a matrícula XX-MI-XX e a
matrícula XX-AT-XX.
4 – O
MI, um motociclo, era conduzido pelo autor.
5 – O
AT, um automóvel ligeiro de passageiros, era conduzido por FF.
6 – O
autor circulava ao lado do AT mas em vias de trânsito diferentes, quando o
condutor do AT muda de via à direita, atento o seu sentido de marcha.
7 – O
autor que circulava à direita do AT foi assim embatido por este na sua via,
dando-se a colisão entre a lateral direita do AT e a lateral esquerda do MI.
8 – Após
a colisão o autor foi projectado para o pavimento, ficando gravemente ferido.
9 – Pelo
que foi assistido no local e transportado de urgência para o Centro Hospitalar
do Algarve.
10 – Foi
preenchida a declaração amigável de acidente automóvel.
11 – O
autor participou o respectivo sinistro à ré, sendo que esta veio a assumir a
responsabilidade pelo mesmo.
12 – E
como tal, indemnizou o autor pelos danos materiais, mormente a reparação da
viatura e os bens que transportava, bem como efectuou um adiantamento de €
24.800,00 (vinte e quatro mil e oitocentos euros) a título da indemnização
final.
13 – Tendo
ainda proposto indemnizar o autor, por todos os danos sofridos, e já deduzido o
valor adiantado, em € 95.200,00 (noventa e cinco mil e duzentos euros), valor
este que o autor não aceitou.
14 – Após
o sinistro o autor deu entrada nas urgências do Centro Hospitalar do Algarve,
EPE, onde fez exames de diagnóstico.
15 – Do
sinistro resultou um traumatismo cervical com fractura luxação C2-C3 e C4, uma
fractura da cabeça do perónio e luxação do 1.º dedo da mão direita, traumatismo
facial e traumatismo craniano sem perda de conhecimento.
16 – Ali
foi sujeito a intervenção cirúrgica, artrodese com parafusos pediculados
C2-C3-C4-C5.
17 – Fez
imobilização com tala de Zimmer.
18 – No
dia 19.03.2015 o autor foi transferido para o Hospital Santa Maria em Lisboa,
onde ficou internado, para ser sujeito a outra intervenção cirúrgica.
19 – Dada
a complexidade da fractura luxação C2-C3, foi realizada ressonância magnética
da coluna cervical sendo verificada trombose aguda da artéria vertebral
esquerda.
20 – O
autor foi colocado em tracção em marquesa de Stryker.
21 – No
dia 20.03.2015, foi operado com redução cruenta com 2 fios k no 1.º dedo da mão
direita.
22 – Foi
posteriormente avaliado em neurologia e sugerido tratamento profilático de
tromboembolismo na trombose de artéria esquerda, medicado diariamente.
23 –
Durante o período de recuperação foi decidido a transferência do autor para o hospital
de residência e devido à demora da RM ao joelho direito.
24 – Começou
a deambular com andarilho desde 26.03.2015 e retirou os agrafos dia 03.04.2015.
25 – Manteve
o colar cervical durante 3 meses.
26 – Passou
a ser seguido no hospital de residência.
27 – A
21.04.2015 o autor referia quadro de cefaleias, pelo que ficou novamente
internado para exames de diagnóstico.
28 – Assim
ficou internado e foi novamente operado para extração dos fios k do 1.º dedo da
mão direita.
29 – Após
a alta, observado em 05.05.2015, o autor referia dores na mão direita e ombro
esquerdo.
30 – Dada
a continuação das dores e limitações ao nível cervical, a 26.08.2015 o autor é
novamente internado no Hospital de Santa Maria em Lisboa.
31 – Por
conseguinte voltou a ser operado em revisão da artrodese com substituição dos
parafusos pediculares C-2.
32 – Teve
alta dia 30.08.2015, medicado e com encaminhamento para consulta de ortopedia.
33 – A
07.09.2015 o autor fez penso e retirou os agrafos.
34 – Em
consulta de 15.09.2015 o autor mantinha queixas álgicas.
35 – Foi
sendo acompanhado em consultas de ortopedia no Hospital de Santa Maria em
Lisboa.
36 – Em
10.11.2015 inicia plano de recuperação com medicina física de reabilitação,
tendo realizado 20 sessões de fisioterapia.
37 – Porém,
face ao agravamento das queixas álgicas aquele tratamento viria a ser suspenso.
38 – Para
esclarecimento das queixas o autor repetiu os exames de diagnóstico, como EMG e
TAC Cervical que revelaram alteração estrutural do corpo de C3 e desvios na
apófise odontoide anterior e direita.
39 – Os
serviços clínicos da ré efectuaram consulta de avaliação de dano corporal ao
autor em 06.07.2016, confirmando que o mesmo apresenta pouca mobilidade em
flexão e extensão da coluna cervical a 30º, face a artrodese e de C2-C3-C4-C5,
sendo-lhe atribuída uma IPP de 11 pontos com incapacidade absoluta para o
trabalho habitual de motorista e fixada a data da consolidação médico-legal em 06.07.2016.
40 – O
autor foi presente a consulta de mobilidade no Centro de Reabilitação de
Alcoitão em 25.07.2016.
41 – À
data do sinistro o autor prestava funções para o Centro de Apoio aos Sem Abrigo
com aquela categoria ao abrigo de um contrato de emprego-inserção promovido
pelo IEFP, cujo terminus estava
previsto para 06.07.2015.
42 – Como
contrapartida da actividade desenvolvida o autor recebia uma bolsa de ocupação
no valor de € 419,22 (quatrocentos e dezanove euros e vinte e dois cêntimos),
acrescido de subsídio de alimentação no valor diário de € 5,00 (cinco euros)
43 – Valor
que deixou de auferir desde o mês de março de 2015.
44 – Não
recebendo qualquer subsídio por parte da segurança social.
45 – À
data do sinistro o autor era motorista de veículos de mercadorias.
46 – Apesar
da alta médica o autor mantém dores cervicais.
47 – Como
causa das sequelas do sinistro o autor necessita de cama articulada, colchão
anti-escaras e poltrona de descanso relax, próprios para pessoas com limitações
ao nível da coluna cervical.
48 – Despesa
que, à data de 02.09.2016, se mostrava orçamentada em € 4.138,01 (quatro mil,
cento e trinta e oito euros e um cêntimo).
49 – O
autor sentiu dores intensas no corpo no pós-acidente com o impacto do veículo,
nomeadamente na cervical, na face e na mão direita.
50 – O
autor viu-se e vê-se confrontado durante aquele período, todos os dias, com o
mau estar causado pelas dores que sentia/sente.
51 – Apresentou
e apresenta temperamentos de mau humor, como consequência da condição física.
52 – Sendo
que, o autor é uma pessoa que gosta de conduzir e realizar passeios e viagens
de automóvel, o que após o sinistro e por causa deste não pode mais fazer,
acarretando desgosto.
53 – Depois
do sinistro e devido às sequelas do mesmo o autor não consegue fazer ginástica
e corrida, o que lhe traz desgosto e tristeza.
54 – O
autor movimenta a cabeça, com dificuldade, o que interfere com qualquer posição
que adopte, não conseguindo ficar longos períodos sentado ou na mesma posição,
situação que acarreta para o autor tristeza e frustração.
55 – Acrescem
incómodos, dores e preocupações em deslocações a consultas e exames.
56 – Como
consequência do sinistro, do mau humor do autor, das dores que sentia e na
pessoa deprimente e desgostosa que se tornou, bem como das condições
financeiras, aquele separou-se da companheira com a qual vivia em união de
facto.
57 – Realizou-se
um 1.º relatório pericial (exame realizado em 15.07.2019), no âmbito do qual
foram consignadas as seguintes lesões relacionáveis com o evento:
- Raquis: cicatriz operatória vertical da
região posterior cervical com 20 cm com anquilose cervical e aparente
tetraparesia espática (tremores grosseiros dos membros superiores e
inferiores), com marcha possível sem alterações de esfíncteres;
- Membro superior direito: rigidez
acentuada da 1.ª articulação metacarpo falângica em flexão.
58 – No
mesmo foram formuladas as seguintes conclusões:
- A data da consolidação médico-legal das
lesões é fixável em 25.07.2016;
- O período de défice funcional temporário
total (entre 17.03.2015 e 10.11.2015) foi fixado num período de 239 (duzentos e
trinta e nove) dias;
- O período de défice funcional temporário
parcial (entre 11.11.2015 e 25.07.2016) é fixável em 258 (duzentos e cinquenta
e oito) dias;
- O período de repercussão temporária na
actividade profissional total (entre 17.03.2015 e 25.07.2016) é fixável em 497
(quatrocentos e noventa e sete) dias;
- O quantum doloris fixável no grau 6/7,
de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de
recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados;
- Considerando o dano permanente
resultante de tetraparesia espática sem alterações de esfíncteres (síndrome do
homem rígido “Stiffman sinfrom like” o défice funcional permanente da
integridade físico-psíquica é fixável em 65 (sessenta e cinco) pontos, perspectivando-se
a existência de dano futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento
das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura,
por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico com
espasticidade progressiva, o que pode obrigar a uma futura revisão do caso;
- As sequelas descritas são, em termos de repercussão
permanente na actividade profissional incompatíveis com o exercício da actividade
profissional habitual, bem como outras dentro da sua área de formação
técnico-profissional;
- O dano estético permanente é fixável no
grau 6/7, de gravidade crescente, tendo em conta a dificuldade na marcha, a(s)
cicatriz(es), a(s) deformidades decorrentes da espasticidade;
- A repercussão permanente nas actividades
desportivas e de lazer é fixável no grau 4/7, de gravidade crescente, tendo em
conta a impossibilidade de corrida (prática desportiva amadora);
- Dependências permanentes de ajudas:
· Tratamentos médicos regulares
(correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para
evitar retrocesso ou agravamento das sequelas – ex. fisioterapia); neste caso,
avaliação periódica de neurologia e fisioterapia.
· Necessidade de apoio de 3.ª pessoa a
tempo parcial.
59 – O
perito médico que subscreveu o referido relatório prestou os seguintes
esclarecimentos:
«(…)
No referido exame complementar
identifica-se o diagnóstico de “Sequelas de traumatismo vertebro medular
(clínica de Stiffman sind like), com grau de incapacidade importante para a sua
vida de relação.
(…)
Relativamente ao enquadramento no capítulo
mencionado foi tido em conta sobretudo as limitações da Avd e da força muscular
decorrentes da espasticidade objectivada. Por fim e tendo em conta a efectiva
dificuldade e porventura subjectividade decorrente do próprio diagnóstico como
doença rara e de etiologia habitualmente não traumática, admito a ponderação de
execução de novo exame neurológico, com diagnóstico e enquadramento na TNI e
repetição de eletromiografia e RNM da coluna cervical.»
60 – Foi
realizada 2.ª perícia, com base em relatórios de RM da coluna cervical de 20.07.2020
e outros exames radiológicos do hospital de Faro, sendo obtido relatório
pericial (exame realizado em 08.04.2021), donde resulta que o autor apresenta
as seguintes sequelas relacionáveis com o evento:
- Raquis: cicatriz operatória vertical da
região posterior cervical com 20 cm com anquilose cervical, rigidez e grande
limitação na mobilidade, tanto em rotação como flexão/extensão;
- Membro superior direito: rigidez
acentuada da 1.ª articulação MF da mão em flexão, mas com mobilidade
preservada;
- Não se objectiva alterações
neurológicas, não existe algodistrofia, não existe assimetria nos membros, que
indiciem atrofia muscular ou deficits sensitivos.
61 – De
acordo com o mesmo relatório considerou-se:
- A data da consolidação médico-legal das
lesões é fixável em 25.07.2016;
- O período de défice funcional temporário
total (entre 17.03.2015 e 10.11.2015) foi fixado num período de 239 (duzentos e
trinta e nove) dias;
- O período de défice funcional temporário
parcial (entre 11.11.2015 e 25.07.2016) é fixável em 258 (duzentos e cinquenta
e oito) dias;
- O período de repercussão temporária na
atividade profissional total (entre 17.03.2015 e 25.07.2016) é fixável em 497
(quatrocentos e noventa e sete) dias;
- O quantum doloris fixável no grau 5/7,
de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de
recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados;
- Considerando o dano permanente
resultante de rigidez articular cervical após artrodese cirúrgica, sem
compromisso neurológico medular; radiculopatia cervical, com afectação de
grupos musculares dos membros superiores; quadro psicológico pós-traumático; o défice
funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 27,325 (vinte
e sete virgula trezentos e vinte e cinco) pontos, perspectivando-se a
existência de dano futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento
das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura,
por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico com
eventual artrose e agravamento de lesão radicular e rigidez);
- As sequelas descritas são, em termos de repercussão
permanente na actividade profissional incompatíveis com o exercício da actividade
profissional habitual, bem como outras dentro da sua área de formação
técnico-profissional;
- O dano estético permanente é fixável no
grau 4/7, de gravidade crescente, tendo em conta a(s) cicatriz(es) e a rigidez
cervical;
- A repercussão permanente nas atividades
desportivas e de lazer é fixável no grau 4/7, de gravidade crescente, tendo em
conta a impossibilidade de corrida, por rigidez cervical (prática desportiva
amadora);
- Dependências permanentes de ajudas:
· Tratamentos médicos regulares
(correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para
evitar retrocesso ou agravamento das sequelas – ex. fisioterapia); neste caso,
probabilidade de necessitar de reavaliação médica de neurologia, psicologia e
fisiatria;
· Necessidade de medicação sintomática;
· Não necessita de ajuda parcial de 3.ª
pessoa.
Na
sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:
A) Anteriormente ao contrato
proporcionado pelo IEFP o autor auferia uma retribuição mensal de € 700,00
(setecentos euros).
B) Que, após a cessação daquele
contrato, o autor iria auferir aquele rendimento mensal.
C) Que o autor se encontra
impossibilitado de praticar os seguintes actos: calçar e descalçar; apertar e
desapertar os sapatos; apertar o cinto das calças; coçar as costas; aspirar,
limpar e arrumar a casa; fazer a cama ou trocar lençóis;
D) Necessitando da ajuda de terceira
pessoa para o resto da sua vida;
E) Depois do sinistro e por causa das
sequelas resultantes do sinistro, o autor deixou de ir à praia.
*
1 – Impugnação da decisão sobre a
matéria de facto no que concerne à necessidade de o autor, em consequência das
sequelas com que ficou, recorrer ao auxílio, a tempo parcial e até à sua morte,
de terceira pessoa para a realização de diversos actos da sua vida diária:
O autor pretende que o conteúdo das
alíneas c) e d) dos factos não provados seja julgado provado.
Está em causa a seguinte matéria de
facto:
C) Que o autor se encontra
impossibilitado de praticar os seguintes actos: calçar e descalçar; apertar e
desapertar os sapatos; apertar o cinto das calças; coçar as costas; aspirar,
limpar e arrumar a casa; fazer a cama ou trocar lençóis;
D) Necessitando da ajuda de terceira pessoa
para o resto da sua vida.
Os meios de prova que, no entendimento
do autor, impõem a alteração da decisão sobre a matéria de facto no sentido por
si pretendido, são o relatório da primeira perícia médica, o depoimento da
testemunha PP, sua irmã, e as suas próprias declarações de parte.
Sustenta o autor, por outro lado, que o
tribunal a quo incorreu em
contradição ao julgar não provada a sua necessidade de ser auxiliado por
terceira pessoa, a tempo parcial, para o resto da sua vida, e provadas as
sequelas como tal descritas na decisão sobre a matéria de facto.
Comecemos por analisar esta pretensa
contradição. Tal análise permitirá, nomeadamente, precisar, por um lado, quais
foram as sequelas efectivamente julgadas provadas pelo tribunal a quo e, por outro, o conceito de
necessidade de auxílio de terceira pessoa para a vida diária.
Os n.ºs 57 a 61 limitam-se a julgar
provado que os relatórios periciais e os esclarecimentos prestados sobre o
primeiro deles têm o conteúdo aí descrito. Isto constitui uma evidência, tanto
mais que o conteúdo dos referidos meios de prova não é coincidente. Aliás, a
formulação dos referidos números da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto não deixa margem para qualquer
dúvida a este respeito. As lesões, exames clínicos, consultas, tratamentos e
sequelas que o tribunal a quo julgou
efectivamente provados constam dos n.ºs 14 a 40 e 46, 47 e 49 a 56. Esta
precisão permite concluir que, ao contrário daquilo que o autor afirma nas suas
alegações de recurso, não está provado que ele tenha ficado a sofrer de
tetraparesia espástica (tremores grosseiros dos membros superiores e
inferiores) em consequência do acidente dos autos. Tal patologia é referida no
relatório da primeira perícia e, com reservas sobre o seu diagnóstico sem a
realização de novos exames clínicos, em sede de esclarecimentos prestados por
escrito pelo médico que realizou a primeira perícia, não o é no relatório da
segunda perícia e, aspecto obviamente decisivo, não consta do elenco das
sequelas cuja verificação foi julgada provada pelo tribunal a quo.
As sequelas que efectivamente se
provaram assumem uma gravidade significativa, reconhecida na sentença
recorrida, mas não são suficientes para concluir que, em consequência delas, o
autor passou a necessitar do auxílio de terceira pessoa para a execução das
suas tarefas quotidianas durante o resto da sua vida. Precisemos, então, este
conceito, que o autor, nas suas alegações de recurso, pretende ampliar muito
para lá do razoável.
De recorrer ao auxílio de outras pessoas
para a realização de determinadas tarefas em nosso proveito, todos nós
necessitamos no dia a dia, por variadas razões, nomeadamente porque não
possuímos conhecimentos, meios técnicos ou capacidade física para a sua execução
ou porque esta última requer o dispêndio de tempo de que não dispomos.
Quando, em sede de ressarcimento de
danos patrimoniais decorrentes de uma situação de incapacidade, temporária ou
definitiva, se conclui que o lesado necessita do auxílio de terceira pessoa para
execução das suas tarefas quotidianas, tem-se em vista aquelas situações, especialmente
graves, em que o lesado ficou com a sua capacidade de tal forma limitada que
nem sequer os actos mais pessoais do dia a dia ele consegue executar. Exige-se
a incapacidade do lesado para a prática de actos básicos como alimentar-se, cuidar
da higiene do seu corpo, vestir-se e despir-se, calçar-se e descalçar-se, utilizar
uma casa de banho, locomover-se e/ou outros que, fora de uma situação de
incapacidade, as pessoas executam elas próprias, sem a intervenção de
terceiros. Perante incapacidades com tal grau de gravidade, então sim, tem
justificação o recurso ao auxílio de terceira pessoa para a realização de actos
da vida diária do lesado.
Sendo assim, não faz sentido, como o
autor parece pretender, que se lhe reconheça o direito a uma indemnização
destinada a suportar o salário de um motorista, a tempo parcial, que assegure
as suas deslocações de automóvel, por exemplo para ir às compras. Apesar de ter
ficado provado que, em consequência de sequelas decorrentes do acidente dos
autos, mais precisamente da limitação da mobilidade da coluna cervical (cfr. os
n.ºs 39 e 54), o autor ficou incapacitado para exercer a condução, a deslocação
em automóvel não integra aquele núcleo de actos essenciais do dia a dia que, se
o próprio não pode assegurar, têm de ser executados por terceiro, sob pena de
ser posta em causa a satisfação de uma necessidade básica do lesado. A incapacidade
com que o autor ficou para o exercício da condução constitui um dano
indemnizável, quer na vertente patrimonial, quer na vertente não patrimonial,
mas não justifica a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização destinada à
contratação de um motorista, ou de pessoa que desempenhe tal função
cumulativamente com outras, ainda que a tempo parcial.
Feita a precisão, que se impunha, sobre
as sequelas invocadas pelo autor em sede de recurso e sobre o conceito de
necessidade de auxílio de terceira pessoa para a vida diária, e concluindo-se,
como decorrência dessa precisão, que não existe contradição entre as sequelas
que o tribunal a quo julgou provadas
e a decisão de julgar não provado que o autor necessite de auxílio de terceira
pessoa para a vida diária, é altura de analisar se os meios de prova invocados
no recurso que vimos apreciando impõem a prova do conteúdo das alíneas c) e d)
da matéria de facto não provada. Esses meios de prova são, recordamos, o
relatório da primeira perícia médica, o depoimento da testemunha PP, irmã do
autor, e as declarações de parte deste último. Paralelamente, o autor procura
descredibilizar os esclarecimentos verbalmente prestados na audiência final
pelo médico que realizou a segunda perícia, HH.
O relatório da primeira perícia médica,
ao mesmo tempo que refere que o autor apresentava marcha normal, sem apoio nem
claudicação, avança, de forma aparentemente contraditória, a hipótese de o
mesmo, como sequela do acidente, ter adquirido tetraparesia espástica (cujos
sintomas descreve como sendo “tremores grosseiros dos membros superiores e
inferiores”), com “marcha possível” sem alterações de esfíncteres. Com base em
exame neurológico, o perito concluiu pela existência de “sequelas de
traumatismo vertebro medular (clínica de
Stiffman sind like) com grau de incapacidade importante para a sua vida de
relação”. Nesse pressuposto, o perito avaliou o défice funcional permanente da
integridade físico-psíquica do autor em 65 pontos e concluiu que este necessita
de apoio de terceira pessoa a tempo parcial.
O médico que realizou a primeira perícia
prestou, posteriormente, esclarecimentos por escrito. Afirmou, então, que:
«(…)
atenta a dificuldade de enquadramento das sequelas apuradas nomeadamente na sua
caracterização do ponto de vista neurológico (onde se inclui alguma aparente
contradição clínico imagiológica), foi solicitado exame complementar de
NEUROLOGIA, para melhor avaliação pericial.
No
referido exame complementar identifica-se o diagnóstico de “Sequelas de
traumatismo vertebro medular (clínica de Stiffman sind like) com grau de
incapacidade importante para a sua vida de relação”
Apesar
de não quantificado mas apenas qualificado o quadro sequelar no exame
neurológico, foi nossa intenção acrescido do exame clínico efectuado o seu
enquadramento na TNI anexo II tendo em conta o ponto 7 das instruções gerais.
Relativamente
ao enquadramento no capítulo mencionado foi tido em conta sobretudo as
limitações das Avd e da força muscular decorrentes da espasticidade
objectivada.
Por
fim e tendo em conta a efectiva dificuldade e porventura subjectividade
decorrente do próprio diagnóstico como doença rara e de etiologia habitualmente
não traumática, admito a ponderação de execução de novos exames complementares
para melhor esclarecimento do quadro sequelar, nomeadamente novo exame neurológico,
com diagnóstico e enquadramento na TNI e repetição de electromiografia e RNM da
coluna cervical.»
Ou seja, logo perante estes dois meios
de prova, não é possível concluir, com um mínimo de segurança, que, em
consequência do acidente dos autos, o autor tenha adquirido a “doença rara e de etiologia habitualmente
não traumática” que o primeiro perito médico começou por lhe diagnosticar.
Após a realização dos exames clínicos
sugeridos pelo primeiro perito, teve lugar a segunda perícia médica, na qual a hipótese
de o autor ter adquirido tetraparesia espástica em consequência do acidente dos
autos foi peremptória e fundadamente afastada. O perito avaliou, assim, o
défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do autor em 27,325
pontos e concluiu que este não necessita de ajuda de terceira pessoa.
Nos esclarecimentos que prestou na
audiência final – que ouvimos na totalidade –, o médico que realizou a segunda
perícia justificou convincentemente as conclusões expressas no relatório por si
elaborado, salientando, nomeadamente, que o autor sofreu fracturas cervicais,
mas sem qualquer compromisso neurológico. Também a exclusão da necessidade do
auxílio de terceira pessoa no dia a dia do autor foi convincentemente
justificada, harmonizando-se com aquilo que a propósito acima dissertámos sobre
o tema.
Refira-se, finalmente, que as razões
invocadas pelo autor nas conclusões 15 e 17 para tentar descredibilizar a
segunda perícia não produzem tal efeito. O que é referido na conclusão 15
poderá demonstrar, quando muito, desconhecimento de matérias jurídicas pelo
perito, o que não é relevante para a questão de saber se, em consequência do
acidente dos autos, o autor ficou a sofrer de tetraparesia espástica e, por
isso, necessita do apoio de terceira pessoa para a execução das tarefas básicas
do dia a dia, que é aquela que, na realidade, nos interessa. Acerca desta
matéria, que é aquela sobre a qual o médico possui os conhecimentos especiais
que justificam a sua intervenção no processo na qualidade de perito, não
restaram dúvidas, nem ao tribunal a quo,
nem ao tribunal ad quem. No que
concerne à questão suscitada na conclusão 17, que também nada tem a ver com o
afastamento do diagnóstico de tetraparesia espástica e da necessidade do apoio
de terceira pessoa para a execução das tarefas básicas do dia a dia, é evidente
a falta de razão do autor, pois em momento algum do seu depoimento o perito
confundiu a função sexual com a função reprodutora. Basta ouvir o seu depoimento
com atenção e isenção.
Acompanhamos a caracterização do
depoimento da testemunha PP, irmã do autor, que foi feita pelo tribunal a quo. Esta testemunha, cujo depoimento
também ouvimos na íntegra, relatou as sequelas com que o autor ficou, mas
procurou sempre amplificá-las. Tendo em conta o quadro objectivo resultante da
segunda perícia e dos esclarecimentos prestados pelo perito que a realizou,
fundados em exames clínicos rigorosos, como é o caso de uma ressonância magnética
à coluna cervical, não há justificação para, por exemplo, o autor sentir
dificuldades na marcha ou limitações no uso das mãos tão acentuadas como aquela
testemunha relatou. Se actualmente existirem, não é possível, atentos os meios
de prova que vimos analisando, estabelecer um nexo de causalidade entre o
acidente dos autos, ocorrido em 17.03.2015, e as limitações que a testemunha PP
descreveu.
As declarações de parte do autor, que
igualmente ouvimos na totalidade, também merecem pouca credibilidade e de forma
alguma põem em causa o acerto das conclusões da segunda perícia.
Saliente-se, por fim, que nem sequer o
autor ou a testemunha PP afirmaram que o primeiro necessita da ajuda de
terceira pessoa para executar as tarefas básicas do dia a dia tal como acima as
descrevemos. Se o tivessem feito, não mereceriam a menor credibilidade, atentos
os dados objectivos resultantes dos exames clínicos e da segunda perícia médica
a que o autor foi submetido, os quais, como referimos, afastam, sem margem para
dúvidas, a ideia de que a referida necessidade se verifica.
Concluindo, o tribunal a quo não cometeu qualquer erro no
julgamento da matéria de facto, pelo que inexiste fundamento para alterar a
decisão sobre ela proferida no que concerne ao conteúdo das alíneas c) e d) dos
factos não provados.
2 – Repercussão de uma eventual
alteração da decisão sobre a matéria de facto no montante indemnizatório:
Esta questão fica prejudicada pela
manutenção da decisão da matéria de facto sobre os pontos que o autor pretendia
ver alterados.
O recurso interposto pelo autor deverá,
pois, ser julgado improcedente.
3 – Montante da indemnização devida pelo
dano patrimonial futuro decorrente do dano
biológico:
A ré insurge-se contra a fixação desta
parcela da indemnização em € 150.000, considerando que o devia ter sido em €
100.000.
Quase toda a argumentação expendida pela
ré no sentido de sustentar a sua pretensão resume-se a generalidades, sendo realçada,
nomeadamente, a disparidade dos critérios seguidos pelos tribunais na
quantificação das indemnizações pelas consequências patrimoniais e não
patrimoniais do denominado dano biológico. Concordamos que é desejável a maior uniformidade
possível de soluções ao nível da jurisprudência, mas, como facilmente se
compreende, está fora das capacidades, quer do tribunal a quo, quer deste tribunal ad
quem, levar a cabo tal tarefa. O melhor que podemos fazer é decidir em
conformidade com a lei e a nossa consciência e tendo em consideração a
jurisprudência existente sobre casos semelhantes. Diga-se, a propósito, que,
para decidir, o tribunal a quo teve
em consideração diversa jurisprudência, que discriminou na sentença recorrida,
pelo que não pode dizer-se que tenha decidido arbitrariamente, sem qualquer
ponto de referência.
Nas conclusões VIII e XIV, a ré concretiza
as razões da sua discordância relativamente ao montante indemnizatório fixado
na sentença recorrida pelas consequências patrimoniais futuras do dano
biológico sofrido pelo autor. Na conclusão VIII, enuncia aquela que, no seu
entendimento, deve ser a metodologia a seguir para a fixação daquela
indemnização: «em primeiro lugar, deve
atender-se aos pressupostos legais determinados em função do caso concreto,
isto é, idade do lesado, tempo de vida activa e tempo de vida provável, o seu
modo de vida (vencimento, nomeadamente) e as repercussões que as lesões e
sequelas têm a esse nível); em segundo lugar, determinar-se-á um valor, ainda
que como mera referência; em terceiro lugar, pondera-se o caso concreto, e
“ajusta-se” o valor encontrado, segundo os juízos de equidade». Na
conclusão XIV invoca a idade do autor à data do acidente, o tempo previsível de
vida activa que tem pela frente (desde a data do acidente) e o tempo provável
de vida e, nas conclusões XV e XIX, conclui, fazendo apelo ao critério da
equidade e ao princípio da igualdade, que a parcela indemnizatória em discussão
não poderá ser superior a € 100.000.
Importa ter em consideração que, na data
em que terminou o período de repercussão temporária na actividade profissional
total, o autor tinha 59 anos de idade (faria 60 anos dali a menos de 5 meses),
pelo que tinha pela frente, previsivelmente, cerca de 19 anos de vida, dos
quais cerca de 10 anos de vida activa. Devido às sequelas com que ficou em
consequência do acidente dos autos, o autor ficou totalmente impossibilitado de
exercer a sua profissão de motorista. Ainda que se tome como ponto de
referência apenas o valor actual do salário mínimo nacional, o autor deixará de
auferir salários num montante global de cerca de € 100.000 até ao termo do seu
período previsível de vida activa. Assim atingimos o valor que a ré pretende
que seja atribuído.
Porém, as consequências patrimoniais
futuras do dano biológico não se resumem às perdas salariais durante o período
previsível de vida activa do lesado. A importação do conceito de dano biológico
pelo Direito Português visou precisamente superar essa visão estreita do dano
futuro e corresponder às novas exigências de tutela da personalidade.
O artigo 564.º, n.º 2, 1.ª parte, do
Código Civil, estabelece que, na fixação da indemnização, pode o tribunal
atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis.
Ora, além das perdas salariais, é
previsível que, em consequência da diminuição significativa da duração da sua
carreira contributiva, o autor venha a ser fortemente penalizado aquando da
fixação da sua pensão de reforma, o que o prejudicará até ao final da sua vida.
Por outro lado, em consequência das
limitações físicas que ficaram provadas, o autor terá, certamente, que recorrer
à prestação de serviços por parte de terceiros com frequência superior àquela
com que o faria se não tivesse aquelas limitações. Como concluímos aquando da
apreciação do recurso interposto pelo autor, tais limitações não justificam a
contratação, ainda que a tempo parcial, de uma pessoa que auxilie o autor a
executar tarefas básicas. Todavia, são suficientemente significativas para
gerar a necessidade de o autor recorrer à contratação de serviços de terceiros
que ele próprio poderia executar se não tivesse ficado com as sequelas
descritas na matéria de facto provada. Também aqui, estamos perante danos
patrimoniais futuros, resultantes do dano biológico, cuja verificação é, à luz
das regras da experiência, previsível.
A sentença recorrida modera o montante
indemnizatório invocando que «o
recebimento imediato da totalidade do capital indemnizatório poderá, se não for
corrigido, propiciar um enriquecimento injustificado à custa do lesante».
Neste ponto, não acompanhamos o tribunal a
quo. A afirmação em causa constitui um lugar-comum que se encontra
disseminado pela jurisprudência sobre a temática que nos ocupa, mas, se em
tempos poderá ter tido fundamento, isso deixou, há muito, de acontecer. Tal
afirmação tem como pressuposto que o capital produza rendimento líquido, ou
seja, superior à taxa de inflação após o pagamento de impostos, comissões
bancárias e/ou outras despesas a cargo do titular. Apenas nesta hipótese a
antecipação do pagamento da indemnização relativamente ao momento da produção
do dano futuro implicaria um benefício ilegítimo para o lesado, que receberia,
além da indemnização, o referido rendimento líquido sem causa justificativa.
Porém, a realidade que se nos apresenta é completamente diferente da descrita.
Que saibamos, nenhuma instituição financeira a operar em Portugal oferece, há
muito tempo, produtos financeiros sem risco associado cujas taxas de juro
proporcionem rendimento líquido, no sentido acima referido. Basta a taxa de
inflação que se vem verificando para impedir uma apreciação efectiva do capital
depositado. Muito pelo contrário, o capital deprecia-se com o decurso do tempo,
pois a taxa de inflação é superior à taxa de juro dos depósitos bancários e de outras
aplicações financeiras correntes. Mais, a instabilidade que, nos anos mais
recentes, se tem verificado no sistema bancário, determina que nem sequer a
segurança do próprio capital depositado esteja absolutamente garantida. Nestas
circunstâncias, não há fundamento para entender que a antecipação do pagamento
da indemnização correspondente ao dano futuro relativamente à produção deste
proporcione algum benefício ao lesado nem, logicamente, para a dedução de
qualquer parcela da indemnização a esse título.
Por todo o exposto, consideramos que o
montante de € 150.000 fixado na sentença recorrida a título de indemnização
pelas consequências patrimoniais do dano biológico tem inteira justificação de
acordo com o critério de equidade estabelecido no artigo 566.º, n.º 3, do
Código Civil, devendo ser mantido.
4 – Montante da indemnização devida
pelos danos não patrimoniais:
A ré insurge-se contra a fixação, pelo
tribunal a quo, de uma indemnização
por danos não patrimoniais no montante de € 60.000. No seu entendimento, tal
indemnização deveria cifrar-se em € 35.000.
Nos termos do artigo 496.º, n.º 4, 1.ª
parte, do Código Civil, a indemnização por danos não patrimoniais deve ser fixada
de acordo com a equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no
artigo 494.º.
A gravidade dos danos não patrimoniais
sofridos pelo autor justifica o montante da indemnização fixada pelo tribunal a quo. Avultam, na avaliação que
fazemos, os seguintes factos: submissão do autor, com 57 anos de idade à data
do acidente, a quatro intervenções cirúrgicas, duas das quais à coluna
vertebral; períodos de imobilização; uso de colar cervical durante três meses;
submissão a vinte sessões de fisioterapia; sequelas graves ao nível da coluna
cervical, com dores e significativa limitação de movimentos, que incapacitaram
o autor, nomeadamente, de voltar a conduzir veículos automóveis; grande
sofrimento psicológico motivado, nomeadamente, por ter ficado definitivamente
incapacitado de desenvolver a sua profissão de motorista e outras actividades
que lhe proporcionavam prazer. Perante este quadro, uma indemnização por danos
patrimoniais no montante de € 60.000 tem plena justificação.
Concluindo, não há razão para alterar a
sentença recorrida, devendo também o recurso interposto pela ré ser julgado
improcedente.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar improcedentes ambos os recursos, confirmando-se a sentença
recorrida.
Cada
uma das partes suportará as custas do recurso por si interposto.
Notifique.
*
Évora, 15.09.2022
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta