Processo n.º 1720/18.9T8PTM-D.E1
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Sumário:
As
consequências patrimoniais de danos corporais sofridos por um ascendente do
condutor responsável por um acidente de viação não se encontram abrangidas pela
exclusão da garantia do seguro estabelecida no artigo 14.º, n.º 2, al. e), do regime do sistema do seguro obrigatório de
responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08.
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O
Estado Federal de Hessen, Alemanha, propôs, contra AIG Europe Limited –
Sucursal em Portugal, acção declarativa comum, pedindo a condenação da ré a
pagar-lhe a quantia de € 110.629,39, acrescida de juros à taxa legal contados
desde a data dos factos até integral e efectivo pagamento, bem como uma
indemnização, a liquidar em execução de sentença nos termos do artigo 609.º,
n.º 2, do CPC, relativa a eventuais pagamentos futuros que surjam como
consequência directa e necessária do acidente dos autos.
Debeka
Krankenversicherungsverein auf Gegenseitigkeit propôs, contra AIG Europe
Limited – Sucursal em Portugal, acção declarativa comum, pedindo a condenação
da ré a pagar-lhe a quantia de € 52.910,30, acrescida de juros à taxa legal
contados desde 16.04.2018 até integral e efectivo pagamento, bem como uma
indemnização, a liquidar em execução de sentença nos termos do artigo 609.º,
n.º 2, do CPC, relativa a eventuais pagamentos futuros que surjam como
consequência directa e necessária do acidente dos autos.
Peter
e Irmgard propuseram, contra AIG Europe Limited – Sucursal em Portugal, acção
declarativa comum, pedindo a condenação da ré a pagar as quantias de €
249.383,44 ao autor e de € 25.000,00 à autora, acrescidas de juros de mora à
taxa legal contados desde 26.02.2018 até efectivo e integral pagamento, bem
como a pagar, ao autor, uma indemnização, a liquidar em execução de sentença,
nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC, relativa a eventuais pagamentos
futuros que surjam como consequência directa e necessária do acidente dos
autos.
Georg
propôs, contra AIG Europe Limited – Sucursal em Portugal, acção declarativa
comum, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 12.000,00,
acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 26.02.2018 até
efectivo e integral pagamento, bem como uma indemnização, a liquidar em
execução de sentença nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC, relativa a
eventuais pagamentos futuros que surjam como consequência directa e necessária
do acidente dos autos.
A
ré contestou todas as acções. Na acção proposta por Peter e Irmgard, a ré
invocou, nomeadamente, a exclusão da cobertura do contrato de seguro
estabelecida na alínea e) do n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 291/2007,
de 21.08.
As
acções propostas por Debeka Krankenversicherungsverein auf Gegenseitigkeit,
Peter, Irmgard e Georg foram apensadas à acção proposta pelo Estado Federal de
Hessen.
Foi
proferido despacho saneador, no qual, além do mais, se decidiu o seguinte:
“Quanto aos pedidos de PETER e IRMGARD:
Não se justifica o reenvio prejudicial
para o Tribunal de Justiça da União Europeia. Com efeito, a norma da Diretiva
só não permite que se excluam do benefício do seguro os danos corporais
sofridos pelos ascendentes, de resto, como previsto pelo nosso regime, o qual
exclui apenas os danos materiais.
Assim, considerando que os pais do
condutor pedem a condenação da ré no pagamento de indemnizações a título de
danos patrimoniais e não patrimoniais, será indeferida por inviável o pedido de
€ 129 383,44 formulado pelo autor, a título de danos patrimoniais, o que decido
– art. 14.º do Regime indicado.
Custas nesta parte a cargo do autor.”
O
autor Peter interpôs recurso de apelação deste segmento do despacho saneador,
tendo formulado as seguintes conclusões:
1 – O
que se discute no presente recurso é a responsabilidade extracontratual.
2 –
Saber se em tese geral, são indemnizáveis todos os danos peticionados pelo autor
lesado, desde que resultante da violação da sua integridade física, valor de
tal forma relevante, que se encontra consagrado no artigo 25.º da CRP?
3 – O
que está em causa nos presentes é saber se a M.M. Juiz a quo, nesta fase do processo, sem correspondente e indispensável
produção de prova, poderia ter indeferido o pedido de indemnização no valor de
€ 129.383,44.
4 – Importará avaliar a que título foi
peticionado aquele montante.
5 – De
uma análise rigorosa dos artigos 62, 63, 64, 65, 67 da petição inicial,
verifica-se que tais montantes se reportam ora a comparticipações, serviços,
tratamentos, medicamentos e cuidados de saúde, em tratamentos médicos, despesas
medicamentosas e outras despesas tidas como consequência directa e necessária
das lesões que o autor sofreu em virtude do acidente que aqui se discute.
6 –
Pelo que o montante de € 129.383,44 diz respeito a um dano moral que projecta
os seus efeitos a nível patrimonial, como fica demonstrada por uma leitura
atenta da petição inicial e da documentação que suporta esse pedido, com
particular destaque nos artigos 62, 63, 64, 65, 67 da petição inicial, pelo que
o tribunal a quo não deveria ter
indeferido liminarmente, isto é, sem produção de prova, os valores respeitantes
as despesas tidas com as lesões sofridas pelo autor Peter.
7 – Ao
agir dessa forma, negou ao autor um direito basilar que é o direito à prova.
8 – O Decreto-Lei
291/2007 dispõe, no seu artigo 14.º, n.º 2, o seguinte: que excluem-se também
da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas: Cônjuge,
ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a
c)....
9 – Ora
o que o legislador pretendeu foi apenas excluir as lesões materiais, pelo que
importa definir o conceito de lesões materiais e as mesmas são entendidas pela
doutrina como danos causados em coisas.
10 – É
uniforme o entendimento da jurisprudência quanto ao significado da expressão «danos
materiais», entendendo-se (esse entendimento tem também a ver com a razão de
ser do Decreto-Lei 291/2007) que a mesma expressão se contrapõe a «danos
decorrentes de lesões corporais». (Neste sentido, veja-se: Ac TRP de 04.07.90,
CJ 90, IV, 239; Ac TRP de 27.10.92, CJ 92, IV, 262; Ac STJ de 30.10.2001,
Relator Lopes Pinto – consultável na internet; Ac STJ de 21.10.2003, Relator
Moreira Alves, consultável na internet).
11 – Assim,
«danos decorrentes de lesões materiais», serão os danos causados em coisas.
12 – Por
outro lado, «danos decorrentes de lesões corporais», não se restringem a «danos
corporais» ou «danos de natureza não patrimonial», pois que das lesões
corporais (morte ou lesão de uma pessoa) podem resultar (e normalmente
resultam) danos «patrimoniais» e danos «não patrimoniais».
13 – Nenhum
destes danos, desde que «decorrentes de lesões corporais», se encontra excluído
da garantia do seguro, nos termos do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei
291/2007.
14 – Atento
o disposto nos termos do artigo 14.º, n.º 2, al. g), do Decreto-Lei 291/2007,
ao apelado assiste o direito a ser indemnizado pelos danos «decorrentes de
lesões corporais» (sejam patrimoniais ou não patrimoniais), os quais dizem
respeito ao montante peticionado pelo autor a título de danos patrimoniais.
15 – Pelo
que dúvidas não restam que da garantia do seguro não foram excluídos os danos
(patrimoniais e não patrimoniais) resultantes de lesões corporais.
16 – Sendo
assim, o autor tem o direito de ser indemnizado pelos montantes que despendeu
em comparticipações, serviços, tratamentos, medicamentos e cuidados de saúde,
em tratamentos médicos, despesas medicamentosas e outras despesas que vêm
elencadas nos artigos 62, 63, 64, 65, 67 da petição inicial.
17 – Por
último sempre se dirá que o despacho saneador que indefere a pretensão da
recorrente não se encontra devidamente fundamentado, assim se violando o artigo
205.º da CRP, que obriga que as decisões judiciais sejam devidamente
fundamentadas por forma a que os seus destinatários percecionem as razões
porque se decidiu daquele modo.
18 –
Percorrido o despacho saneador, ainda que na parte que nos interessa, não se
encontre devidamente fundamentado, é possível extrair a conclusão que no mesmo
foram confundidos dois conceitos de primordial importância: danos materiais e
danos morais que pela sua natureza projetem consequências a nível patrimonial.
19 – Assim
sendo, impõe-se a alteração do despacho proferido e a sua substituição por outro
que atenda ao supra expendido.
20 – Ao
contemplar diverso entendimento, o tribunal a
quo incorreu em violação do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei 291/2007,
n.º 1 dos artigos 3.º e 5.º da Directiva 72/166/CEE e artigos 25.º e 205.º da
CRP, entre outros, motivo pelo qual a douta decisão ora posta em crise se
mostra, assim, inquinada, devendo, pois, ser revogada nos termos supra
requeridos.
Não
foram apresentadas contra-alegações.
O
recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
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Questão a resolver: se a
indemnização, no montante de € 129.383,44, que o recorrente pretende a título
de ressarcimento dos danos que alega nos artigos 62.º a 65.º da petição
inicial, se encontra abrangida pela exclusão da garantia do seguro estabelecida
pelo artigo 14.º, n.º 2, al. e), do regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 291/2007, de 21.08 (ao qual pertencem as disposições legais adiante
referenciadas sem menção da sua origem).
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O tribunal a quo, considerando que já dispunha de
todos os elementos para o efeito necessários, julgou, no despacho saneador,
parcialmente improcedente o pedido, formulado pelo recorrente, de condenação da
recorrida a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 249.383,44. Mais precisamente, julgou
esse pedido improcedente na parte respeitante às despesas que o recorrente alega
ter pago por medicamentos e pela prestação de serviços, tratamentos e cuidados
de saúde requeridos pelas lesões que afirma ter sofrido em consequência do
acidente de viação dos autos, no montante global de € 129.383,44. Entendeu o
tribunal a quo que tais danos se
encontram abrangidos pela exclusão da garantia do seguro estabelecida pelo
artigo 14.º, n.º 2, al. e), uma vez que se trata de danos patrimoniais e o
recorrente é pai do condutor responsável pelo acidente.
A este entendimento, o
recorrente contrapõe que os danos em causa, não obstante terem natureza
patrimonial, resultam das lesões corporais por si sofridas em consequência do
acidente. Daí que devam ser qualificados como danos corporais e não como danos
materiais e, consequentemente, não se encontrem abrangidos pela exclusão da
garantia do seguro estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 2, al. e).
Analisemos a questão.
Começamos por salientar uma
incoerência no saneador-sentença recorrido. Entendendo que os danos
patrimoniais alegadamente sofridos pelo recorrente com o pagamento, já
efectuado, do preço dos medicamentos e da prestação de serviços, tratamentos e
cuidados de saúde requeridos pelas lesões que afirma ter sofrido em
consequência do acidente dos autos se encontram abrangidos pela exclusão da
garantia do seguro estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 2, al. e), o tribunal a quo devia, por igualdade de razão, ter
julgado igualmente improcedente o pedido do recorrente de condenação da
recorrida a pagar-lhe uma indemnização, a liquidar em execução de sentença nos
termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC, relativa a eventuais pagamentos futuros
que surjam como consequência directa e necessária do acidente dos autos. À
semelhança daqueles, estes últimos danos têm natureza patrimonial e são
consequência das lesões corporais alegadamente sofridas pelo recorrente, pelo
que o seu tratamento diferenciado não tem justificação.
Independentemente da
referida incoerência, é patente a confusão entre os conceitos de dano material
e de dano patrimonial em que assenta o segmento do saneador-sentença que
constitui objecto do presente recurso. Dano material não é sinónimo de dano
patrimonial. Trata-se de categorias de danos resultantes da classificação
destes em função de critérios diversos. A dicotomia dano corporal/dano material
resulta de uma distinção entre danos reais ou danos-evento, em função do tipo
de bem que é lesado, enquanto a dicotomia dano patrimonial/dano não patrimonial
atenta no tipo de consequências que determinado dano real ou dano-evento acarreta
para o lesado. Daí que um dano corporal, que é aquele que atinge a vida (cfr. o
artigo 3.º, n.º 2) ou a integridade física de um indivíduo, possa acarretar um
dano patrimonial, um dano não patrimonial ou ambos em simultâneo. Mesmo um dano
material, que é aquele que atinge uma coisa, embora seja mais vulgar originar
um dano patrimonial, poderá causar um dano não patrimonial, como acontece
quando, por exemplo, se destrói uma coisa com elevado valor estimativo para o
seu proprietário.
O dano decorrente da alegada
realização das despesas que o recorrente enumerou nos artigos 62.º a 65.º da
petição inicial tem, como se afirma no saneador-sentença recorrido, natureza
patrimonial. Não obstante, a ter-se verificado, esse dano patrimonial resultou
das lesões corporais que o recorrente alegadamente sofreu em consequência do
acidente dos autos. Estamos, portanto, perante alegados danos patrimoniais
resultantes de danos corporais sofridos pelo recorrente. Não estamos perante
danos patrimoniais resultantes de danos materiais, ou seja, resultantes da perda
ou deterioração de coisas pertencentes ao recorrente. A descrição que o
recorrente faz dos danos em questão nos artigos da petição inicial acima
referidos não deixa margem para dúvidas a esse respeito. Trata-se de danos
resultantes da alegada realização de despesas com o pagamento do preço de
medicamentos e da prestação de serviços, tratamentos e cuidados de saúde
requeridos pelas lesões corporais que o recorrente afirma ter sofrido em
consequência do acidente dos autos.
Sendo assim, o artigo 14.º,
n.º 2, al. e), não exclui os referidos danos da garantia do seguro, não
obstante o recorrente ser pai do condutor responsável pelo acidente. Tal
exclusão abrange apenas os danos materiais e não também os danos corporais.
Consequentemente, o tribunal
a quo não podia julgar a pretensão
indemnizatória do recorrente parcialmente improcedente no despacho saneador com
fundamento na natureza dos danos invocados. Nenhum dos danos cujo ressarcimento
o recorrente pretende se encontra abrangido pela exclusão da garantia do seguro
estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 2, al. e). Há, pois, que proporcionar ao
recorrente a possibilidade de fazer a sua prova, tendo em vista o julgamento da
totalidade do pedido no momento processual próprio.
Concluindo, o recurso merece
provimento, devendo o segmento do despacho saneador por ele visado ser
revogado.
Nos termos do artigo 527.º,
n.ºs 1 e 2, do CPC, as custas do recurso são da responsabilidade da recorrida,
pois ficou vencida.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o saneador-sentença na parte
em que julgou parcialmente improcedente o pedido do recorrente.
Custas
a cargo da recorrida.
Notifique.
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Évora, 30.06.2022
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta