sábado, 9 de julho de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 30.06.2022

Processo n.º 1720/18.9T8PTM-D.E1

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Sumário:

As consequências patrimoniais de danos corporais sofridos por um ascendente do condutor responsável por um acidente de viação não se encontram abrangidas pela exclusão da garantia do seguro estabelecida no artigo 14.º, n.º 2, al. e), do regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08.

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O Estado Federal de Hessen, Alemanha, propôs, contra AIG Europe Limited – Sucursal em Portugal, acção declarativa comum, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 110.629,39, acrescida de juros à taxa legal contados desde a data dos factos até integral e efectivo pagamento, bem como uma indemnização, a liquidar em execução de sentença nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC, relativa a eventuais pagamentos futuros que surjam como consequência directa e necessária do acidente dos autos.

Debeka Krankenversicherungsverein auf Gegenseitigkeit propôs, contra AIG Europe Limited – Sucursal em Portugal, acção declarativa comum, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 52.910,30, acrescida de juros à taxa legal contados desde 16.04.2018 até integral e efectivo pagamento, bem como uma indemnização, a liquidar em execução de sentença nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC, relativa a eventuais pagamentos futuros que surjam como consequência directa e necessária do acidente dos autos.

Peter e Irmgard propuseram, contra AIG Europe Limited – Sucursal em Portugal, acção declarativa comum, pedindo a condenação da ré a pagar as quantias de € 249.383,44 ao autor e de € 25.000,00 à autora, acrescidas de juros de mora à taxa legal contados desde 26.02.2018 até efectivo e integral pagamento, bem como a pagar, ao autor, uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC, relativa a eventuais pagamentos futuros que surjam como consequência directa e necessária do acidente dos autos.

Georg propôs, contra AIG Europe Limited – Sucursal em Portugal, acção declarativa comum, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 12.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 26.02.2018 até efectivo e integral pagamento, bem como uma indemnização, a liquidar em execução de sentença nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC, relativa a eventuais pagamentos futuros que surjam como consequência directa e necessária do acidente dos autos.

A ré contestou todas as acções. Na acção proposta por Peter e Irmgard, a ré invocou, nomeadamente, a exclusão da cobertura do contrato de seguro estabelecida na alínea e) do n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08.

As acções propostas por Debeka Krankenversicherungsverein auf Gegenseitigkeit, Peter, Irmgard e Georg foram apensadas à acção proposta pelo Estado Federal de Hessen.

Foi proferido despacho saneador, no qual, além do mais, se decidiu o seguinte:

“Quanto aos pedidos de PETER e IRMGARD:

Não se justifica o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia. Com efeito, a norma da Diretiva só não permite que se excluam do benefício do seguro os danos corporais sofridos pelos ascendentes, de resto, como previsto pelo nosso regime, o qual exclui apenas os danos materiais.

Assim, considerando que os pais do condutor pedem a condenação da ré no pagamento de indemnizações a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, será indeferida por inviável o pedido de € 129 383,44 formulado pelo autor, a título de danos patrimoniais, o que decido – art. 14.º do Regime indicado.

Custas nesta parte a cargo do autor.”

O autor Peter interpôs recurso de apelação deste segmento do despacho saneador, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – O que se discute no presente recurso é a responsabilidade extracontratual.

2 – Saber se em tese geral, são indemnizáveis todos os danos peticionados pelo autor lesado, desde que resultante da violação da sua integridade física, valor de tal forma relevante, que se encontra consagrado no artigo 25.º da CRP?

3 – O que está em causa nos presentes é saber se a M.M. Juiz a quo, nesta fase do processo, sem correspondente e indispensável produção de prova, poderia ter indeferido o pedido de indemnização no valor de € 129.383,44.

 4 – Importará avaliar a que título foi peticionado aquele montante.

5 – De uma análise rigorosa dos artigos 62, 63, 64, 65, 67 da petição inicial, verifica-se que tais montantes se reportam ora a comparticipações, serviços, tratamentos, medicamentos e cuidados de saúde, em tratamentos médicos, despesas medicamentosas e outras despesas tidas como consequência directa e necessária das lesões que o autor sofreu em virtude do acidente que aqui se discute.

6 – Pelo que o montante de € 129.383,44 diz respeito a um dano moral que projecta os seus efeitos a nível patrimonial, como fica demonstrada por uma leitura atenta da petição inicial e da documentação que suporta esse pedido, com particular destaque nos artigos 62, 63, 64, 65, 67 da petição inicial, pelo que o tribunal a quo não deveria ter indeferido liminarmente, isto é, sem produção de prova, os valores respeitantes as despesas tidas com as lesões sofridas pelo autor Peter.

7 – Ao agir dessa forma, negou ao autor um direito basilar que é o direito à prova.

8 – O Decreto-Lei 291/2007 dispõe, no seu artigo 14.º, n.º 2, o seguinte: que excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas: Cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c)....

9 – Ora o que o legislador pretendeu foi apenas excluir as lesões materiais, pelo que importa definir o conceito de lesões materiais e as mesmas são entendidas pela doutrina como danos causados em coisas.

10 – É uniforme o entendimento da jurisprudência quanto ao significado da expressão «danos materiais», entendendo-se (esse entendimento tem também a ver com a razão de ser do Decreto-Lei 291/2007) que a mesma expressão se contrapõe a «danos decorrentes de lesões corporais». (Neste sentido, veja-se: Ac TRP de 04.07.90, CJ 90, IV, 239; Ac TRP de 27.10.92, CJ 92, IV, 262; Ac STJ de 30.10.2001, Relator Lopes Pinto – consultável na internet; Ac STJ de 21.10.2003, Relator Moreira Alves, consultável na internet).

11 – Assim, «danos decorrentes de lesões materiais», serão os danos causados em coisas.

12 – Por outro lado, «danos decorrentes de lesões corporais», não se restringem a «danos corporais» ou «danos de natureza não patrimonial», pois que das lesões corporais (morte ou lesão de uma pessoa) podem resultar (e normalmente resultam) danos «patrimoniais» e danos «não patrimoniais».

13 – Nenhum destes danos, desde que «decorrentes de lesões corporais», se encontra excluído da garantia do seguro, nos termos do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei 291/2007.

14 – Atento o disposto nos termos do artigo 14.º, n.º 2, al. g), do Decreto-Lei 291/2007, ao apelado assiste o direito a ser indemnizado pelos danos «decorrentes de lesões corporais» (sejam patrimoniais ou não patrimoniais), os quais dizem respeito ao montante peticionado pelo autor a título de danos patrimoniais.

15 – Pelo que dúvidas não restam que da garantia do seguro não foram excluídos os danos (patrimoniais e não patrimoniais) resultantes de lesões corporais.

16 – Sendo assim, o autor tem o direito de ser indemnizado pelos montantes que despendeu em comparticipações, serviços, tratamentos, medicamentos e cuidados de saúde, em tratamentos médicos, despesas medicamentosas e outras despesas que vêm elencadas nos artigos 62, 63, 64, 65, 67 da petição inicial.

17 – Por último sempre se dirá que o despacho saneador que indefere a pretensão da recorrente não se encontra devidamente fundamentado, assim se violando o artigo 205.º da CRP, que obriga que as decisões judiciais sejam devidamente fundamentadas por forma a que os seus destinatários percecionem as razões porque se decidiu daquele modo.

18 – Percorrido o despacho saneador, ainda que na parte que nos interessa, não se encontre devidamente fundamentado, é possível extrair a conclusão que no mesmo foram confundidos dois conceitos de primordial importância: danos materiais e danos morais que pela sua natureza projetem consequências a nível patrimonial.

19 – Assim sendo, impõe-se a alteração do despacho proferido e a sua substituição por outro que atenda ao supra expendido.

20 – Ao contemplar diverso entendimento, o tribunal a quo incorreu em violação do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei 291/2007, n.º 1 dos artigos 3.º e 5.º da Directiva 72/166/CEE e artigos 25.º e 205.º da CRP, entre outros, motivo pelo qual a douta decisão ora posta em crise se mostra, assim, inquinada, devendo, pois, ser revogada nos termos supra requeridos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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Questão a resolver: se a indemnização, no montante de € 129.383,44, que o recorrente pretende a título de ressarcimento dos danos que alega nos artigos 62.º a 65.º da petição inicial, se encontra abrangida pela exclusão da garantia do seguro estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 2, al. e), do regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08 (ao qual pertencem as disposições legais adiante referenciadas sem menção da sua origem).

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O tribunal a quo, considerando que já dispunha de todos os elementos para o efeito necessários, julgou, no despacho saneador, parcialmente improcedente o pedido, formulado pelo recorrente, de condenação da recorrida a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 249.383,44. Mais precisamente, julgou esse pedido improcedente na parte respeitante às despesas que o recorrente alega ter pago por medicamentos e pela prestação de serviços, tratamentos e cuidados de saúde requeridos pelas lesões que afirma ter sofrido em consequência do acidente de viação dos autos, no montante global de € 129.383,44. Entendeu o tribunal a quo que tais danos se encontram abrangidos pela exclusão da garantia do seguro estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 2, al. e), uma vez que se trata de danos patrimoniais e o recorrente é pai do condutor responsável pelo acidente.

A este entendimento, o recorrente contrapõe que os danos em causa, não obstante terem natureza patrimonial, resultam das lesões corporais por si sofridas em consequência do acidente. Daí que devam ser qualificados como danos corporais e não como danos materiais e, consequentemente, não se encontrem abrangidos pela exclusão da garantia do seguro estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 2, al. e).

Analisemos a questão.

Começamos por salientar uma incoerência no saneador-sentença recorrido. Entendendo que os danos patrimoniais alegadamente sofridos pelo recorrente com o pagamento, já efectuado, do preço dos medicamentos e da prestação de serviços, tratamentos e cuidados de saúde requeridos pelas lesões que afirma ter sofrido em consequência do acidente dos autos se encontram abrangidos pela exclusão da garantia do seguro estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 2, al. e), o tribunal a quo devia, por igualdade de razão, ter julgado igualmente improcedente o pedido do recorrente de condenação da recorrida a pagar-lhe uma indemnização, a liquidar em execução de sentença nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC, relativa a eventuais pagamentos futuros que surjam como consequência directa e necessária do acidente dos autos. À semelhança daqueles, estes últimos danos têm natureza patrimonial e são consequência das lesões corporais alegadamente sofridas pelo recorrente, pelo que o seu tratamento diferenciado não tem justificação.

Independentemente da referida incoerência, é patente a confusão entre os conceitos de dano material e de dano patrimonial em que assenta o segmento do saneador-sentença que constitui objecto do presente recurso. Dano material não é sinónimo de dano patrimonial. Trata-se de categorias de danos resultantes da classificação destes em função de critérios diversos. A dicotomia dano corporal/dano material resulta de uma distinção entre danos reais ou danos-evento, em função do tipo de bem que é lesado, enquanto a dicotomia dano patrimonial/dano não patrimonial atenta no tipo de consequências que determinado dano real ou dano-evento acarreta para o lesado. Daí que um dano corporal, que é aquele que atinge a vida (cfr. o artigo 3.º, n.º 2) ou a integridade física de um indivíduo, possa acarretar um dano patrimonial, um dano não patrimonial ou ambos em simultâneo. Mesmo um dano material, que é aquele que atinge uma coisa, embora seja mais vulgar originar um dano patrimonial, poderá causar um dano não patrimonial, como acontece quando, por exemplo, se destrói uma coisa com elevado valor estimativo para o seu proprietário.

O dano decorrente da alegada realização das despesas que o recorrente enumerou nos artigos 62.º a 65.º da petição inicial tem, como se afirma no saneador-sentença recorrido, natureza patrimonial. Não obstante, a ter-se verificado, esse dano patrimonial resultou das lesões corporais que o recorrente alegadamente sofreu em consequência do acidente dos autos. Estamos, portanto, perante alegados danos patrimoniais resultantes de danos corporais sofridos pelo recorrente. Não estamos perante danos patrimoniais resultantes de danos materiais, ou seja, resultantes da perda ou deterioração de coisas pertencentes ao recorrente. A descrição que o recorrente faz dos danos em questão nos artigos da petição inicial acima referidos não deixa margem para dúvidas a esse respeito. Trata-se de danos resultantes da alegada realização de despesas com o pagamento do preço de medicamentos e da prestação de serviços, tratamentos e cuidados de saúde requeridos pelas lesões corporais que o recorrente afirma ter sofrido em consequência do acidente dos autos.

Sendo assim, o artigo 14.º, n.º 2, al. e), não exclui os referidos danos da garantia do seguro, não obstante o recorrente ser pai do condutor responsável pelo acidente. Tal exclusão abrange apenas os danos materiais e não também os danos corporais.

Consequentemente, o tribunal a quo não podia julgar a pretensão indemnizatória do recorrente parcialmente improcedente no despacho saneador com fundamento na natureza dos danos invocados. Nenhum dos danos cujo ressarcimento o recorrente pretende se encontra abrangido pela exclusão da garantia do seguro estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 2, al. e). Há, pois, que proporcionar ao recorrente a possibilidade de fazer a sua prova, tendo em vista o julgamento da totalidade do pedido no momento processual próprio.

Concluindo, o recurso merece provimento, devendo o segmento do despacho saneador por ele visado ser revogado.

Nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, as custas do recurso são da responsabilidade da recorrida, pois ficou vencida.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o saneador-sentença na parte em que julgou parcialmente improcedente o pedido do recorrente.

Custas a cargo da recorrida.

Notifique.

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Évora, 30.06.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta 


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