terça-feira, 31 de outubro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 28.09.2023

Processo n.º 167/20.1T8STB-A.E1

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Sumário:

1 – No incidente de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais, o âmbito da declaração judicial, que tem lugar na sua fase preliminar, de que o incumprimento se verifica, não pode exceder o dos deveres objectivamente decorrentes daquele regime.

2 – Daí que, ainda que o/a requerido/a, notificado do requerimento inicial, não se pronuncie, o tribunal deva interpretar objectiva e autonomamente o regime de exercício das responsabilidades parentais, não estando vinculado à interpretação desse regime com base na qual o/a requerente formulou a sua pretensão.

3 – O acordo sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais é um negócio jurídico bilateral, ou seja, um contrato. É discutível a qualificação deste contrato como uma transacção ou como um contrato atípico e inominado. Em qualquer caso, trata-se de um contrato formal.

4 – À luz do critério estabelecido no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, a cláusula de um acordo sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais na qual tenha ficado estipulado que o requerido comparticiparia no pagamento de 50% das “despesas escolares/creche” deve ser interpretada, no que concerne às despesas com a creche, no sentido de que aquele dever de comparticipação abrange a contrapartida pecuniária devida pela frequência da creche.

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Incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais

Requerente: LS

Requerido: TF

Criança: SF

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Foi proferida sentença, com o seguinte teor:

“O(a) requerido(a), citado nos presentes autos, nunca alegou ou juntou prova de ter procedido ao pagamento das prestações de alimentos cujo(a) requerente alega estarem em falta, bem como as que se foram vencendo, entretanto; face ao exposto, resulta provada a factualidade alegada pelo(a) requerente no que concerne aos montantes em dívida a título de prestação de alimentos – conforme havia sido advertido o(a) requerido(a) –, para onde se remete por questões de economia processual.

Fica, também, provado incumprimento relativo às prestações alimentícias que se venceram, entretanto.

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Estabelece o artigo 41.º/1 do RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015 de 8 de agosto que «se, relativamente, à situação da criança, um dos pais ou terceira pessoa a quem ela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer ao tribunal que for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos».

Não tendo o(a) requerido(a) provado, como se lhe impunha, de acordo com as regras do ónus da prova, o pagamento das prestações de alimentos em falta fixadas a favor dos filhos, impõe-se, por decisão judicial, verificar e declarar o incumprimento alegado.

Porém, relativamente ao pedido de pagamento de 50% do valor do infantário, o Tribunal que não assiste razão à requerente, pelas razões que se passam a explicar.

No acordo de regulação das responsabilidades parentais, homologado por sentença, proferida no dia 12-02-2020, nos autos principais, consta, no artigo segundo, o seguinte:

«O pai pagará a quantia mensal de 100,00 euros (cem euros) a título de pensão de alimentos, que transferirá até ao dia 8 de cada mês, para a conta da progenitora cujo NIB o progenitor já tem em seu poder, sendo esta quantia atualizada anualmente, em janeiro, pelo índice de inflação publicado pelo INE.

§ O pai contribuirá ainda com 50% para as despesas escolares/creche, médicas e medicamentosas, mediante a apresentação de comprovativo no prazo de 15 dias e serão pagas no prazo de 15 dias».

Ora, para que se concluísse que as partes acordaram na repartição da mensalidade do infantário, tal teria de resultar inequívoco do acordo de regulação das responsabilidades parentais, o que não é caso. Efetivamente, o que consta é que resulta do acordado é que o pai pagará 50% das despesas escolares/creche, cláusula habitual nos acordos de regulação das responsabilidades parentais, e que se refere a material escolar (livros, canetas, mochila, etc.), ou, no caso da creche, material relacionado com a mesma.

A questão da repartição das mensalidades dos infantários, creches, escolas privadas, ATL, etc., tem de constar expressamente regulada, o que não é o caso, estando absorvida pela prestação de alimentos acordada.

Pelo exposto, declaro o incumprimento pelo(a) requerido(a) TF do regime de regulação das responsabilidades parentais, no que concerne ao pagamento de 800,00 EUR relativos às prestações de alimentos a favor do seu filho, SF, entre os meses de janeiro a julho de 2022.

Custas pelo(a) requerido(a).

Consulte a base de dados da Segurança Social, de modo a apurar se:

a) Em nome do requerido têm vindo a ser registadas remunerações e, em caso afirmativo, em que montante, bem como a denominação e a sede ou domicílio da respetiva entidade patronal;

b) O requerido recebe alguma pensão ou outra prestação social, com indicação do valor mensal e da entidade pagadora.”

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A requerente interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. A douta sentença recorrida enferma de nulidade nos termos do disposto no artigo 615 alínea b) do CPC, o que, desde já se argui, uma vez que não estão ali especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

2. Prevendo também o artigo 215 nº 1 da CRP que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas na forma prevista na lei, o que não aconteceu na sentença ora recorrida.

Caso assim não se entenda, o que se admite sem conceder,

3. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que decidiu que o requerido não devia ser obrigado a pagar a comparticipação de 50% do valor da creche do filho SF.

4. Tal obrigação resulta porém, do segundo parágrafo da cláusula segunda do acordo de regulação das responsabilidades parentais do menor, firmado entre os progenitores, de fls dos autos principais, e devidamente homologado por sentença, que prevê expressamente que o pai contribuirá ainda com 50% para as despesas escolares/creche do filho.

5. Aquando da realização do acordo de regulação em questão, foi expressamente manifestada pelos progenitores à Meritíssima Juiz “a quo”, aquando da tentativa de conciliação do seu divórcio, ali convolado em divórcio por mútuo acordo, que pretendiam que as despesas com a mensalidade da creche fossem repartidas entre ambos, na proporção de 50%.

6. Não se podem assim confundir despesas com material escolar com as despesas de creche, pois a “creche” subsume-se ao pagamento de uma mensalidade, não existindo ali despesas escolares.

7. Além do mais, tal situação, em modesto entender da ora recorrente, só se poderia questionar se o ali requerido a tivesse vindo arguir em sede de alegações, o que não aconteceu.

8. E nos autos recorridos, o facto foi que o ali requerido foi devidamente notificado a fls. , para, no prazo de 5 dias, alegar o que tivesse por conveniente, nos termos do disposto no artº 41º nº 3 do RGPTC.

9. E foi, na notificação em questão, também advertido(a) de que, se nada dissesse, se considerariam provados os factos alegados pela requerente, podendo decidir-se sem mais ou após as averiguações que se mostrem necessárias em conformidade.

10. Não tendo, conforme consta da douta sentença, o requerido, apesar de devidamente citado, alegado ou junto qualquer prova de ter procedido ao pagamento dos valores peticionados pela requerente.

11. A douta sentença recorrida viola assim o estatuído no artigo 567 nº 1 do CPC que prevê que a falta de contestação do Réu tem como cominação legal a confissão dos factos articulados pelo autor.

12. O Juiz “a quo” deveria pois, em cumprimento do legalmente estatuído, ter considerado confessados pelo progenitor os factos alegados pela ali requerente/aqui recorrente e condená-lo no pedido deduzido por esta contra aquele.

13. Não compreendendo a ora recorrente a sentença recorrida, quando vem, em violação da lei, decidir em favor de um pai faltoso, contrariando aquilo que foi acordado entre os progenitores, quanto às comparticipações do pai, não guardião, nas despesas mensais do filho.

O Ministério Público contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

I. A douta Sentença sob recurso que decidiu não condenar o Requerido em 50% pelas despesas devidas por conta do infantário de SF, relativa ao mês de março de 2022, não merece qualquer reparo, nem padece de qualquer nulidade, nem vício, contrariamente ao alegado pela Recorrente.

II. A fundamentação da decisão pelo Mm. Juiz de Direito a quo assentou nos elementos probatórios juntos aos autos, designadamente do Acordo de regulação das responsabilidades parentais, homologado por sentença, proferida no dia 12-02-2020, bem como nos restantes elementos de prova documental carreados.

III. Relativamente à motivação da matéria de facto, todos os factos alegados por parte da Requerente foram dados como provados, como não foram contestados, com exceção do facto relativo às despesas com infantário e creche, o qual encontra-se devidamente espelhado na Douta Sentença e assinalado de forma compreensível e inteligível, pelo que também não merece a douta Decisão qualquer reparo.

IV. Quanto à motivação da matéria de direito, o Mm. Juiz de Direito a quo também fundamentação a decisão através da subsunção dos factos dados como provados e não provados à matéria de direito aplicável nos autos, deixando explícita de forma clara a matéria de direito que serviu de base para justificar a decisão proferida, nomeadamente o disposto no artigo 41.º/1 do RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015 de 8 de agosto.

V. É entendimento unânime no seio da jurisprudência que para que se mostra verificada a nulidade decorrente do disposto no artigo 615.º, alínea b) do Código Processo Civil (CPC) é necessária uma total ausência de fundamentação, a este propósito cita-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de Processo: 487/20.5T8TMR.E1, Relator Emília Ramos Costa, disponível em www.dgsi.pt, datado de 11-02-2021: «I – Para que se mostrasse verificado o vício de falta de fundamentação do despacho recorrido, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, como resulta pacífico na nossa doutrina e jurisprudência, era necessário que se verificasse uma situação de ausência de fundamentação de facto ou de direito, não bastando, assim, uma mera situação de insuficiência, mediocridade ou erroneidade de tal fundamentação.»

VI. Face ao exposto, considera-se improcedente a nulidade invocada pela Recorrente, nos termos do disposto no artigo 615.º, alínea b) do Código Processo Civil (CPC).

VII. O incumprimento do conteúdo das responsabilidades parentais encontra-se delimitado às cláusulas em concreto que foram acordadas ou decididas, o que in casu remete para o Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais, proferido no dia 12-02-2020, nos autos principais, do qual consta, no artigo segundo, o seguinte: «§ O pai contribuirá ainda com 50% para as despesas escolares/creche, médicas e medicamentosas, mediante a apresentação de comprovativo no prazo de 15 dias e serão pagas no prazo de 15 dias».

VIII. Sucede, porém, que a Recorrente veio requerer o valor de metade do pagamento das despesas com o infantário de SF, conforme melhor resulta do ponto 6.º do requerimento inicial apresentado: «O requerido deve assim, à data, a quantia global de 405,00€, respeitantes ao valor das pensões de alimentos de janeiro a Março de 2022 e a 50% do infantário do mês de Março.»

IX- Analisada a despesa requerida pela Recorrente relativa ao Acordo em vigor à data, o recibo do infantário/Centro de Atividades diz respeito ao valor devido por conta da inscrição e matrícula da criança SF em tal estabelecimento.

X- Contudo, o Regime de Regulação das Responsabilidades parentais em vigor contempla eventuais despesas escolares, como bem referiu o Mm. Juiz de Direito na douta Sentença, com material escolar, como cadernos, livros, canetas, mochila e com creche, mas não qualquer matrícula/ inscrição/ frequência em outro equipamento educativo,

XI- Face ao exposto, qualquer divisão das despesas relativas à matrícula/ inscrição/ frequência de centro de atividades/ infantário / ATL da criança deveria encontrar-se plasmado no Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais, não podendo a cláusula com a divisão das despesas escolares genérica abarcar mais do que é legalmente exigível.

XII- A este propósito, menciona-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo: 856/13.7TMSTB.E1, Relator Paulo Amaral, datado de 09-03-2017, disponível em www.dgsi.pt: «1-O acordo de regulação das responsabilidades parentais que as partes celebraram é um acordo escrito sujeito às regras de interpretação definidas no art.º 236.º do Código Civil. 2-É neste acordo que toda a situação deve ser regulada de modo a que se perceba o âmbito de vinculação de cada uma das partes. 3-Estas obrigam-se pelo que dele consta e não se obrigam pelo que dele não consta.»

XIII- Não é concebível como alega a Recorrente que o Mm. Juiz de Direito viesse a condenar o Requerido em mais do que lhe era legalmente exigível e condenável pelo incumprimento, só pela circunstância do progenitor nada ter vindo alegar/ contestar, fazendo operar a falta de contestação de forma automática, sem qualquer apreciação nem análise da matéria de facto e de direito por parte do julgador, para além do que seria legalmente admissível e previsto no Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais.

XIV- O entendimento da Recorrente levaria no limite, ao risco, de qualquer factos peticionados, não contestados, serem dados como provados, operando de forma automática, sem qualquer apreciação crítica, de direito e de facto do julgador, o que não se pretende num Estado de Direito, nem tal consequência decorre do disposto nos artigos 41.º, n.º 3 do RGPTC e do artigo 567.º, n.º 1 do CPC. É, por isso, forçoso concluir-se que o vício invocado pela Recorrente é manifestamente improcedente, ao abrigo do disposto nos artigos 41.º, n.º 3 do RGPTC e do artigo 567.º, n.º 1 do CPC.

XV- Termos em que não merece provimento o recurso em apreço, por falta de fundamento, devendo manter-se a sentença proferida, nomeadamente a matéria de facto e de direito dada por provada, nos seus precisos termos.

O recurso foi admitido.

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Questões a resolver:

1 – Nulidade da sentença recorrida;

2 – Interpretação da cláusula do acordo sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais relativa à comparticipação do requerido nas “despesas escolares/creche”.

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1 – Nulidade da sentença recorrida:

A recorrente considera que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil (CPC), por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Porém, sem razão.

Nos termos do artigo 567.º, n.º 3, do CPC, se o réu for revel e a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado. Esta norma é aplicável ao processo tutelar cível ex vi artigo 33.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC).

No caso dos autos, o recorrido foi notificado para se pronunciar sobre o incumprimento que a recorrente lhe imputou e remeteu-se ao silêncio. Com esse fundamento, o tribunal a quo considerou provados os factos que consubstanciam o incumprimento da pensão de alimentos a que o recorrido se encontra vinculado, tendo remetido para o requerimento inicial no que concerne ao montante em dívida. Atento o disposto no citado artigo 567.º, n.º 3, do CPC, deve considerar-se que esta fundamentação de facto é suficiente.

Ainda que assim se não entendesse, certo é que nunca poderia falar-se em absoluta ausência de fundamentação de facto. Ora, é pacífico que apenas esta ausência, e não a mera insuficiência, configura a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.  

Por outro lado, é evidente que a sentença recorrida se encontra fundamentada de direito, pois refere expressamente a norma legal que considera aplicável e enuncia os efeitos que, com base nos factos provados, dela retira para a decisão do caso dos autos.

Concluindo, a sentença não padece da nulidade arguida pela recorrente.

2 – Interpretação da cláusula do acordo sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais relativa à comparticipação do requerido nas “despesas escolares/creche”:

Em matéria de prestação de alimentos pelo recorrido ao filho, foi acordado o seguinte:

«O pai pagará a quantia mensal de 100,00 euros (cem euros) a título de pensão de alimentos, que transferirá até ao dia 8 de cada mês, para a conta da progenitora cujo NIB o progenitor já tem em seu poder, sendo esta quantia atualizada anualmente, em janeiro, pelo índice de inflação publicado pelo INE.

§ O pai contribuirá ainda com 50% para as despesas escolares/creche, médicas e medicamentosas, mediante a apresentação de comprovativo no prazo de 15 dias e serão pagas no prazo de 15 dias».

O tribunal a quo interpretou esta cláusula do acordo sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais no sentido de o requerido estar obrigado a comparticipar em 50% das despesas com o material necessário para a frequência da escola ou da creche pelo filho, mas não em 50% da contrapartida pecuniária devida por essa frequência. Com base nessa interpretação, o tribunal a quo julgou improcedente o incidente de incumprimento na parte relativa àquela comparticipação.

A recorrente insurge-se contra esta decisão com um duplo fundamento: 1) Objectivamente, a cláusula que acima reproduzimos deve ser interpretada no sentido de a obrigação de comparticipação, por parte do recorrido, em “50% para as despesas escolares/creche”, abranger a contrapartida devida pela frequência da escola ou da creche; 2) O recorrido não contestou a obrigação de comparticipação nas despesas escolares/creche tal como a recorrente a configurou, pelo que deve considerar-se confessada a existência da obrigação nesses termos.

Comecemos por apreciar este segundo fundamento.

Resulta do artigo 41.º, n.º 1, do RGPTC, que o incidente de incumprimento tem três finalidades: 1) A cessação do incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais através da adopção das diligências para o efeito necessárias; 2) A condenação do remisso em multa até 20 UC; 3) A condenação do remisso no pagamento de uma indemnização à criança, ao progenitor requerente ou a ambos. A primeira finalidade tem natureza executiva. As segunda e terceira finalidades assumem natureza declarativa.

Interessa-nos a primeira finalidade, uma vez que aquilo que a recorrente pretende é a prática das diligências necessárias para fazer cessar a situação de incumprimento por parte do recorrido. Nessa parte, o presente incidente tem por base o acordo sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais e a sentença homologatória desse acordo. A sentença recorrida encerrou a fase declarativa preliminar do incidente, destinada unicamente a comprovar a existência do incumprimento e a fixar o âmbito deste[1], tendo em conta o regime de exercício das responsabilidades parentais estabelecido e os factos relevantes para ajuizar da situação de incumprimento que foram julgados provados.

Sendo assim, o âmbito da declaração judicial de que o incumprimento se verifica não pode exceder o dos deveres objectivamente decorrentes do regime de exercício das responsabilidades parentais. Só em relação àquilo que for devido poderá haver incumprimento. Não poderá, como a recorrente pretende, o tribunal decidir que se verifica um incumprimento que não tenha sustentação no regime de exercício das responsabilidades parentais, ainda que o/a requerente alegue esse suposto incumprimento, com base numa determinada interpretação daquele regime, e o/a requerido/a não conteste. Inexiste fundamento para considerar que o silêncio do/a requerido/a tem tal efeito cominatório. O efeito cominatório da falta de oposição apenas pode ter por objecto factos, não também uma determinada interpretação do regime de exercício das responsabilidades parentais, proposta pelo/a requerente.

Consequentemente, ainda que o/a requerido/a não conteste, o tribunal deverá declarar o incumprimento sem extravasar dos deveres que resultam do regime de exercício das responsabilidades parentais, na interpretação que dele fizer. Foi o que o tribunal a quo fez, não merecendo, neste aspecto, crítica.

Aquilo que realmente importa é apurar se a interpretação que o tribunal a quo fez da cláusula do acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais que acima reproduzimos é a correcta. Somos, assim, reconduzidos ao primeiro fundamento da pretensão da recorrente.

O acordo sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais é um negócio jurídico bilateral, ou seja, um contrato. É discutível a qualificação deste contrato como uma transacção – artigos 1248.º a 1250.º do Código Civil (CC) – ou como um contrato atípico e inominado. Se, nessa discussão, se adoptar o entendimento de que, sendo celebrado numa fase processual posterior à conferência prevista nos artigos 35.º a 38.º do RGPRC, o mesmo contrato deve ser qualificado como uma transacção, por se verificarem os elementos típicos da existência de um litígio e da resolução deste mediante recíprocas concessões, sendo inominado e atípico nas restantes hipóteses, devido à ausência daqueles elementos[2], os autos nem sequer fornecem elementos para uma tomada de posição sobre a natureza do acordo celebrado entre recorrente e recorrido, pois desconhecemos em que circunstâncias essa celebração ocorreu.

Contudo, seja ou não qualificável como transacção, é certo que estaremos sempre perante um contrato. Contrato formal, pois tem de constar de documento particular, a dirigir ao tribunal ou à conservatória do registo civil para homologação, ou do auto ou acta da diligência judicial (conferência ou audiência final) em que seja celebrado, auto ou acta esses que são documentos autênticos – artigos 363.º, n.ºs 1 e 2, 1775.º, n.º 1, al. b), 2.ª parte, 1776.º-A, 1778.º, 1778.º-A, 1905.º, n.º 1, e 1909.º, n.º 2, do CC, e 34.º, 37.º, n.º 2, e 39.º, n.º 3, do RGPTC. Logo, a sua interpretação deverá, em qualquer hipótese, fazer-se nos termos dos artigos 236.º a 238.º do CC.

O artigo 236.º, n.º 1, do CC, estabelece que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. O artigo 238.º, n.º 1, do mesmo código, dispõe que, nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

À luz da primeira das normas acabadas de citar, não vemos razão para fazer uma interpretação restritiva da expressão “despesas escolares/creche”, por forma a delas excluir a contrapartida pecuniária devida pela frequência da escola ou da creche. Se a recorrente e o recorrido tivessem querido restringir a comparticipação do segundo a 50% das despesas com o material necessário para a frequência da escola ou da creche, a forma correcta de expressar essa vontade seria estipulando que tal comparticipação seria nas “despesas com o material escolar e com o material necessário para a frequência da creche” pelo filho.

A previsão de uma comparticipação em despesas com determinada actividade (escola, creche, explicações, aulas de música, uma modalidade desportiva) inclui, em princípio, tudo aquilo que seja necessário para o exercício desta. Se se quiser restringir a comparticipação a algumas despesas relacionadas com tal actividade, aquilo que é normal fazer-se é expressar essa restrição no texto da cláusula. Na ausência desta restrição, deve, em princípio, concluir-se que está abrangido tudo aquilo que o texto expressa.

Dada a forma como a cláusula do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais que vimos analisando se encontra redigida, referindo conjuntamente as despesas com a escola e a creche, temos, à semelhança do tribunal a quo, tratado conjuntamente estas despesas. Contudo, é útil, para corroborar a interpretação que daquela cláusula fazemos, abstrair das “despesas escolares”, centrando-nos na previsão das “despesas com a creche”.

A menos que a criança ou jovem frequente o ensino particular, as despesas escolares mais significativas resultam da aquisição do material escolar, pelo menos até ao final da escolaridade obrigatória. No que respeita às despesas com a creche, verifica-se precisamente o contrário. A despesa, de longe, mais significativa, é com o pagamento da contrapartida pela frequência da creche. O custo do material necessário para a criança aí desenvolver actividades é, ao menos na normalidade dos casos, insignificante. Até as despesas com passeios e “visitas de estudo” (despesas estas que, na interpretação restritiva feita pelo tribunal a quo, também ficariam indevidamente excluídas da cláusula que analisamos) tendem a superar aquelas que decorrem da aquisição de material necessário para o desenvolvimento de actividades na creche, que se resumirá a pouco mais que alguns artigos de papelaria.

Sendo assim, interpretar uma cláusula em que se estipula uma comparticipação específica em “despesas com a creche” como compreendendo apenas as despesas com material necessário para a criança frequentar a creche, excluindo a despesa verdadeiramente relevante, que é a contrapartida por essa frequência, não respeita, de modo algum, o critério estabelecido pelo artigo 236.º, n.º 1, do CC. A interpretação que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, necessariamente fará da expressão “despesas com a creche”, é a de que a mesma compreende todas as despesas decorrentes da frequência da creche, incluindo, portanto, a contrapartida devida por essa frequência, o custo dos materiais necessários ao desenvolvimento de actividades, as despesas decorrentes de eventuais passeios ou “visitas de estudo” e, eventualmente, outras.

No fundo, interpretar a cláusula em questão nos termos em que o tribunal a quo o fez equivaleria a quase esvaziá-la de conteúdo no que se refere às despesas com a creche. Este resultado reforça a nossa convicção de que a recorrente e o recorrido não quiseram atribuir, ao segmento da cláusula que analisamos, o sentido de que a comparticipação do segundo é apenas em 50% das despesas com a aquisição de material necessário para a frequência da creche pelo filho. Não faria sentido uma previsão tão ampla para designar uma realidade tão restrita, deixando de fora aquela que é, de longe, a despesa mais significativa.

A interpretação que fazemos harmoniza-se perfeitamente com a exigência, feita no artigo 238.º, n.º 1, do CC, de um mínimo de correspondência do resultado daquela com o texto da cláusula que estabelece a comparticipação do recorrido em 50% das despesas com a creche do filho. Existe, aliás, bem mais que um mínimo de correspondência. Prevendo aquele texto, irrestritamente, as despesas com a creche, o entendimento de que o dever de comparticipação do recorrente abrange 50% de todas e quaisquer despesas decorrentes da frequência da creche surge como aquele que melhor se harmoniza com o mesmo texto.

Concluindo, a recorrente tem razão. A sentença recorrida deveria ter declarado o incumprimento do recorrido também quanto à obrigação de comparticipação deste nas despesas com a creche do filho. O recurso deverá, pois, proceder.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que não declarou que o recorrido incumpriu a obrigação de comparticipar, na proporção de 50%, no pagamento das despesas decorrentes da frequência da creche pelo filho, e declarando-se esse incumprimento.

Custas a cargo do recorrido.

Notifique.

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Évora, 28.09.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta



[1] Ainda que fique provado o incumprimento, a sentença proferida na fase preliminar do incidente de incumprimento não deverá condenar o requerido, como a recorrente pretende. Não é essa a finalidade do incidente de incumprimento. A referida condenação seria inútil, pois já existe título executivo, constituído pela decisão que fixou o regime de exercício das responsabilidades parentais ou homologou o acordo sobre esse regime.

[2] Leia-se, sobre esta problemática, TIAGO SOARES DA FONSECA, A Transação Civil na Litigância Extrajudicial e Judicial, Gestlegal, Coimbra, 2018, páginas 383 a 387, 627 a 643 e 720-721.

sábado, 21 de outubro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 28.09.2023

Processo n.º 2910/22.5T8STB-C.E1

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Sumário:

1 – Não obstante o depoimento de parte ter como finalidade primacial recolher a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária, o julgador pode aproveitar a sua parte não confessória para formar a sua convicção, que valorará livremente, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC. Aquele aproveitamento não depende da corroboração da parte não confessória do depoimento de parte por outro(s) meio(s) de prova.

2 – Todavia, o julgador deverá ser, perante cada caso concreto, especialmente cauteloso na apreciação do depoimento de parte, pois a circunstância de este provir de alguém que tem um interesse directo na causa aumenta muito significativamente o risco de falsidade.

3 – A transmissão gratuita, pelo insolvente, do direito de propriedade sobre um veículo, efectuada dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, está sujeita a resolução incondicional em benefício da massa insolvente.

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Autora: Massa Insolvente de Automóveis, Lda.

Réus: FS e JS

Pedidos:

“I – Se digne declarar resolvido, de forma incondicional, a favor da massa insolvente o negócio jurídico transmitido a título gratuito que incidiu sobre o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo C350 CDI, matrícula 00-XX-00, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE; II – Condenar ambos os R. a procederem à entrega da viatura mencionada à A. em prazo nunca superior a 10 (dez) dias.

Se assim se não entender,

III – Se digne declarar resolvido a favor da massa insolvente o negócio jurídico de alienação do veículo automóvel de marca Mercedes, modelo C350 CDI, matrícula 00-XX-00, nos termos da conjugação dos n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5 alíneas a), b) e c) do art.º 120.º do CIRE.”

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A autora interpôs recurso de apelação da sentença, mediante a qual o tribunal a quo julgou a acção improcedente, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. A titularidade do registo automóvel constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito;

2. Cabe à parte contrária o ónus de provar de que o direito inscrito no registo não é pertencente ao titular registado;

3. A doutrina e a jurisprudência vêm assumindo várias posições no que tange à função e valoração das declarações de parte e, com as necessárias adaptações, do depoimento de parte;

4. A tese do princípio da prova tem sido a mais publicitada pela jurisprudência, defendendo que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova;

5. O depoimento de parte do recorrido foi o único meio de prova que o tribunal a quo se sustentou para formar a sua convicção;

6. O depoimento do recorrido é um discurso seco, trabalhado, sem uma razoável correlação e encadeamento fáctico e sem qualquer razoabilidade do ponto de vista dos acontecimentos normais da vida real;

7. A livre apreciação da prova é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias;

8. A não documentação de atos dotados de uma alta ou frequente documentação, conduzindo a um absoluto ou notável défice documental, gera a presunção da inexistência dos atos;

9. O recorrido não logrou demonstrar e provar a titularidade do direito de propriedade sob a viatura;

10. O recorrido não logrou demonstrar e provar os atos de posse sob a viatura;

11. A doação de bens comuns é nula nos termos da conjugação do n.º 1 do art.º 1764.º com o art.º 294.º ambos do Código Civil;

12. O recorrido JS estava de má-fé pois conhecia a situação de insolvência da sociedade Automóveis, Lda.;

13. A transmissão da titularidade da viatura da recorrida FS para o recorrido JS foi a título gratuito;

14. A resolução do negócio em benefício da massa é oponível ao recorrido JS nos termos do n.º 1 do art.º 124.º do CIRE;

15. Os pontos de factos provados com os números 14, 15 e 16 devem ser considerados como não provados;

16. O ponto de facto não provado com a alínea a) deve ser considerado provado.

Termos em que, nos melhores de Direito que V. Exas doutamente suprirão, deverá o presente recurso ordinário de apelação ser aceite e, por conseguinte, julgado totalmente procedente, substituindo-se a sentença proferida pelo tribunal a quo por outra que:

A. Julgue os pontos de factos provados sob os números 14, 15 e 16 como factos não provados;

B. Julgue o ponto de facto não provado sob a alínea a) como facto provado;

C. Declare a resolução em benefício da massa insolvente do negócio jurídico de transmissão da viatura registado em 29.10.2021;

D. Declare a oponibilidade da resolução ao recorrido JS;

E. Fixe um prazo para entrega da viatura à massa insolvente (art.º 126.º/3 CIRE).

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido.

*

Questões a resolver:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Verificação dos pressupostos da resolução em benefício da massa insolvente.

*

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – Por sentença proferida em 17 de Maio de 2022, nos autos de processo de insolvência n.º 2910/22.5T8STB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo do Comércio de Setúbal - Juiz 1 de Setúbal, foi declarada insolvente a sociedade Automóveis, Lda..

2 – O anúncio da insolvência foi publicado no Portal CITIUS em 17.05.2022.

3 – Por despacho datado de 25.05.2022 foi nomeado administrador da insolvência (…), que ora representa a massa insolvente.

4 – A sociedade insolvente foi constituída em 25.01.2006, tendo como sócios JS e RS.

5 – Assumindo ambos a gerência da sociedade.

6 – JS cessou as funções de gerente em 28.08.2018.

7 – Tendo vendido as suas participações sociais a RS e CS em 05.09.2018.

8 – Em 29.10.2021, a insolvente tinha registado em seu nome o veículo de matrícula 00-XX-00, da marca Mercedes-Benz.

9 – Pela apresentação 2802, datada de 29.10.2021, o registo de propriedade passou a estar em nome de FS.

10 – E pela apresentação 7228, datada de 06.01.2022, o registo de propriedade passou a estar em nome de JS.

11 – JS e FS são casados entre si desde 18.11.1978, no regime de comunhão de adquiridos.

12 – A transmissão do veículo de matrícula 00-XX-00, da marca Mercedes-Benz, da insolvente para FS, não implicou o pagamento de qualquer preço.

13 – Sendo que o valor actual do mesmo ascende a cerca de € 10.000,00.

14 – Pelo réu JS foi pago à ré FS o valor de € 2.500,00 para que ocorresse a transferência de propriedade referida em 10.

15 – Desde 2015 que é o réu JS quem paga os impostos e as revisões do veículo de matrícula 00-XX-00.

16 – Foi ele quem adquiriu e pagou o mesmo, dando um veículo seu em troca e pagando um acréscimo de € 8.000,00.

Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:

a) Quem adquiriu a viatura em 2015 foi a sociedade insolvente;

b) Nessa data a ré FS era sócia da sociedade insolvente.

*

Questão prévia:

A recorrente juntou três documentos com as alegações de recurso, pelo que, em princípio, se colocaria a questão da admissibilidade dessa junção face ao disposto no artigo 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC). Verificamos, todavia, que o documento n.º 1 é a sentença que declarou a insolvência da sociedade Automóveis, Lda., o documento n.º 2 é a sentença recorrida e o documento n.º 3 é o mesmo que foi junto com a petição inicial sob o n.º 7. Sendo assim, a sua junção na fase de recurso é irrelevante, pois todos eles já constam, ou destes autos, ou do processo principal.

*

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A recorrente pretende que o conteúdo dos n.ºs 14 a 16 seja julgado não provado e que o conteúdo da al. a) seja julgado provado.

Resulta da sentença que o tribunal a quo formou a sua convicção sobre toda essa matéria de facto com base no depoimento de parte do recorrido JS, o qual, no seu entendimento, não foi contrariado por qualquer outro meio de prova. Ouvido aquele depoimento de parte, verificamos que o tribunal a quo aceitou acriticamente a totalidade da versão factual apresentada pelo depoente. Porém, ao fazê-lo, cometeu um erro de julgamento, pelas razões que passamos a expor.

Em primeiro lugar, não é exacto que o depoimento de parte do recorrido JS não tenha sido contrariado por qualquer outro meio de prova. Na questão central da titularidade do direito de propriedade do veículo entre 25.11.2015 e 29.10.2021, aquele depoimento é contrariado pelo teor da certidão do registo automóvel e da mensagem da recorrida FS juntas à petição inicial como documentos n.ºs 1 e 7.

De acordo com a referida certidão do registo automóvel, foi a sociedade Automóveis, Lda., a titular do direito de propriedade sobre o veículo entre 25.11.2015 e 29.10.2021. Constituindo o registo definitivo presunção (ilidível – artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil) de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ex vi artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12.02), a recorrente está dispensada de provar os factos constitutivos do direito de propriedade da sociedade Automóveis, Lda. sobre o veículo entre aquelas duas datas (artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil). São os recorridos que estão onerados com o ónus da prova de que, apesar daquele registo, a sociedade Automóveis, Lda. não foi a proprietária do veículo entre 25.11.2015 e 29.10.2021.

Assim recolocada a questão, fica claro que, sendo o depoimento de parte do recorrido JS o único meio de prova que contraria a presunção decorrente do registo automóvel, a posição dos recorridos fica, logo à partida, fragilizada em matéria probatória.

O depoimento de parte tem como finalidade primacial recolher a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária. Não obstante, não proibindo a lei o aproveitamento da parte não confessória do depoimento de parte para a formação da convicção do julgador, deve entender-se que tal aproveitamento é admissível. Nessa parte, o depoimento deverá ser livremente valorado, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC.

A lei não exige, sequer, que, para que possa valer como meio de prova, a parte não confessória do depoimento de parte seja corroborada por outro(s) meio(s) de prova. Em face disso, carece de fundamento a exigência, feita por alguma doutrina e jurisprudência, dessa corroboração. No limite, a convicção do julgador poderá formar-se exclusivamente com base num depoimento de parte.

Contudo, uma coisa é exigir, em abstracto, que o depoimento de parte seja corroborado por outro(s) meio(s) de prova para que possa ser utilizado pelo julgador para formar a sua convicção e outra, diferente, é o julgador dever ser, perante cada caso concreto, especialmente cauteloso na apreciação do depoimento de parte. Aquela exigência só pode ser feita pela lei, o que, como vimos, não acontece. Já esta especial cautela encontra plena justificação nas regras da experiência, pois a circunstância de o depoimento de parte provir de alguém que tem um interesse directo na causa aumenta muito significativamente o risco de falsidade. Foi nesta estrita medida que acima afirmámos que, sendo o depoimento de parte do recorrido JS o único meio de prova que contraria a presunção decorrente do registo automóvel, a posição dos recorridos fica, logo à partida, fragilizada em matéria probatória.

Assentes estas ideias gerais, atentemos no depoimento de parte do recorrido JS.

Dificilmente encontraremos um depoimento menos credível.

JS afirmou peremptoriamente que o veículo, comprado em 2015, sempre foi seu. Estava em nome da sociedade Automóveis, Lda., da qual era sócio-gerente, mas era seu. Foi ele quem o comprou e pagou, em parte através da entrega de outro veículo automóvel e, na parte restante, em dinheiro. Não se apercebeu de que o veículo foi registado em nome da sociedade. Isso aconteceu porque “quem foi à conservatória foi o outro sócio, que pôs o carro em nome da firma”. Não foi ele próprio a tratar do registo porque o transmitente “tinha muita pressa de transferir o carro do nome dele” e não teve disponibilidade para se deslocar, ele próprio, à conservatória. Não assinou o requerimento de registo. Foi o outro sócio quem o fez. Só mais tarde soube que o veículo ficara registado em nome da sociedade, mas “não ligou”. Não transferiu, então, o veículo para o seu nome “para não ficarem mais nomes no livrete”. Para si, era igual o veículo estar em seu nome ou no da sociedade, pois era a única pessoa que utilizava o veículo, que pagava as despesas com este, nomeadamente com combustível. Oficina, pneus, era tudo pago por si. Era a sociedade quem pagava o IUC do veículo, fazendo-o com dinheiro que lhe entregava. Em 2018, deixou de ser sócio da Automóveis, Lda., mas, como tinha plena confiança nesta, nem sequer então transferiu o carro para o seu nome. Andava, então, a pensar trocá-lo, pelo que “não havia necessidade de gastar dinheiro na conservatória”. Questionado sobre o que determinou a transferência do veículo para o nome do seu cônjuge, a recorrida FS, em 2021, respondeu que o veículo estava pago, era seu, tendo dito àquela: “não tens carro nenhum em teu nome, fica em teu nome”. Em vez de o carro ficar em seu nome, ficou em nome dela. Não houve outra razão para a transferência de nome nessa altura. Três meses depois, passaram o carro para o seu nome devido a interesses particulares do casal. Foi uma coisa entre e depoente e o seu cônjuge, resolveram mudar o carro de nome. Houve um “pagamentozeco” entre eles só para resolver a situação, de € 2.500. Pagou € 2.500 ao seu cônjuge. Confrontado com a falta de junção de documentos comprovativos das despesas que diz ter feito com o veículo, respondeu que não pedia as facturas relativas ao combustível porque não precisava delas. Tem as facturas da oficina, mas não os comprovativos do pagamento. As facturas estão, umas em seu nome, outras em nome da sociedade. Questionado sobre se a sociedade deduzia as facturas emitidas em seu nome para efeitos fiscais, respondeu que as facturas ficavam no tablier do veículo e que não se lembrava se entregou alguma factura na contabilidade da sociedade, acrescentando: “não me lembro, se calhar entreguei alguma, não sei, não me lembro”.

Nada disto é credível.

Desde logo, a versão factual descrita contradiz aquela que foi alegada na contestação e na mensagem, dirigida pela recorrida FS ao administrador da insolvência, que consta do documento junto à petição inicial sob o n.º 7.

Transcrevemos a referida mensagem, na parte que nos interessa: “O veículo automóvel identificado na missiva enviada, foi por mim adquirida e paga á muitos anos, mas nunca alterei a titularidade em 29-10-2021, procedi a essa alteração, a compra ocorreu em 2015. Em 6-1-2022 transferi a propriedade pelo valor de 2500,00.”

Na contestação, os recorridos alegaram, em síntese, que, desde 2015, FS tem a posse do veículo, suportando o custo do IUC, das revisões, das inspecções e os demais encargos com o mesmo. FS estava completamente convencida de que o veículo estava em seu nome desde o momento em que adquiriu a sua posse e assumiu todos os encargos inerentes à propriedade. Posteriormente, FS vendeu o veículo a JS por € 2.500.

Perante isto, em que ficamos? A versão dos recorridos, que apresentaram contestação conjunta, é aquela que alegaram neste articulado e que FS descreveu na mensagem que dirigiu ao administrador da insolvência, ou é aquela que JS narrou na audiência final? Uma vez que são incompatíveis entre si, pelo menos uma delas é falsa. Uma coisa é certa: pelo menos uma vez, JS faltou à verdade. Ou o fez na contestação, ou o fez no depoimento de parte. Em qualquer caso, esta duplicidade mina, logo à partida, a credibilidade de todas as suas afirmações.

Por outro lado, em si mesmo, o depoimento de parte prestado por JS foi inverosímil do princípio ao fim.

Para alguém que é sócio de uma sociedade por quotas, é fundamental a separação entre o seu património e o da sociedade. Se um bem integrar o património da sociedade, responderá pelas dívidas desta. Se o mesmo bem integrar o património do sócio, isso não acontecerá, por regra (artigos 197.º, n.º 3, e 198.º do Código das Sociedades Comerciais). Não é crível que um sócio seja desleixado ao ponto de adquirir um veículo para si, a troco de dinheiro seu e de um veículo também seu, suportando todos os custos decorrentes da sua utilização, e o registe, ou peça a outrem para o registar, ou deixe outrem registá-lo, em nome da sociedade, expondo-o assim aos credores desta. Tal hipótese, embora não seja impossível, contraria as regras da experiência. Se o registo do veículo em nome da sociedade tivesse sido requerido por erro do sócio do depoente, seria incompreensível, pela mesma razão, manter essa situação ao longo de anos.

Uma coisa é adquirir um veículo em nome da sociedade e o mesmo ser utilizado para fins pessoais de um gerente. É muito vulgar isso acontecer. O referido risco de exposição do bem aos credores da sociedade é compensado pelas vantagens fiscais decorrentes de o custo da aquisição e da utilização do veículo ser imputado à sociedade. Coisa totalmente diferente e sem sentido seria manter o veículo em nome da sociedade, mas ser o gerente a suportar o custo de aquisição e utilização do veículo. Seria expor este bem aos credores da sociedade sem usufruir qualquer vantagem.

Não é, pois, crível que JS tenha querido adquirir o veículo para si. Se deixou que o mesmo estivesse registado em nome da sociedade durante anos, foi porque quis que o mesmo fosse propriedade da sociedade.

A descrição, feita por JS, das circunstâncias que teriam determinado o suposto erro de registo, não é credível. Decorre do seu depoimento que foi ele quem negociou e celebrou o contrato que teve por efeito a aquisição do veículo. Nesse momento, o transmitente ter-lhe-á, certamente, entregue o documento necessário para a alteração do registo, assinado. Então, das duas, uma: ou esse documento estava completamente preenchido, identificando o adquirente, ou os campos relativos à identificação do adquirente estavam em branco. Na primeira hipótese, se JS pretendia adquirir o veículo para si, a pessoa identificada como adquirente seria forçosamente ele. Não faria sentido que, querendo adquirir o veículo para si, aceitasse um documento destinado a requerer o registo que mencionasse a sociedade como adquirente. Na segunda hipótese, ainda que não pudesse deslocar-se à conservatória, não é crível que JS não preenchesse os campos destinados à identificação do adquirente com os seus dados pessoais antes de o entregar a outrem para ir requerer o registo. Em qualquer das duas referidas hipóteses, seria o próprio JS a pessoa mencionada no documento destinado à realização do registo como adquirente. Logo, o registo não poderia deixar de ser efectuado figurando ele como adquirente. Nunca o veículo poderia ser registado em nome da sociedade. Tendo, porém, o registo sido efectuado figurando a sociedade como adquirente do veículo, não há como deixar de concluir que o documento destinado a requerer o registo indicava, como adquirente, a sociedade. O mesmo é dizer que, com altíssima probabilidade, ou o transmitente preencheu aquele documento indicando JS como adquirente, na presença deste último, ou foi o próprio JS quem preencheu o mesmo documento indicando a sociedade como adquirente.

Poderá aventar-se uma terceira hipótese: o documento destinado a requerer o registo foi entregue, pelo transmitente, a JS, com a identificação do adquirente em branco, e este, por seu turno, em vez de acabar de o preencher, identificando-se como adquirente do veículo, entregou esse documento ao outro gerente da sociedade tal como o recebera, para que este requeresse a alteração do registo. Nesta hipótese, das duas, uma: ou JS deu instruções ao outro gerente no sentido de este acabar de preencher o documento indicando-o como adquirente do veículo, ou não deu. Em qualquer caso, tanto desleixo por parte de JS seria incompreensível. Se não podia deslocar-se à conservatória, ao menos acabasse de preencher o documento destinado à alteração do registo, nele se identificando como sendo o adquirente do veículo. Para quê deixar essa tarefa para o outro gerente da sociedade, sujeitando-se a que este registasse indevidamente o veículo em nome da sociedade, independentemente de lhe ter dado, ou não, instruções sobre isso? Mais, por que razão JS pediu ao outro gerente da sociedade para ir à conservatória requerer o registo, se se tratava de um assunto estranho à vida da sociedade?

A resposta de JS quando lhe foi perguntado em que nome a oficina que prestava assistência ao veículo emitia as facturas relativas a esse serviço entre 2015 e 29.10.2021 foi a seguinte: umas vezes em seu nome, outras em nome da sociedade. Questionado sobre se a sociedade deduzia as facturas emitidas em seu nome para efeitos fiscais, respondeu que as facturas ficavam no tablier do veículo e que não se lembrava se entregou alguma factura na contabilidade da sociedade, acrescentando: “não me lembro, se calhar entreguei alguma, não sei, não me lembro”.

Estamos perante mais um exemplo da falta de credibilidade deste depoimento de parte.

JS afirmou que levava o veículo a uma única oficina. Logo, não se percebe por que razão, para o mesmo veículo, a oficina emitiria as facturas/recibos, umas vezes em nome da sociedade, outras em nome de JS. Há muito tempo que a emissão desses documentos é feita digitalmente, pelo que, a menos que haja intervenção humana, a facturação relativa a um veículo é feita sempre em nome da mesma entidade. A única explicação possível seria a apontada variação da indicação do devedor ser feita a pedido do próprio JS. Porém, não divisamos a utilidade de um tal procedimento.

A displicência com que JS afirmou que as facturas/recibos ficavam no tablier do veículo e que não se lembrava se entregou alguma delas na contabilidade da sociedade para ser incluída nas despesas desta é espantosa. Uma factura/recibo emitida em nome da sociedade permitiria o pagamento de menos impostos. Está em causa um maior ou menor lucro da sociedade. Como acreditar que JS nem sequer se recordasse se entregou alguma factura para ser imputada nos custos de funcionamento da sociedade?

Regressemos ao tema da alegada indiferença de JS sobre a propriedade do veículo, que teria determinado a sua inércia em requerer a alteração do registo de forma a nele constar como titular daquele direito. De acordo com o seu depoimento, essa indiferença ter-se-á prolongado por cerca de seis anos, entre 2015 e 2021. Nem sequer em 2018, quando deixou de ser sócio da Automóveis, Lda., terá sentido necessidade de requerer a alteração do registo de forma a passar a figurar como proprietário, por ter plena confiança na sociedade. Além de que andava a pensar em trocar o veículo, pelo que “não havia necessidade de gastar dinheiro na conservatória”.

Porém, em 2021, JS mudou radicalmente de opinião. Impunha-se, então, alterar o registo de forma a nele figurar o seu cônjuge, FS, como proprietária do veículo. Subitamente, deixou de ser relevante a despesa decorrente da alteração do registo, bem como o facto de ficarem “mais nomes no livrete”. E qual foi a razão desta mudança de opinião? Segundo JS, o facto de FS não ter qualquer veículo em seu nome. Ora, esta alegação não convence. Se o facto de FS não ter qualquer veículo em seu nome tinha sido indiferente até então, por que razão passou a ser relevante de um momento para o outro? JS não teve resposta para esta questão. Teve de reconhecer que não houve outra razão para a transferência de nome nessa altura.

Parece-nos evidente que a finalidade da alteração do registo em 29.10.2021 consistiu na saída do direito de propriedade sobre o veículo do património social, não na aquisição desse direito por um dos recorridos. Esta aquisição foi apenas uma consequência necessária daquela alienação. Há um trecho do depoimento de JS que revela que assim foi. Ao minuto 7:20 da gravação, este disse: “O carro era meu, estava pago, na altura disse, olha, fica em teu nome, não tens carro nenhum em teu nome, fica em teu nome. O carro estava pago, era meu, em vez de ir para o meu nome, foi para o nome dela.” Repetimos: “em vez de ir para o meu nome, foi para o nome dela”. Ou seja, interessava era que o veículo deixasse de pertencer à sociedade, sendo secundário se passaria a estar registado em nome de um ou do outro dos recorridos. Por isso, a passagem para o nome de JS chegou a ser ponderada. Foi aí que o critério por este referido funcionou: como FS não tinha qualquer veículo em seu nome, foi em nome dela que o registo ficou. Daqui também se infere que JS tinha, pelo menos, um veículo registado em seu nome. Se assim não fosse, aquele critério não permitiria uma decisão sobre para quem o veículo seria transmitido.

A narrativa de JS tornou-se ainda menos verosímil a partir do momento em que lhe foi perguntado por que razão, pouco mais de dois meses depois da transferência do direito de propriedade sobre o veículo para a esfera jurídica do seu cônjuge, mais precisamente em 06.01.2022, foi novamente requerida a alteração do registo de forma a que do mesmo passasse a constar o seu próprio nome como sendo o proprietário. Tendo em conta a inércia de JS, ao longo de cerca de seis anos, em registar o veículo em seu nome, causa, efectivamente, a maior estranheza que, no espaço de cerca de dois meses e uma semana, o registo tenha sido alterado duas vezes, a segunda das quais entre duas pessoas casadas entre si no regime de comunhão de adquiridos. Mais uma vez, a despesa decorrente da alteração do registo e o facto de ficarem “mais nomes no livrete” foram considerados irrelevantes. Qual foi a finalidade dessa segunda transferência? A resposta dada por JS traduziu-se numa recusa de resposta, numa “não resposta”. Disse ele (minuto 8:02 da gravação) que “Foi interesses pessoais entre o casal, interesses pessoais entre nós. (…) Foi uma coisa entre nós em casa, resolvemos mudar o carro de nome, pronto. (…) Houve um pagamentozeco só assim para resolver a situação (…) sim, € 2.500.” Ficou, assim, tudo por explicar. Que “coisa” foi essa? Qual foi a finalidade do “pagamentozeco”? JS fechou-se e nada esclareceu. A conclusão a retirar só pode ser uma: com a súbita circulação do direito de propriedade sobre o veículo entre os patrimónios da sociedade e de cada um dos recorridos visou-se, exclusivamente, subtrair aquele direito aos efeitos patrimoniais da insolvência da sociedade, declarada poucos meses depois, em 17.05.2022.

Estranha-se, finalmente, a absoluta ausência de corroboração documental da versão factual veiculada por JS no seu depoimento de parte. Nomeadamente, não consta dos autos uma única factura/recibo relativa a despesas com o veículo que tivesse sido emitida em nome de JS, indiciando que este o considerasse um bem pessoal e não da sociedade. A não junção de tais documentos aos autos legitima a suspeita de que todos eles foram emitidos em nome da sociedade até ao dia 29.01.2021. Caso contrário, seria normal que esses documentos fossem apresentados.

Concluindo, mesmo admitindo em termos amplos a utilizabilidade do depoimento de parte como meio de prova, não pode ser reconhecido, em concreto, qualquer valor probatório ao depoimento de JS, por ter sido nitidamente falso. Daí que o conteúdo dos n.ºs 14 a 16, que o tribunal a quo julgou provado unicamente com base naquele depoimento, deva ser julgado não provado. O conteúdo da alínea a), que o tribunal a quo julgou não provado também com base naquele depoimento, deverá ser julgado provado, tendo em conta que a sociedade insolvente beneficiava da presunção da titularidade do direito de propriedade sobre o veículo decorrente do registo automóvel e que essa presunção não foi ilidida.

Pelo exposto:

- São eliminados os actuais n.ºs 14 a 16 da matéria de facto provada e a actual al. a) da matéria de facto não provada;

- Acrescenta-se, sob o n.º 14, o seguinte facto provado: “Quem adquiriu a viatura em 2015 foi a sociedade Automóveis, Lda.”;

- As als. a) a d) da matéria de facto não provada passam a ter a seguinte redacção:

a) Pelo réu JS foi pago, à ré FS, o valor de € 2.500,00, para que ocorresse a transferência de propriedade referida em 10;

b) Desde 2015 que é o réu JS quem paga os impostos e as revisões do veículo de matrícula 00-XX-00;

c) Foi o réu JS quem adquiriu e pagou o veículo de matrícula 00-XX-00, dando um veículo seu em troca e pagando um acréscimo de € 8.000,00;

d) Na data referida em 14, a ré FS era sócia da sociedade Automóveis, Lda..

2 – Verificação dos pressupostos da resolução em benefício da massa insolvente:

O artigo 120.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) dispõe que podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência (n.º 1), considerando-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência (n.º 2) e presumindo-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados (n.º 3). O n.º 4 do mesmo artigo estabelece que, salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data. Segundo o n.º 5, entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência; b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente; c) Do início do processo de insolvência.

O artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE, estabelece que são resolúveis em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos, os actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais.

O artigo 124.º, n.º 1, do CIRE, estabelece que a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores pressupõe a má fé destes, salvo tratando-se de sucessores a título universal ou se a nova transmissão tiver ocorrido a título gratuito.

Analisemos a situação dos autos à luz destes preceitos legais.

A transmissão do direito de propriedade sobre o veículo que foi registada em 29.10.2021, da sociedade insolvente para a recorrida FS, não implicou o pagamento de qualquer preço. Ou seja, tratou-se de uma alienação a título gratuito. Por outro lado, o período que mediou entre aquela transmissão e o início do processo de insolvência não excedeu dois anos. Estão, assim, preenchidos os pressupostos da resolução incondicional daquele negócio translativo do direito de propriedade sobre o veículo, estabelecidos no citado artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE.

Também a alteração do registo automóvel no sentido de JS nele passar a figurar como proprietário do veículo não implicou o pagamento, a FS, de qualquer quantia. Na realidade, o domínio sobre o veículo manteve-se na esfera dos recorridos, casados entre si sob o regime da comunhão de adquiridos, tudo apontando no sentido de que estes procederam a uma mera alteração do registo. Sendo assim, nos termos do artigo 124.º, n.º 1, do CIRE, a resolução em benefício da massa insolvente é oponível ao recorrido JS.

O artigo 126.º, n.º 1, do CIRE, estabelece que a resolução tem efeitos retroactivos, devendo reconstituir-se a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado ou omitido, consoante o caso. O direito de propriedade sobre o veículo passará, assim, a integrar a massa insolvente da sociedade Automóveis, Lda., devendo ser fixado um prazo para os recorridos procederem à entrega do veículo ao administrador da insolvência, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.

Conclui-se, assim, que o tribunal a quo devia ter julgado procedente o pedido principal. Tendo, em vez disso, julgado a acção improcedente, impõe-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão que julgue aquele pedido procedente, declarando resolvido, a favor da massa insolvente da sociedade Automóveis, Lda., o negócio jurídico mediante o qual esta sociedade transmitiu o direito de propriedade sobre o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo C350 CDI, matrícula 00-XX-00, para a recorrida FS. Os recorridos deverão proceder à entrega do veículo ao administrador da insolvência no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado deste acórdão.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e declarando-se resolvido, a favor da massa insolvente da sociedade Automóveis, Lda., o negócio jurídico mediante o qual esta sociedade transmitiu o direito de propriedade sobre o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo C350 CDI, matrícula 00-XX-00, para a recorrida FS. Os recorridos deverão proceder à entrega do veículo ao administrador da insolvência no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado deste acórdão.

Custas a cargo dos recorridos.

Notifique.

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Évora, 28.09.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.ª adjunta


Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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