sábado, 27 de janeiro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 25.01.2024

Processo n.º 220/23.0T8ODM-C.E1 – Procedimento cautelar comum.

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Sumário:

1 – A decisão mediante a qual o tribunal declara que os requeridos não cumpriram providência cautelar anteriormente decretada não pode exceder o âmbito subjectivo e objectivo desta, sob pena de violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e, eventualmente, de incorrer nas nulidades previstas nas alíneas d) (2.ª parte) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

2 – Não padece dos vícios referidos em 1 o despacho em cujo dispositivo o tribunal se limita a declarar que a sentença que decretou a providência cautelar não foi cumprida e fixa um prazo para os requeridos cumprirem essa providência e provarem tê-lo feito.

3 – A decisão referida em 1 deve ser fundamentada de facto e de direito. Nomeadamente, deve especificar os factos que o tribunal considera provados e não provados.

4 – A sentença que decrete uma providência cautelar, requerida por um herdeiro contra co-herdeiros que sejam gerentes de uma sociedade, não pode impor, a estes, actos ou omissões no âmbito das funções que naquela exercem, nomeadamente a prestação de informação ou a entrega de documentos internos. Será assim ainda que integrem a herança todas ou parte das quotas daquela sociedade.

5 – O direito do sócio a obter informação sobre a vida da sociedade tem esta como sujeito passivo.

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Requerente: Clara.

Requeridos: Glória, Armando, Jorge, João e Álvaro.

Pedidos:

A) Ser a primeira requerida provisória e cautelarmente suspensa do cargo de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de Mário, falecido a 17.08.2021, sendo-lhe vedada provisoriamente a prática de qualquer acto sobre os bens da herança enquanto tal, sendo fixada uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção cometida, como forma de garantia de efectividade da decisão;

B) Assim como ordenada a entregar ao cabeça-de-casal provisório nomeado todas as informações e todos os documentos em seu poder relacionados com a herança, bens hereditários e sobre a sua administração, incluindo:

i. Informação e entrega de documentos sobre todos os actos de administração ordinária, extraordinária e de disposição de bens da herança por si praticados, ou a seu pedido ou com seu conhecimento, praticados pelos requeridos João e Álvaro, desde a data do início da incapacidade do de cujus (genericamente Janeiro de 2020) até ao presente;

ii. Entrega de todas as informações e documentos que um administrador de bens criterioso e diligente deveria entregar a quem o substitua na função.

C) Sendo também a condenação prevista na al. b) feita sob cominação de fixação de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção cometida, como forma de garantia de efectividade da decisão;

D) Mais devem os requeridos João e Álvaro ser notificados de que lhes está vedada provisoriamente a prática de qualquer acto sobre os bens da herança enquanto tal, assim como ordenados a entregar ao cabeça-de-casal provisório nomeado todas as informações e todos os documentos em seu poder relacionados com a herança, bens hereditários e sobre a sua administração, incluindo:

i. Informação e entrega de documentos sobre todos os actos de administração ordinária, extraordinária e de disposição de bens da herança por si praticados, ou a seu pedido ou com seu conhecimento, praticados pelos próprios desde a data do início da incapacidade do de cujus (genericamente Janeiro de 2020) até ao presente;

ii. Entrega de todas as informações e documentos que um administrador de bens criterioso e diligente deveria entregar a quem substitua o cabeça-de-casal na função;

E) Sendo também a condenação prevista na al. D) feita sob cominação de fixação de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção cometida, como forma de garantia de efectividade da decisão;

F) Sejam os requeridos Glória, João e Álvaro impedidos de praticar, ou de dar instruções a quaisquer terceiros para praticar, quaisquer actos que violem as obrigações supra sentenciadas;

G) Devendo a condenação dos requeridos Glória, João e Álvaro ser feita sob a cominação prevista nos artigos 375.º do Código de Processo Civil e 348º, nº 2 do Código Penal se infringirem a providência decretada;

H) Seja a requerente designada provisoriamente cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de Mário, falecido a 17.08.2021, até à designação definitiva de cabeça-de-casal.

Subsidiariamente,

I) Deverão ainda ser condenados em outras medidas que o tribunal subsidiariamente possa entender convenientes e adequadas a evitar a lesão acaso as medidas requeridas sejam consideradas inadequadas ao fim pretendido.

Sentença, proferida sem contraditório prévio dos requeridos:

Julgou o procedimento cautelar parcialmente procedente, determinando:

A) A remoção provisória da requerida Glória do cargo de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de Mário, falecido a 17.08.2021, sendo-lhe vedada provisoriamente a prática de qualquer acto sobre os bens da herança enquanto tal, nos termos do artigo 2086.º, n.º 1, b) a d), do CC;

B) A fixação de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção ao supra disposto, nos termos do artigo 829.º-A do CC;

C) A entrega, à requerente, de todas as informações e todos os documentos em seu poder relacionados com a herança, bens hereditários e sobre a sua administração, incluindo:

I. Informação e entrega de documentos sobre todos os actos de administração ordinária, extraordinária e de disposição de bens da herança por si praticados, ou a seu pedido ou com seu conhecimento, praticados pelos requeridos João e Álvaro, desde a data do início da incapacidade do de cujus (genericamente Janeiro de 2020) até ao presente;

II. Entrega de todas as informações e documentos relativos à herança;

D) A fixação de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção ao disposto em C), nos termos do artigo 829.º-A do CC;

E) A proibição, nos termos do artigo 2047.º do CC, dos requeridos João e Álvaro , provisoriamente, da prática de qualquer acto sobre os bens da herança enquanto tal;

F) A entrega, pelos requeridos João e Álvaro, à requerente, de todas as informações e todos os documentos em seu poder relacionados com a herança, bens hereditários e sobre a sua administração, incluindo:

i. Informação e entrega de documentos sobre todos os actos de administração ordinária, extraordinária e de disposição de bens da herança por si praticados, ou a seu pedido ou com seu conhecimento, praticados pelos próprios desde a data do início da incapacidade do de cujus (genericamente Janeiro de 2020) até ao presente;

ii. Entrega de todas as informações e documentos relativos à herança;

G) A fixação de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção ao disposto em e) e f), nos termos do artigo 829.º-A do CC;

H) A proibição, nos termos do artigo 2047.º do CC, da requerida Glória e dos requeridos João e Álvaro, de praticar, ou de dar instruções a quaisquer terceiros para praticar, quaisquer actos que violem as obrigações supra determinadas de A) a G), sob a cominação prevista nos artigos 375.º do CPC e 348.º, n.º 2, do CP, se infringirem a providência decretada;

i) A designação provisória da requerente como cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de Mário, falecido a 17.08.2021, até à designação definitiva de cabeça-de-casal.

Despacho recorrido:

- Considerou que os requeridos não cumpriram a sentença, por não ter sido feita prova, “nem de entrega de documentação física, nem de investimento nas funções da requerente, permissão de acesso a instalações, elementos essenciais para a gestão que foi determinada por sentença à requerente, que os requeridos deverão respeitar. Existindo inclusive a notícia (por admissão dos próprios requeridos) de despedimento da funcionária adstrita à gestão de bens da sociedade, já após o decretar da providência, quando estavam inibidos de tal poder de gestão por despacho final deste processo, deixando assim os requeridos – e não a requerente – a sociedade sem qualquer gestão. Pelo que, o alegado estado de abandono dos bens apenas a estes será imputável, agravado pelo desrespeito de sentença decorridos quase dois meses da sua prolação, em violação do disposto no art.º375º do C.P.C. (…)” Considerou ainda que os requeridos negaram, à requerente, “os elementos essenciais para a gestão dos bens”, despediram, “após estarem inibidos de actos de gestão, a funcionária que estava adstrita à gestão das funções da sociedade” e, depois, “imputaram à requerente a responsabilidade de falta de gestão”;

- Fixou, aos requeridos, um prazo de 5 dias para fazerem prova do cumprimento da sentença;

- Ordenou que, não sendo feita tal prova dentro do referido prazo, fosse imediatamente remetida certidão de todo o processado ao Ministério Público, para instauração de procedimento criminal.

O requerido João interpôs recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:

(a) A Requerente intentou um procedimento cautelar não especificado contra a sua mãe e irmãos (entre os quais o ora Recorrente), na qualidade de herdeiros do falecido Mário, pai do ora Recorrente.

(b) Veio a Requerente peticionar ao Tribunal que ordenasse, em suma, (i) a suspensão provisória de Glória do cargo de cabeça de casal da herança aberta por óbito do de cuius, (ii) a nomeação provisória da Requerente como cabeça de casal da referida herança, (iii) a entrega à Requerente, por parte dos Requeridos, de todos os documentos e informações referentes a todos os bens integrantes da herança e respetiva administração (iv) a proibição, por parte dos Requeridos, de praticar quaisquer atos referentes ao património da herança.

(c) A Requerente alegou que a herança do seu falecido pai era constituída por participações sociais em duas sociedades – Sociedade 1, Lda. e Sociedade 2, Lda..

(d) Mais alegou a existência de atos de dissipação patrimonial, sonegação de bens e má administração por parte dos Requeridos, sustentando que os mesmos estariam a praticar um conjunto de atos tendentes à subtração de valores monetários e de património pertencente à esfera de ambas as sociedades acima referidas.

(e) A referida providência cautelar apenas foi intentada contra os herdeiros do falecido Mário, nas suas qualidades estritamente pessoais, e não foi intentada contra nenhuma das duas sociedades acima referidas.

(f) O Tribunal a quo deferiu o pedido deduzido pela Requerente e, no seu âmbito dispositivo (i) suspendeu Glória do seu cargo de cabeça de casal da herança, (ii) nomeou provisoriamente a Requerente como cabeça de casal da herança, (iii) ordenou aos Requeridos que entregassem à Requerente todas as informações e documentos referentes ao bens da herança e (iv) proibiu os Requeridos de praticarem quaisquer atos sobre os bens da herança enquanto tal.

(g) Após tal decisão cautelar, o Tribunal a quo veio a proferir o despacho com a referência CITIUS n.º 33551705, em que determinou (i) que havia sido demonstrado nos autos que os Requeridos, após a decisão, haviam praticado atos de gestão referentes às sociedades e aos bens integrantes do património das mesmas, (ii) que a providência decretada abrange a proibição de praticar quaisquer atos sobre os bens das sociedades, e (iii) que a continuação da prática de quaisquer atos de administração das referidas sociedades e do seu património constitui a prática de crime de desobediência.

(h) No mesmo despacho, o Tribunal a quo ordenou que os Requeridos viessem comprovar nos autos o cumprimento com o conteúdo da decisão cautelar e, em caso de não-acatamento de tal ordem judicial, ordenou ainda o Tribunal a quo que fossem os autos do processo remetidos ao Ministério Público para instauração de procedimento criminal.

(i) Tal despacho mesmo assumiu um caráter totalmente inovador, na medida em que o seu conteúdo extravasou manifestamente e inaceitavelmente o conteúdo da decisão cautelar proferida pelo próprio Tribunal a quo.

(j) Despacho que, sublinhe-se, chega ao cúmulo de assentar em factos não provados nos autos, que não foram contraditados, e, diga-se mesmo, chegando o despacho a assumir como verdadeiros de factos que não o são, como seja um despedimento de uma trabalhadora que nunca existiu!

(k) O despacho a quo comina uma sanção processual que, como tal, se mostra recorrível em si mesmo, devendo o recurso ser tramitado em separado, com subida imediata e efeito suspensivo, ao abrigo do artigo 644.º, n.º 2, al. e) do CPC.

(l) O despacho a quo foi proferido após a decisão final e procedeu a uma verdadeira extensão do conteúdo dispositivo de tal decisão final, sendo igualmente recorrível nos termos do artigo 644.º, n.º 2, al. e) do CPC.

(m) Sempre poderá a presente apelação ser aproveitada e convolada, ao abrigo do aproveitamento processual, numa reclamação de nulidades ao abrigo do artigo 615.º, n.º 4 do CPC, a ser apreciada como tal por parte do Tribunal a quo, uma vez que a presente apelação (i) cumpre com todos os requisitos de matéria e de forma que seriam exigíveis para tal reclamação, e (ii) é apresentada dentro do prazo ordinário de 10 dias que se aplicaria para a dedução da reclamação.

(n) Em sede de requerimento inicial, a Requerente deduziu o seu pedido cautelar apenas contra os demais herdeiros do de cujus e invocando tão-somente as suas qualidades pessoais.

(o) O requerimento cautelar não foi deduzido contra as sociedades cujas participações sociais (apenas em 50%, relembre-se!) integram a herança e o seu pedido apenas se dirigiu aos bens da herança como tal.

(p) Não foram invocados, expressa ou tacitamente, quaisquer factos aptos a sustentar a desconsideração da personalidade coletiva das sociedades em questão.

(q) O Tribunal a quo não podia, após a decisão cautelar, vir cominar uma qualquer ordem judicial com um âmbito mais abrangente que o pedido cautelar e que a própria decisão cautelar, tendo assim proferido um despacho judicial ferido de uma nulidade grave e ostensiva.

(r) O Tribunal a quo violou, por força do despacho ora recorrido, os artigos 3.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 e 609.º, n.º 1 do CPC e, nessa medida, a decisão em apreço encontra-se ferida das nulidades elencadas no artigo 615.º, n.º 1, als. d) e e) do CPC, pelo que deve a mesma ser revogada pelo Tribunal a quo.

(s) Acresce que os vícios da decisão resultam também em graves erros de direito por violação direta de princípios e regras fundamentais.

(t) Em primeiro lugar, cabe destacar que uma decisão com tal sentido viola diretamente os limites subjetivos do caso julgado e o princípio da eficácia relativa das decisões, na medida em que pretende estender a terceiros, que não são parte na causa, o sentido de uma decisão cautelar. No caso vertente, os terceiros são as sociedades, que não foram demandadas, nem chamadas ao processo, sendo certo que o sentido do pedido de tutela cautelar se destinou a abranger a herança e, já não, as sociedades.

(u) A violação do predito princípio pelo despacho recorrido afronta em toda a linha o princípio geral acabado de enunciar e constitui uma violação do disposto nos artigos 3.º, 619.º, 620.º e 621.º do CPC.

(v) Em segundo lugar, dir-se-á que um despacho que vise estender o âmbito de uma decisão destinada a abranger o património da herança e, depois, passe a estender os poderes de administração às sociedades e património respetivo, viola frontalmente o princípio da separação (nomeadamente de patrimónios) entre a sociedade e os respetivos sócios. Tal princípio da separação assenta por sua vez na ideia basilar da autonomia jurídico-subjetiva e/ou patrimonial das sociedades face os respetivos sócios. Daí que não possa, por via de regra, o património da sociedade responder por dívidas (pessoais) do sócio, nem o inverso.

(w) Em terceiro lugar, urge notar que enquanto gerente da referida sociedade, o Recorrente encontra-se legal e contratualmente vinculado a um conjunto de deveres fiduciários de assegurar a gestão e administração da sociedade de acordo com padrões normais de diligência, zelo, cuidado, lealdade e competência, devendo atuar de acordo com o interesse da sociedade em que ocupa o respetivo cargo.

(x) O Recorrente não foi legalmente destituído das suas funções, expressa ou tacitamente, nem uma tal pretensão foi deduzida no pedido cautelar nem, consequentemente, ordenada pela decisão proferido pelo Tribunal a quo.

(y) A decisão do despacho a quo não pode ser acatada por parte do Recorrente, sob pena de o mesmo incorrer em manifesto incumprimento dos seus deveres legais impostos pelo Código das Sociedades Comerciais.

(z) Tampouco podia o Tribunal a quo ter ordenado a investidura da Requerente naquelas que são, materialmente, as competências e os deveres legais dos gerentes das sociedades em questão, porquanto, novamente, nem a própria Requerente o peticionou, nem o Tribunal o decretou em sede cautelar.

(aa) O despacho a quo viola materialmente, nos seus próprios termos, os artigos 72.º, 257.º e 259.º do Código das Sociedades Comerciais.

(bb) Pelas razões supra enunciadas, impõe-se que o Tribunal ad quem decida, consequentemente, pela revogação do despacho recorrido.

A recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

A. Da herança indivisa fazem parte vários bens imóveis e móveis, e entre estes, participações sociais em duas sociedades comerciais, tendo a herança tido como Cabeça de Casal de direito a Exma. Cônjuge sobreviva e o Recorrente também como administrador de facto. As participações sociais correspondentes a 100% do capital social das sociedades (e não apenas 50%) estão hoje integradas na herança aberta por óbito do falecido de cuius e, como tal, sob administração da Cabeça de Casal.

B. A douta sentença de 1ª instância que decretou a providência cautelar e o douto despacho recorridos fazem referência à administração das participações sociais (as quotas) cuja administração, como bens hereditários que são, e até à partilha, estão sob administração da Cabeça de Casal. Não as sociedades – evidentemente – cuja administração a se é alheia aos autos.

C. Quando a douta sentença de 1ª instância decretou a providência e o douto despacho recorrido determinou o seu cumprimento, e considerando que as participações sociais da sociedade são pertença da herança (total ou parcialmente, pouco importa a este ponto), decretaram que os Requeridos devessem prestar informação e devessem entregar informação e documentos à Requerente na investida qualidade de Cabeça de Casal provisória como representante dos accionistas/sócios, fizerem-no sem que – evidentemente – tais decisões estivesse com isso “a investir a Requerente nas funções de administração da sociedade e atribuindo à mesma a respectiva administração”, ou a “impor ao ora Recorrente que cumpra com uma ordem inibitória (ilegal!) da sua conduta, determinando que o mesmo se abstenha da prática de quaisquer actos de administração/gerência de uma sociedade na qual o mesmo ocupa o cargo de gerente”, ou muito menos sem que esteja no despacho recorrido a determinar “que este transmita para a Requerente a posse dos bens das sociedades e a investidura da mesma na administração dos bens que integram o património de tais sociedade”.

D. Ao contrário do alegado de que quando o douto despacho recorrido tem o significado que o Recorrente transmita a posse dos bens das sociedades e a investidura daquela na administração, a verdade é que entregar informação e documentos ainda que relativos a sociedades (que é coisa que as sociedades fazem normalmente aos seus sócios, ou aos seus representantes) não é a mesma coisa que transmitir a posse dos bens; nem é (obviamente) a mesma coisa que realizar uma investidura de quem recebe a informação na qualidade de administrador da sociedade.

E. E, ao contrário do alegado, muito menos a entrega de informação tem o significado de que se esteja a inibir os gerentes de administrarem o que até aí administram.

F. Por outro lado, a entrega de informação e documentos societários, enquanto activos pertença da herança, é absolutamente legal e admissível, e decorre da lei e do enquadramento legal em que por diferentes razões, ancoradas em diferentes realidades e situações, os administradores de facto de uma herança e administradores de uma sociedade podem ser compelidos a prestar informação e documentos relativos à sociedade (designadamente aos representantes dos accionistas), sem que tal obrigação constitua violação do princípio da personalidade colectiva.

G. No caso dos autos, em que o Exmo. Recorrido é gerente de uma sociedade pertença da herança e não é remunerado por decisão da Assembleia Geral, e depois verifica-se existirem contratos da sociedade com o gerente, ou sociedade por ele detida, e facturas e pagamentos de avultadas quantias ao gerente ou a sociedade por si detidas (v. por exemplo, factos 21 a 27 da sentença de fls.) existe evidente interesse juridicamente protegido, e assiste legitimidade, a todos quantos administram a herança, de conhecer através dos documentos e informações corporativas o que se tem passado, e justamente no enquadramento das funções de administrador de bens, ainda que provisório, da herança.

H. No caso dos autos, em que activos das sociedades propriedade da herança são vendidos, ou activos da herança são vendidos à sociedade sem a intervenção de todos os co-herdeiros, existe evidente interesse juridicamente protegido, e legitimidade, a todos quantos administram a herança, de conhecer através dos documentos e informações, ainda que corporativas, o que ocorreu. Que activos, destino do preço, etc.

I. No caso dos autos, em que uma das sociedades utiliza bens da herança, designadamente as herdades, em cerca de 170 hectares (cfr. facto 18 provado da sentença de fls), ou em que ocorrem vendas de tractores da herança depois a morte do de cuius à própria sociedade (cfr. matéria provada 35 a 37 da sentença de fls.) por acção dos três indicados Requeridos, existe evidente interesse juridicamente protegido, e legitimidade, a todos quantos administram a herança, de conhecer através dos documentos e informações corporativas o que se tem passado, e justamente no enquadramento das funções de administrador de bens, ainda que provisório.

J. No caso dos autos, em que ficou provado existir total confusão patrimonial entre de cuius e sociedades (v. por exemplo facto provado 53 da sentença de fls.), ao ponto da secretária que se ocupava da parte administrativa da herança, registo de animais da herança, etc., ser formalmente funcionária de uma das sociedades, faz todo o sentido que os Requeridos sejam, de acordo com a causa de pedir e pedidos invocados, condenados a prestar informação. Informação sobre bens da herança e informação sobre bens das próprias sociedades pertença da herança.

K. Aliás, se o Exmo. Recorrido entendia que, de acordo com a douta sentença da instância que conheceu a questão, o mesmo não tinha que prestar qualquer informação ou documentos à Recorrida sobre as participações sociais ou sobre a sociedade, haveria de ter recorrido da sentença de 1ª instância, o que não fez.

L. Por outro lado, ao contrário do alegado pelo Exmo. Recorrente de que o douto despacho recorrido deve ser anulado por ter extravasado o conteúdo do que havia sido decidido na decisão de 1ª instância, verifica-se que assim não acontece.

M. Na sua parte dispositiva, que é a parte do despacho em que o mesmo determina ao Exmo. Recorrido várias condutas, o despacho recorrido limita-se a “conceder aos requeridos o prazo de 5 dias para, impreterivelmente, fazerem prova nos autos do cumprimento do estipulado na sentença”, pelo que, ao invés de criar novas obrigações sobre os Requeridos para além daquelas que decorrem da sentença da instância, limitou o seu objecto ao estipulado na sentença. E não tem por sentido e alcance outras quaisquer obrigações que dela não decorram ou nela não estejam previstas.

N. Na parte dos fundamentos do douto despacho recorrido – que não na sua parte dispositiva – o Tribunal considerou e usou por três vezes a palavra “sociedade”, mas no contexto em que o fez, percebe-se que se refere à herança, da qual faz parte a sociedade, e não à sociedade enquanto tal, existindo um mero erro que escapou na escrita, um verdadeiro lapsus calami.

O. Também nenhuma razão ou fundamento assiste à alegação do Exmo. Recorrente de que o douto despacho recorrido “viola os limites subjectivos do caso julgado e o princípio da eficácia relativa das decisões, na medida em que pretende estender a terceiros, que não são parte na causa, o sentido da decisão cautelar. No caso vertente, os terceiros são as sociedades, que não foram demandadas (…)”

P. Como vimos o douto despacho recorrido não amplia ou estende o decidido na decisão da 1.ª Instância e, bem pelo contrário, limita-se a ordenar o cumprimento dos termos a mesma. E de nada mais.

Q. Por outro lado, o douto despacho recorrido não determinou terceiros (não-partes) a nada. Limitou-se a determinar aos Requeridos da própria providência, antes os termos das suas próprias Oposições, que haveriam de demonstrar nos autos que haviam dado cumprimento aos termos da sentença.

R. Os destinatários do douto despacho recorrido são os Requeridos, que operaram desde a abertura da herança em várias qualidades, seja como gerentes das sociedades, seja como Cabeças de Casal de facto de herança (em vez da Mãe, ou com a Mãe, ou instando-a a fazê-lo), seja ainda como co-herdeiros, e no âmbito dessa sua declarada actuação, foram instados pela decisão cautelar a prestar informações e documentos em seu poder por forma à Cabeça de Casal provisória pudesse ocupar-se da administração dos bens hereditários; e foram instados pelo douto despacho recorrido a reportar ao Tribunal o cumprimento dessas determinações que lhe foram dirigidas. Nada disto colide com limites do caso julgado ou com o princípio da eficácia relativa das decisões.

S. Também se não verifica a alegada violação do princípio da separação entre sociedade e sócios, invocada em v), por alegadamente o douto despacho recorrido “passou a estender o âmbito de uma decisão destinada a proteger o património da herança e, depois, passe a estender os poderes de administração às sociedades e património respectivo”.

T. Em lado nenhum o douto despacho recorrido comete poderes de administração das sociedades à Recorrida designada Cabeça de Casal provisória. Em bom rigor, o douto despacho recorrido apenas determina aos Requerentes que demonstrem ter cumprido o que constava da decisão final. E nada mais. E dessa decisão final não constava, nem consta, que a Requerida passasse a ser ela a ser empossada nas funções de Administradora das sociedades, ou que os actuais gerentes deixassem de o ser. Ou que ficassem por qualquer forma inibidos do exercício das suas funções. Prestar informação e dar documentos não tem esse sentido e alcance.

U. Por outro lado, a sentença cautelar de fls. determinou aos Requeridos a proibição a prática de actos sobre os bens da herança enquanto tal. Não sobre as sociedades. Basta compulsar o douto despacho recorrido para se verificar que o mesmo não estende este âmbito inibitório às sociedades, nem atribui poderes de administração societária à Recorrida. Está-se ante, e apenas, a herança.

V. Igualmente, e s.m.o., não colhem os fundamentos invocados pelo Exmo. Recorrente em w) a y) pois que tudo o que resulta da douta sentença, e do despacho recorrido, não colide com as funções que o mesmo exerce como Gerente, nem com os seus deveres de gerência.

W. Igualmente a injunção inibitória da al. e) da douta sentença, que não é ampliada pelo despacho recorrido nada determina ou determinam ao Exmo. Recorrente sobre qualquer inibição do exercício de funções de gerente da sociedade.

X. Limitando-se o douto despacho recorrido a ordenar que os Requeridos demonstrassem o cumprimento do decidido na sentença, e o decidido na sentença em nada inibe o Exmo. Recorrido de Administrar a Sociedade, não se alcança de onde decorra do despacho recorrido que o mesmo não possa ser acatado por parte do Recorrente pois que tal acatamento constituiria manifesto incumprimento dos seus deveres legais de administrador da sociedade.

Y. Também se não verifica de onde decorra que, concomitantemente, o despacho recorrido tenha “ordenado a investidura da Requerente naquelas que são materialmente as competências e os deveres legais do gerente das sociedades”. O que consta de ambas as decisões é uma inibição quanto à prática de actos sobre bens da herança. Que o douto despacho recorrido não ampliou. O que consta de ambas as decisões não é nenhuma investidura da Recorrida em funções de gerência das sociedades e, antes, e tão só, nas funções de administração dos bens da herança, entre os quais se contam as participações sociais. Que o douto despacho recorrido não ampliou. Pelo que o douto despacho recorrido não violou as invocadas disposições do CSC.

Z. Diga-se, por último, que o Exmo. Recorrido não desconhecerá o regime legal do direito à informação dos sócios, aqui da titularidade da cabeça de casal provisória, e do direito a haver de co-herdeiros e de pessoas que vêm actuando como co-administradores de facto da herança informações sobre o exercício de tal administração. Pelo que a decretação sobre os Requeridos de entrega de documentos e informações em seu poder nem sequer configura qualquer acto injustificado e, em qualquer caso, algo que de novo tenha decorrido do despacho recorrido.

O recurso foi admitido.

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Questões a decidir:

- Nulidade do despacho recorrido;

- Violação dos limites subjetivos do caso julgado e do princípio da eficácia relativa das decisões;

- Incumprimento da sentença por parte do recorrente e dos restantes requeridos.

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Os factos relevantes para o conhecimento do recurso são os acima enunciados.

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Nulidade do despacho recorrido:

O recorrente sustenta que o despacho recorrido padece das nulidades previstas nas alíneas d) (2.ª parte) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, porquanto:

- O seu conteúdo extravasou o da sentença, sendo, assim, inovador;

- Se baseia em factos não provados.

As referidas alíneas do n.º 1 do artigo 615.º do CPC estabelecem, na parte que nos interessa, que a sentença é nula quando:

d) O juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

O artigo 613.º, n.º 3, do CPC, estabelece que estas normas são aplicáveis aos despachos, com as necessárias adaptações.

Resulta da simples leitura das alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC que o fundamento invocado pelo recorrente em segundo lugar não procede. Ainda que o despacho recorrido se tenha baseado em factos não provados, não é nulo. Nessa hipótese, terá sido cometido um erro de julgamento, na modalidade de erro de facto, decorrente de o tribunal ter julgado provados factos que devia ter julgado não provados. Na hipótese de o despacho recorrido se ter baseado em factos que, embora provados, não constituem, nos termos da lei, fundamento para decidir no sentido em que se decidiu, verificar-se-á, igualmente, um erro de julgamento, na modalidade de erro de direito. Nenhuma destas hipóteses se enquadra em qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

A afirmação do recorrente segundo a qual o conteúdo do despacho recorrido extravasa o da sentença pode querer significar três coisas diferentes:

- Na fundamentação do despacho recorrido, o tribunal a quo utilizou argumentos que não se enquadram na lógica da fundamentação da sentença;

- Através do despacho recorrido, o tribunal a quo impôs, ao recorrente e aos requeridos Glória e Álvaro, acções ou omissões diversas daquelas que foram pedidas pela recorrida;

- Através do despacho recorrido, o tribunal a quo impôs, ao recorrente e aos requeridos Glória e Álvaro, acções ou omissões diversas daquelas que o foram na sentença.

Nem o corpo das alegações, nem as conclusões, são inteiramente esclarecedores sobre o exacto sentido da referida afirmação do recorrente. Aparentemente, o recorrente considera que o despacho recorrido padece das três descritas patologias. 

A primeira hipótese, ainda que se verifique, não se enquadra em qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, nomeadamente naquelas que o recorrente invoca. Se o tribunal a quo tiver decidido com base em argumentos que não sustentem essa decisão, verificar-se-á um erro de julgamento.

A segunda hipótese, a ocorrer, determinaria a verificação da nulidade prevista na al. e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, pois traduzir-se-ia num excesso, quantitativo e/ou qualitativo, da decisão judicial relativamente ao pedido. Contudo, numa perspectiva lógica, o primeiro vício de tal decisão seria a violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional (artigo 613.º, n.º 1, do CPC), pois tudo aquilo que o tribunal houvesse de decretar, teria de o ser na sentença, estando-lhe vedado acrescentar novas imposições em despacho subsequente.

A terceira hipótese, a verificar-se, não configuraria a nulidade prevista na al. e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, pois a desconformidade seria, não entre pedido e decisão, mas entre duas decisões. Admitimos que aquela desconformidade pudesse gerar a nulidade prevista na 2.ª parte da al. d) do mesmo artigo e número, dependendo da sua concreta configuração. Na medida em que a segunda decisão fosse além da primeira, poderia estar a conhecer de questão cujo conhecimento lhe estivesse vedado. Embora, também nesta hipótese, o vício fundamental do despacho fosse a violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional.

Todavia, em concreto, na sua parte dispositiva, que é aquela que nos interessa, o despacho recorrido não foi além da sentença. O seu dispositivo é, singelamente, o seguinte: “Neste exposto, concede-se aos requeridos o prazo de 5 dias para, impreterivelmente, fazerem prova nos autos do cumprimento do estipulado na sentença. (…) Em caso negativo, remeta-se, no imediato, certidão de todo o processado com remessa ao M.P., para instauração de procedimento criminal.” Não foi imposta, ao recorrente e aos requeridos Glória e Álvaro, a prática de qualquer acto para além daqueles que o haviam sido pela sentença. Também não lhes foi imposta qualquer proibição além daquelas que resultam da sentença. Apenas foi fixado um prazo para eles cumprirem o que lhes foi ordenado na sentença e provarem tê-lo feito. Por outras palavras, o conteúdo dispositivo da sentença permaneceu intocado.

Concluímos, assim, que o despacho recorrido não padece das nulidades invocadas pelo recorrente.

Violação dos limites subjetivos do caso julgado e do princípio da eficácia relativa das decisões:

O recorrente sustenta que o despacho recorrido “viola diretamente os limites subjetivos do caso julgado e o princípio da eficácia relativa das decisões, na medida em que pretende estender a terceiros, que não são parte na causa, o sentido de uma decisão cautelar”. Isto porque, segundo o recorrente, aquele despacho atinge directamente as sociedades em cujo capital a herança participa, não obstante não terem sido demandadas.

O recorrente não tem razão.

A sentença removeu provisoriamente a requerida Glória do cargo de cabeça-de-casal, atribuiu provisoriamente esse cargo à recorrida, proibiu o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro de praticarem qualquer acto sobre os bens da herança, determinou que o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro entreguem, à recorrida, todas as informações e todos os documentos em seu poder relacionados com a herança, bens hereditários e sobre a sua administração, e fixou uma sanção pecuniária compulsória por cada violação, por parte do recorrente e dos requeridos Glória e Álvaro, dos deveres que lhes foram impostos. O recorrente e os requeridos Glória e Álvaro foram ainda proibidos “de praticar, ou de dar instruções a quaisquer terceiros para praticar, quaisquer actos que violem as obrigações supra determinadas de A) a G), sob a cominação prevista nos artigos 375.º do CPC e 348.º, n.º 2, do CP, se infringirem a providência decretada”. A sentença não impôs, às sociedades em cujo capital a herança participa, qualquer dever de conduta, positivo ou negativo. Nem podia fazê-lo, pois tais sociedades não foram demandadas.

O despacho recorrido, por seu turno, limitou-se a fixar, ao recorrente e aos requeridos Glória e Álvaro, um prazo de 5 dias para cumprirem a sentença e provarem tê-lo feito. Além de, como vimos anteriormente, não ter imposto, ao recorrente e aos requeridos Glória e Álvaro, qualquer acto ou proibição para além daqueles que o haviam sido pela sentença, também não produziu qualquer efeito que se repercuta directamente na esfera jurídica de terceiros, concretamente das sociedades em cujo capital a herança participa. Nomeadamente, o despacho recorrido não determinou que alguma dessas sociedades prestasse informação, entregasse documentos ou franqueasse o acesso da recorrida a determinados locais.

Incumprimento da sentença por parte do recorrente e dos restantes requeridos:

O efeito fundamental do despacho recorrido foi declarar que, à data da sua prolação, o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro não tinham cumprido a sentença. Por isso lhes fixou um prazo de 5 dias para cumprirem a sentença e provarem tê-lo feito. É a esta luz que o despacho recorrido deve ser analisado.

Para tomar uma decisão potencialmente tão gravosa para o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro como aquela que constitui objecto do presente recurso, o tribunal a quo devia ter enunciado, com precisão, os factos que considerou provados e fundamentadores daquela, nos termos dos artigos 607.º, n.ºs 3 e 4, e 613.º do CPC. Em vez disso, invocou tais factos de forma dispersa, ao longo da fundamentação do despacho recorrido, e imprecisa.

As referências a factos constantes do despacho recorrido são as seguintes: “Não foi feita prova, que incumbe aos requeridos, nem de entrega de documentação física, nem de investimento nas funções da requerente, permissão de acesso a instalações, elementos essenciais para a gestão que foi determinada por sentença à requerente”; “despedimento da funcionária adstrita à gestão de bens da sociedade, já após o decretar da providência, quando estavam inibidos de tal poder de gestão por despacho final deste processo, deixando assim os requeridos – e não a requerente – a sociedade sem qualquer gestão”; “negando à requerente os elementos essenciais para a gestão dos bens, despedirem, após estarem inibidos de actos de gestão, a funcionária que estava adstrita à gestão das funções da sociedade”.

É patente a confusão entre a herança e as sociedades.

Um dos factos que o tribunal a quo considera violadores da sentença é o “despedimento da funcionária adstrita à gestão de bens da sociedade, (…) quando estavam inibidos de tal poder de gestão (…), deixando assim os requeridos – e não a requerente – a sociedade sem qualquer gestão”.

Desde logo, não resulta do despacho recorrido a que sociedade o mesmo pretende referir-se.

Em segundo lugar, a entidade patronal da pessoa alegadamente despedida não era a herança, mas sim uma das sociedades. Ora, a sentença inibiu o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro de praticarem qualquer acto relativamente aos bens da herança, mas não relativamente aos bens ou, mais amplamente, às situações jurídicas de que cada uma das sociedades é titular. O que faz parte da herança são quotas das sociedades, não as situações jurídicas de que cada uma destas é titular. As sociedades mantiveram-se intocadas, seja no seu capital social, no seu património, na composição dos seus órgãos ou nas relações jurídicas com terceiros. Logo, a sentença não impedia o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro de fazerem cessar o contrato de trabalho da pessoa em questão, nem de, genericamente, praticarem os actos próprios dos cargos que ocupam nas sociedades. A afirmação, constante do despacho recorrido, de que o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro estavam inibidos do “poder de gestão” dos “bens da sociedade”, é, pois, errada. 

Note-se, em terceiro lugar, que a afirmação que vimos analisando carece, intrinsecamente, de sentido. O tribunal a quo considerou que, por efeito da sentença, o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro ficaram inibidos do “poder de gestão”, e que ao despedirem, nessas circunstâncias, a “funcionária adstrita à gestão de bens da sociedade”, deixaram esta última “sem qualquer gestão”. Salvo o devido respeito, isto é absurdo. Ainda que a sociedade em questão (não se diz qual) tivesse ficado (sem sequer ser demandada) com os seus gerentes suspensos do exercício das suas funções por efeito da sentença, não encontramos fundamento para concluir que passasse a ser gerida pela trabalhadora em causa. Mais, se os referidos gerentes tivessem sido suspensos do exercício das suas funções por efeito da sentença, teria sido o próprio tribunal a quo, e não a recorrida, o recorrente ou os requeridos Glória e Álvaro, a deixar a sociedade “sem qualquer gestão”. A sentença designou a recorrida, não como gerente de qualquer das sociedades (nem podia fazê-lo), mas como cabeça-de-casal provisória.

Afirma-se, no despacho recorrido, que “Não foi feita prova, que incumbe aos requeridos, nem de entrega de documentação física, nem de investimento nas funções da requerente, permissão de acesso a instalações, elementos essenciais para a gestão que foi determinada por sentença à requerente”.

O despacho recorrido não especifica que documentos deviam ter sido entregues à recorrida e o não foram. Mais, atenta a confusão que faz entre a herança e as sociedades, ficamos sem saber, sequer, se tem em vista documentos da primeira ou das segundas. Sendo assim, nem o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro têm a possibilidade de saber a que documentos o tribunal a quo pretende referir-se, nem o tribunal ad quem poderá ajuizar se este fundamento da declaração de incumprimento da sentença procede. Atenta a exigência legal de fundamentação das decisões judiciais, a declaração de incumprimento da sentença com fundamento na falta de entrega de documentos terá de especificar que documentos o tribunal a quo entende que deviam ter sido entregues e não o foram.

Não alcançamos o que o tribunal a quo teve em vista ao imputar ao recorrente e aos requeridos Glória e Álvaro a falta de investidura da recorrida. Desde logo, tendo em conta a confusão feita entre a herança e as sociedades, teve-se em vista a investidura em que cargo? No de cabeça-de-casal provisória, ou no de gerente de alguma ou de ambas as sociedades? Na primeira hipótese (a mais verosímil), que concretos actos o recorrente e os restantes requeridos omitiram para o tribunal a quo ter concluído que a falta de investidura da recorrida lhes é imputável? O despacho recorrido não dá resposta a esta questão.

O despacho recorrido também não especifica a que instalações devia ter sido permitido o acesso da recorrida e não o foi, bem como a quem pertencem essas instalações. À herança, ou às sociedades? Não especifica ainda com que fundamento imputa ao recorrente e aos requeridos Glória e Álvaro a falta de permissão de acesso a tais instalações. Nestas condições, é impossível, o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro, saberem que actos ou omissões lhes são concretamente imputados, bem como, ao tribunal ad quem, ajuizar sobre o acerto dessa imputação.

Relativamente à afirmação, constante do despacho recorrido, segundo a qual o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro negaram “à requerente os elementos essenciais para a gestão dos bens”, e despediram, “após estarem inibidos de actos de gestão, a funcionária que estava adstrita à gestão das funções da sociedade”, pouco mais há a acrescentar. Fala-se em “gestão dos bens”, em inibição “de actos de gestão” e em “gestão das funções da sociedade”, mantendo-se, aparentemente, a confusão entre a herança e uma das sociedades, que nem sequer se diz qual é. Quando se fala em “elementos essenciais para a gestão dos bens”, que concretos elementos se tem em vista? E bens de quem? Da herança, ou das sociedades? Tendo em conta a confusão, que perpassa o despacho recorrido, entre a herança e as sociedades, esta dúvida é inevitável.

A recorrida pugna pela manutenção do despacho recorrido com base em argumentação que assim se esquematiza:

- Tal como a sentença, o despacho recorrido tem em vista a administração das quotas que integram a herança, que é da competência do cabeça-de-casal, e não a administração das sociedades;

- Quer a sentença, quer o despacho recorrido, considerando que as quotas são pertença da herança, determinaram que os requeridos prestassem informação e entregassem documentos à requerente, na qualidade de cabeça-de-casal provisória e, logo, de representante dos sócios; não na qualidade de gerente das sociedades, em que não foi investida;

- O despacho recorrido não inibiu os gerentes de continuarem a administrar as sociedades;

- É legalmente admissível a entrega de informação e documentos societários, enquanto activos pertença da herança;

- No caso dos autos, existe um interesse legítimo, de quem administre a herança, de conhecer o que se tem passado nas sociedades, através de documentos e informações corporativas;

- Devendo os requeridos prestar informação, quer sobre bens da herança, quer sobre bens das sociedades;

- A lei consagra o direito dos sócios à informação, cabendo o seu exercício à recorrida, enquanto cabeça-de-casal provisória.

No que concerne à sentença, concordamos com a recorrida. Através dela, o tribunal a quo tomou decretou uma providência cautelar com efeitos limitados aos bens da herança e à administração desta.

O despacho recorrido não transpôs esses limites, como vimos ao analisar a arguição da sua nulidade. O erro do tribunal a quo consubstanciou-se, não em tomar uma decisão com um âmbito mais amplo que o da sentença, mas sim em julgar verificado o incumprimento desta, por parte do recorrente e dos requeridos Glória e Álvaro, sem fundamento válido, pelas razões que acima referimos. Foi ao nível da fundamentação do despacho recorrido que o tribunal a quo, além de não ter cuidado de enunciar os factos que julgou provados com um mínimo de precisão, tratou indistintamente as situações jurídicas que constituem a herança e aquelas que integram a esfera jurídica de cada uma das sociedades, parecendo, também, confundir a administração da primeira com a de cada uma das segundas. Daí que a fundamentação de facto do despacho recorrido não sustente a decisão de declarar que o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro não cumpriram a sentença e de fixar um prazo de 5 dias para o fazerem e provarem tê-lo feito. Quanto a todos estes aspectos, nada temos a acrescentar.

A propósito do exercício do direito à informação, a recorrida tece considerações que conduzem a uma interpretação da sentença que não encontra suporte na redacção desta. Impõe-se a refutação da tese da recorrida, para que dúvidas não restem acerca do âmbito da sentença e, consequentemente, de uma decisão que se pronuncie sobre o cumprimento desta. Essa tese é, sucintamente, a seguinte: Sendo a herança titular de quotas das sociedades, a recorrida tem, na qualidade de cabeça-de-casal provisória, o direito de exigir informação, com suporte documental, às sociedades, nos termos previstos no CSC; devem, assim, o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro, sem prejuízo de continuarem a administrar as sociedades, prestar informação, quer sobre os bens destas, quer sobre os bens da herança.

É exacto que, sendo titular de quotas das sociedades, a herança tem o direito de exigir, a estas, informação sobre a sua actividade e o modo como são geridas, nos termos dos artigos 21.º, n.º 1, al. c), e 214.º a 216.º do CSC. Na qualidade de cabeça-de-casal provisória, a recorrida pode exercer esse direito em representação da herança, nos termos dos artigos 2079.º e 2087.º, n.º 1, do CC, e 222.º, n.º 1, do CSC.

Porém, não foi o referido direito à informação que a recorrida exerceu através da presente providência cautelar. Nem tinha legitimidade para o fazer, porquanto só adquiriu a qualidade de cabeça-de-casal provisória da herança por efeito da sentença aqui proferida. E, se o fizesse, teria de demandar a sociedade relativamente à qual pretendesse obter informação, pois o direito do sócio à informação tem, como sujeito passivo, a sociedade.

Através do presente procedimento cautelar, a recorrida visou, além da destituição da requerida Glória do cargo de cabeça-de-casal e da designação de si própria para a substituir, a obtenção de informação sobre os bens da herança, informação essa a prestar pelo recorrente e pelos requeridos Glória e Álvaro, na qualidade de co-herdeiros. Não a prestação de informação sobre a actividade das sociedades. E foi com este âmbito que a sentença decretou a providência, como não podia deixar de ser.

Portanto, a tese da recorrida equivale a queimar uma etapa. Pretender obter, neste procedimento cautelar, do recorrente e dos requeridos Glória e Álvaro, informação de natureza interna das sociedades, a que aqueles têm acesso graças aos cargos que nestas exercem, constituiria a antecipação de um efeito que só em momento posterior a recorrida poderá obter, seja solicitando extrajudicialmente aquela informação às sociedades, seja, na hipótese de essa informação lhe ser recusada ou de lhe ser prestada informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa, através de inquérito judicial, nos termos do artigo 216.º do CSC. Daí que a referida tese seja de rejeitar.

Concluímos, assim, que o despacho recorrido deverá ser revogado, procedendo o recurso.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo da recorrida.

Notifique.

*

Évora, 25.01.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto

 

domingo, 14 de janeiro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.01.2024

Processo n.º 210/22.0T8SLV.E1

*

Sumário:

1 – Tendo as partes de um contrato de compra e venda de cortiça na árvore estipulado que a quantia entregue pelo comprador ao vendedor tinha o valor de “princípio de pagamento e sinalização do negócio”, deve entender-se que o primeiro constituiu sinal.

2 – Em face disso, o vendedor, por ter declarado ao comprador que não iria cumprir o contrato e, em seguida, vendido a cortiça a terceiro, tem a obrigação de pagar o dobro do valor do sinal ao comprador.

*

Autor: Cortiças, Unipessoal, Lda.

Ré: HT

Pedido: Condenação da ré a pagar à autora a quantia de € 14.000, acrescida de juros moratórios à taxa legal em vigor.

Sentença: Julgou a acção improcedente.

*

A autora interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. Perante a cláusula contratual “O pagamento será efectuado da seguinte forma: para princípio de pagamento e sinalização do negócio efectuado uma transferência bancária para o IBAN (...) no valor de 14.000€ (catorze mil euros), ficando o valor remanescente a liquidar no início da extração”.

2. Onde, posteriormente, a inadimplente vendedora devolve a quantia entregue à apelante com a menção “devolução de sinalização …”

3. Outra conclusão não é possível retirar, fazendo apelo ao art. 236 e segs. do C.Civil, de que as partes expressamente quiseram atribuir à quantia entregue um carácter penitencial.

4. Esta é a única interpretação com o mínimo de correspondência no texto do contrato (cfr. 238.º, n.º 1, do CC).

5. O sinal marca a medida da indemnização.

6. Donde, a apelante tem direito a receber igual quantia àquela que prestou, acrescida de juros moratórios.

7. O tribunal recorrido, ao assim não decidir, violou os artigos 236.º e 440.º do Código Civil.

A recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

A) A Meritíssima Juiz “a quo” que proferiu a Sentença, fez uma correcta interpretação dos factos e uma correcta aplicação do Direito, não merecendo o mínimo reparo ou censura;

B) Não existe, na Sentença proferida, matéria de facto incorrectamente julgada, os fundamentos não estão em oposição com os factos provados, não houve omissão de pronúncia, nem alteração da matéria de facto;

C) Assim, não assiste qualquer razão à Autora, ora Apelante, quando pretende pôr em crise a douta Sentença, no que concerne á interpretação dada ao principio de pagamento efectuado pela Autora.

D) A quantia entregue com a assinatura do contrato não é suficiente para se concluir pela sua natureza jurídica de “sinal”;

E) A existência de sinal é na promessa de compra e venda (artigo 441.º do Código Civil) e não a um contrato de compra e venda, como o dos autos.

E) Não pode ser aplicada ao caso concreto, que o valor recebido a título de adiantamento, seja considerado como sinal.

F) Tanto mais que a própria Autora, aquando da transferência bancária do valor efectuado à Ré, intitulou a mesma de “adiantamento de compra de cortiça”.

G) Pelo que deve ser considerada improcedente a Apelação, e confirmado o Julgado, com custas pela Apelante.

O recurso foi admitido.

*

Questão a decidir: Se a entrega, efectuada pela recorrente, da quantia de € 14.000 à recorrida, deve ser qualificada como constituição de sinal.

*

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A autora dedica-se ao comércio por grosso de cortiça em bruto, comércio de lenha, silvicultura, prestação de serviços agrícolas, caça, produção de licores, comercialização de fruto, turismo no espaço rural, alojamento local e restaurante de tipo tradicional.

2. Em 16.04.2021, a autora e a ré assinaram escrito intitulado “contrato de compra e venda de cortiça”, figurando a autora como primeira e a ré como segunda outorgante respectivamente.

3. Do escrito referido em 2. resulta entre o mais que:

“CLAUSULA 1.ª

MERCADORIA

O primeiro Outorgante compra e o segundo Outorgante vende a sua cortiça amadia, na árvore referente a extração do ano 2021, na propriedade de (…), pelo valor de € 28.000 (vinte e oito mil euros) valor total.

CLAUSULA 2.ª

PAGAMENTO

O pagamento será efectuado da seguinte forma: para princípio de pagamento e sinalização do negócio efectuado uma transferência bancária para o IBAN (…) no valor de € 14.000 (catorze mil euros), ficando o valor remanescente a liquidar no início da extração. Todos os pagamentos serão efectuado no ato da entrega da respectiva factura.”

4. Na sequência do acordo referido em 2. e 3., a autora, em 16 de Abril de 2021 transferiu para a referida conta bancária a quantia de € 14.000, colocando na referência do ordenante “adiantamento de compra de cortiça”.

5. Em data não concretamente apurada, mas posterior a 16 de Abril de 2021 e anterior a 20 de Abril de 2021, a ré informou a autora de que não iria cumprir o supra descrito acordo, alegando ter pessoa que lhe oferecia valor mais elevado.

6. A ré acabou por vender a referida cortiça a terceira pessoa, a qual a acabou por extraí-la e vendê-la para a indústria transformadora.

7. Em 20 de Abril de 2021, a ré devolveu à autora a quantia de € 10.000, colocando no descritivo da transferência “devolução de sinalização para compra de cortiça (em 16/04/2021)”.

8. Em 21 de Abril de 2021, a ré devolveu à autora a quantia de € 4.000, colocando no descritivo da transferência “devolução de sinalização para compra de cortiça (em 16/04/2021)”.

9. Em 26 de Abril de 2021, o advogado da autora enviou carta à ré com o seguinte teor: “Informou-me a minha constituinte Cortiças - Unipessoal Lda. que, em 16 do corrente celebrou contrato escrito de compra e venda da cortiça a extrair neste ano na propriedade denominada (...), pelo valor global de € 28.000 (vinte e oito mil euros), tendo aquela lhe pago, a titulo de sinal e princípio de pagamento, a quantia de €14.000 (catorze mil euros). Mais me informou que V. Exª entretanto terá afirmado perentoriamente não querer cumprir o referido contrato, optando, ao invés, por fazê-lo com outra pessoa que, alegadamente, lhe terá oferecimento mais alto valor. Face ao exposto, e tendo as partes expressamente convencionado que a quantia entregue como antecipação de pagamento, assume igualmente o carácter de sinal, e sem prejuízo da devolução da quantia recebida, é V. Ex" devedora da quantia de €14.000 (catorze mil euros), cujo pagamento aqui se reclama no prazo de dez dias, findos os quais nos vemos forçados a recorrer às instâncias judiciais.”

10. A ré recusa-se a pagar a quantia pedida pela autora no escrito referido em 9.

*

Em 16.04.2021, a recorrida vendeu, à recorrente, a cortiça existente em determinado prédio rústico, pelo preço de € 28.000. As partes estipularam que o pagamento do preço seria “efectuado da seguinte forma: para princípio de pagamento e sinalização do negócio efectuado uma transferência bancária para o IBAN (…) no valor de 14.000 € (…), ficando o valor remanescente a liquidar no início da extração.” Nesse mesmo dia, a recorrente efectuou a referida transferência bancária.

Em dia situado entre 16.04.2021 e 20.04.2021, a recorrida declarou à recorrente que não iria cumprir o contrato, após o que vendeu a cortiça a terceiro.

Em 20.04.2021, a recorrida devolveu à recorrente a quantia de € 10.000. No dia seguinte, devolveu-lhe os restantes € 4.000.

A recorrente sustenta que a quantia de € 14.000 que entregou à recorrida tem a natureza, não só de pagamento antecipado de parte do preço, mas também de sinal, pelo que tem direito à sua restituição em dobro e não, como a recorrida fez, em singelo.

A recorrida sustenta que a entrega da quantia de € 14.000 não teve a natureza de constituição de sinal, pois “A existência de sinal é na promessa de compra e venda (artigo 441.º do Código Civil) e não a um contrato de compra e venda, como o dos autos”.

O artigo 440.º do Código Civil (diploma ao qual pertencem todas as normas adiante referenciadas) estabelece que se, ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar ao outro coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, é a entrega havida como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes quiserem atribuir à coisa entregue o carácter de sinal.

O artigo 441.º estabelece que, no contrato-promessa de compra e venda, presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.

Da simples leitura destas normas resulta que a recorrida não tem razão quando afirma que “A existência de sinal é na promessa de compra e venda (…) e não a um contrato de compra e venda”. Também no contrato de compra e venda pode ser constituído sinal, nos termos do artigo 440.º.

A especificidade do contrato-promessa de compra e venda reside na presunção, consagrada no artigo 441.º, de que se presume ter carácter de sinal qualquer quantia que o promitente-comprador entregue ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço. Tratando-se de um contrato de compra e venda, tal presunção não é aplicável. Nesta hipótese, para que uma quantia que o comprador entregue ao vendedor tenha a natureza de sinal, isso terá de ficar estipulado.

Encontramo-nos, pois, perante um problema de interpretação do contrato celebrado entre recorrente e recorrida.

O n.º 1 do artigo 236.º dispõe que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. O n.º 2 do mesmo artigo dispõe que, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

Recorrente e recorrida estipularam, no contrato de compra e venda, que, “para princípio de pagamento e sinalização do negócio efectuado”, a primeira realizaria uma transferência bancária no valor de € 14.000.”

Um declaratário normal entenderia esta estipulação no sentido de atribuir uma dupla natureza à entrega de € 14.000: princípio de pagamento e “sinalização do negócio”. Sinalizar um negócio equivale, quer em linguagem técnico-jurídica, quer na própria linguagem corrente, a constituir um sinal, com o objectivo de dar consistência a um contrato que se celebra, de confirmar a seriedade das declarações que o integram, através de uma tutela acrescida dos direitos que dele resultam. Este acréscimo decorre da aplicação do regime que a lei associa à constituição de sinal, constante do n.º 2 do artigo 442.º: perda deste se quem o constituiu não cumprir o contrato e obrigação de restituir o sinal em dobro se a parte inadimplente for aquela que o recebeu.

É, pois, com o sentido descrito que a estipulação em análise deve ser interpretada. Não há outra possível. Sinalizar é constituir um sinal. E constituir um sinal implica receber, na relação contratual, o regime jurídico deste.

Esta conclusão não é abalada pela forma como a recorrente designou a transferência bancária que efectuou: adiantamento de compra de cortiça”. A entrega da quantia de € 14.000 constituía, na realidade, um princípio de pagamento do preço. Contudo, esta natureza não excluía a de sinal.

Por seu turno, a designação que a recorrida atribuiu às transferências que efectuou – “devolução de sinalização para compra de cortiça” – apenas confirmaria, se necessário fosse, que ela teve plena consciência de que os € 14.000 que recebera tinham a natureza de sinal.

Decorre do exposto que a recorrente tem direito à restituição do sinal em dobro, nos termos do n.º 2 do artigo 442.º. Tendo já recebido o sinal em singelo, resta-lhe receber os € 14.000 peticionados.

A recorrente pede ainda a condenação da recorrida a pagar-lhe juros de mora, à taxa legal em vigor, contados desde a citação. Nos termos dos artigos 804.º, n.ºs 1 e 2, 805.º, n.º 1, e 806.º, n.ºs 1 e 2, a recorrente tem direito a receber tais juros.

Concluindo, o recurso deverá ser julgado procedente.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e condenando-se a recorrida a pagar, à recorrente, a quantia de € 14.000 (catorze mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde a data da citação até integral pagamento.

Custas a cargo da recorrida.

Notifique.

*

Évora, 11.01.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto


Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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