Processo n.º 791/20.2T8MMN-A.E1
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Sumário:
Se, em obrigação fraccionada em
prestações, o devedor perder o benefício do prazo por efeito da falta de
pagamento de uma ou mais prestações e o credor o interpelar para efectuar o pagamento
antecipado das prestações remanescentes, nos termos do artigo 781.º do Código
Civil, o prazo de prescrição da dívida continua a ser de 5 anos, nos termos do
artigo 310.º, alínea e), do mesmo código.
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Elvira
deduziu oposição à execução contra si proposta por Sociedade 1, S.A., tendo
deduzido a excepção peremptória da prescrição do crédito exequendo.
A
embargada contestou, concluindo pela não verificação da prescrição.
Em
seguida, foi proferido saneador-sentença, julgando a oposição procedente com
fundamento na verificação da prescrição do crédito exequendo.
A
embargada interpôs recurso do saneador-sentença, tendo formulado as seguintes
conclusões:
1 –
Funda-se o presente recurso, salvo melhor opinião, em falhas de apreciação em
que se apoiou a douta sentença proferida a fls., designadamente no que diz
respeito à decisão de direito proferida.
2 –
Com efeito, o tribunal a quo não
atendeu à matéria de facto alegada e dada como assente, tendo sido realizada
uma subsunção errada ao direito aplicável.
3 –
Debrucemo-nos sobre a natureza jurídica da obrigação contratual do mútuo com
prestações periódicas e, consequentemente, passemos agora à crucial divergência
em equação e que passa pela caracterização da obrigação do mutuário no
reembolso do capital e juros remuneratórios, através de prestações periódicas e
sucessivas.
4 – Nos
contratos, o prazo, tempo de realização da prestação, constitui elemento
essencial, e que por seu turno, na determinação do tempo de cumprimento da
obrigação, há que distinguir a vertente do tempo da prestação, daquela outra,
que diz respeito ao tempo da exigibilidade da prestação.
5 – E
assim sendo, acolhendo o funcionamento da prescrição quinquenal no que respeita
à extinção de cada uma das prestações vencidas, ter-se-á de ter em conta,
porém, que, em caso de incumprimento, tendo o mutuante considerado vencidas
todas as prestações, fica sem efeito o plano de pagamento acordado, e, nessa
medida, os valores em dívida retomam a sua natureza original de capital (e
juros), ficando o capital global sujeito ao prazo ordinário de 20 (vinte) anos,
previsto no artigo 309.º do CC.
6 – É
este o entendimento presente na nossa doutrina mais ilustre, vide Prof. Dr.
Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, I- Parte Geral, Tomo
IV, 2005, pág. 175 a 176. 7. E, bem assim, acompanhado pela nossa
jurisprudência, vide ac. proferido no processo n.º 638/19.2T8SNT-A. L1, de
13.10.2020, sendo relatora Conceição Saavedra e 1.ª adjunta Cristina Coelho, do
Tribunal da Relação de Lisboa, e que passamos a citar: “I - No mútuo bancário, em que o reembolso da dívida foi objeto de um
plano de amortização, fracionado em prestações mensais integrando capital e
juros remuneratórios, cada uma delas a pagar periodicamente com prazos de
vencimento autónomos, a prestação unitária e global fica sujeita ao prazo
prescricional de cinco anos, previsto na al. e) do artigo 310 do C.C.; II -
Tendo o mutuante, todavia, comunicado oportunamente à mutuária a resolução do
contrato por incumprimento desta, exigindo-lhe o pagamento do valor devido em
consequência desse incumprimento, no uso da faculdade conferida pelo art. 781
do C.C., passou a existir então uma obrigação diversa e uma única prestação em
mora, deixando, após aquela data, as prestações de vencer-se na data que fora
estabelecida no contrato, ficando tal obrigação sujeita ao prazo ordinário de 20
anos, nos termos do art. 309 do C.C.”
8 – Na
sequência da revogação por incumprimento e vencimento antecipado com a
interpelação do devedor para o seu pagamento, a dívida total passa a assumir a
natureza de obrigação única, sujeita ao prazo ordinário de prescrição
estabelecido no artigo 309.º do CC.
9.
Face ao exposto, porque existem documentos e matéria de facto alegada assente,
por não oposição, nos quais constam factos que não foram atendidos, nem
relevados, pelo Meritíssimo Juiz a quo
na decisão, entendemos, com todo o respeito, haver manifesto erro de julgamento
e de apreciação do direito aplicável; impugnando-se, assim, a decisão
proferida.
Termos
em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta
decisão recorrida e substituindo-se por uma outra que determine a improcedência
da excepção peremptória da prescrição, consequentemente, seja a executada
condenada no pedido.
Não
foram apresentadas contra-alegações.
O
recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente
devolutivo.
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Questão a resolver:
Se, em obrigação fraccionada em
prestações, o devedor perder o benefício do prazo por efeito da falta de
pagamento de uma ou mais prestações e o credor o interpelar para efectuar o
pagamento antecipado das prestações remanescentes, nos termos do artigo 781.º
do Código Civil, qual é o prazo de prescrição aplicável?
*
No
saneador-sentença recorrido, foram julgados provados os seguintes factos:
1. A exequente veio em 12.08.2020
instaurar contra o executado acção executiva sob a forma de processo ordinário,
para pagamento de quantia certa, dando à execução “contrato de crédito
pessoal”, alegando ademais que entre entidade bancária terceira (da qual o
exequente adquiriu o crédito dado à execução) e a executada e outro por
outorgado “contrato de mútuo” a 10 de Fevereiro de 2010, nos termos do qual
emprestou à executada e ao outro, pelo prazo de 60 meses, a importância de
Euros 15.000,00, a liquidar em prestações mensais, constantes e sucessivas de
capital e juros, acrescidas do imposto de selo em vigor, e nas demais condições
constantes do acordo, à taxa de juro Euribor a 3 meses, acrescida do spread de
13%, acordando em caso de mora ou incumprimento, tal taxa seria elevada em 4%.
Mais alega que a quantia emprestada foi efetivamente entregue à executada e
outro que identifica, em conta à ordem que estes movimentaram, utilizando em
proveito próprio os valores resultantes daquele crédito, confessando-se
devedores das quantias recebidas perante o banco. Alega ainda que a executada e
o outro interveniente passivo interromperam o pagamento das prestações do
empréstimo acima referido em 20/11/2011, nada mais tendo pago por conta do
mesmo, apesar das diversas diligências suasórias desenvolvidas pelo exequente,
o que determinou o direito de considerar vencida toda a dívida, reportada à
data da última prestação paga, e exigir o pagamento imediato de todo o capital
em dívida, à data daquela última prestação paga, juros e imposto.
2. Com o requerimento executivo juntou,
entre o mais, acordo denominado “contrato de crédito pessoal”, celebrado em
10.02.2010 entre a executada, como beneficiária (e outro), e o Banco, S.A., do
qual ademais resulta “(…) Nos termos da lei aplicável é celebrado um crédito de
consumo que se regula pelas cláusulas seguintes: PRIMEIRA 1. O Banco, S.A.
concede ao(s) beneficiário(s), que aceita(m) um empréstimo no valor de Eur.
15.000,00 (quinze mil euros), destinado a apoio financeiro, que será sediado na
conta de depósitos à ordem do(s) beneficiário(s) (…). 2. O montante será
disponibilizado na data de celebração do presente contrato. 3. O empréstimo
considera-se utilizado na data de disponibilização pelo Banco, S. A. ao(s)
beneficiário(s). 4. O beneficiário(s) considera-se devedor ao Banco, S. A. da
quantia mutuada, juros, taxas, impostos, encargos e outras despesas emergentes
do contrato de crédito. SEGUNDA 1. O Banco, S. A. fica autorizado a debitar a
conta de depósitos à ordem referida na cláusula anterior pelo montante
correspondente aos reembolsos de capital, juros e demais encargos. 2. Para o
efeito, o(s) beneficiário(s) obriga(m)-se a manter provisionada a referida
conta de depósitos à ordem. (…) TERCEIRA 1. O empréstimo é concedido pelo prazo
de 60 meses, a contar da data de celebração do presente contrato, com termo em
10.02.2015. (…) QUINTA 1. O presente empréstimo será reembolsado em 60
prestações mensais e sucessivas de capital e juros, com início em 10.03.2010.
(…) SEXTA 1. Os juros referidos na cláusula QUINTA serão contados dia a dia,
sobre o capital utilizado, pagos no final do período a que respeitem e
calculados à taxa de juro Euribor 3 meses (…). NONA 1. Verificada a mora em
duas prestações sucessivas, o Banco, S. A. informa o(s) Beneficiário(s), por qualquer
meio escrito ou de suporte duradoro, que possui um prazo suplementar de 15 dias
de calendário, contados da data de vencimento da segunda prestação, para
proceder ao pagamento de todas as quantias em dívida, acrescidas da taxa de
mora referida no n.º (…) e eventuais encargos ou indemnizações devidas. 2. No
caso de mora no pagamento da prestação de capital e/ou juros remuneratórios,
comissões e demais encargos, incidirá sobre o montante dessa prestação e
durante o tempo em que a mora se verificar a taxa de juro fixada neste
contrato, acrescida de uma sobretaxa de mora de 4% (quatro por cento) ao ano ou
de outra que estiver legalmente em vigor. (…) DÉCIMA O presente contrato cessa
nos termos gerais, designadamente, cumprimento integral, reembolso total antecipado,
resolução e invalidade. (…) DÉCIMA.SÉTIMA 1. O não cumprimento pelo(s)
beneficiário(s) de qualquer das obrigações aqui assumidas, tanto de natureza
pecuniária como de outra espécie, determinará o imediato e automático
vencimento de toda a dívida e, em consequência, a exigibilidade de tudo quanto
constituir o crédito do Banco, S. A., que poderá de imediato resolver o
contrato, sem necessidade de dirigir qualquer interpelação ao(s)
beneficiário(s). DÉCIMA OITAVA 1. O Banco, S. A. poderá dar o presente contrato
imediatamente por resolvido, não tendo esta resolução qualquer efeito
retroactivo, se (…) c) os beneficiários cessarem pagamentos (…); e) A falta de
pagamento de duas prestações sucessivas que excedam 10% (…) do montante total
do crédito e se o(s) beneficiário(s), notificado para proceder à sua
regularização, o não fizer. (…)”.
3. A quantia emprestada foi efetivamente
entregue à executada e outro interveniente no acordo referido em 2, em conta à
ordem que estes movimentaram, utilizando em proveito próprio os valores
resultantes daquele crédito.
4. A executada e o outro interveniente
no acordo referido em 2 interromperam o pagamento das prestações do empréstimo
acima referido em 20/11/2011, nada mais tendo pago por conta do mesmo.
5. Na sequência do referido em 4, a
exequente considerou vencida toda a dívida, reportada à data da última
prestação paga.
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Estamos perante uma obrigação pecuniária, em que é sujeito activo a recorrente
e sujeito passivo a recorrida, resultante de um contrato de mútuo celebrado em 10.02.2010. A referida
obrigação foi
fraccionada, logo no referido contrato, em 60 prestações mensais e
sucessivas de capital e juros, com início em 10.03.2010.
A recorrida e o outro mutuário deixaram
de pagar as prestações em 20.11.2011. Com esse fundamento, a recorrente
considerou vencida toda a dívida, reportada à data da última prestação paga.
A recorrente admite que o prazo de prescrição de cada uma das 60
prestações estipuladas no contrato de mútuo era o estabelecido no artigo 310.º,
al. e), do Código Civil (diploma ao qual pertencem todas as disposições legais
doravante referenciadas), ou seja, de 5 anos. Sustenta, contudo, que, a partir
do momento em que, com fundamento no incumprimento, considerou vencidas todas
as prestações que ainda o não estavam e interpelou a recorrida para efectuar o
pagamento destas, assim ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, a dívida total passou a
assumir a natureza de obrigação única, tendo os valores em dívida retomado a
sua natureza original de capital e juros e ficando o capital global sujeito ao
prazo de prescrição ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309.º.
O entendimento do tribunal a quo foi diverso. Decidiu-se, no
saneador-sentença recorrido, que, não obstante o vencimento antecipado das prestações
remanescentes, o prazo de prescrição continuou a ser de 5 anos, nos termos do artigo 310.º, al. e),
pelo que o mesmo já tinha decorrido, mesmo considerando a data da propositura
da acção executiva e não a da citação.
A questão com que nos confrontamos tem sido objecto de um número
significativo de decisões dos nossos tribunais superiores, nomeadamente do
Supremo Tribunal de Justiça. Nos tempos mais recentes, verifica-se unanimidade
no sentido do entendimento sufragado pelo tribunal a quo. Referenciamos, a título exemplificativo, os acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2020 (Rijo Ferreira), 03.11.2020 (Fátima Gomes), 28.04.2021
(Graça Amaral) e 14.07.2021 (Ilídio Sacarrão Martins), da Relação de Lisboa de 23.11.2021 (Luís Filipe Pires de Sousa)
e da Relação de Évora de 25.11.2021 (Rui Machado e Moura).
Acompanhamos este entendimento.
Começamos, porém, por nos demarcar de um
dos argumentos esgrimidos em defesa do mesmo entendimento, a saber, o de que,
se o prazo de prescrição passasse a ser de 20 anos, nos termos do artigo 309.º,
quando se verificasse o vencimento antecipado de todas as prestações remanescentes
nos termos do artigo 781.º, se verificaria um acréscimo inadmissível do risco
de insolvência do devedor. A inadmissibilidade de tal acréscimo decorreria de,
com a al. e) do artigo 310.º, o legislador ter pretendido minorar,
precisamente, o risco de insolvência do devedor por efeito da acumulação de
prestações não pagas ao longo de mais de 5 anos e da exigência do seu pagamento
imediato passado mais tempo, protegendo aquele da parte das consequências da
acumulação da sua dívida que considerou excederem a medida do razoável. O
aumento do prazo de prescrição do crédito de 5 para 20 anos contrariaria,
assim, o escopo do regime decorrente da al. e) do artigo 310.º.
Este argumento não nos convence.
Enquanto vigorar o plano de pagamentos escalonados, a finalidade de contenção,
dentro de certos limites, do risco de insolvência do devedor, prossegue-se
através da prescrição das prestações vencidas há mais de 5 anos, assim se
evitando a acumulação de prestações em débito devido à inércia do credor na
cobrança do seu crédito. Ora, o resultado do vencimento antecipado das
prestações remanescentes em consequência da falta de pagamento de uma prestação
no prazo para isso estipulado e da manifestação da vontade do credor de que,
com esse fundamento, aquele vencimento antecipado se verifique, pode equivaler
ao da referida acumulação. Ou seja, a partir do momento em que viabiliza o
vencimento antecipado das prestações remanescentes, a própria lei abre a
possibilidade de o resultado que visou evitar através do estabelecimento do
prazo de prescrição de 5 anos se verificar: o devedor fica obrigado ao
pagamento antecipado de uma quantia, correspondente a uma acumulação de
prestações, que pode exceder, em muito, aquelas que correspondiam a 5 anos de
acordo com o plano de amortização anteriormente em vigor. Nessas
circunstâncias, o legislador abdica daquela sua preocupação com o risco de
insolvência do devedor e permite, ao credor, exigir o cumprimento antecipado
das prestações vincendas.
Sendo assim, não faz sentido transpor-se
o argumento da mitigação do risco de insolvência do devedor para uma questão
diversa como é a de o prazo de prescrição da dívida após o vencimento
antecipado das prestações remanescentes ser de 5 ou de 20 anos. Por outras
palavras, o argumento em análise perde acuidade a partir do momento em que o devedor
perde o benefício do prazo nos termos do artigo 781.º.
A sustentação do entendimento que
sufragamos passa por outro tipo de argumentação.
Como acima referimos, a tese da
recorrente é a seguinte; a partir do momento em que, com fundamento no incumprimento de uma ou
mais prestações, o credor considera vencidas todas as prestações que ainda o
não estavam, interpelando o devedor para efectuar o pagamento destas, a
dívida passa a ter a natureza de obrigação única, retomando os valores em
dívida a sua natureza original de capital e juros e ficando o capital global
sujeito ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309.º.
Os pressupostos desta tese não se
apresentam, na realidade, de forma tão linear como a descrita. Há que
analisá-los com alguma profundidade.
Importa começar por ter presente a
distinção entre a prestação ou as prestações cujo não pagamento determinou a
perda do benefício do prazo e aquelas em relação às quais esta perda se
verifica. As segundas são sujeitas a uma vicissitude comum: vencem-se antecipadamente,
por efeito de uma interpelação do credor fundada na perda do benefício do
prazo. A primeira ou as primeiras estão fora dessa vicissitude, pois constituem
o fundamento da perda do benefício do prazo; por outras palavras, venceram-se
automaticamente nas datas para o efeito estipuladas e não antecipadamente e por
efeito de uma interpelação. Daí a necessidade de continuar a distingui-las.
Tais prestações continuarão a ter datas de vencimento diferentes. Aquela ou
aquelas prestações cuja falta de cumprimento constituiu fundamento para o
credor interpelar o devedor para cumprir antecipadamente as restantes ainda em
dívida terão datas de vencimento anteriores àquela em que a interpelação produz
efeitos, sendo esta última a data do vencimento das prestações em relação às
quais se verificou a perda do benefício do prazo. O vencimento antecipado não produz,
nem pode produzir, efeitos retroactivos à data em que se verificou a falta de
pagamento de qualquer das prestações que determinaram a perda do benefício do
prazo, obviamente anterior à da própria realização da interpelação do credor.
Tal retroactividade não encontra cobertura legal, nomeadamente, no artigo
781.º.
O mesmo é dizer que, mesmo após o
vencimento das prestações remanescentes nos termos do artigo 781.º CC, não
ficamos perante uma dívida absolutamente homogénea, ou seja, sem parcelas que
requeiram tratamento autónomo. Pelo menos diversidade das datas de vencimento,
teremos. Circunstância esta que acarreta uma consequência ao nível da matéria de
que agora tratamos: ainda que sujeitas a um mesmo prazo de prescrição, seja ele
de 5 ou de 20 anos, tais parcelas da dívida terão datas de prescrição diversas,
atento o disposto no artigo 306.º, n.º 1, 1.ª parte, CC.
Ou seja, a ideia de que, após o vencimento
antecipado das prestações remanescentes nos termos do artigo 781.º, ficamos
perante um direito de crédito homogéneo, não corresponde à realidade. Ainda que
em termos diversos dos até aí vigentes, continuamos perante um direito de
crédito (ou, vistas as coisas pelo lado passivo, uma dívida) fraccionado para
alguns efeitos jurídicos. Ao contrário do que anteriormente acontecia, toda a
parte da dívida que não foi paga se encontra vencida. Todavia, continuamos a
ter datas de vencimento diversas, com as consequências acima apontadas ao nível
da prescrição.
A análise a que acabamos de proceder
demonstra que a realidade resultante do vencimento antecipado nos termos do
artigo 781.º não é tão linear quanto os defensores da aplicabilidade, a toda a
dívida que se encontra por pagar, do prazo de prescrição estabelecido no artigo
309.º, pressupõem. Ao invés, a circunstância de a dívida ter sido fraccionada
repercute-se no regime jurídico desta mesmo depois daquele vencimento
antecipado. O anterior fraccionamento deixou sequelas.
Uma outra ideia que os defensores da
tese de que, operado o vencimento antecipado das prestações remanescentes nos
termos do artigo 781.º, o prazo de prescrição passa a ser o previsto no artigo
309.º, ideia essa presente na argumentação expendida pela recorrente, é a de
que a dívida fraccionada reassume a sua feição original de dívida não
fraccionada, com clara distinção entre capital e juros, e imediatamente
exigível. Também esta ideia não espelha a realidade na esmagadora maioria dos casos
– entre os quais o dos autos tendo em conta a matéria de facto julgada provada
–, em que dívida já nasce para o mundo jurídico fraccionada em prestações que
compreendem a amortização simultânea de capital e juros, ou seja, em que nunca
o devedor esteve obrigado ao seu cumprimento imediato e de uma só vez. Em tais
hipóteses, que correspondem à quase totalidade dos inúmeros contratos de mútuo
que quotidianamente são celebrados tendo em vista a aquisição de bens, móveis
ou imóveis, a dívida assume uma feição que nunca teve anteriormente por efeito
do vencimento antecipado das prestações remanescentes nos termos do artigo
781.º. Não há, pois, qualquer “regresso ao passado” no que concerne ao
escalonamento temporal da dívida, pela simples razão de que esse imaginado
passado nunca existiu. Logo, tal argumento não demonstra que, por efeito
daquele vencimento antecipado, o prazo de prescrição volta a ser o ordinário,
de 20 anos. Nunca o prazo de prescrição dessa dívida foi de 20 anos. Sempre foi
de 5 anos porquanto a dívida já nasceu fraccionada. A ideia do “regresso ao
passado” constitui, normalmente, de uma ficção. No caso dos autos, constitui-o
seguramente.
Outro argumento a favor da tese da
manutenção do prazo de prescrição de 5 anos não obstante o vencimento antecipado
das prestações remanescentes nos termos do artigo 781.º é o de que a alteração
daquele prazo para 20 anos, nos termos do artigo 309.º, equivaleria a deixar ao
arbítrio do credor a opção por um ou outro prazos, consoante exigisse, ou não,
o cumprimento antecipado das referidas prestações.
Este argumento pressupõe uma tomada de
posição acerca da interpretação do artigo 781.º. Não obstante a redacção desta norma
poder inculcar que, uma vez incumprida uma das prestações em que a obrigação
foi fraccionada, as restantes prestações se vencem automaticamente, isto é, sem
necessidade de qualquer manifestação de vontade do credor nesse sentido[1], a melhor doutrina
inclina-se no sentido de que tal vencimento não é automático, antes dependendo
de uma manifestação de vontade do credor que, com fundamento no incumprimento,
interpele o devedor para efectuar o pagamento antecipado das prestações ainda
não vencidas[2].
Excluem-se, naturalmente, do âmbito de tal interpelação, a ou as prestações
cujo incumprimento fundamentou a interpelação, pois essas venceram-se nas datas
para o efeito estipuladas, independentemente de interpelação, nos termos do
artigo 805.º, n.º 2, al. a).
Sendo o regime decorrente do artigo
781.º o descrito, o argumento exposto tem razão de ser. O credor que, apesar da
falta de pagamento de uma ou mais prestações, não interpelasse o devedor para
cumprir antecipadamente as restantes, ficaria com a possibilidade de, segundo o
seu arbítrio, determinar, a qualquer momento, a ampliação do prazo de prescrição
para 20 anos, efectuando a referida interpelação. Ora, esta disponibilidade do
prazo da prescrição por uma das partes contraria as exigências de certeza e
segurança ínsitas no instituto da prescrição.
Concluindo, a única consequência da
falta de pagamento de uma ou mais das prestações em que uma obrigação se
encontre fraccionada é a perda do benefício do prazo estabelecido em benefício
do devedor, nos termos do artigo 781.º, devidamente interpretado. As prestações
vincendas tornam-se exigíveis em sentido fraco, podendo o credor exigir o seu
pagamento antecipado mediante interpelação do devedor. O prazo de prescrição
continua a ser de 5 anos, nos termos do artigo 310.º, al. e), pois solução
diversa carece de fundamento e esbarraria com os obstáculos acima descritos. A
solução de aplicar o prazo de prescrição ordinário, de 20 anos, a partir do
momento em que o credor procedesse à referida interpelação do devedor para
efectuar o cumprimento das prestações vincendas, baseia-se numa visão simplista
do problema, como procurámos demonstrar.
Confirma-se, assim, que, no caso dos
autos, a prescrição ocorreu tal como se decidiu no saneador-sentença.
Consequentemente, deverá o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se
aquela decisão.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o saneador-sentença
recorrido.
Custas
a cargo da recorrente.
Notifique.
*
Évora, 27.01.2022
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.º
adjunto)
(2.ª adjunta)
[1] Era este o entendimento de
INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, defendido em Direito
das Obrigações, 5.ª edição, Coimbra Editora, páginas 235 e 237-239. Este
Autor discordava, contudo, da solução que entendia ter sido consagrada no
artigo 781.º.
[2] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª
edição, Livraria Almedina, páginas 52 a 54; LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, volume II, 7.ª
edição, Edições Almedina, páginas 168 e 169; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. IX, 3.ª
edição Totalmente Revista e Aumentada, Edições Almedina, páginas 95 a 100.