domingo, 24 de abril de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 07.04.2022

Processo n.º 1146/19.7T8PTM.E1

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Sumário:

Não é admissível decretar, em sentença que julgue procedente uma acção de despejo, o diferimento da desocupação do locado, com intervenção do Fundo de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas vencidas ao longo do prazo daquele.

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Na presente acção de despejo, proposta por CA Arrendamento Habitacional – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional, gerido, administrado e legalmente representado por Square Asset Management – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A., contra Afonso e Henrique, foi proferida sentença cujo dispositivo é, na parte que interessa, o seguinte: Pelo exposto e tudo ponderado, o Tribunal decide: a) Julgar a acção procedente, por provada e, em consequência, declarar resolvido o contrato de arrendamento indicado em 2 da petição inicial, nos termos do art.º 1083º nº 3 do C.C. b) Condenar o 1º Réu na entrega do locado referido em 1 da petição inicial, no prazo de 90 dias após o trânsito em julgado da presente sentença, nos termos do art.º1087º do C.C., sendo que, as rendas relativas a tal prazo de diferimento serão asseguradas pelo Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, nos termos do art.º15ºN nº3 do N.R.A.U. c) Condenar ambos os Réus, solidariamente, no pagamento à Autora, das rendas vencidas e não pagas, no valor de 3.519,87 € (três mil quinhentos e dezanove euros e oitenta e sete cêntimos) e vincendas até efectiva entrega do locado, bem como, dos respectivos juros de mora à taxa legal cível, sem prejuízo do disposto em b); d) Condenar ambos os Réus, solidariamente, no pagamento à Autora de uma indemnização, nos termos do art.º1045º nº2 do C.C., em caso de mora na entrega do imóvel arrendado, após o decurso do prazo referido em b); (…) Registe e notifique, incluindo ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, nos termos do art.º15ºO nº3 do N.R.A.U. e ainda à S.S. e Câmara Municipal de Portimão.”

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão a fls., na parte que decretou o diferimento de desocupação, pelo prazo de noventa dias, contados a partir do trânsito em julgado da referida sentença e condenou o Fundo de Socorro Social (F.S.S) a assegurar as rendas vencidas no prazo de diferimento concedido.

2. Salvo o devido respeito, não pode o ora recorrente conformar-se com tal decisão, pelos fundamentos a seguir referenciados.

3. O diferimento de desocupação decretado nos termos referidos e a condenação do FSS a assegurar as rendas vencidas em tal período, em sede de acção declarativa, parece-nos, salvo melhor entendimento, que carece de substrato legal.

4. Isto porque, nos termos dos dispositivos legais vigentes e aplicáveis ao diferimento de desocupação do locado para habitação (arts.º 864.º e 865.º do C.P.C e arts. 15.º - N e 15.º - O da Lei 6/2006 de 27 Fevereiro), resulta que o mesmo deverá ser requerido pelo executado/arrendatário, em prazo definido, em sede de processo executivo, no prazo de oposição à execução (art.º 864.º C.P.C) ou dentro do prazo para a oposição ao procedimento especial de despejo, (art.º 15.º - N da Lei n.º 6/2006), e decretado nos termos estatuídos nos referidos artigos em sede dos processos referenciados.

5. A intervenção do Fundo de Socorro Social nesta sede, apenas, é prevista em normas especiais, concretamente, no art.º 864.º n.º 3 do C.P.C e no art.º 15.º - N, n.º 3 da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, não existindo qualquer norma que determine a sua intervenção em sede de acção declarativa como a dos presentes autos.

6. Salvo o devido respeito e melhor entendimento, não nos parece que exista uma lacuna na lei, na medida que não existe nenhum vazio normativo ou uma situação omissiva derivada de uma falha de regulação, mas antes que se trata de uma opção do legislador, que entendeu prever a figura do diferimento de desocupação do locado apenas em sede de acção executiva ou do procedimento especial de despejo.

7. Cumpre ainda referir, que haverá analogia legis sempre que, perante um caso concreto a decidir, que se confronte no plano regulatório com uma lacuna, o que in casu, parece-nos não existir, ou seja, com um vazio normativo ou uma situação omissiva derivada de uma falha de regulação, esta última é preenchida ou integrada através de uma norma existente que disponha sobre casos análogos.

8. Dispõe o artigo 10.º do Código Civil sobre a integração de lacunas através do recurso à analogia legis. A norma do n.º 1 do preceito prevê o recurso à analogia ao dispor que: “Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos”.

9. Por seu turno, o nº 2 define analogia: “Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei”.

10. Acresce que, conforme já foi referido, a intervenção do Fundo de Socorro Social nesta sede, apenas, é prevista por normas excepcionais, concretamente, no art.º 864.º n.º 3 do C.P.C e no art.º 15.º - N, n.º 3 da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, pelo que face, ao disposto no artigo 11º do Código Civil, são vedadas operações analógicas a partir de normas excepcionais.

11. Em sede do RAU o artigo 102.º (Diferimento), previa o seguinte: “ 1 - A desocupação de um local arrendado para habitação, motivada pela cessação do respectivo contrato, pode ser diferida por razões sociais imperiosas nos termos dos artigos seguintes. 2 – O diferimento é facultado na decisão da acção de despejo que conduza à desocupação.”

Sucede que,

12. A matéria referente ao diferimento da desocupação foi migrada para o Código de Processo Civil revogado, por via das alterações introduzidas pela Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro e passou a estar regulada em sede do processo executivo, concretamente, nos artigos 930.º B a 930.º do citado diploma.

13. Com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14 de Agosto à Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro é criado o procedimento especial de despejo e igualmente introduzido o art.º 15.º - N (Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação), nos termos do qual se estatuiu que o arrendatário pode requerer o diferimento de desocupação dentro do prazo para a oposição ao procedimento referido.

14. No C.P.C actual a figura do diferimento de desocupação, regulada nos arts.º 864.º e 865.º, continua prevista em sede da fase executiva.

15. Nos termos expostos e salvo melhor entendimento, não resulta da lei actualmente vigente que o diferimento nos termos decretados possa ser facultado em sede de fase declarativa e parece-nos carecer de base legal a condenação do F.S.S no pagamento das rendas vencidas no período do dito diferimento.

Nestes termos e demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida, na parte que decretou o diferimento de desocupação por aplicação analógica do regime do art.º 15.º - N e O do NRAU, bem como, a condenação do FSS no pagamento das rendas vencidas nos noventa dias após o trânsito em julgado da referida sentença.  

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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Questão a resolver: saber se existe fundamento para o decretamento do diferimento da desocupação do locado pelo recorrido Afonso e para a condenação do recorrente, através do Fundo de Socorro Social, a assegurar o pagamento das rendas que se vencerem durante o prazo de diferimento concedido.

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Nenhum dos réus contestou, pelo que, nos termos do artigo 567.º, n.º 1, do CPC, o tribunal a quo julgou provados todos os factos alegados pela autora.

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O recorrente sustenta que não existe fundamento para o decretamento do diferimento da desocupação do locado pelo recorrido Afonso e para a sua própria condenação a assegurar o pagamento das rendas vencidas no prazo de diferimento concedido, invocando, sucintamente, os seguintes argumentos:

1 – A lei não prevê o diferimento da desocupação do locado destinado a habitação, com intervenção do Fundo de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas que se vencerem ao longo desse período, na acção de despejo, apenas o fazendo em sede de acção executiva instaurada com vista à entrega do locado (artigos 864.º e 865.º do CPC) e do procedimento especial de despejo (artigos 15.º-N e 15.º-O do NRAU);

2 – Nas hipóteses em que a lei permite tal diferimento, o mesmo terá de ser requerido pelo arrendatário, dentro de determinado prazo; tal prazo é, consoante os casos, o da oposição à execução (artigo 864.º do CPC) ou o da oposição ao procedimento especial de despejo (artigo 15.º-N do NRAU);

3 – A ausência de previsão do mecanismo descrito em 1 na acção de despejo não constitui uma lacuna, antes se tendo tratado de uma opção do legislador;

4 – As normas que estabelecem o mecanismo descrito em 1 têm natureza excepcional, pelo que, atento o disposto no artigo 11.º do Código Civil, sempre estaria vedada a sua aplicação por analogia.

Desde já se adianta que todos estes argumentos procedem.

O artigo 14.º, n.º 1, do NRAU, estabelece que a acção de despejo se destina a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo. A lei não prevê, em tal sede, a possibilidade de o tribunal decretar o diferimento da desocupação do locado, com intervenção do Fundo de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas que se vencerem ao longo desse período. Tal possibilidade apenas se encontra prevista na acção executiva destinada à entrega do locado que eventualmente venha a ser instaurada, nos termos dos artigos 859.º a 867.º do CPC, bem como no procedimento especial de despejo, regulado nos artigos 15.º a 15.º-S do NRAU.

Pormenorizando, o artigo 862.º do CPC estabelece que à execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições referentes à execução para entrega de coisa certa, com as alterações constantes dos artigos 863.º a 866.º. O artigo 863.º, n.º 1, estabelece que a execução se suspende se o executado requerer o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, motivada pela cessação do respectivo contrato, nos termos do artigo seguinte. O artigo 864.º, n.º 1, estabelece que, no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três. O artigo 864.º, n.º 2, estabelece que o diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %. O artigo 864.º, n.º 3, estabelece que, no caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste. O artigo 865.º, n.º 1, dispõe que a petição de diferimento da desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando: a) Tiver sido deduzida fora do prazo; b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior; c) For manifestamente improcedente. Os n.ºs 2 a 4 do artigo 865.º dispõem que, se a petição for recebida, o exequente é notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três (n.º 2), que o juiz deve decidir do pedido de diferimento da desocupação por razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua apresentação, sendo, no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior, a decisão oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (n.º 3) e que o diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder (n.º 4). Destas normas decorre, nomeadamente, que, na acção executiva destinada à entrega do locado, a apresentação, pelo executado, de requerimento de diferimento da desocupação, dentro do prazo e com observância dos requisitos formais descritos, tem efeito suspensivo daquela, iniciando-se então o incidente regulado nos artigos 864.º e 865.º do CPC.

Por outro lado, o artigo 15.º, n.º 1, do NRAU, define o procedimento especial de despejo como o meio processual que se destina a efectivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes. O artigo 15.º-N do NRAU estabelece que, no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo para a oposição ao procedimento especial de despejo, o arrendatário pode requerer ao juiz do tribunal judicial da situação do locado o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três (n.º 1); o diferimento da desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) que o arrendatário tem deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60% (n.º 2); no caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste (n.º 3). O artigo 15.º-O do NRAU estabelece, por seu turno, que o requerimento de diferimento da desocupação assume carácter de urgência e é indeferido liminarmente quando: a) tiver sido apresentado fora do prazo; b) o fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior; c) for manifestamente improcedente (n.º 1); se o requerimento for recebido, o senhorio é notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três (n.º 2); o juiz deve decidir o pedido de diferimento da desocupação por razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua apresentação, sendo, no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior, a decisão oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (n.º 3); o diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder (n.º 4). Todas estas normas são privativas do procedimento especial de despejo, que não se confunde com a acção de despejo, a que se reporta o artigo 14.º do NRAU. Repetimos, a lei não prevê a possibilidade de, na acção de despejo, o tribunal decretar o diferimento da desocupação do locado, com intervenção do Fundo de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas que se vencerem ao longo desse período.

A ausência dessa previsão não constitui uma lacuna da lei. Estabelecendo esta, nos termos descritos, a possibilidade de diferimento da desocupação do local arrendado para habitação na acção executiva, seria redundante fazê-lo, igualmente, em sede declarativa, ou seja, na acção de despejo. Tal duplicação seria desnecessária e geradora de problemas ao nível da interpretação da lei. Para acautelar o interesse da pessoa obrigada à desocupação do locado, basta a permissão legal do diferimento daquela na acção executiva. Como o recorrente acertadamente observa, tratou-se de uma opção do legislador, inexistindo uma lacuna na regulamentação da acção de despejo que careça de ser preenchida através da aplicação analógica de normas legais estabelecidas em sede diversa.

Ainda que estivéssemos perante uma lacuna, a mesma não poderia ser preenchida mediante a aplicação, por analogia, das normas que estabelecem a possibilidade de diferimento da desocupação, com intervenção do Fundo de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas vencidas ao longo desse período, que acima citámos. Tais normas impõem uma restrição ao direito de propriedade que tem de ser considerada excepcional, pois, apesar de estar reconhecido o direito à restituição do locado, o exercício de tal direito fica temporariamente paralisado por razões atinentes à pessoa do obrigado à restituição. Consequentemente, nos termos do artigo 11.º do Código Civil, sempre estaria vedada a aplicação das normas referidas por analogia.

Aos argumentos invocados pelo recorrente, acrescentamos um outro: ainda que fosse processualmente admissível o decretamento do diferimento da desocupação do locado na acção de despejo, com a consequente intervenção do Fundo de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas que se vencessem ao longo desse período, a sentença recorrida não contém factos que sustentem tal medida. Dada a falta de contestação, foram julgados provados, nos termos do artigo 567.º, n.º 1, do CPC, todos os factos alegados pela autora. Porém, apenas esses. Não foram julgados provados factos que justificassem o diferimento da desocupação. Tendo em vista essa justificação, o tribunal a quo, na fundamentação de direito, invoca factos não provados, a saber, “os rendimentos parcos do 1.º Réu (vive com o RSI e outra quantia muito reduzida, está desempregado e não tem outra habitação)”. Mais, nem aí se especifica o montante dos rendimentos do referido réu, como sempre se imporia na descrição de factos relevantes para a decisão da causa, em vez do recurso a fórmulas de cariz conclusivo.

Decorre do exposto que o recurso deverá ser julgado procedente, revogando-se o segmento da sentença recorrida que dele constitui objecto.

As custas do recurso são da responsabilidade do recorrido Afonso, pois foi ele o beneficiário do diferimento da desocupação que, por efeito da procedência do recurso, deixa de ser concedido (CPC, artigo 527.º, n.ºs 1 e 2). Isto, naturalmente, sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida no segmento em que diferiu a desocupação do locado pelo prazo de 90 dias após o trânsito em julgado e condenou o recorrente a, através do Fundo de Socorro Social, assegurar o pagamento das rendas relativas àquele período.

Custas a cargo do recorrido Afonso, sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.

Notifique.

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Évora, 07.04.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)


terça-feira, 5 de abril de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 24.03.2022

Processo n.º 4992/21.8T8STB.E1

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Sumário:

1 – Em princípio, um adulto que tenha completado 25 anos de idade terá de assegurar a sua subsistência pelos seus próprios meios. Apenas na hipótese de ele o não conseguir fazer se justifica que tal subsistência seja assegurada, total ou parcialmente, por outrem, através da prestação de alimentos.

2 – O direito a alimentos não pode ser reconhecido a quem se colocar voluntariamente numa situação de inactividade laboral ou, sequer, a quem não se esforçar efectivamente no sentido de encontrar uma actividade profissional remunerada, ainda que não seja aquela que corresponde às suas aspirações.

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Beatriz, solteira, maior, instaurou procedimento cautelar de alimentos provisórios contra seus pais, Manuel e Vera, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe, a esse título, € 493 o primeiro e € 246 a segunda.

Os requeridos contestaram. O requerido pugnou pela improcedência da pretensão da requerente. A requerida concluiu que o tribunal deverá fixar pensões de alimentos a favor da requerente de montantes muito diferentes a cargo de cada progenitor.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença julgando o procedimento cautelar improcedente e recusando o decretamento da providência solicitada.

A requerente interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – O facto de ter 25 anos não significa que a Beatriz encontre de imediato emprego para fazer face à sua necessidade de alimentos.

2 – A Beatriz não trabalha ainda, não porque não queira, porque tem a intenção de exercer uma actividade e está inscrita no centro de emprego, mas porque não encontrou emprego.

3 – São milhares e milhares os jovens desempregados e à procura de primeiro emprego.

4 – A ida para Braga é uma decisão voluntária, mas racional e, nessa cidade progressiva e em crescimento, pode encontrar mais facilmente emprego do que em Setúbal.

5 – Se, em Setúbal, tinha direito a que os pais lhe prestassem alimentos, não é por se encontrar em Braga que esse direito se perde.

6 – Os pais têm perfeita capacidade para prestar os alimentos de que carece.

7 – Periga a dignidade da recorrente enquanto pessoa humana se o recurso não tiver provimento, pois a Beatriz é deixada à sua sorte, caindo necessariamente na assistência social.

8 – Por erro de interpretação, foram violados os artigos 2003.º, 2004.º, 2007.º, 2009.º e 2010.º do Código Civil, e 384.º do Código de Processo Civil.

O requerido Manuel apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1 – O recurso interposto pela recorrida afigura-se desconforme com as regras impostas quanto à impugnação da matéria de facto, quer quanto a matéria de Direito.

2 – Tal facto impossibilita, ou dificulta, o recorrido de responder concretamente à alegação da recorrente.

3 – Tal implicando a rejeição do recurso nos termos do nº 1 do artº 640º do CPC.

Assim não se entendendo:

4 – A própria recorrente admite que tem condições para prover ao seu sustento.

5 – Não se encontra demonstrada a necessidade de alimentos a que alude o nº 1 do artº 2004º do CC.

6 – Não se encontram reunidos os requisitos para que seja decretada a providência cautelar para alimentos provisórios.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.

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Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se a recorrente necessita que os requeridos lhe prestem alimentos.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A requerente nasceu em 19 de Março de 1996 e é filha dos requeridos Manuel e Vera.

2. A requerente é solteira e não tem filhos.

3. Até a requerente completar 25 anos, os alimentos eram prestados pelos requeridos, entregando cada um a quantia mensal de € 175,00 e dividindo em partes iguais as despesas de saúde, a que equivalia € 200,00 em média por cada progenitor.

4. Assim que a requerente completou os 25 anos, o requerido cessou a sua contribuição.

5. O requerido Manuel e a requerente actualmente não se relacionam, não se visitam nem se contactam em virtude de um desentendimento ocorrido entre ambos.

6. A requerente não tem emprego nem aufere outros rendimentos sendo sua intenção arranjar um emprego, tendo-se já inscrito no Centro de Emprego.

7. A requerente concluiu a licenciatura em Educação Básica, inicialmente na Universidade de Évora e posteriormente no Instituto Politécnico de Setúbal, em 2021, com a média de 17 valores.

8. A requerente pretende leccionar, sendo requisito obrigatório para exercer a profissão de professora a realização de mestrado.

9. A requerente encontra-se a frequentar o mestrado no Instituto de Educação da Universidade do Minho, em Braga, com duração de dois anos, tendo já procedido à sua inscrição.

10. Para viver em Braga, a requerente carece de um quarto onde possa viver, cuja renda ascende a € 230,00 por mês.

11. Com alimentação gasta, em média, € 300,00 por mês.

12. Em vestuário e calçado despende em média € 40,00 por mês.

13. A requerida necessita de acompanhamento psicológico, no qual despende pelo menos € 130,00 por duas consultas em cada mês.

14. Em artigos de higiene, telefone e transportes despende cerca de € 50,00 por mês.

15. O requerido tem 60 anos de idade, é reformado e aufere uma pensão mensal superior a € 1.600,00 euros líquidos durante 14 meses.

16. O requerido trabalha nas vindimas, auferindo pelo menos € 6,00 por hora, trabalhando no mínimo 5 horas durante um período de 30 dias, o que gera um acréscimo de rendimento de € 900,00.

17. O requerido dispõe de casa com garagem e comprou ainda outra garagem, onde faz trabalhos de carpintaria para se ocupar.

18. O requerido paga à filha Luísa € 175,00 acrescido de metade das despesas de saúde e educação que importam uma média de € 200,00 mensais e das propinas no montante mensal de € 172,50.

19. O requerido despende mensalmente com a alimentação o montante de € 300,00, em vestuário e calçado pelo menos € 20,00, em internet, televisão e telemóvel a quantia de € 34,91 e em água, eletricidade e gás a quantia de cerca de € 60,00.

20. A requerida Vera é enfermeira no Centro Hospitalar de Setúbal e aufere um ordenado líquido de € 1 475,00.

21. A requerida despende com a filha Luísa, nomeadamente com alojamento e alimentação, cerca de € 300,00 por mês.

22. A requerida gasta mensalmente no passe de autocarro da Luísa cerca de € 30,00, com o ginásio e o yoga cerca de € 45,00 e € 10,00 em telemóvel.

23. A requerida tem ainda os seguintes gastos mensais: € 100,00 em gasolina, € 26,22 no seguro do carro; € 70,00 no IMI da sua casa; € 12,00 no imposto de circulação; € 84,00 em eletricidade e gás, € 27,00 em água, € 42,00 em telemóvel da Vodafone, numa média mensal de € 350,00.

24. Paga de amortização do mútuo da casa de habitação a quantia de € 108,74.

25. Em vestuário e calçado gasta pelo menos € 20,00 por mês.

Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:

1. A requerida gasta o montante de € 260,00 em gasolina, imposto de circulação de veículo, seguro de carro e cabeleireiro da Luísa.

2. A requerida, com a sua alimentação, produtos de limpeza e higiene, despende mensalmente € 600,00.

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À data da instauração do presente procedimento cautelar, a recorrente já tinha completado 25 anos de idade, pelo que a questão de saber se ela é titular de um direito à prestação de alimentos por parte dos seus progenitores deverá ser resolvida à luz do regime geral constante dos artigos 2003.º a 2014.º do Código Civil (diploma ao qual pertencem todas as normas doravante referenciadas).

Decorre do artigo 2009.º, n.º 1, al. c), que, sendo a recorrente solteira e não tendo ela filhos, os seus pais estarão vinculados a prestar-lhe alimentos caso se verifiquem os pressupostos legais da existência de tal direito.

O artigo 2003.º, n.º 1, estabelece que, por alimentos, entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.

O artigo 2004.º dispõe que os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los (n.º 1) e que, na sua fixação, se atenderá ainda à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência (n.º 2).

Entendeu-se, na sentença recorrida, que a obrigação de alimentos pressupõe a existência de uma situação de necessidade por parte do alimentando e que tal situação de necessidade consiste na impossibilidade de prover, total ou parcialmente, à sua subsistência com os seus rendimentos, o seu património e a sua força de trabalho. Consequentemente, quem requer alimentos terá de alegar e provar estar impossibilitado ou com grave dificuldade de prover, total ou parcialmente, à sua subsistência, seja com bens pessoais, seja com o seu trabalho, não sendo de admitir, para este efeito, uma necessidade voluntariamente criada.

Este entendimento é o único que se harmoniza com as normas legais que referenciámos. Em princípio, um adulto que tenha completado 25 anos de idade terá de assegurar a sua subsistência pelos seus próprios meios, apenas se justificando que tal subsistência seja assegurada, total ou parcialmente, por outrem, na hipótese de o não conseguir fazer. Tratando-se de um adulto com capacidade para trabalhar, o mesmo só terá direito à prestação de alimentos por outrem se provar que não consegue encontrar trabalho remunerado apesar de se esforçar seriamente nesse sentido. O direito a alimentos não pode ser reconhecido a quem se colocar voluntariamente numa situação de inactividade laboral ou, sequer, a quem não se esforçar efectivamente no sentido de encontrar uma actividade profissional remunerada, ainda que não seja aquela que corresponde às suas aspirações. É neste sentido que deve ser interpretado o disposto na parte final do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 2004.º.

A recorrente recebeu alimentos dos seus progenitores até completar 25 anos de idade. Não obstante, não completou a formação profissional que pretende obter, pois apenas concluiu, em 2021, uma licenciatura, em Educação Básica, e, para ser professora, como ambiciona, terá de concluir o mestrado. Sendo assim, a recorrente, sem prejuízo de tentar concretizar o referido objectivo, terá, antes de mais, de procurar activamente trabalho remunerado, em vez de prolongar a sua dependência económica relativamente aos seus pais, com a agravante de, para viver em Braga, para onde se mudou com o objectivo de prosseguir os seus estudos, ter aumentado o montante das suas despesas, como decorre do n.º 10 dos factos provados.

Constituía ónus da recorrente a alegação e a prova, ainda que meramente indiciária, de factos que indiciassem uma busca efectiva, embora infrutífera, de trabalho remunerado. Ora, isso não foi feito. Apenas ficou demonstrado que a recorrente se encontra inscrita num centro de emprego, não constando da matéria de facto provada desde quando, para que tipo de trabalho se encontra disponível e que resposta tem obtido. A mera inscrição num centro de emprego não é suficiente para demonstrar que a recorrente passou a procurar trabalho remunerado activamente e em tempo útil, nomeadamente respondendo a anúncios de emprego ou enviando o seu currículo a potenciais empregadores. Tanto quanto resulta da matéria de facto provada, a actual prioridade da recorrente é frequentar o mestrado, deslocando-se para longe da sua residência com essa finalidade, e não procurar activamente trabalho remunerado.

Nas alegações de recurso, a recorrente argumenta que a sua deslocação para Braga constituiu uma decisão voluntária, mas racional, pois, nessa cidade, progressiva e em crescimento, pode encontrar mais facilmente emprego do que em Setúbal. Acerca deste argumento, note-se, em primeiro lugar, que o mesmo não encontra sustentação na matéria de facto provada. Acresce que, no requerimento inicial, a recorrente alegou coisa bem diferente, ou seja, que se deslocou para Braga porque o mestrado que pretende frequentar é ministrado no Instituto de Educação da Universidade do Minho, nessa cidade, não existindo em Setúbal (artigos 11.º e 12.º). Não que tenha sido a busca de trabalho remunerado que levou a recorrente a mudar-se para Braga.

Nas alegações de recurso, a recorrente argumenta também que há milhares de jovens à procura do seu primeiro emprego. Isto é verdade, mas na medida em que esses jovens não se encontram disponíveis para qualquer trabalho. A demonstrá-lo, está o facto de haver não menos milhares de postos de trabalho, em diversos sectores da actividade económica, que não são ocupados devido à insuficiência da oferta de mão-de-obra. Ora, quem atinge os 25 anos sem conseguir completar a formação profissional necessária para o exercício da profissão que ambiciona, terá, ao menos num primeiro momento, de se sujeitar a desempenhar um trabalho diverso, num dos sectores da economia em que há oferta de emprego, para assegurar a sua subsistência, em vez de continuar na dependência económica dos seus pais contra a vontade destes, ou de um destes, como a recorrente pretende.

Concluindo, o recurso deverá improceder.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

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Évora, 24.03.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)

 

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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