terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 27.01.2022

Processo n.º 791/20.2T8MMN-A.E1

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Sumário:

Se, em obrigação fraccionada em prestações, o devedor perder o benefício do prazo por efeito da falta de pagamento de uma ou mais prestações e o credor o interpelar para efectuar o pagamento antecipado das prestações remanescentes, nos termos do artigo 781.º do Código Civil, o prazo de prescrição da dívida continua a ser de 5 anos, nos termos do artigo 310.º, alínea e), do mesmo código.

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Elvira deduziu oposição à execução contra si proposta por Sociedade 1, S.A., tendo deduzido a excepção peremptória da prescrição do crédito exequendo.

A embargada contestou, concluindo pela não verificação da prescrição.

Em seguida, foi proferido saneador-sentença, julgando a oposição procedente com fundamento na verificação da prescrição do crédito exequendo.

A embargada interpôs recurso do saneador-sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – Funda-se o presente recurso, salvo melhor opinião, em falhas de apreciação em que se apoiou a douta sentença proferida a fls., designadamente no que diz respeito à decisão de direito proferida.

2 – Com efeito, o tribunal a quo não atendeu à matéria de facto alegada e dada como assente, tendo sido realizada uma subsunção errada ao direito aplicável.

3 – Debrucemo-nos sobre a natureza jurídica da obrigação contratual do mútuo com prestações periódicas e, consequentemente, passemos agora à crucial divergência em equação e que passa pela caracterização da obrigação do mutuário no reembolso do capital e juros remuneratórios, através de prestações periódicas e sucessivas.

4 – Nos contratos, o prazo, tempo de realização da prestação, constitui elemento essencial, e que por seu turno, na determinação do tempo de cumprimento da obrigação, há que distinguir a vertente do tempo da prestação, daquela outra, que diz respeito ao tempo da exigibilidade da prestação.

5 – E assim sendo, acolhendo o funcionamento da prescrição quinquenal no que respeita à extinção de cada uma das prestações vencidas, ter-se-á de ter em conta, porém, que, em caso de incumprimento, tendo o mutuante considerado vencidas todas as prestações, fica sem efeito o plano de pagamento acordado, e, nessa medida, os valores em dívida retomam a sua natureza original de capital (e juros), ficando o capital global sujeito ao prazo ordinário de 20 (vinte) anos, previsto no artigo 309.º do CC.

6 – É este o entendimento presente na nossa doutrina mais ilustre, vide Prof. Dr. Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, I- Parte Geral, Tomo IV, 2005, pág. 175 a 176. 7. E, bem assim, acompanhado pela nossa jurisprudência, vide ac. proferido no processo n.º 638/19.2T8SNT-A. L1, de 13.10.2020, sendo relatora Conceição Saavedra e 1.ª adjunta Cristina Coelho, do Tribunal da Relação de Lisboa, e que passamos a citar: “I - No mútuo bancário, em que o reembolso da dívida foi objeto de um plano de amortização, fracionado em prestações mensais integrando capital e juros remuneratórios, cada uma delas a pagar periodicamente com prazos de vencimento autónomos, a prestação unitária e global fica sujeita ao prazo prescricional de cinco anos, previsto na al. e) do artigo 310 do C.C.; II - Tendo o mutuante, todavia, comunicado oportunamente à mutuária a resolução do contrato por incumprimento desta, exigindo-lhe o pagamento do valor devido em consequência desse incumprimento, no uso da faculdade conferida pelo art. 781 do C.C., passou a existir então uma obrigação diversa e uma única prestação em mora, deixando, após aquela data, as prestações de vencer-se na data que fora estabelecida no contrato, ficando tal obrigação sujeita ao prazo ordinário de 20 anos, nos termos do art. 309 do C.C.”

8 – Na sequência da revogação por incumprimento e vencimento antecipado com a interpelação do devedor para o seu pagamento, a dívida total passa a assumir a natureza de obrigação única, sujeita ao prazo ordinário de prescrição estabelecido no artigo 309.º do CC.

9. Face ao exposto, porque existem documentos e matéria de facto alegada assente, por não oposição, nos quais constam factos que não foram atendidos, nem relevados, pelo Meritíssimo Juiz a quo na decisão, entendemos, com todo o respeito, haver manifesto erro de julgamento e de apreciação do direito aplicável; impugnando-se, assim, a decisão proferida.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-se por uma outra que determine a improcedência da excepção peremptória da prescrição, consequentemente, seja a executada condenada no pedido.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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Questão a resolver:

Se, em obrigação fraccionada em prestações, o devedor perder o benefício do prazo por efeito da falta de pagamento de uma ou mais prestações e o credor o interpelar para efectuar o pagamento antecipado das prestações remanescentes, nos termos do artigo 781.º do Código Civil, qual é o prazo de prescrição aplicável?

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No saneador-sentença recorrido, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A exequente veio em 12.08.2020 instaurar contra o executado acção executiva sob a forma de processo ordinário, para pagamento de quantia certa, dando à execução “contrato de crédito pessoal”, alegando ademais que entre entidade bancária terceira (da qual o exequente adquiriu o crédito dado à execução) e a executada e outro por outorgado “contrato de mútuo” a 10 de Fevereiro de 2010, nos termos do qual emprestou à executada e ao outro, pelo prazo de 60 meses, a importância de Euros 15.000,00, a liquidar em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, acrescidas do imposto de selo em vigor, e nas demais condições constantes do acordo, à taxa de juro Euribor a 3 meses, acrescida do spread de 13%, acordando em caso de mora ou incumprimento, tal taxa seria elevada em 4%. Mais alega que a quantia emprestada foi efetivamente entregue à executada e outro que identifica, em conta à ordem que estes movimentaram, utilizando em proveito próprio os valores resultantes daquele crédito, confessando-se devedores das quantias recebidas perante o banco. Alega ainda que a executada e o outro interveniente passivo interromperam o pagamento das prestações do empréstimo acima referido em 20/11/2011, nada mais tendo pago por conta do mesmo, apesar das diversas diligências suasórias desenvolvidas pelo exequente, o que determinou o direito de considerar vencida toda a dívida, reportada à data da última prestação paga, e exigir o pagamento imediato de todo o capital em dívida, à data daquela última prestação paga, juros e imposto.

2. Com o requerimento executivo juntou, entre o mais, acordo denominado “contrato de crédito pessoal”, celebrado em 10.02.2010 entre a executada, como beneficiária (e outro), e o Banco, S.A., do qual ademais resulta “(…) Nos termos da lei aplicável é celebrado um crédito de consumo que se regula pelas cláusulas seguintes: PRIMEIRA 1. O Banco, S.A. concede ao(s) beneficiário(s), que aceita(m) um empréstimo no valor de Eur. 15.000,00 (quinze mil euros), destinado a apoio financeiro, que será sediado na conta de depósitos à ordem do(s) beneficiário(s) (…). 2. O montante será disponibilizado na data de celebração do presente contrato. 3. O empréstimo considera-se utilizado na data de disponibilização pelo Banco, S. A. ao(s) beneficiário(s). 4. O beneficiário(s) considera-se devedor ao Banco, S. A. da quantia mutuada, juros, taxas, impostos, encargos e outras despesas emergentes do contrato de crédito. SEGUNDA 1. O Banco, S. A. fica autorizado a debitar a conta de depósitos à ordem referida na cláusula anterior pelo montante correspondente aos reembolsos de capital, juros e demais encargos. 2. Para o efeito, o(s) beneficiário(s) obriga(m)-se a manter provisionada a referida conta de depósitos à ordem. (…) TERCEIRA 1. O empréstimo é concedido pelo prazo de 60 meses, a contar da data de celebração do presente contrato, com termo em 10.02.2015. (…) QUINTA 1. O presente empréstimo será reembolsado em 60 prestações mensais e sucessivas de capital e juros, com início em 10.03.2010. (…) SEXTA 1. Os juros referidos na cláusula QUINTA serão contados dia a dia, sobre o capital utilizado, pagos no final do período a que respeitem e calculados à taxa de juro Euribor 3 meses (…). NONA 1. Verificada a mora em duas prestações sucessivas, o Banco, S. A. informa o(s) Beneficiário(s), por qualquer meio escrito ou de suporte duradoro, que possui um prazo suplementar de 15 dias de calendário, contados da data de vencimento da segunda prestação, para proceder ao pagamento de todas as quantias em dívida, acrescidas da taxa de mora referida no n.º (…) e eventuais encargos ou indemnizações devidas. 2. No caso de mora no pagamento da prestação de capital e/ou juros remuneratórios, comissões e demais encargos, incidirá sobre o montante dessa prestação e durante o tempo em que a mora se verificar a taxa de juro fixada neste contrato, acrescida de uma sobretaxa de mora de 4% (quatro por cento) ao ano ou de outra que estiver legalmente em vigor. (…) DÉCIMA O presente contrato cessa nos termos gerais, designadamente, cumprimento integral, reembolso total antecipado, resolução e invalidade. (…) DÉCIMA.SÉTIMA 1. O não cumprimento pelo(s) beneficiário(s) de qualquer das obrigações aqui assumidas, tanto de natureza pecuniária como de outra espécie, determinará o imediato e automático vencimento de toda a dívida e, em consequência, a exigibilidade de tudo quanto constituir o crédito do Banco, S. A., que poderá de imediato resolver o contrato, sem necessidade de dirigir qualquer interpelação ao(s) beneficiário(s). DÉCIMA OITAVA 1. O Banco, S. A. poderá dar o presente contrato imediatamente por resolvido, não tendo esta resolução qualquer efeito retroactivo, se (…) c) os beneficiários cessarem pagamentos (…); e) A falta de pagamento de duas prestações sucessivas que excedam 10% (…) do montante total do crédito e se o(s) beneficiário(s), notificado para proceder à sua regularização, o não fizer. (…)”.

3. A quantia emprestada foi efetivamente entregue à executada e outro interveniente no acordo referido em 2, em conta à ordem que estes movimentaram, utilizando em proveito próprio os valores resultantes daquele crédito.

4. A executada e o outro interveniente no acordo referido em 2 interromperam o pagamento das prestações do empréstimo acima referido em 20/11/2011, nada mais tendo pago por conta do mesmo.

5. Na sequência do referido em 4, a exequente considerou vencida toda a dívida, reportada à data da última prestação paga.

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Estamos perante uma obrigação pecuniária, em que é sujeito activo a recorrente e sujeito passivo a recorrida, resultante de um contrato de mútuo celebrado em 10.02.2010. A referida obrigação foi fraccionada, logo no referido contrato, em 60 prestações mensais e sucessivas de capital e juros, com início em 10.03.2010.

A recorrida e o outro mutuário deixaram de pagar as prestações em 20.11.2011. Com esse fundamento, a recorrente considerou vencida toda a dívida, reportada à data da última prestação paga.

A recorrente admite que o prazo de prescrição de cada uma das 60 prestações estipuladas no contrato de mútuo era o estabelecido no artigo 310.º, al. e), do Código Civil (diploma ao qual pertencem todas as disposições legais doravante referenciadas), ou seja, de 5 anos. Sustenta, contudo, que, a partir do momento em que, com fundamento no incumprimento, considerou vencidas todas as prestações que ainda o não estavam e interpelou a recorrida para efectuar o pagamento destas, assim ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, a dívida total passou a assumir a natureza de obrigação única, tendo os valores em dívida retomado a sua natureza original de capital e juros e ficando o capital global sujeito ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309.º.

O entendimento do tribunal a quo foi diverso. Decidiu-se, no saneador-sentença recorrido, que, não obstante o vencimento antecipado das prestações remanescentes, o prazo de prescrição continuou a ser de 5 anos, nos termos do artigo 310.º, al. e), pelo que o mesmo já tinha decorrido, mesmo considerando a data da propositura da acção executiva e não a da citação.

A questão com que nos confrontamos tem sido objecto de um número significativo de decisões dos nossos tribunais superiores, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça. Nos tempos mais recentes, verifica-se unanimidade no sentido do entendimento sufragado pelo tribunal a quo. Referenciamos, a título exemplificativo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2020 (Rijo Ferreira), 03.11.2020 (Fátima Gomes), 28.04.2021 (Graça Amaral) e 14.07.2021 (Ilídio Sacarrão Martins), da Relação de Lisboa de 23.11.2021 (Luís Filipe Pires de Sousa) e da Relação de Évora de 25.11.2021 (Rui Machado e Moura).

Acompanhamos este entendimento.

Começamos, porém, por nos demarcar de um dos argumentos esgrimidos em defesa do mesmo entendimento, a saber, o de que, se o prazo de prescrição passasse a ser de 20 anos, nos termos do artigo 309.º, quando se verificasse o vencimento antecipado de todas as prestações remanescentes nos termos do artigo 781.º, se verificaria um acréscimo inadmissível do risco de insolvência do devedor. A inadmissibilidade de tal acréscimo decorreria de, com a al. e) do artigo 310.º, o legislador ter pretendido minorar, precisamente, o risco de insolvência do devedor por efeito da acumulação de prestações não pagas ao longo de mais de 5 anos e da exigência do seu pagamento imediato passado mais tempo, protegendo aquele da parte das consequências da acumulação da sua dívida que considerou excederem a medida do razoável. O aumento do prazo de prescrição do crédito de 5 para 20 anos contrariaria, assim, o escopo do regime decorrente da al. e) do artigo 310.º.

Este argumento não nos convence. Enquanto vigorar o plano de pagamentos escalonados, a finalidade de contenção, dentro de certos limites, do risco de insolvência do devedor, prossegue-se através da prescrição das prestações vencidas há mais de 5 anos, assim se evitando a acumulação de prestações em débito devido à inércia do credor na cobrança do seu crédito. Ora, o resultado do vencimento antecipado das prestações remanescentes em consequência da falta de pagamento de uma prestação no prazo para isso estipulado e da manifestação da vontade do credor de que, com esse fundamento, aquele vencimento antecipado se verifique, pode equivaler ao da referida acumulação. Ou seja, a partir do momento em que viabiliza o vencimento antecipado das prestações remanescentes, a própria lei abre a possibilidade de o resultado que visou evitar através do estabelecimento do prazo de prescrição de 5 anos se verificar: o devedor fica obrigado ao pagamento antecipado de uma quantia, correspondente a uma acumulação de prestações, que pode exceder, em muito, aquelas que correspondiam a 5 anos de acordo com o plano de amortização anteriormente em vigor. Nessas circunstâncias, o legislador abdica daquela sua preocupação com o risco de insolvência do devedor e permite, ao credor, exigir o cumprimento antecipado das prestações vincendas.

Sendo assim, não faz sentido transpor-se o argumento da mitigação do risco de insolvência do devedor para uma questão diversa como é a de o prazo de prescrição da dívida após o vencimento antecipado das prestações remanescentes ser de 5 ou de 20 anos. Por outras palavras, o argumento em análise perde acuidade a partir do momento em que o devedor perde o benefício do prazo nos termos do artigo 781.º.

A sustentação do entendimento que sufragamos passa por outro tipo de argumentação.

Como acima referimos, a tese da recorrente é a seguinte; a partir do momento em que, com fundamento no incumprimento de uma ou mais prestações, o credor considera vencidas todas as prestações que ainda o não estavam, interpelando o devedor para efectuar o pagamento destas, a dívida passa a ter a natureza de obrigação única, retomando os valores em dívida a sua natureza original de capital e juros e ficando o capital global sujeito ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309.º.

Os pressupostos desta tese não se apresentam, na realidade, de forma tão linear como a descrita. Há que analisá-los com alguma profundidade.

Importa começar por ter presente a distinção entre a prestação ou as prestações cujo não pagamento determinou a perda do benefício do prazo e aquelas em relação às quais esta perda se verifica. As segundas são sujeitas a uma vicissitude comum: vencem-se antecipadamente, por efeito de uma interpelação do credor fundada na perda do benefício do prazo. A primeira ou as primeiras estão fora dessa vicissitude, pois constituem o fundamento da perda do benefício do prazo; por outras palavras, venceram-se automaticamente nas datas para o efeito estipuladas e não antecipadamente e por efeito de uma interpelação. Daí a necessidade de continuar a distingui-las. Tais prestações continuarão a ter datas de vencimento diferentes. Aquela ou aquelas prestações cuja falta de cumprimento constituiu fundamento para o credor interpelar o devedor para cumprir antecipadamente as restantes ainda em dívida terão datas de vencimento anteriores àquela em que a interpelação produz efeitos, sendo esta última a data do vencimento das prestações em relação às quais se verificou a perda do benefício do prazo. O vencimento antecipado não produz, nem pode produzir, efeitos retroactivos à data em que se verificou a falta de pagamento de qualquer das prestações que determinaram a perda do benefício do prazo, obviamente anterior à da própria realização da interpelação do credor. Tal retroactividade não encontra cobertura legal, nomeadamente, no artigo 781.º.

O mesmo é dizer que, mesmo após o vencimento das prestações remanescentes nos termos do artigo 781.º CC, não ficamos perante uma dívida absolutamente homogénea, ou seja, sem parcelas que requeiram tratamento autónomo. Pelo menos diversidade das datas de vencimento, teremos. Circunstância esta que acarreta uma consequência ao nível da matéria de que agora tratamos: ainda que sujeitas a um mesmo prazo de prescrição, seja ele de 5 ou de 20 anos, tais parcelas da dívida terão datas de prescrição diversas, atento o disposto no artigo 306.º, n.º 1, 1.ª parte, CC.

Ou seja, a ideia de que, após o vencimento antecipado das prestações remanescentes nos termos do artigo 781.º, ficamos perante um direito de crédito homogéneo, não corresponde à realidade. Ainda que em termos diversos dos até aí vigentes, continuamos perante um direito de crédito (ou, vistas as coisas pelo lado passivo, uma dívida) fraccionado para alguns efeitos jurídicos. Ao contrário do que anteriormente acontecia, toda a parte da dívida que não foi paga se encontra vencida. Todavia, continuamos a ter datas de vencimento diversas, com as consequências acima apontadas ao nível da prescrição.

A análise a que acabamos de proceder demonstra que a realidade resultante do vencimento antecipado nos termos do artigo 781.º não é tão linear quanto os defensores da aplicabilidade, a toda a dívida que se encontra por pagar, do prazo de prescrição estabelecido no artigo 309.º, pressupõem. Ao invés, a circunstância de a dívida ter sido fraccionada repercute-se no regime jurídico desta mesmo depois daquele vencimento antecipado. O anterior fraccionamento deixou sequelas.

Uma outra ideia que os defensores da tese de que, operado o vencimento antecipado das prestações remanescentes nos termos do artigo 781.º, o prazo de prescrição passa a ser o previsto no artigo 309.º, ideia essa presente na argumentação expendida pela recorrente, é a de que a dívida fraccionada reassume a sua feição original de dívida não fraccionada, com clara distinção entre capital e juros, e imediatamente exigível. Também esta ideia não espelha a realidade na esmagadora maioria dos casos – entre os quais o dos autos tendo em conta a matéria de facto julgada provada –, em que dívida já nasce para o mundo jurídico fraccionada em prestações que compreendem a amortização simultânea de capital e juros, ou seja, em que nunca o devedor esteve obrigado ao seu cumprimento imediato e de uma só vez. Em tais hipóteses, que correspondem à quase totalidade dos inúmeros contratos de mútuo que quotidianamente são celebrados tendo em vista a aquisição de bens, móveis ou imóveis, a dívida assume uma feição que nunca teve anteriormente por efeito do vencimento antecipado das prestações remanescentes nos termos do artigo 781.º. Não há, pois, qualquer “regresso ao passado” no que concerne ao escalonamento temporal da dívida, pela simples razão de que esse imaginado passado nunca existiu. Logo, tal argumento não demonstra que, por efeito daquele vencimento antecipado, o prazo de prescrição volta a ser o ordinário, de 20 anos. Nunca o prazo de prescrição dessa dívida foi de 20 anos. Sempre foi de 5 anos porquanto a dívida já nasceu fraccionada. A ideia do “regresso ao passado” constitui, normalmente, de uma ficção. No caso dos autos, constitui-o seguramente.

Outro argumento a favor da tese da manutenção do prazo de prescrição de 5 anos não obstante o vencimento antecipado das prestações remanescentes nos termos do artigo 781.º é o de que a alteração daquele prazo para 20 anos, nos termos do artigo 309.º, equivaleria a deixar ao arbítrio do credor a opção por um ou outro prazos, consoante exigisse, ou não, o cumprimento antecipado das referidas prestações.

Este argumento pressupõe uma tomada de posição acerca da interpretação do artigo 781.º. Não obstante a redacção desta norma poder inculcar que, uma vez incumprida uma das prestações em que a obrigação foi fraccionada, as restantes prestações se vencem automaticamente, isto é, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade do credor nesse sentido[1], a melhor doutrina inclina-se no sentido de que tal vencimento não é automático, antes dependendo de uma manifestação de vontade do credor que, com fundamento no incumprimento, interpele o devedor para efectuar o pagamento antecipado das prestações ainda não vencidas[2]. Excluem-se, naturalmente, do âmbito de tal interpelação, a ou as prestações cujo incumprimento fundamentou a interpelação, pois essas venceram-se nas datas para o efeito estipuladas, independentemente de interpelação, nos termos do artigo 805.º, n.º 2, al. a).

Sendo o regime decorrente do artigo 781.º o descrito, o argumento exposto tem razão de ser. O credor que, apesar da falta de pagamento de uma ou mais prestações, não interpelasse o devedor para cumprir antecipadamente as restantes, ficaria com a possibilidade de, segundo o seu arbítrio, determinar, a qualquer momento, a ampliação do prazo de prescrição para 20 anos, efectuando a referida interpelação. Ora, esta disponibilidade do prazo da prescrição por uma das partes contraria as exigências de certeza e segurança ínsitas no instituto da prescrição.

Concluindo, a única consequência da falta de pagamento de uma ou mais das prestações em que uma obrigação se encontre fraccionada é a perda do benefício do prazo estabelecido em benefício do devedor, nos termos do artigo 781.º, devidamente interpretado. As prestações vincendas tornam-se exigíveis em sentido fraco, podendo o credor exigir o seu pagamento antecipado mediante interpelação do devedor. O prazo de prescrição continua a ser de 5 anos, nos termos do artigo 310.º, al. e), pois solução diversa carece de fundamento e esbarraria com os obstáculos acima descritos. A solução de aplicar o prazo de prescrição ordinário, de 20 anos, a partir do momento em que o credor procedesse à referida interpelação do devedor para efectuar o cumprimento das prestações vincendas, baseia-se numa visão simplista do problema, como procurámos demonstrar.

Confirma-se, assim, que, no caso dos autos, a prescrição ocorreu tal como se decidiu no saneador-sentença. Consequentemente, deverá o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se aquela decisão.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o saneador-sentença recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

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Évora, 27.01.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)



[1] Era este o entendimento de INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, defendido em Direito das Obrigações, 5.ª edição, Coimbra Editora, páginas 235 e 237-239. Este Autor discordava, contudo, da solução que entendia ter sido consagrada no artigo 781.º.

[2] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição, Livraria Almedina, páginas 52 a 54; LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, volume II, 7.ª edição, Edições Almedina, páginas 168 e 169; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. IX, 3.ª edição Totalmente Revista e Aumentada, Edições Almedina, páginas 95 a 100.

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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