quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 15.09.2022

Processo n.º 241/17.1T8FAR.E1

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Sumário:

1 – Para, em sede de ressarcimento de danos patrimoniais decorrentes de uma situação de incapacidade, temporária ou definitiva, se poder concluir que o lesado necessita do auxílio de terceira pessoa para a execução das suas tarefas quotidianas, deve verificar-se uma situação, especialmente grave, em que aquele ficou com a sua capacidade de tal forma limitada que nem sequer os actos mais básicos e pessoais do dia a dia consegue executar sem aquele auxílio.

2 – As consequências patrimoniais futuras do dano biológico não se resumem às perdas salariais que o lesado previsivelmente sofrerá.

3 – Justifica-se a fixação de uma indemnização no montante de € 60.000 por danos não patrimoniais perante um quadro factual que assim se resume: submissão do lesado, com 57 anos de idade à data da ocorrência do facto lesivo, a quatro intervenções cirúrgicas, duas das quais à coluna vertebral; períodos de imobilização; uso de colar cervical durante três meses; submissão a vinte sessões de fisioterapia; sequelas graves ao nível da coluna cervical, com dores e significativa limitação de movimentos, que incapacitaram o lesado, nomeadamente, de voltar a conduzir veículos automóveis; grande sofrimento psicológico motivado, nomeadamente, por ter ficado definitivamente incapacitado de desenvolver a sua profissão de motorista e outras actividades que lhe proporcionavam prazer.

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Nesta acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, proposta por GG contra KK – Companhia de Seguros, S.A., foi proferida sentença cujo dispositivo é, na parte que nos interessa, o seguinte:

«Por todo o exposto, julga-se a acção parcialmente procedente, porque parcialmente provada, e, em consequência, decido:

A) Condenar a ré/seguradora KK – Companhia de Seguros, S.A., a pagar ao autor os seguintes montantes:

- O montante de € 2 121,10 (dois mil, cento e vinte e um euros e dez cêntimos), a título de perdas salariais;

- O montante de € 150 000,00 (cento e cinquenta mil euros), a título de dano patrimonial futuro pela perda de capacidade de rendimento, denominado “dano biológico”;

- O montante de € 4 138,01 (quatro mil, cento e trinta e oito euros e um cêntimo), pela aquisição de cama, colchão e poltrona;

- O montante de € 60 000,00 (sessenta mil euros), a título de danos não patrimoniais.

Tudo, no valor global de € 216 259,11 (duzentos e dezasseis mil, duzentos e cinquenta e nove mil e onze cêntimos) sobre o qual deverá ser descontado o montante já adiantado (€ 24 800,00), bem como os valores pagos no âmbito dos autos apensos.

B) Relegar para execução de sentença a liquidação dos montantes a que se referem as consultas e tratamentos de que o autor irá necessitar ao longo da sua vida, bem como o custo das deslocações que terá de fazer e dos medicamentos que terá de tomar;

C) Sobre as quantias aludidas supra atinentes a perdas salariais e despesas com aquisição de cama articulada, colchão e poltrona os juros contar-se-ão, à taxa legal, a partir da citação da ré para a acção até integral pagamento;

D) Sobre as demais quantias, os juros são devidos apenas a partir da data desta decisão;

E) Absolver a ré/seguradora do demais peticionado.»

Ambas as partes recorreram da sentença.

As conclusões do recurso interposto pelo autor são as seguintes:

(…)

As conclusões do recurso interposto pela ré são as seguintes:

(…)

Autor e ré apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela parte contrária.

Os recursos foram admitidos.

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Questões a decidir:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto no que concerne à necessidade de o autor, em consequência das sequelas com que ficou, recorrer ao auxílio, a tempo parcial e até à sua morte, de terceira pessoa para a realização de diversos actos da sua vida diária;

2 – Repercussão de uma eventual alteração da decisão sobre a matéria de facto no montante indemnizatório;

3 – Montante da indemnização devida pelo dano patrimonial futuro decorrente do dano biológico;

4 – Montante da indemnização devida pelos danos não patrimoniais.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – A responsabilidade civil inerente à circulação do veículo com a matrícula XX-AT-XX encontra-se transferida para a ré, através da apólice n.º (…).

2 – O autor nasceu em 04.12.1957.

3 – No dia 17.03.2015, pelas 14 horas e 30 minutos, na Avenida (…), em (…), ocorreu um sinistro em que foram intervenientes os veículos com a matrícula XX-MI-XX e a matrícula XX-AT-XX.

4 – O MI, um motociclo, era conduzido pelo autor.

5 – O AT, um automóvel ligeiro de passageiros, era conduzido por FF.

6 – O autor circulava ao lado do AT mas em vias de trânsito diferentes, quando o condutor do AT muda de via à direita, atento o seu sentido de marcha.

7 – O autor que circulava à direita do AT foi assim embatido por este na sua via, dando-se a colisão entre a lateral direita do AT e a lateral esquerda do MI.

8 – Após a colisão o autor foi projectado para o pavimento, ficando gravemente ferido.

9 – Pelo que foi assistido no local e transportado de urgência para o Centro Hospitalar do Algarve.

10 – Foi preenchida a declaração amigável de acidente automóvel.

11 – O autor participou o respectivo sinistro à ré, sendo que esta veio a assumir a responsabilidade pelo mesmo.

12 – E como tal, indemnizou o autor pelos danos materiais, mormente a reparação da viatura e os bens que transportava, bem como efectuou um adiantamento de € 24.800,00 (vinte e quatro mil e oitocentos euros) a título da indemnização final.

13 – Tendo ainda proposto indemnizar o autor, por todos os danos sofridos, e já deduzido o valor adiantado, em € 95.200,00 (noventa e cinco mil e duzentos euros), valor este que o autor não aceitou.

14 – Após o sinistro o autor deu entrada nas urgências do Centro Hospitalar do Algarve, EPE, onde fez exames de diagnóstico.

15 – Do sinistro resultou um traumatismo cervical com fractura luxação C2-C3 e C4, uma fractura da cabeça do perónio e luxação do 1.º dedo da mão direita, traumatismo facial e traumatismo craniano sem perda de conhecimento.

16 – Ali foi sujeito a intervenção cirúrgica, artrodese com parafusos pediculados C2-C3-C4-C5.

17 – Fez imobilização com tala de Zimmer.

18 – No dia 19.03.2015 o autor foi transferido para o Hospital Santa Maria em Lisboa, onde ficou internado, para ser sujeito a outra intervenção cirúrgica.

19 – Dada a complexidade da fractura luxação C2-C3, foi realizada ressonância magnética da coluna cervical sendo verificada trombose aguda da artéria vertebral esquerda.

20 – O autor foi colocado em tracção em marquesa de Stryker.

21 – No dia 20.03.2015, foi operado com redução cruenta com 2 fios k no 1.º dedo da mão direita.

22 – Foi posteriormente avaliado em neurologia e sugerido tratamento profilático de tromboembolismo na trombose de artéria esquerda, medicado diariamente.

23 – Durante o período de recuperação foi decidido a transferência do autor para o hospital de residência e devido à demora da RM ao joelho direito.

24 – Começou a deambular com andarilho desde 26.03.2015 e retirou os agrafos dia 03.04.2015.

25 – Manteve o colar cervical durante 3 meses.

26 – Passou a ser seguido no hospital de residência.

27 – A 21.04.2015 o autor referia quadro de cefaleias, pelo que ficou novamente internado para exames de diagnóstico.

28 – Assim ficou internado e foi novamente operado para extração dos fios k do 1.º dedo da mão direita.

29 – Após a alta, observado em 05.05.2015, o autor referia dores na mão direita e ombro esquerdo.

30 – Dada a continuação das dores e limitações ao nível cervical, a 26.08.2015 o autor é novamente internado no Hospital de Santa Maria em Lisboa.

31 – Por conseguinte voltou a ser operado em revisão da artrodese com substituição dos parafusos pediculares C-2.

32 – Teve alta dia 30.08.2015, medicado e com encaminhamento para consulta de ortopedia.

33 – A 07.09.2015 o autor fez penso e retirou os agrafos.

34 – Em consulta de 15.09.2015 o autor mantinha queixas álgicas.

35 – Foi sendo acompanhado em consultas de ortopedia no Hospital de Santa Maria em Lisboa.

36 – Em 10.11.2015 inicia plano de recuperação com medicina física de reabilitação, tendo realizado 20 sessões de fisioterapia.

37 – Porém, face ao agravamento das queixas álgicas aquele tratamento viria a ser suspenso.

38 – Para esclarecimento das queixas o autor repetiu os exames de diagnóstico, como EMG e TAC Cervical que revelaram alteração estrutural do corpo de C3 e desvios na apófise odontoide anterior e direita.

39 – Os serviços clínicos da ré efectuaram consulta de avaliação de dano corporal ao autor em 06.07.2016, confirmando que o mesmo apresenta pouca mobilidade em flexão e extensão da coluna cervical a 30º, face a artrodese e de C2-C3-C4-C5, sendo-lhe atribuída uma IPP de 11 pontos com incapacidade absoluta para o trabalho habitual de motorista e fixada a data da consolidação médico-legal em 06.07.2016.

40 – O autor foi presente a consulta de mobilidade no Centro de Reabilitação de Alcoitão em 25.07.2016.

41 – À data do sinistro o autor prestava funções para o Centro de Apoio aos Sem Abrigo com aquela categoria ao abrigo de um contrato de emprego-inserção promovido pelo IEFP, cujo terminus estava previsto para 06.07.2015.

42 – Como contrapartida da actividade desenvolvida o autor recebia uma bolsa de ocupação no valor de € 419,22 (quatrocentos e dezanove euros e vinte e dois cêntimos), acrescido de subsídio de alimentação no valor diário de € 5,00 (cinco euros)

43 – Valor que deixou de auferir desde o mês de março de 2015.

44 – Não recebendo qualquer subsídio por parte da segurança social.

45 – À data do sinistro o autor era motorista de veículos de mercadorias.

46 – Apesar da alta médica o autor mantém dores cervicais.

47 – Como causa das sequelas do sinistro o autor necessita de cama articulada, colchão anti-escaras e poltrona de descanso relax, próprios para pessoas com limitações ao nível da coluna cervical.

48 – Despesa que, à data de 02.09.2016, se mostrava orçamentada em € 4.138,01 (quatro mil, cento e trinta e oito euros e um cêntimo).

49 – O autor sentiu dores intensas no corpo no pós-acidente com o impacto do veículo, nomeadamente na cervical, na face e na mão direita.

50 – O autor viu-se e vê-se confrontado durante aquele período, todos os dias, com o mau estar causado pelas dores que sentia/sente.

51 – Apresentou e apresenta temperamentos de mau humor, como consequência da condição física.

52 – Sendo que, o autor é uma pessoa que gosta de conduzir e realizar passeios e viagens de automóvel, o que após o sinistro e por causa deste não pode mais fazer, acarretando desgosto.

53 – Depois do sinistro e devido às sequelas do mesmo o autor não consegue fazer ginástica e corrida, o que lhe traz desgosto e tristeza.

54 – O autor movimenta a cabeça, com dificuldade, o que interfere com qualquer posição que adopte, não conseguindo ficar longos períodos sentado ou na mesma posição, situação que acarreta para o autor tristeza e frustração.

55 – Acrescem incómodos, dores e preocupações em deslocações a consultas e exames.

56 – Como consequência do sinistro, do mau humor do autor, das dores que sentia e na pessoa deprimente e desgostosa que se tornou, bem como das condições financeiras, aquele separou-se da companheira com a qual vivia em união de facto.

57 – Realizou-se um 1.º relatório pericial (exame realizado em 15.07.2019), no âmbito do qual foram consignadas as seguintes lesões relacionáveis com o evento:

- Raquis: cicatriz operatória vertical da região posterior cervical com 20 cm com anquilose cervical e aparente tetraparesia espática (tremores grosseiros dos membros superiores e inferiores), com marcha possível sem alterações de esfíncteres;

- Membro superior direito: rigidez acentuada da 1.ª articulação metacarpo falângica em flexão.

58 – No mesmo foram formuladas as seguintes conclusões:

- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 25.07.2016;

- O período de défice funcional temporário total (entre 17.03.2015 e 10.11.2015) foi fixado num período de 239 (duzentos e trinta e nove) dias;

- O período de défice funcional temporário parcial (entre 11.11.2015 e 25.07.2016) é fixável em 258 (duzentos e cinquenta e oito) dias;

- O período de repercussão temporária na actividade profissional total (entre 17.03.2015 e 25.07.2016) é fixável em 497 (quatrocentos e noventa e sete) dias;

- O quantum doloris fixável no grau 6/7, de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados;

- Considerando o dano permanente resultante de tetraparesia espática sem alterações de esfíncteres (síndrome do homem rígido “Stiffman sinfrom like” o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 65 (sessenta e cinco) pontos, perspectivando-se a existência de dano futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico com espasticidade progressiva, o que pode obrigar a uma futura revisão do caso;

- As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional incompatíveis com o exercício da actividade profissional habitual, bem como outras dentro da sua área de formação técnico-profissional;

- O dano estético permanente é fixável no grau 6/7, de gravidade crescente, tendo em conta a dificuldade na marcha, a(s) cicatriz(es), a(s) deformidades decorrentes da espasticidade;

- A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer é fixável no grau 4/7, de gravidade crescente, tendo em conta a impossibilidade de corrida (prática desportiva amadora);

- Dependências permanentes de ajudas:

· Tratamentos médicos regulares (correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar retrocesso ou agravamento das sequelas – ex. fisioterapia); neste caso, avaliação periódica de neurologia e fisioterapia.

· Necessidade de apoio de 3.ª pessoa a tempo parcial.

59 – O perito médico que subscreveu o referido relatório prestou os seguintes esclarecimentos:

«(…)

No referido exame complementar identifica-se o diagnóstico de “Sequelas de traumatismo vertebro medular (clínica de Stiffman sind like), com grau de incapacidade importante para a sua vida de relação.

(…)

Relativamente ao enquadramento no capítulo mencionado foi tido em conta sobretudo as limitações da Avd e da força muscular decorrentes da espasticidade objectivada. Por fim e tendo em conta a efectiva dificuldade e porventura subjectividade decorrente do próprio diagnóstico como doença rara e de etiologia habitualmente não traumática, admito a ponderação de execução de novo exame neurológico, com diagnóstico e enquadramento na TNI e repetição de eletromiografia e RNM da coluna cervical.»

60 – Foi realizada 2.ª perícia, com base em relatórios de RM da coluna cervical de 20.07.2020 e outros exames radiológicos do hospital de Faro, sendo obtido relatório pericial (exame realizado em 08.04.2021), donde resulta que o autor apresenta as seguintes sequelas relacionáveis com o evento:

- Raquis: cicatriz operatória vertical da região posterior cervical com 20 cm com anquilose cervical, rigidez e grande limitação na mobilidade, tanto em rotação como flexão/extensão;

- Membro superior direito: rigidez acentuada da 1.ª articulação MF da mão em flexão, mas com mobilidade preservada;

- Não se objectiva alterações neurológicas, não existe algodistrofia, não existe assimetria nos membros, que indiciem atrofia muscular ou deficits sensitivos.

61 – De acordo com o mesmo relatório considerou-se:

- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 25.07.2016;

- O período de défice funcional temporário total (entre 17.03.2015 e 10.11.2015) foi fixado num período de 239 (duzentos e trinta e nove) dias;

- O período de défice funcional temporário parcial (entre 11.11.2015 e 25.07.2016) é fixável em 258 (duzentos e cinquenta e oito) dias;

- O período de repercussão temporária na atividade profissional total (entre 17.03.2015 e 25.07.2016) é fixável em 497 (quatrocentos e noventa e sete) dias;

- O quantum doloris fixável no grau 5/7, de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados;

- Considerando o dano permanente resultante de rigidez articular cervical após artrodese cirúrgica, sem compromisso neurológico medular; radiculopatia cervical, com afectação de grupos musculares dos membros superiores; quadro psicológico pós-traumático; o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 27,325 (vinte e sete virgula trezentos e vinte e cinco) pontos, perspectivando-se a existência de dano futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico com eventual artrose e agravamento de lesão radicular e rigidez);

- As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional incompatíveis com o exercício da actividade profissional habitual, bem como outras dentro da sua área de formação técnico-profissional;

- O dano estético permanente é fixável no grau 4/7, de gravidade crescente, tendo em conta a(s) cicatriz(es) e a rigidez cervical;

- A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer é fixável no grau 4/7, de gravidade crescente, tendo em conta a impossibilidade de corrida, por rigidez cervical (prática desportiva amadora);

- Dependências permanentes de ajudas:

· Tratamentos médicos regulares (correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar retrocesso ou agravamento das sequelas – ex. fisioterapia); neste caso, probabilidade de necessitar de reavaliação médica de neurologia, psicologia e fisiatria;

· Necessidade de medicação sintomática;

· Não necessita de ajuda parcial de 3.ª pessoa.

Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:

A) Anteriormente ao contrato proporcionado pelo IEFP o autor auferia uma retribuição mensal de € 700,00 (setecentos euros).

B) Que, após a cessação daquele contrato, o autor iria auferir aquele rendimento mensal.

C) Que o autor se encontra impossibilitado de praticar os seguintes actos: calçar e descalçar; apertar e desapertar os sapatos; apertar o cinto das calças; coçar as costas; aspirar, limpar e arrumar a casa; fazer a cama ou trocar lençóis;

D) Necessitando da ajuda de terceira pessoa para o resto da sua vida;

E) Depois do sinistro e por causa das sequelas resultantes do sinistro, o autor deixou de ir à praia.

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1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto no que concerne à necessidade de o autor, em consequência das sequelas com que ficou, recorrer ao auxílio, a tempo parcial e até à sua morte, de terceira pessoa para a realização de diversos actos da sua vida diária:

O autor pretende que o conteúdo das alíneas c) e d) dos factos não provados seja julgado provado.

Está em causa a seguinte matéria de facto:

C) Que o autor se encontra impossibilitado de praticar os seguintes actos: calçar e descalçar; apertar e desapertar os sapatos; apertar o cinto das calças; coçar as costas; aspirar, limpar e arrumar a casa; fazer a cama ou trocar lençóis;

D) Necessitando da ajuda de terceira pessoa para o resto da sua vida.

Os meios de prova que, no entendimento do autor, impõem a alteração da decisão sobre a matéria de facto no sentido por si pretendido, são o relatório da primeira perícia médica, o depoimento da testemunha PP, sua irmã, e as suas próprias declarações de parte.

Sustenta o autor, por outro lado, que o tribunal a quo incorreu em contradição ao julgar não provada a sua necessidade de ser auxiliado por terceira pessoa, a tempo parcial, para o resto da sua vida, e provadas as sequelas como tal descritas na decisão sobre a matéria de facto.

Comecemos por analisar esta pretensa contradição. Tal análise permitirá, nomeadamente, precisar, por um lado, quais foram as sequelas efectivamente julgadas provadas pelo tribunal a quo e, por outro, o conceito de necessidade de auxílio de terceira pessoa para a vida diária.

Os n.ºs 57 a 61 limitam-se a julgar provado que os relatórios periciais e os esclarecimentos prestados sobre o primeiro deles têm o conteúdo aí descrito. Isto constitui uma evidência, tanto mais que o conteúdo dos referidos meios de prova não é coincidente. Aliás, a formulação dos referidos números da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto não deixa margem para qualquer dúvida a este respeito. As lesões, exames clínicos, consultas, tratamentos e sequelas que o tribunal a quo julgou efectivamente provados constam dos n.ºs 14 a 40 e 46, 47 e 49 a 56. Esta precisão permite concluir que, ao contrário daquilo que o autor afirma nas suas alegações de recurso, não está provado que ele tenha ficado a sofrer de tetraparesia espástica (tremores grosseiros dos membros superiores e inferiores) em consequência do acidente dos autos. Tal patologia é referida no relatório da primeira perícia e, com reservas sobre o seu diagnóstico sem a realização de novos exames clínicos, em sede de esclarecimentos prestados por escrito pelo médico que realizou a primeira perícia, não o é no relatório da segunda perícia e, aspecto obviamente decisivo, não consta do elenco das sequelas cuja verificação foi julgada provada pelo tribunal a quo.

As sequelas que efectivamente se provaram assumem uma gravidade significativa, reconhecida na sentença recorrida, mas não são suficientes para concluir que, em consequência delas, o autor passou a necessitar do auxílio de terceira pessoa para a execução das suas tarefas quotidianas durante o resto da sua vida. Precisemos, então, este conceito, que o autor, nas suas alegações de recurso, pretende ampliar muito para lá do razoável.

De recorrer ao auxílio de outras pessoas para a realização de determinadas tarefas em nosso proveito, todos nós necessitamos no dia a dia, por variadas razões, nomeadamente porque não possuímos conhecimentos, meios técnicos ou capacidade física para a sua execução ou porque esta última requer o dispêndio de tempo de que não dispomos.

Quando, em sede de ressarcimento de danos patrimoniais decorrentes de uma situação de incapacidade, temporária ou definitiva, se conclui que o lesado necessita do auxílio de terceira pessoa para execução das suas tarefas quotidianas, tem-se em vista aquelas situações, especialmente graves, em que o lesado ficou com a sua capacidade de tal forma limitada que nem sequer os actos mais pessoais do dia a dia ele consegue executar. Exige-se a incapacidade do lesado para a prática de actos básicos como alimentar-se, cuidar da higiene do seu corpo, vestir-se e despir-se, calçar-se e descalçar-se, utilizar uma casa de banho, locomover-se e/ou outros que, fora de uma situação de incapacidade, as pessoas executam elas próprias, sem a intervenção de terceiros. Perante incapacidades com tal grau de gravidade, então sim, tem justificação o recurso ao auxílio de terceira pessoa para a realização de actos da vida diária do lesado.

Sendo assim, não faz sentido, como o autor parece pretender, que se lhe reconheça o direito a uma indemnização destinada a suportar o salário de um motorista, a tempo parcial, que assegure as suas deslocações de automóvel, por exemplo para ir às compras. Apesar de ter ficado provado que, em consequência de sequelas decorrentes do acidente dos autos, mais precisamente da limitação da mobilidade da coluna cervical (cfr. os n.ºs 39 e 54), o autor ficou incapacitado para exercer a condução, a deslocação em automóvel não integra aquele núcleo de actos essenciais do dia a dia que, se o próprio não pode assegurar, têm de ser executados por terceiro, sob pena de ser posta em causa a satisfação de uma necessidade básica do lesado. A incapacidade com que o autor ficou para o exercício da condução constitui um dano indemnizável, quer na vertente patrimonial, quer na vertente não patrimonial, mas não justifica a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização destinada à contratação de um motorista, ou de pessoa que desempenhe tal função cumulativamente com outras, ainda que a tempo parcial.

Feita a precisão, que se impunha, sobre as sequelas invocadas pelo autor em sede de recurso e sobre o conceito de necessidade de auxílio de terceira pessoa para a vida diária, e concluindo-se, como decorrência dessa precisão, que não existe contradição entre as sequelas que o tribunal a quo julgou provadas e a decisão de julgar não provado que o autor necessite de auxílio de terceira pessoa para a vida diária, é altura de analisar se os meios de prova invocados no recurso que vimos apreciando impõem a prova do conteúdo das alíneas c) e d) da matéria de facto não provada. Esses meios de prova são, recordamos, o relatório da primeira perícia médica, o depoimento da testemunha PP, irmã do autor, e as declarações de parte deste último. Paralelamente, o autor procura descredibilizar os esclarecimentos verbalmente prestados na audiência final pelo médico que realizou a segunda perícia, HH.

O relatório da primeira perícia médica, ao mesmo tempo que refere que o autor apresentava marcha normal, sem apoio nem claudicação, avança, de forma aparentemente contraditória, a hipótese de o mesmo, como sequela do acidente, ter adquirido tetraparesia espástica (cujos sintomas descreve como sendo “tremores grosseiros dos membros superiores e inferiores”), com “marcha possível” sem alterações de esfíncteres. Com base em exame neurológico, o perito concluiu pela existência de “sequelas de traumatismo vertebro medular (clínica de Stiffman sind like) com grau de incapacidade importante para a sua vida de relação”. Nesse pressuposto, o perito avaliou o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do autor em 65 pontos e concluiu que este necessita de apoio de terceira pessoa a tempo parcial.

O médico que realizou a primeira perícia prestou, posteriormente, esclarecimentos por escrito. Afirmou, então, que:

«(…) atenta a dificuldade de enquadramento das sequelas apuradas nomeadamente na sua caracterização do ponto de vista neurológico (onde se inclui alguma aparente contradição clínico imagiológica), foi solicitado exame complementar de NEUROLOGIA, para melhor avaliação pericial.

No referido exame complementar identifica-se o diagnóstico de “Sequelas de traumatismo vertebro medular (clínica de Stiffman sind like) com grau de incapacidade importante para a sua vida de relação”

Apesar de não quantificado mas apenas qualificado o quadro sequelar no exame neurológico, foi nossa intenção acrescido do exame clínico efectuado o seu enquadramento na TNI anexo II tendo em conta o ponto 7 das instruções gerais.

Relativamente ao enquadramento no capítulo mencionado foi tido em conta sobretudo as limitações das Avd e da força muscular decorrentes da espasticidade objectivada.

Por fim e tendo em conta a efectiva dificuldade e porventura subjectividade decorrente do próprio diagnóstico como doença rara e de etiologia habitualmente não traumática, admito a ponderação de execução de novos exames complementares para melhor esclarecimento do quadro sequelar, nomeadamente novo exame neurológico, com diagnóstico e enquadramento na TNI e repetição de electromiografia e RNM da coluna cervical.»

Ou seja, logo perante estes dois meios de prova, não é possível concluir, com um mínimo de segurança, que, em consequência do acidente dos autos, o autor tenha adquirido a “doença rara e de etiologia habitualmente não traumática” que o primeiro perito médico começou por lhe diagnosticar.

Após a realização dos exames clínicos sugeridos pelo primeiro perito, teve lugar a segunda perícia médica, na qual a hipótese de o autor ter adquirido tetraparesia espástica em consequência do acidente dos autos foi peremptória e fundadamente afastada. O perito avaliou, assim, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do autor em 27,325 pontos e concluiu que este não necessita de ajuda de terceira pessoa.

Nos esclarecimentos que prestou na audiência final – que ouvimos na totalidade –, o médico que realizou a segunda perícia justificou convincentemente as conclusões expressas no relatório por si elaborado, salientando, nomeadamente, que o autor sofreu fracturas cervicais, mas sem qualquer compromisso neurológico. Também a exclusão da necessidade do auxílio de terceira pessoa no dia a dia do autor foi convincentemente justificada, harmonizando-se com aquilo que a propósito acima dissertámos sobre o tema.

Refira-se, finalmente, que as razões invocadas pelo autor nas conclusões 15 e 17 para tentar descredibilizar a segunda perícia não produzem tal efeito. O que é referido na conclusão 15 poderá demonstrar, quando muito, desconhecimento de matérias jurídicas pelo perito, o que não é relevante para a questão de saber se, em consequência do acidente dos autos, o autor ficou a sofrer de tetraparesia espástica e, por isso, necessita do apoio de terceira pessoa para a execução das tarefas básicas do dia a dia, que é aquela que, na realidade, nos interessa. Acerca desta matéria, que é aquela sobre a qual o médico possui os conhecimentos especiais que justificam a sua intervenção no processo na qualidade de perito, não restaram dúvidas, nem ao tribunal a quo, nem ao tribunal ad quem. No que concerne à questão suscitada na conclusão 17, que também nada tem a ver com o afastamento do diagnóstico de tetraparesia espástica e da necessidade do apoio de terceira pessoa para a execução das tarefas básicas do dia a dia, é evidente a falta de razão do autor, pois em momento algum do seu depoimento o perito confundiu a função sexual com a função reprodutora. Basta ouvir o seu depoimento com atenção e isenção.

Acompanhamos a caracterização do depoimento da testemunha PP, irmã do autor, que foi feita pelo tribunal a quo. Esta testemunha, cujo depoimento também ouvimos na íntegra, relatou as sequelas com que o autor ficou, mas procurou sempre amplificá-las. Tendo em conta o quadro objectivo resultante da segunda perícia e dos esclarecimentos prestados pelo perito que a realizou, fundados em exames clínicos rigorosos, como é o caso de uma ressonância magnética à coluna cervical, não há justificação para, por exemplo, o autor sentir dificuldades na marcha ou limitações no uso das mãos tão acentuadas como aquela testemunha relatou. Se actualmente existirem, não é possível, atentos os meios de prova que vimos analisando, estabelecer um nexo de causalidade entre o acidente dos autos, ocorrido em 17.03.2015, e as limitações que a testemunha PP descreveu.

As declarações de parte do autor, que igualmente ouvimos na totalidade, também merecem pouca credibilidade e de forma alguma põem em causa o acerto das conclusões da segunda perícia.

Saliente-se, por fim, que nem sequer o autor ou a testemunha PP afirmaram que o primeiro necessita da ajuda de terceira pessoa para executar as tarefas básicas do dia a dia tal como acima as descrevemos. Se o tivessem feito, não mereceriam a menor credibilidade, atentos os dados objectivos resultantes dos exames clínicos e da segunda perícia médica a que o autor foi submetido, os quais, como referimos, afastam, sem margem para dúvidas, a ideia de que a referida necessidade se verifica.

Concluindo, o tribunal a quo não cometeu qualquer erro no julgamento da matéria de facto, pelo que inexiste fundamento para alterar a decisão sobre ela proferida no que concerne ao conteúdo das alíneas c) e d) dos factos não provados.

2 – Repercussão de uma eventual alteração da decisão sobre a matéria de facto no montante indemnizatório:

Esta questão fica prejudicada pela manutenção da decisão da matéria de facto sobre os pontos que o autor pretendia ver alterados.

O recurso interposto pelo autor deverá, pois, ser julgado improcedente.

3 – Montante da indemnização devida pelo dano patrimonial futuro decorrente  do dano biológico:

A ré insurge-se contra a fixação desta parcela da indemnização em € 150.000, considerando que o devia ter sido em € 100.000.

Quase toda a argumentação expendida pela ré no sentido de sustentar a sua pretensão resume-se a generalidades, sendo realçada, nomeadamente, a disparidade dos critérios seguidos pelos tribunais na quantificação das indemnizações pelas consequências patrimoniais e não patrimoniais do denominado dano biológico. Concordamos que é desejável a maior uniformidade possível de soluções ao nível da jurisprudência, mas, como facilmente se compreende, está fora das capacidades, quer do tribunal a quo, quer deste tribunal ad quem, levar a cabo tal tarefa. O melhor que podemos fazer é decidir em conformidade com a lei e a nossa consciência e tendo em consideração a jurisprudência existente sobre casos semelhantes. Diga-se, a propósito, que, para decidir, o tribunal a quo teve em consideração diversa jurisprudência, que discriminou na sentença recorrida, pelo que não pode dizer-se que tenha decidido arbitrariamente, sem qualquer ponto de referência.

Nas conclusões VIII e XIV, a ré concretiza as razões da sua discordância relativamente ao montante indemnizatório fixado na sentença recorrida pelas consequências patrimoniais futuras do dano biológico sofrido pelo autor. Na conclusão VIII, enuncia aquela que, no seu entendimento, deve ser a metodologia a seguir para a fixação daquela indemnização: «em primeiro lugar, deve atender-se aos pressupostos legais determinados em função do caso concreto, isto é, idade do lesado, tempo de vida activa e tempo de vida provável, o seu modo de vida (vencimento, nomeadamente) e as repercussões que as lesões e sequelas têm a esse nível); em segundo lugar, determinar-se-á um valor, ainda que como mera referência; em terceiro lugar, pondera-se o caso concreto, e “ajusta-se” o valor encontrado, segundo os juízos de equidade». Na conclusão XIV invoca a idade do autor à data do acidente, o tempo previsível de vida activa que tem pela frente (desde a data do acidente) e o tempo provável de vida e, nas conclusões XV e XIX, conclui, fazendo apelo ao critério da equidade e ao princípio da igualdade, que a parcela indemnizatória em discussão não poderá ser superior a € 100.000.

Importa ter em consideração que, na data em que terminou o período de repercussão temporária na actividade profissional total, o autor tinha 59 anos de idade (faria 60 anos dali a menos de 5 meses), pelo que tinha pela frente, previsivelmente, cerca de 19 anos de vida, dos quais cerca de 10 anos de vida activa. Devido às sequelas com que ficou em consequência do acidente dos autos, o autor ficou totalmente impossibilitado de exercer a sua profissão de motorista. Ainda que se tome como ponto de referência apenas o valor actual do salário mínimo nacional, o autor deixará de auferir salários num montante global de cerca de € 100.000 até ao termo do seu período previsível de vida activa. Assim atingimos o valor que a ré pretende que seja atribuído.

Porém, as consequências patrimoniais futuras do dano biológico não se resumem às perdas salariais durante o período previsível de vida activa do lesado. A importação do conceito de dano biológico pelo Direito Português visou precisamente superar essa visão estreita do dano futuro e corresponder às novas exigências de tutela da personalidade.

O artigo 564.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil, estabelece que, na fixação da indemnização, pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis.

Ora, além das perdas salariais, é previsível que, em consequência da diminuição significativa da duração da sua carreira contributiva, o autor venha a ser fortemente penalizado aquando da fixação da sua pensão de reforma, o que o prejudicará até ao final da sua vida.

Por outro lado, em consequência das limitações físicas que ficaram provadas, o autor terá, certamente, que recorrer à prestação de serviços por parte de terceiros com frequência superior àquela com que o faria se não tivesse aquelas limitações. Como concluímos aquando da apreciação do recurso interposto pelo autor, tais limitações não justificam a contratação, ainda que a tempo parcial, de uma pessoa que auxilie o autor a executar tarefas básicas. Todavia, são suficientemente significativas para gerar a necessidade de o autor recorrer à contratação de serviços de terceiros que ele próprio poderia executar se não tivesse ficado com as sequelas descritas na matéria de facto provada. Também aqui, estamos perante danos patrimoniais futuros, resultantes do dano biológico, cuja verificação é, à luz das regras da experiência, previsível.

A sentença recorrida modera o montante indemnizatório invocando que «o recebimento imediato da totalidade do capital indemnizatório poderá, se não for corrigido, propiciar um enriquecimento injustificado à custa do lesante». Neste ponto, não acompanhamos o tribunal a quo. A afirmação em causa constitui um lugar-comum que se encontra disseminado pela jurisprudência sobre a temática que nos ocupa, mas, se em tempos poderá ter tido fundamento, isso deixou, há muito, de acontecer. Tal afirmação tem como pressuposto que o capital produza rendimento líquido, ou seja, superior à taxa de inflação após o pagamento de impostos, comissões bancárias e/ou outras despesas a cargo do titular. Apenas nesta hipótese a antecipação do pagamento da indemnização relativamente ao momento da produção do dano futuro implicaria um benefício ilegítimo para o lesado, que receberia, além da indemnização, o referido rendimento líquido sem causa justificativa. Porém, a realidade que se nos apresenta é completamente diferente da descrita. Que saibamos, nenhuma instituição financeira a operar em Portugal oferece, há muito tempo, produtos financeiros sem risco associado cujas taxas de juro proporcionem rendimento líquido, no sentido acima referido. Basta a taxa de inflação que se vem verificando para impedir uma apreciação efectiva do capital depositado. Muito pelo contrário, o capital deprecia-se com o decurso do tempo, pois a taxa de inflação é superior à taxa de juro dos depósitos bancários e de outras aplicações financeiras correntes. Mais, a instabilidade que, nos anos mais recentes, se tem verificado no sistema bancário, determina que nem sequer a segurança do próprio capital depositado esteja absolutamente garantida. Nestas circunstâncias, não há fundamento para entender que a antecipação do pagamento da indemnização correspondente ao dano futuro relativamente à produção deste proporcione algum benefício ao lesado nem, logicamente, para a dedução de qualquer parcela da indemnização a esse título.

Por todo o exposto, consideramos que o montante de € 150.000 fixado na sentença recorrida a título de indemnização pelas consequências patrimoniais do dano biológico tem inteira justificação de acordo com o critério de equidade estabelecido no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, devendo ser mantido.

4 – Montante da indemnização devida pelos danos não patrimoniais:

A ré insurge-se contra a fixação, pelo tribunal a quo, de uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 60.000. No seu entendimento, tal indemnização deveria cifrar-se em € 35.000.

Nos termos do artigo 496.º, n.º 4, 1.ª parte, do Código Civil, a indemnização por danos não patrimoniais deve ser fixada de acordo com a equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494.º.

A gravidade dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor justifica o montante da indemnização fixada pelo tribunal a quo. Avultam, na avaliação que fazemos, os seguintes factos: submissão do autor, com 57 anos de idade à data do acidente, a quatro intervenções cirúrgicas, duas das quais à coluna vertebral; períodos de imobilização; uso de colar cervical durante três meses; submissão a vinte sessões de fisioterapia; sequelas graves ao nível da coluna cervical, com dores e significativa limitação de movimentos, que incapacitaram o autor, nomeadamente, de voltar a conduzir veículos automóveis; grande sofrimento psicológico motivado, nomeadamente, por ter ficado definitivamente incapacitado de desenvolver a sua profissão de motorista e outras actividades que lhe proporcionavam prazer. Perante este quadro, uma indemnização por danos patrimoniais no montante de € 60.000 tem plena justificação.

Concluindo, não há razão para alterar a sentença recorrida, devendo também o recurso interposto pela ré ser julgado improcedente.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar improcedentes ambos os recursos, confirmando-se a sentença recorrida.

Cada uma das partes suportará as custas do recurso por si interposto.

Notifique.

*

Évora, 15.09.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta


Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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