Processo n.º 220/23.0T8ODM-C.E1 – Procedimento cautelar comum.
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Sumário:
1 – A decisão mediante a
qual o tribunal declara que os requeridos não cumpriram providência cautelar
anteriormente decretada não pode exceder o âmbito subjectivo e objectivo desta,
sob pena de violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e,
eventualmente, de incorrer nas nulidades previstas nas alíneas d) (2.ª parte) e
e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
2 – Não padece dos vícios
referidos em 1 o despacho em cujo dispositivo o tribunal se limita a declarar
que a sentença que decretou a providência cautelar não foi cumprida e fixa um
prazo para os requeridos cumprirem essa providência e provarem tê-lo feito.
3 – A decisão referida em 1
deve ser fundamentada de facto e de direito. Nomeadamente, deve especificar os
factos que o tribunal considera provados e não provados.
4 – A sentença que decrete
uma providência cautelar, requerida por um herdeiro contra co-herdeiros que
sejam gerentes de uma sociedade, não pode impor, a estes, actos ou omissões no
âmbito das funções que naquela exercem, nomeadamente a prestação de informação
ou a entrega de documentos internos. Será assim ainda que integrem a herança
todas ou parte das quotas daquela sociedade.
5 – O direito do sócio a obter
informação sobre a vida da sociedade tem esta como sujeito passivo.
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Requerente: Clara.
Requeridos: Glória, Armando,
Jorge, João e Álvaro.
Pedidos:
A) Ser a primeira requerida provisória e
cautelarmente suspensa do cargo de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito
de Mário, falecido a 17.08.2021, sendo-lhe vedada provisoriamente a prática de
qualquer acto sobre os bens da herança enquanto tal, sendo fixada uma sanção
pecuniária compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção cometida, como
forma de garantia de efectividade da decisão;
B) Assim como ordenada a entregar ao
cabeça-de-casal provisório nomeado todas as informações e todos os documentos
em seu poder relacionados com a herança, bens hereditários e sobre a sua
administração, incluindo:
i. Informação e entrega de documentos
sobre todos os actos de administração ordinária, extraordinária e de disposição
de bens da herança por si praticados, ou a seu pedido ou com seu conhecimento,
praticados pelos requeridos João e Álvaro, desde a data do início da
incapacidade do de cujus (genericamente
Janeiro de 2020) até ao presente;
ii. Entrega de todas as informações e
documentos que um administrador de bens criterioso e diligente deveria entregar
a quem o substitua na função.
C) Sendo também a condenação prevista na
al. b) feita sob cominação de fixação de uma sanção pecuniária compulsória no
valor de € 5.000,00 por cada infracção cometida, como forma de garantia de
efectividade da decisão;
D) Mais devem os requeridos João e Álvaro
ser notificados de que lhes está vedada provisoriamente a prática de qualquer
acto sobre os bens da herança enquanto tal, assim como ordenados a entregar ao
cabeça-de-casal provisório nomeado todas as informações e todos os documentos
em seu poder relacionados com a herança, bens hereditários e sobre a sua
administração, incluindo:
i. Informação e entrega de documentos
sobre todos os actos de administração ordinária, extraordinária e de disposição
de bens da herança por si praticados, ou a seu pedido ou com seu conhecimento,
praticados pelos próprios desde a data do início da incapacidade do de cujus (genericamente Janeiro de 2020)
até ao presente;
ii. Entrega de todas as informações e
documentos que um administrador de bens criterioso e diligente deveria entregar
a quem substitua o cabeça-de-casal na função;
E) Sendo também a condenação prevista na
al. D) feita sob cominação de fixação de uma sanção pecuniária compulsória no
valor de € 5.000,00 por cada infracção cometida, como forma de garantia de
efectividade da decisão;
F) Sejam os requeridos Glória, João e Álvaro
impedidos de praticar, ou de dar instruções a quaisquer terceiros para
praticar, quaisquer actos que violem as obrigações supra sentenciadas;
G) Devendo a condenação dos requeridos Glória,
João e Álvaro ser feita sob a cominação prevista nos artigos 375.º do Código de
Processo Civil e 348º, nº 2 do Código Penal se infringirem a providência
decretada;
H) Seja a requerente designada
provisoriamente cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de Mário, falecido
a 17.08.2021, até à designação definitiva de cabeça-de-casal.
Subsidiariamente,
I) Deverão ainda ser condenados em
outras medidas que o tribunal subsidiariamente possa entender convenientes e
adequadas a evitar a lesão acaso as medidas requeridas sejam consideradas
inadequadas ao fim pretendido.
Sentença, proferida sem
contraditório prévio dos requeridos:
Julgou o procedimento cautelar
parcialmente procedente, determinando:
A) A remoção provisória da requerida Glória
do cargo de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de Mário, falecido a
17.08.2021, sendo-lhe vedada provisoriamente a prática de qualquer acto sobre
os bens da herança enquanto tal, nos termos do artigo 2086.º, n.º 1, b) a d),
do CC;
B) A fixação de uma sanção pecuniária
compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção ao supra disposto, nos
termos do artigo 829.º-A do CC;
C) A entrega, à requerente, de todas as
informações e todos os documentos em seu poder relacionados com a herança, bens
hereditários e sobre a sua administração, incluindo:
I. Informação e entrega de documentos
sobre todos os actos de administração ordinária, extraordinária e de disposição
de bens da herança por si praticados, ou a seu pedido ou com seu conhecimento,
praticados pelos requeridos João e Álvaro, desde a data do início da
incapacidade do de cujus
(genericamente Janeiro de 2020) até ao presente;
II. Entrega de todas as informações e
documentos relativos à herança;
D) A fixação de uma sanção pecuniária
compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção ao disposto em C), nos
termos do artigo 829.º-A do CC;
E) A proibição, nos termos do artigo 2047.º
do CC, dos requeridos João e Álvaro , provisoriamente, da prática de qualquer
acto sobre os bens da herança enquanto tal;
F) A entrega, pelos requeridos João e Álvaro,
à requerente, de todas as informações e todos os documentos em seu poder
relacionados com a herança, bens hereditários e sobre a sua administração,
incluindo:
i. Informação e entrega de documentos
sobre todos os actos de administração ordinária, extraordinária e de disposição
de bens da herança por si praticados, ou a seu pedido ou com seu conhecimento,
praticados pelos próprios desde a data do início da incapacidade do de cujus (genericamente Janeiro de 2020)
até ao presente;
ii. Entrega de todas as informações e
documentos relativos à herança;
G) A fixação de uma sanção pecuniária
compulsória no valor de € 5.000,00 por cada infracção ao disposto em e) e f),
nos termos do artigo 829.º-A do CC;
H) A proibição, nos termos do artigo 2047.º
do CC, da requerida Glória e dos requeridos João e Álvaro, de praticar, ou de
dar instruções a quaisquer terceiros para praticar, quaisquer actos que violem
as obrigações supra determinadas de A) a G), sob a cominação prevista nos artigos
375.º do CPC e 348.º, n.º 2, do CP, se infringirem a providência decretada;
i) A designação provisória da requerente
como cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de Mário, falecido a 17.08.2021,
até à designação definitiva de cabeça-de-casal.
Despacho recorrido:
- Considerou que os requeridos não
cumpriram a sentença, por não ter sido feita prova, “nem de entrega de documentação física, nem de investimento nas funções
da requerente, permissão de acesso a instalações, elementos essenciais para a
gestão que foi determinada por sentença à requerente, que os requeridos deverão
respeitar. Existindo inclusive a notícia (por admissão dos próprios requeridos)
de despedimento da funcionária adstrita à gestão de bens da sociedade, já após
o decretar da providência, quando estavam inibidos de tal poder de gestão por
despacho final deste processo, deixando assim os requeridos – e não a
requerente – a sociedade sem qualquer gestão. Pelo que, o alegado estado de
abandono dos bens apenas a estes será imputável, agravado pelo desrespeito de
sentença decorridos quase dois meses da sua prolação, em violação do disposto
no art.º375º do C.P.C. (…)” Considerou ainda que os requeridos negaram, à
requerente, “os elementos essenciais para
a gestão dos bens”, despediram, “após
estarem inibidos de actos de gestão, a funcionária que estava adstrita à gestão
das funções da sociedade” e, depois, “imputaram
à requerente a responsabilidade de falta de gestão”;
- Fixou, aos requeridos, um prazo de 5
dias para fazerem prova do cumprimento da sentença;
- Ordenou que, não sendo feita tal prova
dentro do referido prazo, fosse imediatamente remetida certidão de todo o
processado ao Ministério Público, para instauração de procedimento criminal.
O requerido João interpôs
recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:
(a) A Requerente intentou um
procedimento cautelar não especificado contra a sua mãe e irmãos (entre os
quais o ora Recorrente), na qualidade de herdeiros do falecido Mário, pai do
ora Recorrente.
(b) Veio a Requerente peticionar ao
Tribunal que ordenasse, em suma, (i) a suspensão provisória de Glória do cargo
de cabeça de casal da herança aberta por óbito do de cuius, (ii) a nomeação
provisória da Requerente como cabeça de casal da referida herança, (iii) a
entrega à Requerente, por parte dos Requeridos, de todos os documentos e
informações referentes a todos os bens integrantes da herança e respetiva
administração (iv) a proibição, por parte dos Requeridos, de praticar quaisquer
atos referentes ao património da herança.
(c) A Requerente alegou que a herança do
seu falecido pai era constituída por participações sociais em duas sociedades –
Sociedade 1, Lda. e Sociedade 2, Lda..
(d) Mais alegou a existência de atos de
dissipação patrimonial, sonegação de bens e má administração por parte dos
Requeridos, sustentando que os mesmos estariam a praticar um conjunto de atos
tendentes à subtração de valores monetários e de património pertencente à
esfera de ambas as sociedades acima referidas.
(e) A referida providência cautelar
apenas foi intentada contra os herdeiros do falecido Mário, nas suas qualidades
estritamente pessoais, e não foi intentada contra nenhuma das duas sociedades
acima referidas.
(f) O Tribunal a quo deferiu o pedido
deduzido pela Requerente e, no seu âmbito dispositivo (i) suspendeu Glória do
seu cargo de cabeça de casal da herança, (ii) nomeou provisoriamente a
Requerente como cabeça de casal da herança, (iii) ordenou aos Requeridos que
entregassem à Requerente todas as informações e documentos referentes ao bens
da herança e (iv) proibiu os Requeridos de praticarem quaisquer atos sobre os
bens da herança enquanto tal.
(g) Após tal decisão cautelar, o
Tribunal a quo veio a proferir o despacho com a referência CITIUS n.º 33551705,
em que determinou (i) que havia sido demonstrado nos autos que os Requeridos,
após a decisão, haviam praticado atos de gestão referentes às sociedades e aos
bens integrantes do património das mesmas, (ii) que a providência decretada
abrange a proibição de praticar quaisquer atos sobre os bens das sociedades, e
(iii) que a continuação da prática de quaisquer atos de administração das
referidas sociedades e do seu património constitui a prática de crime de
desobediência.
(h) No mesmo despacho, o Tribunal a quo
ordenou que os Requeridos viessem comprovar nos autos o cumprimento com o
conteúdo da decisão cautelar e, em caso de não-acatamento de tal ordem
judicial, ordenou ainda o Tribunal a quo que fossem os autos do processo
remetidos ao Ministério Público para instauração de procedimento criminal.
(i) Tal despacho mesmo assumiu um
caráter totalmente inovador, na medida em que o seu conteúdo extravasou
manifestamente e inaceitavelmente o conteúdo da decisão cautelar proferida pelo
próprio Tribunal a quo.
(j) Despacho que, sublinhe-se, chega ao
cúmulo de assentar em factos não provados nos autos, que não foram
contraditados, e, diga-se mesmo, chegando o despacho a assumir como verdadeiros
de factos que não o são, como seja um despedimento de uma trabalhadora que
nunca existiu!
(k) O despacho a quo comina uma sanção
processual que, como tal, se mostra recorrível em si mesmo, devendo o recurso
ser tramitado em separado, com subida imediata e efeito suspensivo, ao abrigo
do artigo 644.º, n.º 2, al. e) do CPC.
(l) O despacho a quo foi proferido após
a decisão final e procedeu a uma verdadeira extensão do conteúdo dispositivo de
tal decisão final, sendo igualmente recorrível nos termos do artigo 644.º, n.º
2, al. e) do CPC.
(m) Sempre poderá a presente apelação
ser aproveitada e convolada, ao abrigo do aproveitamento processual, numa
reclamação de nulidades ao abrigo do artigo 615.º, n.º 4 do CPC, a ser
apreciada como tal por parte do Tribunal a quo, uma vez que a presente apelação
(i) cumpre com todos os requisitos de matéria e de forma que seriam exigíveis
para tal reclamação, e (ii) é apresentada dentro do prazo ordinário de 10 dias
que se aplicaria para a dedução da reclamação.
(n) Em sede de requerimento inicial, a
Requerente deduziu o seu pedido cautelar apenas contra os demais herdeiros do
de cujus e invocando tão-somente as suas qualidades pessoais.
(o) O requerimento cautelar não foi
deduzido contra as sociedades cujas participações sociais (apenas em 50%,
relembre-se!) integram a herança e o seu pedido apenas se dirigiu aos bens da
herança como tal.
(p) Não foram invocados, expressa ou
tacitamente, quaisquer factos aptos a sustentar a desconsideração da
personalidade coletiva das sociedades em questão.
(q) O Tribunal a quo não podia, após a
decisão cautelar, vir cominar uma qualquer ordem judicial com um âmbito mais
abrangente que o pedido cautelar e que a própria decisão cautelar, tendo assim
proferido um despacho judicial ferido de uma nulidade grave e ostensiva.
(r) O Tribunal a quo violou, por força
do despacho ora recorrido, os artigos 3.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 e 609.º, n.º 1
do CPC e, nessa medida, a decisão em apreço encontra-se ferida das nulidades
elencadas no artigo 615.º, n.º 1, als. d) e e) do CPC, pelo que deve a mesma
ser revogada pelo Tribunal a quo.
(s) Acresce que os vícios da decisão
resultam também em graves erros de direito por violação direta de princípios e
regras fundamentais.
(t) Em primeiro lugar, cabe destacar que
uma decisão com tal sentido viola diretamente os limites subjetivos do caso
julgado e o princípio da eficácia relativa das decisões, na medida em que
pretende estender a terceiros, que não são parte na causa, o sentido de uma
decisão cautelar. No caso vertente, os terceiros são as sociedades, que não
foram demandadas, nem chamadas ao processo, sendo certo que o sentido do pedido
de tutela cautelar se destinou a abranger a herança e, já não, as sociedades.
(u) A violação do predito princípio pelo
despacho recorrido afronta em toda a linha o princípio geral acabado de
enunciar e constitui uma violação do disposto nos artigos 3.º, 619.º, 620.º e
621.º do CPC.
(v) Em segundo lugar, dir-se-á que um
despacho que vise estender o âmbito de uma decisão destinada a abranger o
património da herança e, depois, passe a estender os poderes de administração
às sociedades e património respetivo, viola frontalmente o princípio da
separação (nomeadamente de patrimónios) entre a sociedade e os respetivos
sócios. Tal princípio da separação assenta por sua vez na ideia basilar da
autonomia jurídico-subjetiva e/ou patrimonial das sociedades face os respetivos
sócios. Daí que não possa, por via de regra, o património da sociedade
responder por dívidas (pessoais) do sócio, nem o inverso.
(w) Em terceiro lugar, urge notar que
enquanto gerente da referida sociedade, o Recorrente encontra-se legal e
contratualmente vinculado a um conjunto de deveres fiduciários de assegurar a
gestão e administração da sociedade de acordo com padrões normais de
diligência, zelo, cuidado, lealdade e competência, devendo atuar de acordo com
o interesse da sociedade em que ocupa o respetivo cargo.
(x) O Recorrente não foi legalmente
destituído das suas funções, expressa ou tacitamente, nem uma tal pretensão foi
deduzida no pedido cautelar nem, consequentemente, ordenada pela decisão
proferido pelo Tribunal a quo.
(y) A decisão do despacho a quo não pode
ser acatada por parte do Recorrente, sob pena de o mesmo incorrer em manifesto
incumprimento dos seus deveres legais impostos pelo Código das Sociedades
Comerciais.
(z) Tampouco podia o Tribunal a quo ter
ordenado a investidura da Requerente naquelas que são, materialmente, as
competências e os deveres legais dos gerentes das sociedades em questão,
porquanto, novamente, nem a própria Requerente o peticionou, nem o Tribunal o
decretou em sede cautelar.
(aa) O despacho a quo viola
materialmente, nos seus próprios termos, os artigos 72.º, 257.º e 259.º do
Código das Sociedades Comerciais.
(bb) Pelas razões supra enunciadas,
impõe-se que o Tribunal ad quem decida, consequentemente, pela revogação do
despacho recorrido.
A recorrida apresentou
contra-alegações, com as seguintes conclusões:
A. Da herança indivisa fazem parte
vários bens imóveis e móveis, e entre estes, participações sociais em duas
sociedades comerciais, tendo a herança tido como Cabeça de Casal de direito a
Exma. Cônjuge sobreviva e o Recorrente também como administrador de facto. As
participações sociais correspondentes a 100% do capital social das sociedades
(e não apenas 50%) estão hoje integradas na herança aberta por óbito do
falecido de cuius e, como tal, sob administração da Cabeça de Casal.
B. A douta sentença de 1ª instância que
decretou a providência cautelar e o douto despacho recorridos fazem referência
à administração das participações sociais (as quotas) cuja administração, como
bens hereditários que são, e até à partilha, estão sob administração da Cabeça
de Casal. Não as sociedades – evidentemente – cuja administração a se é alheia
aos autos.
C. Quando a douta sentença de 1ª
instância decretou a providência e o douto despacho recorrido determinou o seu
cumprimento, e considerando que as participações sociais da sociedade são
pertença da herança (total ou parcialmente, pouco importa a este ponto),
decretaram que os Requeridos devessem prestar informação e devessem entregar
informação e documentos à Requerente na investida qualidade de Cabeça de Casal
provisória como representante dos accionistas/sócios, fizerem-no sem que –
evidentemente – tais decisões estivesse com isso “a investir a Requerente nas
funções de administração da sociedade e atribuindo à mesma a respectiva
administração”, ou a “impor ao ora Recorrente que cumpra com uma ordem
inibitória (ilegal!) da sua conduta, determinando que o mesmo se abstenha da
prática de quaisquer actos de administração/gerência de uma sociedade na qual o
mesmo ocupa o cargo de gerente”, ou muito menos sem que esteja no despacho
recorrido a determinar “que este transmita para a Requerente a posse dos bens
das sociedades e a investidura da mesma na administração dos bens que integram
o património de tais sociedade”.
D. Ao contrário do alegado de que quando
o douto despacho recorrido tem o significado que o Recorrente transmita a posse
dos bens das sociedades e a investidura daquela na administração, a verdade é
que entregar informação e documentos ainda que relativos a sociedades (que é
coisa que as sociedades fazem normalmente aos seus sócios, ou aos seus
representantes) não é a mesma coisa que transmitir a posse dos bens; nem é
(obviamente) a mesma coisa que realizar uma investidura de quem recebe a
informação na qualidade de administrador da sociedade.
E. E, ao contrário do alegado, muito
menos a entrega de informação tem o significado de que se esteja a inibir os
gerentes de administrarem o que até aí administram.
F. Por outro lado, a entrega de
informação e documentos societários, enquanto activos pertença da herança, é
absolutamente legal e admissível, e decorre da lei e do enquadramento legal em
que por diferentes razões, ancoradas em diferentes realidades e situações, os
administradores de facto de uma herança e administradores de uma sociedade
podem ser compelidos a prestar informação e documentos relativos à sociedade
(designadamente aos representantes dos accionistas), sem que tal obrigação
constitua violação do princípio da personalidade colectiva.
G. No caso dos autos, em que o Exmo.
Recorrido é gerente de uma sociedade pertença da herança e não é remunerado por
decisão da Assembleia Geral, e depois verifica-se existirem contratos da
sociedade com o gerente, ou sociedade por ele detida, e facturas e pagamentos de
avultadas quantias ao gerente ou a sociedade por si detidas (v. por exemplo,
factos 21 a 27 da sentença de fls.) existe evidente interesse juridicamente
protegido, e assiste legitimidade, a todos quantos administram a herança, de
conhecer através dos documentos e informações corporativas o que se tem
passado, e justamente no enquadramento das funções de administrador de bens,
ainda que provisório, da herança.
H. No caso dos autos, em que activos das
sociedades propriedade da herança são vendidos, ou activos da herança são
vendidos à sociedade sem a intervenção de todos os co-herdeiros, existe
evidente interesse juridicamente protegido, e legitimidade, a todos quantos
administram a herança, de conhecer através dos documentos e informações, ainda
que corporativas, o que ocorreu. Que activos, destino do preço, etc.
I. No caso dos autos, em que uma das
sociedades utiliza bens da herança, designadamente as herdades, em cerca de 170
hectares (cfr. facto 18 provado da sentença de fls), ou em que ocorrem vendas
de tractores da herança depois a morte do de cuius à própria sociedade (cfr.
matéria provada 35 a 37 da sentença de fls.) por acção dos três indicados
Requeridos, existe evidente interesse juridicamente protegido, e legitimidade,
a todos quantos administram a herança, de conhecer através dos documentos e
informações corporativas o que se tem passado, e justamente no enquadramento
das funções de administrador de bens, ainda que provisório.
J. No caso dos autos, em que ficou
provado existir total confusão patrimonial entre de cuius e sociedades (v. por
exemplo facto provado 53 da sentença de fls.), ao ponto da secretária que se
ocupava da parte administrativa da herança, registo de animais da herança,
etc., ser formalmente funcionária de uma das sociedades, faz todo o sentido que
os Requeridos sejam, de acordo com a causa de pedir e pedidos invocados,
condenados a prestar informação. Informação sobre bens da herança e informação
sobre bens das próprias sociedades pertença da herança.
K. Aliás, se o Exmo. Recorrido entendia
que, de acordo com a douta sentença da instância que conheceu a questão, o
mesmo não tinha que prestar qualquer informação ou documentos à Recorrida sobre
as participações sociais ou sobre a sociedade, haveria de ter recorrido da sentença
de 1ª instância, o que não fez.
L. Por outro lado, ao contrário do
alegado pelo Exmo. Recorrente de que o douto despacho recorrido deve ser
anulado por ter extravasado o conteúdo do que havia sido decidido na decisão de
1ª instância, verifica-se que assim não acontece.
M. Na sua parte dispositiva, que é a
parte do despacho em que o mesmo determina ao Exmo. Recorrido várias condutas,
o despacho recorrido limita-se a “conceder aos requeridos o prazo de 5 dias
para, impreterivelmente, fazerem prova nos autos do cumprimento do estipulado na
sentença”, pelo que, ao invés de criar novas obrigações sobre os Requeridos
para além daquelas que decorrem da sentença da instância, limitou o seu objecto
ao estipulado na sentença. E não tem por sentido e alcance outras quaisquer obrigações
que dela não decorram ou nela não estejam previstas.
N. Na parte dos fundamentos do douto
despacho recorrido – que não na sua parte dispositiva – o Tribunal considerou e
usou por três vezes a palavra “sociedade”, mas no contexto em que o fez, percebe-se
que se refere à herança, da qual faz parte a sociedade, e não à sociedade enquanto
tal, existindo um mero erro que escapou na escrita, um verdadeiro lapsus
calami.
O. Também nenhuma razão ou fundamento
assiste à alegação do Exmo. Recorrente de que o douto despacho recorrido “viola
os limites subjectivos do caso julgado e o princípio da eficácia relativa das
decisões, na medida em que pretende estender a terceiros, que não são parte na causa,
o sentido da decisão cautelar. No caso vertente, os terceiros são as
sociedades, que não foram demandadas (…)”
P. Como vimos o douto despacho recorrido
não amplia ou estende o decidido na decisão da 1.ª Instância e, bem pelo
contrário, limita-se a ordenar o cumprimento dos termos a mesma. E de nada
mais.
Q. Por outro lado, o douto despacho
recorrido não determinou terceiros (não-partes) a nada. Limitou-se a determinar
aos Requeridos da própria providência, antes os termos das suas próprias
Oposições, que haveriam de demonstrar nos autos que haviam dado cumprimento aos
termos da sentença.
R. Os destinatários do douto despacho
recorrido são os Requeridos, que operaram desde a abertura da herança em várias
qualidades, seja como gerentes das sociedades, seja como Cabeças de Casal de
facto de herança (em vez da Mãe, ou com a Mãe, ou instando-a a fazê-lo), seja
ainda como co-herdeiros, e no âmbito dessa sua declarada actuação, foram
instados pela decisão cautelar a prestar informações e documentos em seu poder
por forma à Cabeça de Casal provisória pudesse ocupar-se da administração dos
bens hereditários; e foram instados pelo douto despacho recorrido a reportar ao
Tribunal o cumprimento dessas determinações que lhe foram dirigidas. Nada disto
colide com limites do caso julgado ou com o princípio da eficácia relativa das
decisões.
S. Também se não verifica a alegada
violação do princípio da separação entre sociedade e sócios, invocada em v),
por alegadamente o douto despacho recorrido “passou a estender o âmbito de uma
decisão destinada a proteger o património da herança e, depois, passe a
estender os poderes de administração às sociedades e património respectivo”.
T. Em lado nenhum o douto despacho
recorrido comete poderes de administração das sociedades à Recorrida designada
Cabeça de Casal provisória. Em bom rigor, o douto despacho recorrido apenas
determina aos Requerentes que demonstrem ter cumprido o que constava da decisão
final. E nada mais. E dessa decisão final não constava, nem consta, que a
Requerida passasse a ser ela a ser empossada nas funções de Administradora das
sociedades, ou que os actuais gerentes deixassem de o ser. Ou que ficassem por
qualquer forma inibidos do exercício das suas funções. Prestar informação e dar
documentos não tem esse sentido e alcance.
U. Por outro lado, a sentença cautelar
de fls. determinou aos Requeridos a proibição a prática de actos sobre os bens
da herança enquanto tal. Não sobre as sociedades. Basta compulsar o douto
despacho recorrido para se verificar que o mesmo não estende este âmbito
inibitório às sociedades, nem atribui poderes de administração societária à
Recorrida. Está-se ante, e apenas, a herança.
V. Igualmente, e s.m.o., não colhem os
fundamentos invocados pelo Exmo. Recorrente em w) a y) pois que tudo o que
resulta da douta sentença, e do despacho recorrido, não colide com as funções
que o mesmo exerce como Gerente, nem com os seus deveres de gerência.
W. Igualmente a injunção inibitória da
al. e) da douta sentença, que não é ampliada pelo despacho recorrido nada
determina ou determinam ao Exmo. Recorrente sobre qualquer inibição do
exercício de funções de gerente da sociedade.
X. Limitando-se o douto despacho
recorrido a ordenar que os Requeridos demonstrassem o cumprimento do decidido
na sentença, e o decidido na sentença em nada inibe o Exmo. Recorrido de
Administrar a Sociedade, não se alcança de onde decorra do despacho recorrido
que o mesmo não possa ser acatado por parte do Recorrente pois que tal
acatamento constituiria manifesto incumprimento dos seus deveres legais de
administrador da sociedade.
Y. Também se não verifica de onde
decorra que, concomitantemente, o despacho recorrido tenha “ordenado a
investidura da Requerente naquelas que são materialmente as competências e os
deveres legais do gerente das sociedades”. O que consta de ambas as decisões é
uma inibição quanto à prática de actos sobre bens da herança. Que o douto despacho
recorrido não ampliou. O que consta de ambas as decisões não é nenhuma investidura
da Recorrida em funções de gerência das sociedades e, antes, e tão só, nas
funções de administração dos bens da herança, entre os quais se contam as
participações sociais. Que o douto despacho recorrido não ampliou. Pelo que o
douto despacho recorrido não violou as invocadas disposições do CSC.
Z. Diga-se, por último, que o Exmo.
Recorrido não desconhecerá o regime legal do direito à informação dos sócios,
aqui da titularidade da cabeça de casal provisória, e do direito a haver de
co-herdeiros e de pessoas que vêm actuando como co-administradores de facto da herança
informações sobre o exercício de tal administração. Pelo que a decretação sobre
os Requeridos de entrega de documentos e informações em seu poder nem sequer
configura qualquer acto injustificado e, em qualquer caso, algo que de novo
tenha decorrido do despacho recorrido.
O recurso foi admitido.
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Questões a decidir:
- Nulidade do despacho recorrido;
- Violação dos limites subjetivos do
caso julgado e do princípio da eficácia relativa das decisões;
- Incumprimento da sentença por parte do
recorrente e dos restantes requeridos.
*
Os factos relevantes para o
conhecimento do recurso são os acima enunciados.
*
Nulidade do despacho
recorrido:
O recorrente sustenta que o
despacho recorrido padece das nulidades previstas nas alíneas d) (2.ª parte) e
e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, porquanto:
- O seu conteúdo extravasou o da
sentença, sendo, assim, inovador;
- Se baseia em factos não provados.
As referidas alíneas do n.º
1 do artigo 615.º do CPC estabelecem, na parte que nos interessa, que a
sentença é nula quando:
d) O juiz conheça de questões de que não
podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior
ou em objecto diverso do pedido.
O artigo 613.º, n.º 3, do
CPC, estabelece que estas normas são aplicáveis aos despachos, com as
necessárias adaptações.
Resulta da simples leitura
das alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC que o fundamento invocado
pelo recorrente em segundo lugar não procede. Ainda que o despacho recorrido se
tenha baseado em factos não provados, não é nulo. Nessa hipótese, terá sido
cometido um erro de julgamento, na modalidade de erro de facto, decorrente de o
tribunal ter julgado provados factos que devia ter julgado não provados. Na
hipótese de o despacho recorrido se ter baseado em factos que, embora provados,
não constituem, nos termos da lei, fundamento para decidir no sentido em que se
decidiu, verificar-se-á, igualmente, um erro de julgamento, na modalidade de
erro de direito. Nenhuma destas hipóteses se enquadra em qualquer das alíneas
do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
A afirmação do recorrente
segundo a qual o conteúdo do despacho recorrido extravasa o da sentença pode
querer significar três coisas diferentes:
- Na fundamentação do despacho recorrido,
o tribunal a quo utilizou argumentos
que não se enquadram na lógica da fundamentação da sentença;
- Através do despacho recorrido, o
tribunal a quo impôs, ao recorrente e
aos requeridos Glória e Álvaro, acções ou omissões diversas daquelas que foram
pedidas pela recorrida;
- Através do despacho recorrido, o
tribunal a quo impôs, ao recorrente e
aos requeridos Glória e Álvaro, acções ou omissões diversas daquelas que o
foram na sentença.
Nem o corpo das alegações,
nem as conclusões, são inteiramente esclarecedores sobre o exacto sentido da
referida afirmação do recorrente. Aparentemente, o recorrente considera que o
despacho recorrido padece das três descritas patologias.
A primeira hipótese, ainda
que se verifique, não se enquadra em qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo
615.º do CPC, nomeadamente naquelas que o recorrente invoca. Se o tribunal a quo tiver decidido com base em
argumentos que não sustentem essa decisão, verificar-se-á um erro de
julgamento.
A segunda hipótese, a ocorrer,
determinaria a verificação da nulidade prevista na al. e) do n.º 1 do artigo
615.º do CPC, pois traduzir-se-ia num excesso, quantitativo e/ou qualitativo,
da decisão judicial relativamente ao pedido. Contudo, numa perspectiva lógica,
o primeiro vício de tal decisão seria a violação do princípio do esgotamento do
poder jurisdicional (artigo 613.º, n.º 1, do CPC), pois tudo aquilo que o
tribunal houvesse de decretar, teria de o ser na sentença, estando-lhe vedado
acrescentar novas imposições em despacho subsequente.
A terceira hipótese, a
verificar-se, não configuraria a nulidade prevista na al. e) do n.º 1 do artigo
615.º do CPC, pois a desconformidade seria, não entre pedido e decisão, mas
entre duas decisões. Admitimos que aquela desconformidade pudesse gerar a
nulidade prevista na 2.ª parte da al. d) do mesmo artigo e número, dependendo
da sua concreta configuração. Na medida em que a segunda decisão fosse além da
primeira, poderia estar a conhecer de questão cujo conhecimento lhe estivesse
vedado. Embora, também nesta hipótese, o vício fundamental do despacho fosse a
violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional.
Todavia, em concreto, na sua
parte dispositiva, que é aquela que nos interessa, o despacho recorrido não foi
além da sentença. O seu dispositivo é, singelamente, o seguinte: “Neste exposto, concede-se aos requeridos o
prazo de 5 dias para, impreterivelmente, fazerem prova nos autos do cumprimento
do estipulado na sentença. (…) Em caso negativo, remeta-se, no imediato,
certidão de todo o processado com remessa ao M.P., para instauração de
procedimento criminal.” Não foi imposta, ao recorrente e aos requeridos Glória
e Álvaro, a prática de qualquer acto para além daqueles que o haviam sido pela
sentença. Também não lhes foi imposta qualquer proibição além daquelas que
resultam da sentença. Apenas foi fixado um prazo para eles cumprirem o que lhes
foi ordenado na sentença e provarem tê-lo feito. Por outras palavras, o
conteúdo dispositivo da sentença permaneceu intocado.
Concluímos, assim, que o
despacho recorrido não padece das nulidades invocadas pelo recorrente.
Violação dos limites
subjetivos do caso julgado e do princípio da eficácia relativa das decisões:
O recorrente sustenta que o
despacho recorrido “viola diretamente os
limites subjetivos do caso julgado e o princípio da eficácia relativa das
decisões, na medida em que pretende estender a terceiros, que não são parte na
causa, o sentido de uma decisão cautelar”. Isto porque, segundo o
recorrente, aquele despacho atinge directamente as sociedades em cujo capital a
herança participa, não obstante não terem sido demandadas.
O recorrente não tem razão.
A sentença removeu
provisoriamente a requerida Glória do cargo de cabeça-de-casal, atribuiu
provisoriamente esse cargo à recorrida, proibiu o recorrente e os requeridos Glória
e Álvaro de praticarem qualquer acto sobre os bens da herança, determinou que o
recorrente e os requeridos Glória e Álvaro entreguem, à recorrida, todas as
informações e todos os documentos em seu poder relacionados com a herança, bens
hereditários e sobre a sua administração, e fixou uma sanção pecuniária
compulsória por cada violação, por parte do recorrente e dos requeridos Glória
e Álvaro, dos deveres que lhes foram impostos. O recorrente e os requeridos Glória
e Álvaro foram ainda proibidos “de
praticar, ou de dar instruções a quaisquer terceiros para praticar, quaisquer
actos que violem as obrigações supra determinadas de A) a G), sob a cominação
prevista nos artigos 375.º do CPC e 348.º, n.º 2, do CP, se infringirem a
providência decretada”. A sentença não impôs, às sociedades em cujo capital
a herança participa, qualquer dever de conduta, positivo ou negativo. Nem podia
fazê-lo, pois tais sociedades não foram demandadas.
O despacho recorrido, por
seu turno, limitou-se a fixar, ao recorrente e aos requeridos Glória e Álvaro,
um prazo de 5 dias para cumprirem a sentença e provarem tê-lo feito. Além de,
como vimos anteriormente, não ter imposto, ao recorrente e aos requeridos Glória
e Álvaro, qualquer acto ou proibição para além daqueles que o haviam sido pela
sentença, também não produziu qualquer efeito que se repercuta directamente na
esfera jurídica de terceiros, concretamente das sociedades em cujo capital a
herança participa. Nomeadamente, o despacho recorrido não determinou que alguma
dessas sociedades prestasse informação, entregasse documentos ou franqueasse o
acesso da recorrida a determinados locais.
Incumprimento da sentença
por parte do recorrente e dos restantes requeridos:
O efeito fundamental do
despacho recorrido foi declarar que, à data da sua prolação, o recorrente e os
requeridos Glória e Álvaro não tinham cumprido a sentença. Por isso lhes fixou
um prazo de 5 dias para cumprirem a sentença e provarem tê-lo feito. É a esta
luz que o despacho recorrido deve ser analisado.
Para tomar uma decisão
potencialmente tão gravosa para o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro
como aquela que constitui objecto do presente recurso, o tribunal a quo devia ter enunciado, com precisão,
os factos que considerou provados e fundamentadores daquela, nos termos dos
artigos 607.º, n.ºs 3 e 4, e 613.º do CPC. Em vez disso, invocou tais factos de
forma dispersa, ao longo da fundamentação do despacho recorrido, e imprecisa.
As referências a factos
constantes do despacho recorrido são as seguintes: “Não foi feita prova, que incumbe aos requeridos, nem de entrega de
documentação física, nem de investimento nas funções da requerente, permissão
de acesso a instalações, elementos essenciais para a gestão que foi determinada
por sentença à requerente”; “despedimento
da funcionária adstrita à gestão de bens da sociedade, já após o decretar da
providência, quando estavam inibidos de tal poder de gestão por despacho final
deste processo, deixando assim os requeridos – e não a requerente – a sociedade
sem qualquer gestão”; “negando à
requerente os elementos essenciais para a gestão dos bens, despedirem, após
estarem inibidos de actos de gestão, a funcionária que estava adstrita à gestão
das funções da sociedade”.
É patente a confusão entre a
herança e as sociedades.
Um dos factos que o tribunal
a quo considera violadores da
sentença é o “despedimento da funcionária
adstrita à gestão de bens da sociedade, (…) quando estavam inibidos de tal
poder de gestão (…), deixando assim os requeridos – e não a requerente – a
sociedade sem qualquer gestão”.
Desde logo, não resulta do
despacho recorrido a que sociedade o mesmo pretende referir-se.
Em segundo lugar, a entidade
patronal da pessoa alegadamente despedida não era a herança, mas sim uma das
sociedades. Ora, a sentença inibiu o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro
de praticarem qualquer acto relativamente aos bens da herança, mas não
relativamente aos bens ou, mais amplamente, às situações jurídicas de que cada
uma das sociedades é titular. O que faz parte da herança são quotas das
sociedades, não as situações jurídicas de que cada uma destas é titular. As
sociedades mantiveram-se intocadas, seja no seu capital social, no seu
património, na composição dos seus órgãos ou nas relações jurídicas com
terceiros. Logo, a sentença não impedia o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro
de fazerem cessar o contrato de trabalho da pessoa em questão, nem de,
genericamente, praticarem os actos próprios dos cargos que ocupam nas
sociedades. A afirmação, constante do despacho recorrido, de que o recorrente e
os requeridos Glória e Álvaro estavam inibidos do “poder de gestão” dos “bens
da sociedade”, é, pois, errada.
Note-se, em terceiro lugar,
que a afirmação que vimos analisando carece, intrinsecamente, de sentido. O
tribunal a quo considerou que, por
efeito da sentença, o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro ficaram
inibidos do “poder de gestão”, e que
ao despedirem, nessas circunstâncias, a “funcionária
adstrita à gestão de bens da sociedade”, deixaram esta última “sem qualquer gestão”. Salvo o devido
respeito, isto é absurdo. Ainda que a sociedade em questão (não se diz qual)
tivesse ficado (sem sequer ser demandada) com os seus gerentes suspensos do
exercício das suas funções por efeito da sentença, não encontramos fundamento
para concluir que passasse a ser gerida pela trabalhadora em causa. Mais, se os
referidos gerentes tivessem sido suspensos do exercício das suas funções por
efeito da sentença, teria sido o próprio tribunal a quo, e não a recorrida, o recorrente ou os requeridos Glória e Álvaro,
a deixar a sociedade “sem qualquer
gestão”. A sentença designou a recorrida, não como gerente de qualquer das
sociedades (nem podia fazê-lo), mas como cabeça-de-casal provisória.
Afirma-se, no despacho
recorrido, que “Não foi feita prova, que
incumbe aos requeridos, nem de entrega de documentação física, nem de
investimento nas funções da requerente, permissão de acesso a instalações,
elementos essenciais para a gestão que foi determinada por sentença à
requerente”.
O despacho recorrido não
especifica que documentos deviam ter sido entregues à recorrida e o não foram.
Mais, atenta a confusão que faz entre a herança e as sociedades, ficamos sem
saber, sequer, se tem em vista documentos da primeira ou das segundas. Sendo
assim, nem o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro têm a possibilidade de
saber a que documentos o tribunal a quo
pretende referir-se, nem o tribunal ad
quem poderá ajuizar se este fundamento da declaração de incumprimento da
sentença procede. Atenta a exigência legal de fundamentação das decisões
judiciais, a declaração de incumprimento da sentença com fundamento na falta de
entrega de documentos terá de especificar que documentos o tribunal a quo entende que deviam ter sido
entregues e não o foram.
Não alcançamos o que o
tribunal a quo teve em vista ao
imputar ao recorrente e aos requeridos Glória e Álvaro a falta de investidura
da recorrida. Desde logo, tendo em conta a confusão feita entre a herança e as
sociedades, teve-se em vista a investidura em que cargo? No de cabeça-de-casal
provisória, ou no de gerente de alguma ou de ambas as sociedades? Na primeira
hipótese (a mais verosímil), que concretos actos o recorrente e os restantes
requeridos omitiram para o tribunal a quo
ter concluído que a falta de investidura da recorrida lhes é imputável? O
despacho recorrido não dá resposta a esta questão.
O despacho recorrido também
não especifica a que instalações devia ter sido permitido o acesso da recorrida
e não o foi, bem como a quem pertencem essas instalações. À herança, ou às
sociedades? Não especifica ainda com que fundamento imputa ao recorrente e aos
requeridos Glória e Álvaro a falta de permissão de acesso a tais instalações.
Nestas condições, é impossível, o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro,
saberem que actos ou omissões lhes são concretamente imputados, bem como, ao
tribunal ad quem, ajuizar sobre o
acerto dessa imputação.
Relativamente à afirmação,
constante do despacho recorrido, segundo a qual o recorrente e os requeridos Glória
e Álvaro negaram “à requerente os
elementos essenciais para a gestão dos bens”, e despediram, “após estarem inibidos de actos de gestão,
a funcionária que estava adstrita à gestão das funções da sociedade”, pouco
mais há a acrescentar. Fala-se em “gestão
dos bens”, em inibição “de actos de
gestão” e em “gestão das funções da
sociedade”, mantendo-se, aparentemente, a confusão entre a herança e uma
das sociedades, que nem sequer se diz qual é. Quando se fala em “elementos essenciais para a gestão dos
bens”, que concretos elementos se tem em vista? E bens de quem? Da herança,
ou das sociedades? Tendo em conta a confusão, que perpassa o despacho
recorrido, entre a herança e as sociedades, esta dúvida é inevitável.
A recorrida pugna pela
manutenção do despacho recorrido com base em argumentação que assim se
esquematiza:
- Tal como a sentença, o despacho
recorrido tem em vista a administração das quotas que integram a herança, que é
da competência do cabeça-de-casal, e não a administração das sociedades;
- Quer a sentença, quer o despacho
recorrido, considerando que as quotas são pertença da herança, determinaram que
os requeridos prestassem informação e entregassem documentos à requerente, na
qualidade de cabeça-de-casal provisória e, logo, de representante dos sócios;
não na qualidade de gerente das sociedades, em que não foi investida;
- O despacho recorrido não inibiu os
gerentes de continuarem a administrar as sociedades;
- É legalmente admissível a entrega de
informação e documentos societários, enquanto activos pertença da herança;
- No caso dos autos, existe um interesse
legítimo, de quem administre a herança, de conhecer o que se tem passado nas
sociedades, através de documentos e informações corporativas;
- Devendo os requeridos prestar informação,
quer sobre bens da herança, quer sobre bens das sociedades;
- A lei consagra o direito dos sócios à
informação, cabendo o seu exercício à recorrida, enquanto cabeça-de-casal
provisória.
No que concerne à sentença,
concordamos com a recorrida. Através dela, o tribunal a quo tomou decretou uma providência cautelar com efeitos limitados
aos bens da herança e à administração desta.
O despacho recorrido não
transpôs esses limites, como vimos ao analisar a arguição da sua nulidade. O
erro do tribunal a quo
consubstanciou-se, não em tomar uma decisão com um âmbito mais amplo que o da
sentença, mas sim em julgar verificado o incumprimento desta, por parte do
recorrente e dos requeridos Glória e Álvaro, sem fundamento válido, pelas
razões que acima referimos. Foi ao nível da fundamentação do despacho recorrido
que o tribunal a quo, além de não ter
cuidado de enunciar os factos que julgou provados com um mínimo de precisão,
tratou indistintamente as situações jurídicas que constituem a herança e
aquelas que integram a esfera jurídica de cada uma das sociedades, parecendo,
também, confundir a administração da primeira com a de cada uma das segundas.
Daí que a fundamentação de facto do despacho recorrido não sustente a decisão
de declarar que o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro não cumpriram a
sentença e de fixar um prazo de 5 dias para o fazerem e provarem tê-lo feito.
Quanto a todos estes aspectos, nada temos a acrescentar.
A propósito do exercício do direito
à informação, a recorrida tece considerações que conduzem a uma interpretação
da sentença que não encontra suporte na redacção desta. Impõe-se a refutação da
tese da recorrida, para que dúvidas não restem acerca do âmbito da sentença e, consequentemente,
de uma decisão que se pronuncie sobre o cumprimento desta. Essa tese é,
sucintamente, a seguinte: Sendo a herança titular de quotas das sociedades, a
recorrida tem, na qualidade de cabeça-de-casal provisória, o direito de exigir
informação, com suporte documental, às sociedades, nos termos previstos no CSC;
devem, assim, o recorrente e os requeridos Glória e Álvaro, sem prejuízo de
continuarem a administrar as sociedades, prestar informação, quer sobre os bens
destas, quer sobre os bens da herança.
É exacto que, sendo titular
de quotas das sociedades, a herança tem o direito de exigir, a estas,
informação sobre a sua actividade e o modo como são geridas, nos termos dos
artigos 21.º, n.º 1, al. c), e 214.º a 216.º do CSC. Na qualidade de cabeça-de-casal
provisória, a recorrida pode exercer esse direito em representação da herança,
nos termos dos artigos 2079.º e 2087.º, n.º 1, do CC, e 222.º, n.º 1, do CSC.
Porém, não foi o referido direito
à informação que a recorrida exerceu através da presente providência cautelar.
Nem tinha legitimidade para o fazer, porquanto só adquiriu a qualidade de
cabeça-de-casal provisória da herança por efeito da sentença aqui proferida. E,
se o fizesse, teria de demandar a sociedade relativamente à qual pretendesse
obter informação, pois o direito do sócio à informação tem, como sujeito
passivo, a sociedade.
Através do presente
procedimento cautelar, a recorrida visou, além da destituição da requerida Glória
do cargo de cabeça-de-casal e da designação de si própria para a substituir, a
obtenção de informação sobre os bens da herança, informação essa a prestar pelo
recorrente e pelos requeridos Glória e Álvaro, na qualidade de co-herdeiros.
Não a prestação de informação sobre a actividade das sociedades. E foi com este
âmbito que a sentença decretou a providência, como não podia deixar de ser.
Portanto, a tese da
recorrida equivale a queimar uma etapa. Pretender obter, neste procedimento
cautelar, do recorrente e dos requeridos Glória e Álvaro, informação de
natureza interna das sociedades, a que aqueles têm acesso graças aos cargos que
nestas exercem, constituiria a antecipação de um efeito que só em momento
posterior a recorrida poderá obter, seja solicitando extrajudicialmente aquela
informação às sociedades, seja, na hipótese de essa informação lhe ser recusada
ou de lhe ser prestada informação presumivelmente falsa, incompleta ou não
elucidativa, através de inquérito judicial, nos termos do artigo 216.º do CSC.
Daí que a referida tese seja de rejeitar.
Concluímos, assim, que o
despacho recorrido deverá ser revogado, procedendo o recurso.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo da recorrida.
Notifique.
*
Évora,
25.01.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
1.ª adjunta
2.º adjunto