quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 09.09.2021

Processo n.º 558/17.5T8OLH-I.E1

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Sumário:

O animus da posse não consiste na convicção de que se é titular do direito real nos termos do qual se possui, mas sim na vontade de exercer os poderes sobre a coisa como se se fosse o titular daquele direito real, independentemente da convicção que se tenha acerca dessa titularidade.

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DM propôs, ao abrigo do disposto nos artigos 146.º a 148.º do CIRE, a presente acção de restituição de bens contra Massa Insolvente de ME, ME, ARES-Lusitani, STC, S.A., Autoridade Tributária – Serviço de Finanças de Albufeira, Banco BIC Português, S.A., Banco BPI, S.A., Banco Comercial Português, S.A., Bankinter, S.A., Ortogon Portugal, S.A., e Caixa Económica Montepio Geral, Caixa Económica Bancária, S.A., tendo formulado os seguintes pedidos: A) Declarar-se que o autor é o único proprietário da fracção autónoma de propriedade horizontal identificada pela letras “AB”, correspondente ao oitavo esquerdo, e de 2/10 da fracção autónoma identificada pela letra “C”, ambas do prédio urbano dividido em propriedade horizontal, sito na Praceta (…), Lote B-7-B, (…), da freguesia e Concelho de Loures, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…) e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º (…), e por as ter adquiridos por usucapião; B) Declarar-se que a apreensão destes bens em sede da insolvência processada nos autos aqui ditos principais ofende a propriedade do autor sobre os mesmos, pelo que aqui se reivindica essa propriedade e, por isso, deverá ser ordenado, ao administrador da insolvência, que cesse a apreensão decretada sobre estes bens e que os mesmos sejam restituídos ao autor, livres de quaisquer ónus e encargos; C) Ordenar-se, ao conservador do registo predial, o cancelamento das seguintes inscrições: a) sobre a fracção “AB”, a de penhora a que se reporta a AP. 2377 de 2013/02/20, b) sobre 2/10 da fracção “C”, a de penhora a que se reporta a ap. 92 de 2013/03/08 e a de declaração de insolvência a que se reporta a ap. 2168 de 2019/04/15, e c) ordenar-se ao mesmo conservador o cancelamento de quaisquer outras inscrições registrais que sejam incompatíveis com a propriedade, livre de ónus e encargos, do autor sobre aqueles imóveis; D) Ordenar-se a inscrição definitiva de propriedade do autor sobre os mesmos e por aquisição por usucapião.

Apenas o réu Banco Comercial Português, S.A., contestou, invocando as excepções dilatórias da ilegitimidade activa e do erro na forma de processo e pugnando pela improcedência da acção.

O autor respondeu às excepções invocadas pelo réu Banco Comercial Português, S.A..

Teve lugar audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador em que, além do mais, foram julgadas improcedentes as excepções invocadas pelo réu Banco Comercial Português, S.A.. Procedeu-se à identificação do objecto do litígio e ao enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença julgando a acção procedente e, em consequência: 1) Declarando que o autor adquiriu o direito de propriedade sobre fracção autónoma identificada pela letras “AB”, correspondente ao oitavo esquerdo, e de 2/10 da fracção autónoma identificada pela letra “C”, ambas do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Praceta (…), Lote B-7-B, (…), da freguesia e Concelho de Loures, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º (…), por usucapião; 2) Ordenando a separação dos direitos sobre as referidas fracções da Massa Insolvente de ME e a sua restituição ao autor; 3) Ordenando as correspondentes alterações ao registo predial do imóvel incompatíveis com a referida aquisição.

O réu Banco Comercial Português, S.A., interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso interposto da sentença proferida a 16.03.2021, nos termos da qual o tribunal a quo decidiu declarar que o autor adquiriu o direito de propriedade sobre fracção autónoma identificada pelas letras “AB”, correspondente ao oitavo esquerdo, e de 2/10 da fracção autónoma identificada pela letra “C”, ambas do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Praceta (…), Lote B-7-B, (…), da freguesia e concelho de Loures, inscrito na respectiva matriz sob o n.º (…), por usucapião; ordenar a separação dos direitos sobre as referidas fracções da Massa Insolvente de ME e a sua restituição ao autor; e ordenar as correspondentes alterações ao registo predial do imóvel incompatíveis com a referida aquisição.

B) O recorrente considera existir erro de julgamento quanto à apreciação da matéria de facto, ao considerar provado o facto 18. E não considerando provados factos que resultaram efectivamente assentes face a prova testemunhal produzida nos autos.

C) Com efeito, o tribunal a quo considerou provado o facto enunciado como n.º 18 que enuncia o seguinte “A partir do momento em que o MT e mulher entregaram ao autor as fracções, e até hoje, ininterruptamente, este agiu quanto às mesmas como se fosse proprietário exclusivo, à vista de todos, sem qualquer oposição, tendo passado a dispor dos identificados locais, como seu proprietário, sendo que, como tal, passou a ser considerado, nomeadamente, pelos vizinhos.”

D) Na fundamentação da convicção, o tribunal a quo afirma que “Todas as testemunhas ouvidas confirmaram que, desde 1994, e a filha do autor usou as fracções para sua habitação e estacionamento de veículos, com o conhecimento e autorização de seu pai, que todos reconhecem como sendo o proprietário”.

E) Porém, é a própria filha do autor, a testemunha ZM quem, em depoimento [minutos 01:12 a 14:51 da gravação da audiência de julgamento de 10.03.2021], infirma esta conclusão:

Aos minutos 01:12, da gravação da audiência de julgamento ocorrida em 10.03.2021, e perguntada pela juiz sobre a sua morada completa, esta testemunha responde aos minutos 01:17 “…. Cascais”.

Posteriormente, especifica que vive em Cascais desde, pelo menos, 2011:

14:40 – Mandatária do réu: Finalmente perguntava-lhe desde quando é que vive na morada que indicou quando iniciou o seu depoimento

(…)

14:51 – Testemunha: Já estou em Cascais há dez anos.

F) Este facto importa pois tal como afirmou esta testemunha, filha do autor, o seu pai quis comprar esta casa para lhe oferecer:

03:33 a 03:34 – Testemunha: o meu pai ofereceu-me a casa.

03:44 – Testemunha: Fui eu que escolhi o apartamento com ele.

03:47 – Mandatário do autor: Pediu ao seu pai para comprar?

03:48 – Testemunha: Exactamente.

05:32 – Testemunha: A possibilidade era quando estivesse tudo regularizado passar para mim.

10:10 – Testemunha: O meu pai sempre dizia que era para mim.

G) Ao longo do seu depoimento a testemunha explica que a casa foi comprada para si, e que terá sido o seu pai a fazer o negócio para evitar que este património fosse discutido no âmbito do processo de divórcio, que a levou, precisamente, a procurar casa.

H) Pelo que, o facto provado enunciado no n.º 18 deverá ser alterado, passando aí a constar que o autor celebrou um contrato de promessa de compra e venda com MT e mulher tencionando doar o imóvel objecto de tal contrato à sua filha ZM, que o ocupou por um período de tempo inferior a 20 anos.

I) De acordo com o artigo 1287.º do Código Civil, a usucapião tem como pressupostos necessários: a posse e a manutenção da posse por certo lapso de tempo.

J) A posse é concebida, no direito português, no quadro da concepção subjectivista a qual tem por base uma postura voluntarista e individualista, que tende a restringir o conceito de posse e o campo da sua aplicação prática, delimitando-o em função do animus especialmente qualificado,

K) Em que o sistema possessório instituído pelo Código de 1966 obedece à concepção dita subjectivista, em que ao elemento objectivo corpus, poder que se manifesta quando alguém actua de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251.º), acresceria o elemento subjectivo animus, definido como a intenção de exercer, como titular, um direito real sobre a coisa (art. 1253.º, alínea a), a contrario sensu), assim se distinguindo da detenção, caracterizada pelo simples exercício daquele poder de facto, desprovido da referida intenção.

L) Ainda, conforme Abílio Vassalo Abreu refere, “tendo o nosso Código Civil adoptado um sistema marcadamente subjectivista, (…)” “(….) a posse ad usucapionem terá de ser entendida como aquela em que os dois elementos, corpus e animus, (…) se conjugam, pois só o exercício de um poder de facto ou empírico, acompanhado de uma vontade especialmente qualificada, o exercício dos poderes de facto ou empíricos sobre uma coisa não são susceptíveis de conduzir à usucapião. Nisto reside a distinção essencial entre posse e detenção consagrada no nosso Código Civil, pois se a primeira não prescinde de uma vontade especialmente qualificada correspondente a um direito real que intente o exercício de poderes factuais, a segunda caracteriza-se precisamente pela sua ausência, e quando isto acontece, não se pode falar de posse ad usucapionem no nosso direito”.

M) Também o Professor Orlando de Carvalho refere que a posse “Envolve, portanto, um elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um elemento psicológico – em termos de um direito real. Ao primeiro é que se chama corpus e ao segundo animus. Elementos, como se disse, interdependentes ou em relação biunívoca”.

N) A tutela possessória e os efeitos da posse exigem, como seu necessário pressuposto, uma relação material e duradoura entre uma pessoa e certa coisa, reveladora da sua vontade de a possuir – animus possidendi -, de a ter para si; isto é, requer-se que quem pratica os actos exteriorizadores de um determinado poder de facto sobre uma coisa aja convicto que é titular do respectivo direito de propriedade –animus domini – ou de outro direito real limitado.

O) Veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.05.2008, processo n.º 076112, em que foi Relator Cura Mariano, disponível in www.dgsi.pt: “Na posse distinguem-se dois momentos: um elemento material – corpus – que se identifica com os actos materiais (detenção, punição, ou ambos conjuntamente) praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre a coisa; um elemento psicológico – animus – que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados. Com a referida definição de corpus não se quis confinar o mesmo ao limite estreito de uma simples relação material da pessoa e da coisa (…). O animus consiste na intenção de exercer, como titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela. Quem não detém a posse propriamente dita – e o possuidor em nome alheio não a tem – não adquire a coisa detida sem inversão do título da posse.”

P) Ora, quer o autor, quer a sua filha, praticaram actos de mera detenção do imóvel, tolerada pelos proprietários.

Q) Não agiam convictos de que eram titulares do respectivo direito de propriedade, mas pelo contrário: sabiam perfeitamente que aquele imóvel não lhes pertencia.

R) Com efeito, o autor celebrou um contrato promessa de compra e venda, pelo que todas as quantias adiantadas ao abrigo do mesmo têm o carácter de sinal (e não de preço).

S) O autor tinha na sua posse uma procuração irrevogável outorgada pelos proprietários dos imóveis em causa, que o habilitava a celebrar escritura.

T) Bem sabendo e compreendendo pela interpretação daquela declaração negocial que seria necessário a celebração de escritura pelo preço aí fixado para transmitir a propriedade dos imóveis dos mandantes.

U) A não se entender assim e a configurar os pagamentos feitos ao abrigo do contrato promessa de compra e venda como pagamento do preço, insistindo que aí se deu a perfeição do negócio de compra e venda, então o negócio é nulo, por falta de forma e por simulação.

V) Fez o tribunal a quo uma interpretação errada dos artigos 1287.º e 1296.º do Código Civil, devendo a decisão sub judice ser revogada e substituída por outra que determine a improcedência da acção.

O recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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As questões a resolver são as seguintes:

- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

- Verificação dos pressupostos da aquisição do direito de propriedade mediante usucapião.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Em 24.05.1994, o autor celebrou com MT, marido da insolvente, ME, um contrato pelo qual este lhe prometeu vender, livre de ónus ou encargos, a fracção autónoma designada pela letra “AB” (apartamento no 8º-esqº) e o direito a 2/10 indivisos da fracção “C”, correspondente a dois lugares de estacionamento, com os n.ºs 6 e 7 (no piso -4), do prédio urbano, sito na Urbanização das (…), Praceta Barahona, Lote B-7-B Fernandes, freguesia e concelho de Loures, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º (…), daquela freguesia, e inscrito na matriz sob o artigo (…), da mesma freguesia, pelo preço de 15.000.000$00 (€ 74.819,68).

2. Ficou acordado nesse contrato que o preço seria pago em duas prestações, uma no valor de € 8.000.000$00 (€ 39.903,83), na data da assinatura do contrato promessa, e 7.000.000$00 (€ 34.915,85), no prazo máximo de 120 dias, a contar de 24.05.1994, ou no acto da escritura de compra e venda, se esta ocorresse antes.

3. Ficou ainda previsto nesse contrato que a escritura de compra e venda seria celebrada a favor do promitente comprador ou de quem ele indicasse, e logo que este o exigisse.

4. Com a celebração do contrato-promessa, o autor entregou a MT o pagamento de parte do preço, no montante de 8.000.000$00 (€ 39.903,83).

5. Nessa data, MT entregou ao autor as chaves da fracção e os lugares de garagem objecto do contrato.

6. Por sua vez, o autor entregou as fracções à filha, ZM, que as passou a usar para sua habitação e parqueamento de veículos.

7. A partir do início de Junho de 1994, a filha do autor passou a ter na fracção a sua residência e aí passou a fazer a sua vida doméstica normal, ali preparando e tomando refeições, dormindo, recebendo amigos, e passou a estacionar os seus veículos automóveis nos dois lugares de garagem.

8. Em 27.07.1994, realizou-se a assembleia de condóminos do prédio urbano com uma ordem de trabalhos em que se incluía: 1º Eleição da Administração do Condomínio. 2º Entrega formal do prédio e partes comuns pelo construtor à Administração eleita 3º Problemática da alteração dos contadores de luz e água do nome do construtor para a Administração, 4º Apresentação das despesas comuns pagas pelo construtor no interesse e benefício dos condóminos até à data.

9. O construtor que edificou o prédio urbano em causa, MT, compareceu naquela assembleia e participou nela em representação das fracções designadas pelas letras “H”, “AC”, e “AD”, correspondentes ao r/c esq., 9.º dt.º e 9.º esq., respectivamente.

10. Mas nela não representou a fracção “AB”, nem do direito aos 2/10 indivisos da fracção “C”.

11. Na referida assembleia de condóminos, o autor não esteve presente nem se fez representar, e a sua fracção não figura na discriminação das fracções cujos condóminos participaram.

12. A assembleia de condóminos referida foi suspensa e designada para a sua continuação o dia 01.08.1994, e nesta continuação já o condómino da fração “AB” assim como titular do direito dos 2/10 indivisos da fração “C”, lugares de garagem, figura como estando presente.

13. O autor foi nela representado pela sua filha ZM, que participou nos trabalhos e votou segundo as instruções que recebera do pai.

14. O prédio em causa não dispõe de licença de utilização/habitabilidade, e a câmara não a emite por motivo de várias ilegalidades que, diz, existirem no prédio.

15. Em 26.10.1994, no Cartório Notarial de Odivelas, MT e a sua mulher, a aqui insolvente, outorgaram uma procuração, pela qual constituíram seu procurador o autor conferindo-lhe poderes para, nomeadamente, vender ou por qualquer forma alienar as fracções identificadas em 1, supra, podendo assinar as respectivas escrituras.

16. Esse mandato não poderia ser revogado, nem caducaria por morte, inabilitação ou interdição dos mandantes, podendo o autor celebrar a escritura de compra e venda consigo mesmo, prescindindo o MT e mulher da prestação de contas.

17. Com a entrega desta procuração, o autor pagou o remanescente do preço acordado, no valor de 7.000.000$00 (€ 34.915,85), através dos três cheques.

18. A partir do momento em que o MT e mulher entregaram ao autor as fracções, e até hoje, ininterruptamente, este agiu quanto às mesmas como se fosse proprietário exclusivo, à vista de todos, sem qualquer oposição, tendo passado a dispor dos identificados locais, como seu proprietário, sendo que, como tal, passou a ser considerado, nomeadamente, pelos vizinhos.

19. Desde a entrega das frações, o autor passou a pagar as contribuições para as despesas comuns do condomínio.

20. MT e mulher não mais se comportaram em relação às fracções como proprietários ou possuidores.

21. ME foi declarada insolvente por sentença proferida a 14.07.2017.

22. A propriedade das fracções referidas em 1 está inscrita na Conservatória do Registo Predial de Loures a favor de MT e mulher ME.

23. A fracção AB identificada em 1 e o direito sobre a fracção C foram apreendidos para a massa insolvente sob as verbas n.ºs 13 e 14 do auto de apreensão de bens imóveis.

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Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

O recorrente considera que o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento ao dar como provado que, “A partir do momento em que o MT e mulher entregaram ao autor as fracções, e até hoje, ininterruptamente, este agiu quanto às mesmas como se fosse proprietário exclusivo, à vista de todos, sem qualquer oposição, tendo passado a dispor dos identificados locais, como seu proprietário, sendo que, como tal, passou a ser considerado, nomeadamente, pelos vizinhos” (n.º 18).

Para fundamentar esta tomada de posição, o recorrente invoca os trechos do depoimento da testemunha ZM em que esta afirma que reside em Cascais há 10 anos, que o recorrido, seu pai, lhe ofereceu o apartamento dos autos, que foi ela própria quem escolheu o apartamento e pediu àquele para o comprar e que planeavam “passar” o apartamento para si “quando estivesse tudo regularizado”.

Com base em tais afirmações, o recorrente conclui que o n.º 18 da matéria de facto provada deverá ser alterado, passando constar do mesmo que o recorrido celebrou um contrato de promessa de compra e venda com MT e mulher tencionando doar o imóvel objecto de tal contrato à sua filha ZM, que o ocupou por um período de tempo inferior a 20 anos.

Inexiste fundamento para se proceder à alteração pretendida pelo recorrente, pelas razões que passamos a expor.

O conteúdo que o recorrente propõe para o n.º 18, além de carecer, em grande parte, de suporte probatório, não constitui uma versão alternativa dos factos que dele actualmente constam, ou seja, não prejudica estes últimos. Em vez disso, encerra questões de facto diversas.

Mais detalhadamente:

Não é exacto que o recorrido celebrou um contrato-promessa de compra e venda com MT e mulher. Resulta da cópia do contrato-promessa junta com a petição inicial que o promitente vendedor foi apenas MT, tal como foi julgado provado no n.º 1.

É irrelevante para a decisão da causa que o recorrido tenha celebrado o referido contrato-promessa de compra e venda movido pela intenção de, futuramente, doar a ZM as fracções que prometeu comprar. Sobre a questão de facto versada no n.º 18, que é o exercício de poderes de facto sobre as fracções por parte do recorrido desde 1994 até à actualidade, aquela hipotética intenção é inócua.

É igualmente irrelevante para a decisão da causa e em nada prejudicaria o conteúdo do n.º 18 que ZM tivesse ocupado as fracções apenas até ao ano de 2011. Nunca estaria em causa a permanência do exercício de poderes de facto sobre as fracções por parte do recorrido nos termos julgados provados no n.º 18, ou seja, para além do ano de 2011, tanto mais que está provado que MT e sua mulher não mais se comportaram em relação às fracções como proprietários ou possuidores (n.º 20). A hipotética cessação da utilização das fracções por ZM no ano de 2011 apenas significaria que, a partir desse momento, o recorrido teria exercido os poderes de facto descritos no n.º 18 sem ser por intermédio daquela, nunca que tal exercício tivesse cessado.

Por outro lado, o recorrente retirou as afirmações da testemunha ZM transcritas nas alegações de recurso do contexto em que foram proferidas. Ouvido na sua totalidade, o depoimento desta testemunha corrobora o teor do n.º 18 dos factos provados.

ZM afirmou que as fracções foram compradas pelo recorrido a seu pedido e foi ela quem as escolheu. Não obstante, deixou muito claro que, no seu entendimento, o comprador das fracções foi o recorrido e, consequentemente, é este o proprietário das mesmas fracções. A utilização das fracções por ZM sempre ocorreu a título de favor, nunca sendo posto em causa, por ela ou por qualquer outra pessoa, nomeadamente por MT, que as fracções pertencessem ao recorrido. Sintomaticamente, quando ia às reuniões do condomínio, ZM levava uma procuração do recorrido, que lhe permitia actuar em nome deste último.

No que concerne à utilização das fracções, ZM afirmou que começou a residir em Cascais cerca de dez anos antes da data em que prestou o seu depoimento, mas também deixou bem claro que nunca abandonou as mesmas fracções. ZM afirmou que, apesar de já não residir no apartamento, ainda nele tem mobília e a ele se desloca de vez em quando para o arejar, bem como para tratar de assuntos relativos ao condomínio. Mais, afirmou ter emprestado as fracções a uma amiga para esta habitar quando fez obras em casa. Em suma, ZM deixou de residir nas fracções (apartamento e estacionamento) em 2011, mas continua a utilizá-las, nos termos descritos, por tolerância do recorrido, seu pai.

Por este somatório de razões, inexiste fundamento para alterar o n.º 18 da matéria de facto provada.

Verificação dos pressupostos da aquisição do direito de propriedade mediante usucapião:

Analisemos a argumentação desenvolvida pelo recorrente com vista a demonstrar a não verificação dos pressupostos da aquisição, pelo recorrido, mediante usucapião, do direito de propriedade sobre a totalidade da fracção “AB”, correspondente a um apartamento, e 2/10 indivisos da fracção “C”, correspondentes a dois lugares de garagem.

O recorrente afirma que, quer o recorrido, quer a sua filha ZM, praticaram actos de mera detenção sobre as fracções, tolerados pelos proprietários destas. Esta afirmação é exacta no que concerne a ZM. Efectivamente, esta utiliza o apartamento e os dois lugares de garagem porque o recorrido lhos entregou, a título de favor, para esse efeito, sendo, consequentemente, uma mera detentora ou possuidora precária, nos termos do artigo 1253.º, al. c), do Código Civil. Já em relação ao recorrido, tem de concluir-se, em face da matéria de facto julgada provada, particularmente nos n.ºs 18 e 20, que ele exerce, desde 24.05.1994, uma posse sobre o apartamento e os dois lugares de garagem nos termos do direito de propriedade, como previsto no artigo 1251.º do mesmo código.

Na conclusão Q, o recorrente continua a colocar o recorrido e sua filha no mesmo plano, o que já vimos ser errado. ZM é, efectivamente, uma mera detentora ou possuidora precária. Quanto ao recorrido, o recorrente argumenta, com vista a obstar à qualificação daquele como possuidor do apartamento e dos dois lugares de garagem nos termos do direito de propriedade, que ele não actua com a convicção de ser titular deste direito, antes sabendo perfeitamente que aqueles bens não lhe pertencem. Este argumento não procede. O animus da posse não consiste na convicção de que se é titular do direito real nos termos do qual se possui, mas sim na vontade de exercer os poderes sobre a coisa como se se fosse o titular daquele direito real, independentemente da convicção que se tenha acerca dessa titularidade. Demonstra-o a circunstância de o possuidor de má-fé, ou seja, aquele que, ao adquirir a posse, sabia que lesava o direito de outrem (cfr. artigo 1260.º, n.º 1, do Código Civil), ser ainda um verdadeiro possuidor e, consequentemente, poder adquirir o direito real nos termos do qual possui mediante usucapião, apenas estando tal aquisição dependente, em regra, de um prazo mais alargado que o estabelecido para a posse de boa-fé [artigos 1294.º, al. b), 1295.º, n.º 1, al. b), 1296.º, 1298.º, als. a) e b), e 1299.º do Código Civil].[1]

A argumentação constante das conclusões R a U desenvolve-se no plano puramente negocial, dissertando o recorrente sobre os efeitos não translativos do direito de propriedade do contrato-promessa de compra e venda e da procuração irrevogável outorgada por MT e sua mulher que é descrita no n.º 15 da matéria de facto provada, bem como a nulidade, por simulação e inobservância da forma legal, de um contrato de compra e venda que se considerasse ter sido celebrado.  

Esta argumentação poderia ter cabimento se a lei não consagrasse os institutos da posse e da usucapião. Nessa hipótese, a questão da titularidade do direito de propriedade sobre o apartamento e os dois lugares de garagem poderia ser resolvida atentando unicamente nos negócios celebrados entre o recorrido, por um lado, e MT e a mulher deste, por outro. Porém, como é evidente, aquela questão não pode deixar de ser resolvida tendo em conta o regime legal da posse e da usucapião, que foi o que se fez, com acerto, na sentença recorrida. Considerando a matéria de facto provada, é fora de dúvida que, há bem mais de vinte anos, o recorrido actua em relação às fracções dos autos como se fosse o proprietário da totalidade da “AB” e de 2/10 indivisos da “C”, à vista de todos e sem oposição. Já MT e a mulher deste não mais se comportaram em relação a esses bens como proprietários ou possuidores. Consequentemente, o recorrido adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o apartamento e os dois lugares de garagem.

Improcede, assim, o recurso, devendo a sentença recorrida manter-se na íntegra.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

Notifique.

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Évora, 09.09.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta



[1] Cfr. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Reais, 5.ª edição, revista e ampliada, p. 85.

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