Processo
n.º 167/20.1T8STB-A.E1
*
Sumário:
1
– No incidente de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades
parentais, o âmbito da
declaração judicial, que tem lugar na sua fase preliminar, de que o
incumprimento se verifica, não pode exceder o dos deveres objectivamente
decorrentes daquele regime.
2
– Daí que, ainda que o/a requerido/a, notificado do requerimento inicial, não
se pronuncie, o tribunal deva interpretar objectiva e autonomamente o regime de
exercício das responsabilidades parentais, não estando vinculado à
interpretação desse regime com base na qual o/a requerente formulou a sua
pretensão.
3
– O acordo sobre o regime
de exercício das responsabilidades parentais é um negócio jurídico bilateral,
ou seja, um contrato. É discutível a qualificação deste contrato como uma
transacção ou como um contrato atípico e inominado. Em qualquer caso, trata-se
de um contrato formal.
4
– À luz do critério estabelecido no artigo
236.º, n.º 1, do Código Civil, a cláusula de um acordo sobre o regime
de exercício das responsabilidades parentais na qual tenha ficado estipulado
que o requerido comparticiparia no pagamento de 50% das “despesas escolares/creche” deve ser
interpretada, no que concerne às despesas com a creche, no sentido de que
aquele dever de comparticipação abrange a contrapartida pecuniária devida pela
frequência da creche.
*
Incumprimento
do regime de exercício das responsabilidades parentais
Requerente:
LS
Requerido:
TF
Criança:
SF
*
Foi
proferida sentença, com o seguinte teor:
“O(a) requerido(a), citado nos presentes
autos, nunca alegou ou juntou prova de ter procedido ao pagamento das
prestações de alimentos cujo(a) requerente alega estarem em falta, bem como as
que se foram vencendo, entretanto; face ao exposto, resulta provada a
factualidade alegada pelo(a) requerente no que concerne aos montantes em dívida
a título de prestação de alimentos – conforme havia sido advertido o(a)
requerido(a) –, para onde se remete por questões de economia processual.
Fica, também, provado incumprimento
relativo às prestações alimentícias que se venceram, entretanto.
*
Estabelece o artigo 41.º/1 do RGPTC,
aprovado pela Lei n.º 141/2015 de 8 de agosto que «se, relativamente, à
situação da criança, um dos pais ou terceira pessoa a quem ela haja sido
confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o
tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro
progenitor, requerer ao tribunal que for territorialmente competente, as
diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso
em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos
pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou
de ambos».
Não tendo o(a) requerido(a) provado, como
se lhe impunha, de acordo com as regras do ónus da prova, o pagamento das
prestações de alimentos em falta fixadas a favor dos filhos, impõe-se, por decisão
judicial, verificar e declarar o incumprimento alegado.
Porém, relativamente ao pedido de
pagamento de 50% do valor do infantário, o Tribunal que não assiste razão à
requerente, pelas razões que se passam a explicar.
No acordo de regulação das responsabilidades
parentais, homologado por sentença, proferida no dia 12-02-2020, nos autos
principais, consta, no artigo segundo, o seguinte:
«O pai pagará a quantia mensal de 100,00
euros (cem euros) a título de pensão de alimentos, que transferirá até ao dia 8
de cada mês, para a conta da progenitora cujo NIB o progenitor já tem em seu
poder, sendo esta quantia atualizada anualmente, em janeiro, pelo índice de
inflação publicado pelo INE.
§ O pai contribuirá ainda com 50% para as
despesas escolares/creche, médicas e medicamentosas, mediante a apresentação de
comprovativo no prazo de 15 dias e serão pagas no prazo de 15 dias».
Ora, para que se concluísse que as partes
acordaram na repartição da mensalidade do infantário, tal teria de resultar
inequívoco do acordo de regulação das responsabilidades parentais, o que não é
caso. Efetivamente, o que consta é que resulta do acordado é que o pai pagará
50% das despesas escolares/creche, cláusula habitual nos acordos de regulação
das responsabilidades parentais, e que se refere a material escolar (livros,
canetas, mochila, etc.), ou, no caso da creche, material relacionado com a
mesma.
A questão da repartição das mensalidades
dos infantários, creches, escolas privadas, ATL, etc., tem de constar
expressamente regulada, o que não é o caso, estando absorvida pela prestação de
alimentos acordada.
Pelo exposto, declaro o incumprimento
pelo(a) requerido(a) TF do regime de regulação das responsabilidades parentais,
no que concerne ao pagamento de 800,00 EUR relativos às prestações de alimentos
a favor do seu filho, SF, entre os meses de janeiro a julho de 2022.
Custas pelo(a) requerido(a).
Consulte a base de dados da Segurança
Social, de modo a apurar se:
a) Em nome do requerido têm vindo a ser
registadas remunerações e, em caso afirmativo, em que montante, bem como a
denominação e a sede ou domicílio da respetiva entidade patronal;
b) O requerido recebe alguma pensão ou
outra prestação social, com indicação do valor mensal e da entidade pagadora.”
*
A
requerente interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as
seguintes conclusões:
1. A
douta sentença recorrida enferma de nulidade nos termos do disposto no artigo
615 alínea b) do CPC, o que, desde já se argui, uma vez que não estão ali
especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
2.
Prevendo também o artigo 215 nº 1 da CRP que as decisões dos tribunais que não
sejam de mero expediente devem ser fundamentadas na forma prevista na lei, o
que não aconteceu na sentença ora recorrida.
Caso
assim não se entenda, o que se admite sem conceder,
3. Vem
o presente recurso interposto da douta sentença que decidiu que o requerido não
devia ser obrigado a pagar a comparticipação de 50% do valor da creche do filho
SF.
4. Tal
obrigação resulta porém, do segundo parágrafo da cláusula segunda do acordo de
regulação das responsabilidades parentais do menor, firmado entre os
progenitores, de fls dos autos principais, e devidamente homologado por
sentença, que prevê expressamente que o pai contribuirá ainda com 50% para as
despesas escolares/creche do filho.
5.
Aquando da realização do acordo de regulação em questão, foi expressamente
manifestada pelos progenitores à Meritíssima Juiz “a quo”, aquando da tentativa
de conciliação do seu divórcio, ali convolado em divórcio por mútuo acordo, que
pretendiam que as despesas com a mensalidade da creche fossem repartidas entre
ambos, na proporção de 50%.
6. Não
se podem assim confundir despesas com material escolar com as despesas de
creche, pois a “creche” subsume-se ao pagamento de uma mensalidade, não
existindo ali despesas escolares.
7.
Além do mais, tal situação, em modesto entender da ora recorrente, só se poderia
questionar se o ali requerido a tivesse vindo arguir em sede de alegações, o
que não aconteceu.
8. E
nos autos recorridos, o facto foi que o ali requerido foi devidamente notificado
a fls. , para, no prazo de 5 dias, alegar o que tivesse por conveniente, nos
termos do disposto no artº 41º nº 3 do RGPTC.
9. E
foi, na notificação em questão, também advertido(a) de que, se nada dissesse,
se considerariam provados os factos alegados pela requerente, podendo
decidir-se sem mais ou após as averiguações que se mostrem necessárias em
conformidade.
10.
Não tendo, conforme consta da douta sentença, o requerido, apesar de devidamente
citado, alegado ou junto qualquer prova de ter procedido ao pagamento dos
valores peticionados pela requerente.
11. A
douta sentença recorrida viola assim o estatuído no artigo 567 nº 1 do CPC que
prevê que a falta de contestação do Réu tem como cominação legal a confissão
dos factos articulados pelo autor.
12. O
Juiz “a quo” deveria pois, em cumprimento do legalmente estatuído, ter
considerado confessados pelo progenitor os factos alegados pela ali requerente/aqui
recorrente e condená-lo no pedido deduzido por esta contra aquele.
13.
Não compreendendo a ora recorrente a sentença recorrida, quando vem, em
violação da lei, decidir em favor de um pai faltoso, contrariando aquilo que
foi acordado entre os progenitores, quanto às comparticipações do pai, não
guardião, nas despesas mensais do filho.
O
Ministério Público contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. A
douta Sentença sob recurso que decidiu não condenar o Requerido em 50% pelas
despesas devidas por conta do infantário de SF, relativa ao mês de março de
2022, não merece qualquer reparo, nem padece de qualquer nulidade, nem vício,
contrariamente ao alegado pela Recorrente.
II. A
fundamentação da decisão pelo Mm. Juiz de Direito a quo assentou nos elementos probatórios
juntos aos autos, designadamente do Acordo de regulação das responsabilidades parentais,
homologado por sentença, proferida no dia 12-02-2020, bem como nos restantes elementos
de prova documental carreados.
III.
Relativamente à motivação da matéria de facto, todos os factos alegados por
parte da Requerente foram dados como provados, como não foram contestados, com
exceção do facto relativo às despesas com infantário e creche, o qual
encontra-se devidamente espelhado na Douta Sentença e assinalado de forma
compreensível e inteligível, pelo que também não merece a douta Decisão
qualquer reparo.
IV.
Quanto à motivação da matéria de direito, o Mm. Juiz de Direito a quo também fundamentação
a decisão através da subsunção dos factos dados como provados e não provados à
matéria de direito aplicável nos autos, deixando explícita de forma clara a
matéria de direito que serviu de base para justificar a decisão proferida,
nomeadamente o disposto no artigo 41.º/1 do RGPTC, aprovado pela Lei n.º
141/2015 de 8 de agosto.
V. É
entendimento unânime no seio da jurisprudência que para que se mostra
verificada a nulidade decorrente do disposto no artigo 615.º, alínea b) do
Código Processo Civil (CPC) é necessária uma total ausência de fundamentação, a
este propósito cita-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de Processo:
487/20.5T8TMR.E1, Relator Emília Ramos Costa, disponível em www.dgsi.pt, datado
de 11-02-2021: «I – Para que se mostrasse
verificado o vício de falta de fundamentação do despacho recorrido, nos termos
do art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, como resulta
pacífico na nossa doutrina e jurisprudência, era necessário que se verificasse uma
situação de ausência de fundamentação de facto ou de direito, não bastando, assim,
uma mera situação de insuficiência, mediocridade ou erroneidade de tal
fundamentação.»
VI.
Face ao exposto, considera-se improcedente a nulidade invocada pela Recorrente,
nos termos do disposto no artigo 615.º, alínea b) do Código Processo Civil
(CPC).
VII. O
incumprimento do conteúdo das responsabilidades parentais encontra-se
delimitado às cláusulas em concreto que foram acordadas ou decididas, o que in
casu remete para o Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais,
proferido no dia 12-02-2020, nos autos principais, do qual consta, no artigo
segundo, o seguinte: «§ O pai contribuirá
ainda com 50% para as despesas escolares/creche, médicas e medicamentosas,
mediante a apresentação de comprovativo no prazo de 15 dias e serão pagas no
prazo de 15 dias».
VIII.
Sucede, porém, que a Recorrente veio requerer o valor de metade do pagamento
das despesas com o infantário de SF, conforme melhor resulta do ponto 6.º do
requerimento inicial apresentado: «O requerido deve assim, à data, a quantia
global de 405,00€, respeitantes ao valor das pensões de alimentos de janeiro a
Março de 2022 e a 50% do infantário do mês de Março.»
IX-
Analisada a despesa requerida pela Recorrente relativa ao Acordo em vigor à
data, o recibo do infantário/Centro de Atividades diz respeito ao valor devido
por conta da inscrição e matrícula da criança SF em tal estabelecimento.
X-
Contudo, o Regime de Regulação das Responsabilidades parentais em vigor
contempla eventuais despesas escolares, como bem referiu o Mm. Juiz de Direito
na douta Sentença, com material escolar, como cadernos, livros, canetas,
mochila e com creche, mas não qualquer matrícula/ inscrição/ frequência em
outro equipamento educativo,
XI-
Face ao exposto, qualquer divisão das despesas relativas à matrícula/
inscrição/ frequência de centro de atividades/ infantário / ATL da criança
deveria encontrar-se plasmado no Acordo de Regulação das Responsabilidades
Parentais, não podendo a cláusula com a divisão das despesas escolares genérica
abarcar mais do que é legalmente exigível.
XII- A
este propósito, menciona-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora,
Processo: 856/13.7TMSTB.E1, Relator Paulo Amaral, datado de 09-03-2017,
disponível em www.dgsi.pt: «1-O acordo de
regulação das responsabilidades parentais que as partes celebraram é um acordo
escrito sujeito às regras de interpretação definidas no art.º 236.º do Código
Civil. 2-É neste acordo que toda a situação deve ser regulada de modo a que se
perceba o âmbito de vinculação de cada uma das partes. 3-Estas obrigam-se pelo
que dele consta e não se obrigam pelo que dele não consta.»
XIII-
Não é concebível como alega a Recorrente que o Mm. Juiz de Direito viesse a
condenar o Requerido em mais do que lhe era legalmente exigível e condenável
pelo incumprimento, só pela circunstância do progenitor nada ter vindo alegar/
contestar, fazendo operar a falta de contestação de forma automática, sem
qualquer apreciação nem análise da matéria de facto e de direito por parte do
julgador, para além do que seria legalmente admissível e previsto no Acordo de Regulação
das Responsabilidades Parentais.
XIV- O
entendimento da Recorrente levaria no limite, ao risco, de qualquer factos
peticionados, não contestados, serem dados como provados, operando de forma
automática, sem qualquer apreciação crítica, de direito e de facto do julgador,
o que não se pretende num Estado de Direito, nem tal consequência decorre do
disposto nos artigos 41.º, n.º 3 do RGPTC e do artigo 567.º, n.º 1 do CPC. É,
por isso, forçoso concluir-se que o vício invocado pela Recorrente é
manifestamente improcedente, ao abrigo do disposto nos artigos 41.º, n.º 3 do
RGPTC e do artigo 567.º, n.º 1 do CPC.
XV-
Termos em que não merece provimento o recurso em apreço, por falta de
fundamento, devendo manter-se a sentença proferida, nomeadamente a matéria de
facto e de direito dada por provada, nos seus precisos termos.
O
recurso foi admitido.
*
Questões
a resolver:
1 – Nulidade
da sentença recorrida;
2 –
Interpretação da cláusula do acordo sobre o regime de exercício das
responsabilidades parentais relativa à comparticipação do requerido nas
“despesas escolares/creche”.
*
1
– Nulidade da sentença recorrida:
A
recorrente considera que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no
artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil (CPC), por falta de
especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Porém, sem razão.
Nos
termos do artigo 567.º, n.º 3, do CPC, se o réu for revel e a resolução da
causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte
decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação
sumária do julgado. Esta norma é aplicável ao processo tutelar cível ex vi artigo 33.º, n.º 1, do Regime Geral
do Processo Tutelar Cível (RGPTC).
No
caso dos autos, o recorrido foi notificado para se pronunciar sobre o
incumprimento que a recorrente lhe imputou e remeteu-se ao silêncio. Com esse
fundamento, o tribunal a quo
considerou provados os factos que consubstanciam o incumprimento da pensão de
alimentos a que o recorrido se encontra vinculado, tendo remetido para o
requerimento inicial no que concerne ao montante em dívida. Atento o disposto
no citado artigo 567.º, n.º 3, do CPC, deve considerar-se que esta fundamentação
de facto é suficiente.
Ainda
que assim se não entendesse, certo é que nunca poderia falar-se em absoluta ausência
de fundamentação de facto. Ora, é pacífico que apenas esta ausência, e não a mera
insuficiência, configura a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do
CPC.
Por
outro lado, é evidente que a sentença recorrida se encontra fundamentada de
direito, pois refere expressamente a norma legal que considera aplicável e
enuncia os efeitos que, com base nos factos provados, dela retira para a
decisão do caso dos autos.
Concluindo,
a sentença não padece da nulidade arguida pela recorrente.
2
– Interpretação da cláusula do acordo sobre o regime de exercício das
responsabilidades parentais relativa à comparticipação do requerido nas “despesas
escolares/creche”:
Em
matéria de prestação de alimentos pelo recorrido ao filho, foi acordado o
seguinte:
«O pai
pagará a quantia mensal de 100,00 euros (cem euros) a título de pensão de
alimentos, que transferirá até ao dia 8 de cada mês, para a conta da
progenitora cujo NIB o progenitor já tem em seu poder, sendo esta quantia
atualizada anualmente, em janeiro, pelo índice de inflação publicado pelo INE.
§ O
pai contribuirá ainda com 50% para as despesas escolares/creche, médicas e
medicamentosas, mediante a apresentação de comprovativo no prazo de 15 dias e
serão pagas no prazo de 15 dias».
O
tribunal a quo interpretou esta
cláusula do acordo sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais no
sentido de o requerido estar obrigado a comparticipar em 50% das despesas com o
material necessário para a frequência da escola ou da creche pelo filho, mas não
em 50% da contrapartida pecuniária devida por essa frequência. Com base nessa
interpretação, o tribunal a quo
julgou improcedente o incidente de incumprimento na parte relativa àquela
comparticipação.
A
recorrente insurge-se contra esta decisão com um duplo fundamento: 1)
Objectivamente, a cláusula que acima reproduzimos deve ser interpretada no
sentido de a obrigação de comparticipação, por parte do recorrido, em “50% para
as despesas escolares/creche”, abranger a contrapartida devida pela frequência
da escola ou da creche; 2) O recorrido não contestou a obrigação de
comparticipação nas despesas escolares/creche tal como a recorrente a
configurou, pelo que deve considerar-se confessada a existência da obrigação
nesses termos.
Comecemos
por apreciar este segundo fundamento.
Resulta
do artigo 41.º, n.º 1, do RGPTC, que o incidente de incumprimento tem três
finalidades: 1) A cessação do incumprimento do regime de exercício das
responsabilidades parentais através da adopção das diligências para o efeito
necessárias; 2) A condenação do remisso em multa até 20 UC; 3) A condenação do
remisso no pagamento de uma indemnização à criança, ao progenitor requerente ou
a ambos. A primeira finalidade tem natureza executiva. As segunda e terceira
finalidades assumem natureza declarativa.
Interessa-nos
a primeira finalidade, uma vez que aquilo que a recorrente pretende é a prática
das diligências necessárias para fazer cessar a situação de incumprimento por
parte do recorrido. Nessa parte, o presente incidente tem por base o acordo
sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais e a sentença
homologatória desse acordo. A sentença recorrida encerrou a fase declarativa
preliminar do incidente, destinada unicamente a comprovar a existência do incumprimento
e a fixar o âmbito deste[1],
tendo em conta o regime de exercício das responsabilidades parentais
estabelecido e os factos relevantes para ajuizar da situação de incumprimento
que foram julgados provados.
Sendo
assim, o âmbito da declaração judicial de que o incumprimento se verifica não
pode exceder o dos deveres objectivamente decorrentes do regime de exercício
das responsabilidades parentais. Só em relação àquilo que for devido poderá
haver incumprimento. Não poderá, como a recorrente pretende, o tribunal decidir
que se verifica um incumprimento que não tenha sustentação no regime de
exercício das responsabilidades parentais, ainda que o/a requerente alegue esse
suposto incumprimento, com base numa determinada interpretação daquele regime, e
o/a requerido/a não conteste. Inexiste fundamento para considerar que o
silêncio do/a requerido/a tem tal efeito cominatório. O efeito cominatório da
falta de oposição apenas pode ter por objecto factos, não também uma
determinada interpretação do regime de exercício das responsabilidades
parentais, proposta pelo/a requerente.
Consequentemente,
ainda que o/a requerido/a não conteste, o tribunal deverá declarar o
incumprimento sem extravasar dos deveres que resultam do regime de exercício
das responsabilidades parentais, na interpretação que dele fizer. Foi o que o
tribunal a quo fez, não merecendo,
neste aspecto, crítica.
Aquilo
que realmente importa é apurar se a interpretação que o tribunal a quo fez da cláusula do acordo sobre o
exercício das responsabilidades parentais que acima reproduzimos é a correcta.
Somos, assim, reconduzidos ao primeiro fundamento da pretensão da recorrente.
O
acordo sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais é um negócio
jurídico bilateral, ou seja, um contrato. É discutível a qualificação deste
contrato como uma transacção – artigos 1248.º a 1250.º do Código Civil (CC) –
ou como um contrato atípico e inominado. Se, nessa discussão, se adoptar o
entendimento de que, sendo celebrado numa fase processual posterior à
conferência prevista nos artigos 35.º a 38.º do RGPRC, o mesmo contrato deve
ser qualificado como uma transacção, por se verificarem os elementos típicos da
existência de um litígio e da resolução deste mediante recíprocas concessões,
sendo inominado e atípico nas restantes hipóteses, devido à ausência daqueles
elementos[2],
os autos nem sequer fornecem elementos para uma tomada de posição sobre a
natureza do acordo celebrado entre recorrente e recorrido, pois desconhecemos
em que circunstâncias essa celebração ocorreu.
Contudo,
seja ou não qualificável como transacção, é certo que estaremos sempre perante
um contrato. Contrato formal, pois tem de constar de documento particular, a
dirigir ao tribunal ou à conservatória do registo civil para homologação, ou do
auto ou acta da diligência judicial (conferência ou audiência final) em que
seja celebrado, auto ou acta esses que são documentos autênticos – artigos 363.º,
n.ºs 1 e 2, 1775.º, n.º 1, al. b), 2.ª parte, 1776.º-A, 1778.º, 1778.º-A,
1905.º, n.º 1, e 1909.º, n.º 2, do CC, e 34.º, 37.º, n.º 2, e 39.º, n.º 3, do
RGPTC. Logo, a sua interpretação deverá, em qualquer hipótese, fazer-se nos
termos dos artigos 236.º a 238.º do CC.
O
artigo 236.º, n.º 1, do CC, estabelece que a declaração negocial vale com o
sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real,
possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder
razoavelmente contar com ele. O artigo 238.º, n.º 1, do mesmo código, dispõe
que, nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não
tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que
imperfeitamente expresso.
À
luz da primeira das normas acabadas de citar, não vemos razão para fazer uma
interpretação restritiva da expressão “despesas escolares/creche”, por forma a
delas excluir a contrapartida pecuniária devida pela frequência da escola ou da
creche. Se a recorrente e o recorrido tivessem querido restringir a
comparticipação do segundo a 50% das despesas com o material necessário para a
frequência da escola ou da creche, a forma correcta de expressar essa vontade
seria estipulando que tal comparticipação seria nas “despesas com o material
escolar e com o material necessário para a frequência da creche” pelo filho.
A
previsão de uma comparticipação em despesas com determinada actividade (escola,
creche, explicações, aulas de música, uma modalidade desportiva) inclui, em princípio,
tudo aquilo que seja necessário para o exercício desta. Se se quiser restringir
a comparticipação a algumas despesas relacionadas com tal actividade, aquilo
que é normal fazer-se é expressar essa restrição no texto da cláusula. Na
ausência desta restrição, deve, em princípio, concluir-se que está abrangido
tudo aquilo que o texto expressa.
Dada
a forma como a cláusula do acordo de regulação do exercício das
responsabilidades parentais que vimos analisando se encontra redigida, referindo
conjuntamente as despesas com a escola e a creche, temos, à semelhança do
tribunal a quo, tratado conjuntamente
estas despesas. Contudo, é útil, para corroborar a interpretação que daquela
cláusula fazemos, abstrair das “despesas escolares”, centrando-nos na previsão
das “despesas com a creche”.
A
menos que a criança ou jovem frequente o ensino particular, as despesas escolares
mais significativas resultam da aquisição do material escolar, pelo menos até
ao final da escolaridade obrigatória. No que respeita às despesas com a creche,
verifica-se precisamente o contrário. A despesa, de longe, mais significativa,
é com o pagamento da contrapartida pela frequência da creche. O custo do
material necessário para a criança aí desenvolver actividades é, ao menos na
normalidade dos casos, insignificante. Até as despesas com passeios e “visitas
de estudo” (despesas estas que, na interpretação restritiva feita pelo tribunal
a quo, também ficariam indevidamente
excluídas da cláusula que analisamos) tendem a superar aquelas que decorrem da
aquisição de material necessário para o desenvolvimento de actividades na
creche, que se resumirá a pouco mais que alguns artigos de papelaria.
Sendo
assim, interpretar uma cláusula em que se estipula uma comparticipação específica
em “despesas com a creche” como compreendendo apenas as despesas com material
necessário para a criança frequentar a creche, excluindo a despesa
verdadeiramente relevante, que é a contrapartida por essa frequência, não respeita,
de modo algum, o critério estabelecido pelo artigo 236.º, n.º 1, do CC. A
interpretação que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário
real, necessariamente fará da expressão “despesas com a creche”, é a de que a
mesma compreende todas as despesas decorrentes da frequência da creche,
incluindo, portanto, a contrapartida devida por essa frequência, o custo dos
materiais necessários ao desenvolvimento de actividades, as despesas
decorrentes de eventuais passeios ou “visitas de estudo” e, eventualmente, outras.
No
fundo, interpretar a cláusula em questão nos termos em que o tribunal a quo o fez equivaleria a quase
esvaziá-la de conteúdo no que se refere às despesas com a creche. Este
resultado reforça a nossa convicção de que a recorrente e o recorrido não
quiseram atribuir, ao segmento da cláusula que analisamos, o sentido de que a
comparticipação do segundo é apenas em 50% das despesas com a aquisição de
material necessário para a frequência da creche pelo filho. Não faria sentido
uma previsão tão ampla para designar uma realidade tão restrita, deixando de
fora aquela que é, de longe, a despesa mais significativa.
A
interpretação que fazemos harmoniza-se perfeitamente com a exigência, feita no
artigo 238.º, n.º 1, do CC, de um mínimo de correspondência do resultado
daquela com o texto da cláusula que estabelece a comparticipação do recorrido
em 50% das despesas com a creche do filho. Existe, aliás, bem mais que um
mínimo de correspondência. Prevendo aquele texto, irrestritamente, as despesas
com a creche, o entendimento de que o dever de comparticipação do recorrente
abrange 50% de todas e quaisquer despesas decorrentes da frequência da creche
surge como aquele que melhor se harmoniza com o mesmo texto.
Concluindo,
a recorrente tem razão. A sentença recorrida deveria ter declarado o
incumprimento do recorrido também quanto à obrigação de comparticipação deste
nas despesas com a creche do filho. O recurso deverá, pois, proceder.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se
a sentença recorrida na parte em que não declarou que o recorrido incumpriu a
obrigação de comparticipar, na proporção de 50%, no pagamento das despesas
decorrentes da frequência da creche pelo filho, e declarando-se esse
incumprimento.
Custas
a cargo do recorrido.
Notifique.
*
Évora, 28.09.2023
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª
adjunta
[1] Ainda que fique provado o
incumprimento, a sentença proferida na fase preliminar do incidente de
incumprimento não deverá condenar o requerido, como a recorrente pretende. Não
é essa a finalidade do incidente de incumprimento. A referida condenação seria
inútil, pois já existe título executivo, constituído pela decisão que fixou o
regime de exercício das responsabilidades parentais ou homologou o acordo sobre
esse regime.
[2] Leia-se, sobre esta problemática,
TIAGO SOARES DA FONSECA, A Transação
Civil na Litigância Extrajudicial e Judicial, Gestlegal, Coimbra, 2018,
páginas 383 a 387, 627 a 643 e 720-721.