quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2019

Processo n.º 1223/13.8TBSLV.E1

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Sumário:

1 – Não é admissível, à luz do disposto no n.º 2 do artigo 265.º do CPC, a dedução, no decurso da audiência final, de um pedido subsidiário de reconhecimento de uma servidão predial sobre uma parcela de um prédio rústico relativamente à qual o autor pedira, na petição inicial, o reconhecimento do direito de propriedade, alegadamente adquirido por usucapião, e a restituição com esse fundamento.

2 – Uma parcela de um prédio rústico com a área de 8 metros quadrados não pode ser deste destacada para constituir um prédio rústico autónomo, ainda que o autor invoque a usucapião como modo de aquisição do direito de propriedade sobre a mesma parcela.

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Relatório

ASR e MLM propuseram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra HB e FY, pedindo a condenação destes últimos a:

1 – Reconhecerem o direito de propriedade dos autores relativamente ao terreno, à casa da bomba identificada e à respectiva água subterrânea, adquirido de forma originária e por usucapião;

2 – Restituírem os autores definitivamente à posse das águas e do terreno e casinha e bomba construída com o fim de captar a água e, bem assim, o acesso ao mesmo;

3 – Absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por parte dos autores, desse mesmo terreno;

4 – Pagarem, solidariamente, aos autores, a quantia de € 20.000 como indemnização pelos prejuízos sofridos.

Os réus foram citados editalmente e não contestaram.

O Ministério Público foi citado nos termos do artigo 21.º, n.º 1, do CPC, e contestou, concluindo pela improcedência da acção.

Posteriormente, os réus juntaram aos autos procuração forense e passaram a intervir no processo, cessando assim a intervenção do Ministério Público.

Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, dividida em várias sessões.

Antes da última sessão da audiência final, os autores, invocando o disposto no artigo 265.º, n.º 2, do CPC (ampliação do pedido), requereram que, “Não sendo julgados procedentes os pedidos formulados sob os números 1) e 2) da petição inicial, deve nos termos e para os efeitos dos artigos 1543.º e 1544.º do CC então ser reconhecida a servidão de uso das águas subterrâneas a favor do prédio dos AA através de furo artesiano, já realizado, a servidão de uso da parcela de terreno de 4x4 m2, para instalação da casa da bomba, quadro eléctrico, contador, infraestruturas necessárias ao funcionamento e aproveitamento e extracção de águas do furo a favor do prédio da A.” Os réus opuseram-se a tal requerimento. Em seguida, foi proferido despacho indeferindo o mesmo requerimento, tendo o tribunal a quo entendido, além do mais, que o mesmo contém, não uma ampliação de qualquer dos pedidos formulados na petição inicial, mas sim um novo e diverso pedido, deduzido a título subsidiário.

Encerrada a audiência final, foi proferida sentença que:

A) Declarou (em face da venda mencionada no ponto 3 dos factos provados) parcialmente extinta, por inutilidade superveniente da lide, a instância, no que se reporta aos pedidos mencionados nos pontos 2 e 3 da petição inicial, nos termos do disposto na al. e) do artigo 277.º do CPC;

B) Julgou, na parte restante, a acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo os réus dos demais pedidos formulados pelos autores.

Os autores recorreram do despacho que indeferiu o requerimento que eles consideraram como sendo de ampliação do pedido, bem como da sentença, tendo formulado as seguintes alegações:

1 – Não contraria a pretensão dos autores a disciplina consagrada nos artigos 1376.º e 1379.º do Código Civil, na Lei n.º 111/2015, de 27.08, e na Portaria n.º 219/2016, de 09.08, mesmo quando tais preceitos referem que “Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno, sendo nulos os actos de fraccionamento que contrariem a referida restrição”.

2 – Com efeito, o que se pretende não é a constituição de um prédio que tenha como fim a cultura e o fraccionamento de terreno que dê origem a terreno apto para a cultura. Tão só o reconhecimento da propriedade de uma parcela de terreno cujo fim é a colocação da casinha da bomba com a área de 4x4 m e a colocação da bomba e da respectiva instalação, e não a constituição de um terreno apto para a cultura, ou o fraccionamento de terreno desse tipo ou destinada a esse fim.   

3 – Este reconhecimento é compatível com a desanexação desta área de terreno destinada à instalação da bomba, acompanhada da infraestrutura da casinha da bomba e da instalação eléctrica, independentemente de ser ou não sujeita a licenciamento nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 2, alíneas b) e c) do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16.12.

4 – O acordo celebrado entre os autores e o anterior proprietário foi de aquisição das águas subterrâneas e não somente o de servidão.

5 – Assim o alegaram os autores no artigo 13.º da petição inicial quando invocam ficarem a servir-se da água existente no subsolo como legítimos proprietários; no artigo 16.º alegam “captam a água subterrânea que adquiriram do mesmo terreno, e dela se servem”; no artigo 30.º alegam que utilizam a água que provém do prédio sempre que necessitavam como se fossem donos e por todos assim considerados; no artigo 38.º alegam que se comportam e se consideram legítimos proprietários, quer da respectiva casa que construíram na parcela quer da respectiva água que provém desse prédio e pedem o reconhecimento do direito de propriedade sobre a respectiva água.

6 – Consequentemente, os autores tinham e têm um direito pleno sobre a água subterrânea é o que salvo o devido respeito resulta da matéria provada no facto 16, e como tal deve ser reconhecido.

7 – Quanto ao facto de a reivindicação se ter tornado inútil dado o prédio ter sido alienado a terceiro e não ser já possível a restituição das coisas sobre as quais não exercem um poder de domínio, se dirá que se discorda da decisão.

8 – Nos termos do artigo 260.º do CPC, “citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”.

9 – No despacho saneador, foi julgado terem as partes legitimidade, personalidade, capacidade judiciária e estarem devidamente representadas em juízo; foi indicado o objecto do litígio e os temas de prova.

10 – Foi realizado o julgamento sem qualquer modificação ou alteração. Diz-nos o n.º 1 do artigo 263.º do CPC que “No caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por habilitação, admitido a substituí-lo.

11 – Diz-nos o seu n.º 3 que “A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, excepto no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção”.

12 – Ora, o que foi junto aos autos foi a escritura de compra e venda do prédio e não o registo.

13 – Depois, o que está em causa não é a propriedade adquirida por RF, que consta da escritura de aquisição e que os réus fizeram juntar aos autos, mas uma pequena parcela de terreno e água subterrânea.

14 – Salvo o devido respeito, a acção não estará sujeita a registo dado que foi intentada contra quem era titular inscrito.

15 – Por conseguinte, a acção não se tornou inútil, pelo efeito da venda, e pode produzir o seu efeito normal em relação ao adquirente.

16 – Por outro lado, os réus sempre seriam responsáveis por terem impedido o efeito útil da acção, que sempre deveria ter levado à condenação por litigância de má-fé.

17 – Quanto ao indeferimento da ampliação do pedido, o mesmo tem essencialmente como base o facto de se ter concluído que o pedido não é o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo e, além disso, não se ter alegado factos na petição inicial que lhe possam servir de causa de pedir.

18 – Ora e salvo o devido respeito que é muito como sempre e quanto a este último ponto, diremos que ao meritíssimo juiz a quo não assiste razão.

19 – Com efeito, estão alegados factos que servem de base ao pedido e da causa de pedir e que sustentam o pedido de servidão de uso quer da parcela de terreno quer das águas, quer do prazo para a usucapião; nomeadamente o alegado nos artigos 6.º e 7.º, existência do furo há mais de trinta anos; no artigo 13.º, quando se alega que os autores acordaram com o anterior proprietário que poderiam explorar e utilizar e ficar a servir-se da água existente no subsolo como legítimos proprietários através do furo; no artigo 16.º quando se alega, o certo é que desde 1984 que os autores utilizam e têm acesso à parcela de terreno adquirida, captam a água, que adquiriram e dela se servem. A posse está ainda demonstrada nos factos alegados em 20, 23, 25, 29 e 30, onde alegam que têm utilizado a água ao longo de trinta anos consecutivos, sem interrupções, sempre que necessitavam, como se fossem donos, o alegado em 31, 32, 34, 35, 36 e 37, onde se identificaram como proprietários do furo, alegando em 38 que sempre se comportaram e se consideraram como legítimos possuidores e proprietários, quer da casa que construíram na parcela que adquiriram no prédio dos réus, onde se encontra a respectiva bomba hidráulica, quer da respectiva água que provém desse prédio, água que captam e usaram ao longo de 30 anos consecutivos e sem oposição, para rega da respectiva horta.

20 – Os factos alegados são suficientes e não há factos novos.

21 – A causa de pedir é a mesma, actos materiais de posse sobre a parcela de terreno e sobre a água subterrânea, e a servidão de uso está contida dentro do direito de propriedade, sendo o desenvolvimento deste.

22 – O pedido formulado está numa relação de dependência ou sucedânea do primeiro.

23 – Acresce que o pedido formulado revelava-se ou podia revelar-se a solução mais adequada, podendo ser admitida pelo tribunal uma vez que se encontrava cumprido o princípio do contraditório e da igualdade de armas.

24 – Ampliação do pedido não implica o aditamento de novos factos, nem a apresentação de um articulado novo.

25 – A causa de pedir é um facto e esse facto mantém-se e continua a ser o mesmo do ponto de vista material (a posse), o que muda é a sua qualificação jurídica.

26 – A ampliação do pedido pode e deve ser admitida.

27 – Com a vedação do prédio pelos réus em Novembro de 2012, deixaram claro que os réus não queriam que os autores entrassem na sua propriedade, o que significa que não queriam que entrassem e utilizassem a casinha da bomba e a água do furo.

28 – Utilização que só veio a ser permitida pela decisão da providência a que se refere o facto 23. Ora, se deixou de ser regado, é porque lhe faltou a água, como decorre do facto de ter sido necessária a decisão da providência cautelar.

29 – O pomar secou em consequência necessária e directa da falta de rega que teve origem no facto de os réus terem cortado o acesso à casa da bomba e de modo impedindo a sua ligação e a consequente rega das árvores.

30 – Nessa medida devem os réus reparar os danos que causaram, que correspondem aos danos que foram pedidos, ou no mínimo os que resultam provados do facto 22; € 10.000 replantação de um pomar em estado novo, acrescido de € 6 por cada árvore, que sendo 700 equivale a € 4.200 num total de € 14.200, devendo ser condenados nesse valor.

31 – Fez-se incorrecta aplicação dos artigos 204.º, n.º 2, 1260.º, 1261.º, 1287.º, 1296.º, 1376.º e 1379.º do Código Civil, Lei 111/2005, de 27.08, Portaria 219/2016, de 09.08, e artigo 265.º do CPC.

Os réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

Na sequência da morte do autor ASR, foram habilitadas, como suas herdeiras, MLM e MB.

O recurso foi admitido.

Objecto do recurso

As questões a resolver são as seguintes:

1 – Admissibilidade da dedução de um pedido subsidiário de reconhecimento de uma servidão predial a título de ampliação de pedidos de reconhecimento de um direito de propriedade sobre as mesmas coisas e de restituição destas;

2 – Admissibilidade da aquisição, por usucapião, de um direito de propriedade sobre uma parcela de um prédio rústico com a área de 8 metros quadrados;

3 – Verificação dos pressupostos da aquisição, por parte dos autores, mediante usucapião, do direito de propriedade das águas subterrâneas do prédio que foi propriedade dos réus;

4 – Verificação dos pressupostos das pretensões reivindicatória e indemnizatória.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – Os prédios rústicos, sitos em (…), descritos na Conservatória do Registo Predial de (…) sobre o n.ºs 133 e 116 da freguesia do (…), concelho de (…), encontram-se registados, na sequência da sua compra, favor dos autores, pelas apresentações n.º 6 de 21/12/1984 e n.º 7 de 12/12/1984.

2 – O prédio rústico, sito em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…), sob o n.º 144, da freguesia do (…), foi registado, na sequência de compra, a favor dos réus, pela apresentação 2485, de 25.05.2010.

3 – Através de escritura pública, outorgada no dia 14 de Julho de 2016, no Cartório Notarial do Notário de (…), da Notária (…), exarada a folhas 62 e 73 verso do livro de notas para escrituras diversa n.º49, TL, na qualidade de procuradora dos réus e em sua representação, declarou vender a RF, casado sob o regime de comunhão de adquiridos com SN, o prédio mencionado em 2.

4 – Os prédios mencionados em 1 e 2 não confinam directamente entre si.

5 – No prédio mencionado em 2 existem dois furos artesianos para captação de águas subterrâneas.

6 – O furo de menor dimensão foi executado pelos autores, com anuência de XJ, à data dono do prédio mencionado em 2, sendo que o dito XJ era o utilizador do furo contíguo de maior dimensão.

7 – O referido XJ permitiu que os autores abrissem o furo artesiano mencionado em 6 com vista à exploração e utilização, no cultivo do seu prédio, da água subterrânea que viesse a detectada.

8 – De acordo com o acordado verbalmente e caso o furo tivesse água, XJ venderia ainda ao autor marido uma parcela de terreno com área de 8 metros quadrados, na qual se localizava o furo já aberto e onde seria instalada a casinha da bomba, comprometendo-se o autor marido a pagar, a título de contrapartida, ao dito XJ, o montante inicial de 100.000$00 (€ 498,79), que depois viria a ser aumentado para 200.000$00 (€ 997,59).

9 – Do referido montante foi liquidada a quantia de 100.000$00 (€ 498,79), ficando o pagamento do restante valor, que acresceu ao inicialmente acordado, dependente da outorga da escritura pública, o que nunca viria a suceder.

10 – Na parcela de terreno mencionada em 8, para além do furo mencionado em 6, os autores construíram um pequeno edifício em alvenaria para resguardo da bomba eléctrica que ali instalaram para captação da água, tendo ainda promovido a competente colocação, instalação e ligação da infraestrutura eléctrica necessária ao funcionamento da extracção de água.

11 – A bomba foi adquirida em data não concretamente apurada do ano de 1985 pelo montante de € 545.500$00 (€ 2.716,36).

12 – Os autores colocaram ainda, à vista de todos, tubos para direccionar e transportar a água para o seu prédio.

13 – Requisitaram à EDP o fornecimento de electricidade, tendo sido colocados postes e procedido ao pagamento das respectivas taxas.

14 – Nos prédios mencionados em 1, os autores implementaram, após a sua compra, dois pomares, constituído maioritariamente por laranjeiras.

15 – Em 2012, os autores promoveram a reparação da tubagem necessária à condução da água até ao seu prédio.

16 – Pelo menos desde 1985 que os autores vinham utilizando o furo, a água subterrânea extraída através do mesmo e bem a casinha da bomba e, consequentemente, o solo onde ambas as construções se acham erigidas, sem oposição de quem quer que fosse e à vista de todos e na convicção que a fracção de terreno sobre a qual edificaram lhes pertencia.

17 – No decurso do mês de Novembro de 2012, o réu procedeu à vedação, junto à via pública, do prédio mencionado em 2, deixando aberturas laterais na parte poente e nascente que permitiam o acesso ao seu interior.

18 – O pomar dos autores ocupa uma área total de cerca de 1,5 ha, sendo composto por cerca de 700 árvores de diversas variedades e dimensões, embora com predomínio da laranja Dalmau e da clementina Fina.

19 – O pomar dos autores, por ser composto maioritariamente por árvores, com idade superior a 25 anos, pode ser considerado um pomar em fim de vida, cuja produtividade dificilmente superaria as 20 toneladas ano.

20 – O valor médio da venda dos citrinos na campanha de 2016/2017, fixou-se em 0,70 kg.

21 – Em data não concretamente apurada o pomar deixou, por motivos não concretamente apurados, de ser regado, o que conduziu ao seu total declínio.

22 – A replantação do pomar, no estado de novo, teria um custo estimado de € 10.000 (dez mil euros), fixando o preço unitário de cada árvore em cerca de € 4 a € 6, acrescido de IVA, à taxa de 6%.

23 – Na sequência de instauração, em 13.08.2013, de procedimento cautelar de restituição provisória da posse, que se encontra apenso a estes autos, foi, por decisão datada de 11.10.2013, ordenada a imediata restituição da posse aos ora autores da parcela de tereno que compunha o prédio descrito em 2, da casa em tijolo, furo e bomba da água, condenam-se os requeridos a abster da prática de quaisquer impeditivos e ou condicionadores do exercício da posse da posse dos requerentes sobre os referidos bens e do aproveitamento da água extraída.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

1) Que em Novembro de 2012 os autores tenham sido abordados pelos réus e que estes lhes tenham dito que a casa da bomba e água que usavam não lhes pertenciam, proibindo-os de utilizar e de ter acesso à água e de entrar no seu prédio e bem assim de aceder à casa da bomba.

2) Que pouco tempo depois os réus tenham procedido à vedação de toda a propriedade vedando assim o acesso dos proponentes à casa da bomba e ao furo.

3) Que os réus tenham fechado ou desviado o acesso da água e que tenham usado a bomba e consumida água à custa dos autores.

4) Que desde 2012 os autores tenham ficado impedidos de extrair água e de regar as árvores de fruta e a horta, por ser de todo inacessível o acesso ao terreno dos réus e à casa da bomba.

5) Que os autores, por via da vedação do prédio dos réus, tenham ficado impedidos de regar as suas plantas e árvores de fruto, o que fez com que as árvores secassem.

6) Que o rendimento de cada árvore fosse de € 100 (cem euros) à época.

7) Que os autores, em face do comportamento dos réus e por verem a sua horta secar depois de tantos anos de trabalho, tenham andado nervosos, sem dormir, angustiados.

Fundamentação

1.ª questão:

O artigo 260.º do CPC consagra o princípio da estabilidade da instância, de acordo com o qual, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.

O artigo 264.º do CPC estabelece que, havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito.

No caso dos autos, inexiste acordo das partes no sentido da admissão do pedido formulado pelos recorrentes na fase da audiência final, pelo que é aplicável o regime estabelecido no n.º 2 do artigo 265.º, n.º 2 do CPC, segundo o qual, na parte que agora nos interessa, o autor pode, em qualquer altura, ampliar o pedido até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.  

A dedução de um pedido de reconhecimento de uma servidão predial sobre os bens em disputa nestes autos não constitui, sequer, uma ampliação dos pedidos de reconhecimento do direito de propriedade e de restituição dos mesmos bens. Trata-se, antes, de um pedido autónomo, formulado a título subsidiário e de natureza diversa dos inicialmente formulados uma vez que visa o reconhecimento de um direito real diferente daquele que foi invocado na petição inicial, ainda que alegadamente adquirido pela mesma via, ou seja, por usucapião. Portanto, nem sequer se coloca a questão de saber se estamos perante uma ampliação/desenvolvimento ou uma ampliação/ consequência. Pura e simplesmente, não há uma ampliação de qualquer pedido, mas sim uma dedução, a título subsidiário, de um pedido novo de natureza diversa dos formulados na petição inicial, dedução essa que, em face das normas acima citadas e sem necessidade de outros considerandos, tem de ser considerada legalmente inadmissível.

Decorre do exposto que o tribunal a quo decidiu bem ao julgar, através do despacho recorrido, inadmissível a dedução do referido pedido subsidiário.

2.ª questão:

Coloca-se, em seguida, a questão de saber se é legalmente admissível a aquisição, por usucapião, de um direito de propriedade sobre uma parcela de um prédio rústico com a área de 8 metros quadrados.

O tribunal a quo respondeu negativamente a esta questão com base em dois argumentos. O primeiro é o de que “tais dimensões não são próprias de uma realidade que possamos qualificar sequer como prédio”. O segundo é o de que a criação de um prédio rústico com uma área de apenas 8 metros quadrados é impedida pelas normas que proíbem o fraccionamento de prédios rústicos de forma a que daí resultem novos prédios com área inferior à unidade de cultura, a saber, artigos 1376.º e 1379.º do Código Civil, Lei n.º 111/2015, de 27.08, e Portaria n.º 219/2016, de 09.08.

Não acompanhamos o segundo dos argumentos enunciados. A jurisprudência, nomeadamente a do Supremo Tribunal de Justiça, tem sido quase unânime no sentido da admissibilidade de aquisição, através de usucapião, do direito de propriedade sobre parcelas de prédios rústicos com área inferior à unidade de cultura, com a consequente transformação das mesmas em prédios rústicos autónomos. Veja-se, neste sentido, a título exemplificativo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 01.03.2018 (processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S2 – Rosa Tching), 12.07.2018 (processo n.º 7601/16.3T8STB.E1.S1 – Fonseca Ramos), 28.03.2019 (processo n.º 7604/16.8T8STB.E1.S1 – Bernardo Domingos) e 18.06.2019 (processo n.º 1786/17.9T8STB.E1.S1 – Graça Amaral). Remetemos para a argumentação constante destes arestos, que sufragamos.

O verdadeiro obstáculo à viabilidade da pretensão dos autores de adquirirem por usucapião um direito de propriedade sobre uma parcela de um prédio rústico alheio com apenas 8 metros quadrados, com o consequente destaque da mesma parcela para dar origem a um novo e autónomo prédio rústico, é o primeiramente referido na sentença recorrida.

Em teoria, a crosta terrestre pode ser dividida em áreas ínfimas. Contudo, não pode considerar-se que o Direito acolhe no conceito de prédio rústico toda e qualquer área em que se pretenda operar aquela divisão, sob pena de se abrir as portas à anarquia fundiária, geradora de intermináveis conflitos, e ao não aproveitamento da terra. Ao invés, deve entender-se que apenas pode ser incluída no conceito de prédio rústico uma parcela de terreno que seja susceptível de exploração autónoma, com um mínimo de viabilidade económica, por muito incipiente que esta seja. Ainda que, a título excepcional, essa parcela tenha uma área inferior à unidade de cultura, sublinhe-se. Tenha-se em mente que o Direito tem como finalidade garantir a ordem social e o aproveitamento económico dos bens e não promover situações de anarquia, conflito e desperdício. É a esta luz que deve ser interpretado o artigo 204.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil.

Este entendimento é confirmado pelo artigo 209.º do Código Civil, que classifica como divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam. Esta norma demonstra a preocupação do legislador em evitar fraccionamentos, nomeadamente de prédios rústicos, que tenham como resultado novas realidades completamente descaracterizadas face à natureza que possuem enquanto parte de algo maior ou destituídas de valor e/ou utilidade.

Ora, a divisão de um prédio rústico de forma a dele destacar uma parcela com uma área exígua como é a de 8 metros quadrados inviabiliza o uso autónomo desta última como prédio da mesma natureza. Note-se, aliás, que, no caso dos autos, os recorrentes nunca fizeram um uso autónomo da parcela cujo destaque pretendem com vista à aquisição do direito de propriedade sobre ela mediante usucapião. Nem podiam, pois tal não é fisicamente possível. A utilização dessa parcela sempre foi instrumental da exploração económica do prédio rústico dos autores, como resulta dos n.ºs 6, 7, 12, 14 e 15 dos factos provados. Concretamente, a parcela em questão sempre foi utilizada pelos autores exclusivamente para a captação de água subterrânea destinada à rega de culturas que efectuavam no seu próprio prédio.

Consequentemente, a divisão do prédio que foi dos réus para que os autores adquiram, por usucapião, um direito de propriedade sobre uma parcela com apenas 8 metros quadrados, parcela essa que teria de constituir um prédio autónomo atento o conteúdo do n.º 4 dos factos provados, é juridicamente impossível. Repetimos, uma parcela de terreno com a referida área é, por natureza, inidónea para constituir um prédio rústico. Daí que, não obstante o conteúdo do n.º 16 dos factos provados, não possa verificar-se a aquisição de um direito de propriedade sobre a mesma parcela mediante usucapião. A posse exercida pelos autores desde, pelo menos, 1985, não recaiu sobre objecto idóneo de um direito de propriedade autónomo, que pudesse ser adquirido por usucapião.

Flui do exposto que o pedido de reconhecimento de um direito de propriedade dos autores sobre a parcela em questão e as construções que os mesmos nela realizaram tinha de ser, como efectivamente foi, julgado improcedente. A sentença recorrida não merece, pois, censura neste aspecto.

3.ª questão:

Os autores/recorrentes consideram que o conteúdo do n.º 16 da matéria de facto provada é suficiente para concluir que eles adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade da água subterrânea do prédio que foi propriedade dos réus/recorridos.

É, porém, manifesta a sua falta de razão. Ficou provado que, no prédio que foi dos réus, existem dois furos artesianos para captação de água subterrânea (n.º 5); o furo de menor dimensão foi executado pelos autores, sendo o então proprietário do mesmo prédio o utilizador do furo de maior dimensão (n.º 6). Ou seja, os autores nunca foram os utilizadores exclusivos da água existente no subsolo do prédio em causa. Sintomaticamente, no n.º 16, o tribunal a quo julgou provado que os autores actuaram nos termos aí descritos com a convicção de que a fracção de terreno sobre a qual edificaram lhes pertencia, mas não que idêntica convicção tenha existido relativamente à água subterrânea. Inexistiu, assim, quer o corpus, quer o animus da posse, nos termos do direito de propriedade, por parte dos autores, relativamente à referida água. Logo, inexiste fundamento para a aquisição, por estes, do direito de propriedade sobre a mesma através de usucapião.

4.ª questão:

Resta analisar se se verificaram os pressupostos das pretensões reivindicatória e indemnizatória.

O tribunal a quo declarou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, relativamente aos pedidos de condenação dos réus a restituírem os autores definitivamente à posse da água e do terreno e casinha e bomba construída com o fim de captar a água e, bem assim, o acesso ao mesmo, e a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por parte dos autores, desse mesmo terreno.

Neste ponto, o tribunal a quo não decidiu bem, pois, atento o disposto no n.º 1 do artigo 263.º do CPC, a venda mencionada no n.º 3 dos factos provados não determinou a inutilidade superveniente da lide. A solução correcta é a improcedência dos pedidos em causa, como consequência lógica da falta de reconhecimento do direito de propriedade invocado pelos autores como seu pressuposto. Concluindo-se, como se concluiu, que os autores não adquiriram o direito de propriedade nos termos enunciados no seu primeiro pedido, logicamente improcedem os segundo e terceiro pedidos, que consubstanciam a pretensão reivindicatória fundada na titularidade daquele pretenso direito.

A improcedência do primeiro pedido dos autores também determina, por si só, a da pretensão indemnizatória. O n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil estabelece que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Ora, não tendo os autores demonstrado, sequer, a titularidade do direito de propriedade que invocaram nesta acção e que teria sido violado pelos réus, necessariamente improcede a sua pretensão indemnizatória. Acresce que, tal como se considerou na sentença recorrida, também não se provou a actuação dos réus que os autores consideram ser ilícita.

Decisão

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando inteiramente o despacho recorrido e, alterando a sentença recorrida nos termos acima expostos, julgando a acção totalmente improcedente.

Custas pelos recorrentes.

Notifique.

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Évora, 12 de Setembro de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta

 

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 376/23.1T8TMR.E1 * Sumário: 1 – O regime estabelecido no artigo 1406.º, n.º 1, do Código Civil, é aplicável, ex vi artig...