Processo n.º 3869/13.5TBSTB.E1
*
Sumário:
1 – É
admissível a prestação de declarações de parte até ao início das alegações orais
em 1.ª instância, a tal não obstando a circunstância de o declarante ter
assistido à prestação dos depoimentos de todas as testemunhas e peritos antes
de depor, circunstância essa que, porém, deve relevar em sede de valoração das
declarações pelo julgador.
2 – A
introdução da categoria do dano biológico no domínio da responsabilidade civil
extraobrigacional não trouxe vantagens relevantes, pois, ao contrário do que
acontece no Direito Italiano, de onde foi importada, o regime da
responsabilidade civil extraobrigacional constante do nosso Código Civil, ao
consagrar amplamente a indemnizabilidade, quer do dano patrimonial, nas suas
diversas vertentes, quer do dano não patrimonial, proporciona soluções
adequadas à necessidade de ressarcimento da lesão de bens que é reclamada pelas
novas exigências de tutela da personalidade.
3 –
Sendo o dano biológico um dano-evento ou dano real, não pode ser considerado
como uma categoria jurídica situada no mesmo plano dos danos patrimoniais e dos
danos não patrimoniais, que se reportam aos danos-consequência.
4 – O
montante da indemnização por danos não patrimoniais graves pode ultrapassar os
valores habitualmente fixados para a indemnização do dano morte.
5 – A
perda, total ou parcial, de capacidade para o trabalho, constitui, em si mesma,
um dano patrimonial futuro e, como tal, indemnizável, independentemente da
circunstância de, à data da lesão, o lesado exercer, ou não, uma actividade
geradora de rendimento, por conta própria ou alheia.
6 –
Actualmente, dada a inexistência, no sistema bancário, de produtos financeiros
sem risco associado cujas taxas de juro proporcionem rendimento líquido, não há
fundamento para considerar que a antecipação do pagamento da indemnização
correspondente ao dano futuro relativamente à produção deste proporciona algum
benefício ao lesado, nem, logicamente, para a dedução de qualquer parcela da
indemnização a esse título.
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Relatório
Clara propôs
a presente acção declarativa comum contra Companhia de Seguros, SA, pedindo a
condenação desta nos seguintes pedidos:
A) Tudo
o que for médica e cientificamente adequado para que a autora retome a sua vida
e estado de saúde anterior ao acidente de viação dos autos, por forma a ser
reconstituída à situação anterior, incluindo, designadamente, todos os
tratamentos, internamentos, operações, aparelhos, calçado, peças, artefactos,
instrumentos, próteses, materiais e mão-de-obra, tudo por livre escolha da
autora, designadamente hospitais, médicos e enfermeiros, devendo a ré ser
condenada a pagar todos os valores no prazo máximo de 10 dias após a
apresentação da factura de terceiro ou recibo;
B) Indemnização
correspondente aos danos não patrimoniais já sofridos, no valor de € 85.000;
C) A quantia
adequada para ressarcir os danos não patrimoniais futuros que irá sofrer,
advenientes dos tratamentos, internamentos, dores, afastamento da família e
demais consequências do pedido formulada na alínea a), compensar as limitações
definitivas que irão resultar do final de todos os actos médicos e outros que
venham a ser praticados para reconstituição da situação anterior da autora, em
valor a liquidar em execução de sentença;
D)
Indemnização por ter perdido a capacidade de ganho para o desempenho de
qualquer profissão, a qual a autora ainda poderia, se não tivesse ocorrido o
acidente, vir a desempenhar no futuro, quer na vertente não patrimonial, no
valor de € 15.000, quer na vertente patrimonial, no valor de € 60.000;
E) A
quantia de € 334,24 de despesas em tratamentos, deslocações, taxas e outras
emergentes do acidente;
F) As
despesas congéneres às da alínea e) que ainda se venham a dar no futuro ou que,
passadas, ainda venham a determinar-se;
G) O
valor de 90 pares de sapatos e 30 pares de botas que, por serem de salto alto,
a autora não mais vai poder usar por causa do acidente, no valor de € 9.000;
H) O
valor das roupas, sapatos e adereços que trazia no momento do acidente e que
foram destruídos, no valor de € 770;
I) A
quantia de € 9.200 de serviços domésticos a que teve de recorrer por causa do
acidente, bem como todos, domésticos ou outros, de que vier a necessitar até ao
final da sua vida.
A ré contestou, aceitando a responsabilidade pelo
ressarcimento dos danos resultantes do acidente, mas impugnando os danos
alegados pela autora e a sua avaliação, concluindo pela fixação de uma
indemnização de valor inferior ao peticionado.
Findos os articulados, foi realizada a audiência
prévia, sendo proferido despacho saneador, seguido da identificação do objecto
do litígio e dos temas de prova.
A autora ampliou o pedido no valor de € 63.143,54,
para ressarcimento do dano biológico que lhe foi e ainda vai ser provocado pelo
acidente dos autos, ampliação essa admitida.
Realizou-se a audiência final, na sequência da qual
foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou
a ré a pagar à autora:
A) A quantia de € 60.000 por danos não patrimoniais;
B) A quantia de € 80.000 pelo dano biológico;
C) A quantia de € 30.000 por danos patrimoniais com a
contratação de terceira pessoa;
D) A quantia de € 609,29 por danos patrimoniais (sendo
€ 300 pela roupa inutilizada e € 309,29 por despesas de deslocações, médicas e
medicamentosas e taxas moderadoras);
E) O que se vier a apurar em ulterior incidente de
liquidação, no que respeita às despesas futuras decorrentes de deslocações,
consultas de ortopedia, fisiatria e psiquiatria, despesas médicas e
medicamentosas, tratamentos de fisioterapia, que se revelarem necessários,
sempre mediante apreciação clínica de tal necessidade;
F) O que se vier a apurar em ulterior incidente de
liquidação, no que respeita às despesas de adaptação do calçado, com uma
palmilha compensadora.
A
ré recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:
1 – O
presente recurso vem da decisão proferida nos autos que julgou a presente acção
parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré ao pagamento da
quantia de € 170.609,29, acrescida de montantes a apurar em incidente de
liquidação;
2 – A recorrente
impugna a fundamentação e a decisão da matéria de facto proferida, nos termos
do disposto no art. 640.º do CPC;
3 – A decisão
enferma das nulidades previstas no art. 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do CPC, porque
há contradição entre pontos da matéria de facto provada, que motivam oposição com
a decisão e a juiz a quo conheceu de
questões de que não podia tomar conhecimento;
4 –
Houve erro de julgamento;
5 –
Houve erro na apreciação da prova, porque o tribunal a quo considerou provados certos factos sobre os quais não foi
feita prova cabal e necessária;
6 – A
fundamentação da decisão de facto de que se recorre não é apoiada pela prova produzida;
7 – A decisão
violou os artigos 414.º, 466.º, 607.º, n.º 5, e 609.º do Cód. Processo Civil e
os artigos 342.º e 396.º do Cód. Civil;
8 – A decisão
violou os artigos 494.º, 496.º, 562.º, 564.º e 566.º, n.ºs 2 e 3, do Cód.
Civil;
9 – A
fundamentação do tribunal a quo sobre
os factos provados com os n.ºs 37 a 60 teve na sua base as declarações de parte
que a recorrida prestou no dia 02/03/2017 no âmbito do artigo 466.º do CPC e o
Tribunal a quo consentiu que estas
declarações fossem prestadas de forma ilegal;
10 – O
seu depoimento não foi espontâneo e ainda contribuiu para o vício da fundamentação
da matéria de facto relativa aos pontos 54 e 60 dos factos assentes, porque a recorrida
não peticionou quantia relativa a adaptação do calçado, mas sim quantia
correspondente às despesas com aquisição de uma palmilha;
11 –
Devia ter sido tomado em consideração o depoimento do Senhor Dr. João Oliveira que,
além de concluir que não é de perspectivar a necessidade de nova intervenção cirúrgica
para recuperação das lesões, defendeu que a pontuação arbitrada no relatório pericial
foi excessiva;
12 –
Houve sobrevalorização da incapacidade, porque em vez de atribuir pontuação
pelo código Mf 1305 no máximo da pontuação da TAIPDC (Anexo II ao DL 352/2007
de 23/10), devia ter sido atribuído pelo código Mf 1307 respeitante a
consolidação viciosa, cuja pontuação situa-se entre 4 a 8 pontos;
13 – O
ponto 31 deverá passar a ter a seguinte redacção: O Défice Funcional Permanente
da Integridade Físico-Psíquica, foi fixado em 31 pontos, mas deve ser actualizado
na presente data para 8 pontos por existir consolidação viciosa da fractura (Mf
1307 da TAIPDC (Anexo II ao DL 352/2007 de 23/10);
14 – O
tribunal a quo mistura diferentes
conceitos e reproduz a mesma fundamentação sobre diferentes questões, para
arbitrar diferentes indemnizações sobre os mesmos factos. Esta orientação
conduz a uma duplicação de indemnizações sobre as mesmas lesões e sequelas;
15 –
Sem prejuízo da denunciada duplicação de valores, os montantes arbitrados a
título de danos não patrimoniais são, por si só, excessivos e por isso vão
impugnados;
16 –
Ao contrário do sentido atribuído na sentença recorrida, a indemnização de € 60.000
a título de danos não patrimoniais não é adequada, não é proporcional, não é
justa, não respeita a previsibilidade, não assegura a ideia de segurança, mas
sim a ideia que o sinistrado será premiado com quantias que não seguem outras decisões
e haverá sempre a tendência para inflacionar o valor final;
17 –
Por violar o disposto nos artigos 496.º, n.º 4, 494.º e 566.º, n.º 3, do CC, e
porque houve erro de julgamento, vai impugnada a condenação no pagamento da
identificada quantia;
18 –
Deve ser revogada a quantia arbitrada a título de dano não patrimonial porque
os pressupostos usados na decisão a quo
estão errados, e substituída por outra fixando o montante de € 40.000, que se
apresenta mais adequado, justo, respeita a equidade e os danos que devem ser
tutelados pelo Direito;
19 – A
incapacidade da recorrente não teve qualquer reflexo na actividade profissional
nem na sua capacidade de ganho, porque não trabalhava e nunca desempenhou qualquer
actividade remunerada;
20 –
Para sustentar o direito a suposta indemnização a título de dano biológico, o tribunal
a quo reproduz as mesmas
consequências e as mesmas lesões sofridas pela recorrida que já tinha usado
para sustentar indemnização a título de danos não patrimoniais;
21 – A
indemnização a título de danos não patrimoniais, já incluiu a indemnização por perda
de capacidade de ganho (que no caso não existe), pela incapacidade permanente e
pelo dano biológico;
22 –
Face a esta circunstância, afigura-se que estamos perante a duplicação de
valores, a decisão enferma de nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d),
do CPC porque a juiz a quo conheceu
de questões de que não podia tomar conhecimento;
23 –
Deve ser revogada a decisão na parte que condena a recorrente a pagar a quantia
arbitrada a título de dano biológico, e substituída por outra que a absolva do
pagamento;
24 – O
valor atribuído pelo tribunal a quo a
título de dano biológico seria sempre excessivo, não procedeu ao necessário
desconto de 1/3 de modo a evitar vantagem patrimoniais ilícitas da sinistrada e
não respeitou a equidade;
25 –
Tudo isto, com violação dos artigos 494.º, 496.º, 562.º, 564.º e 566.º, n.ºs 2
e 3, do Cód. Civil;
26 –
Como a recorrida formulou pedido genérico para obter a condenação em indemnização
fixa, tinha que proceder previamente à liquidação. É isso que resulta do n.º 2
do artigo 556.º CPC, e que também foi violado. O que não pode é formular-se, simplesmente,
um pedido genérico. Se assim fosse, formular-se-ia um pedido genérico e depois
o tribunal poderia condenar em qualquer valor, o que não é permitido pelo
artigo 609.º do CPC;
27 –
Não obstante, o tribunal a quo
arbitrou indemnização a propósito da invocada necessidade de terceira pessoa
que é exorbitante, que não demonstra de que forma efectuou desconto de 1/3
porque afigura-se que essa operação não foi concretizada, nem o especial
abatimento decorrente da necessidade de contratar serviços quando as pessoas
atingem certa idade;
28 –
Face à falta de prova, por violação do artigo 342.º do Cód. Civil e do artigo
414.º do C.P.C., deve ser revogada a decisão na parte que condena a recorrente
a pagar a quantia arbitrada a título de dano futuro com contratação de terceira
pessoa, e substituída por outra que a absolva do pagamento;
29 – Face
à falta de prova, por violação do artigo 342.º do Cód. Civil e do artigo 414.º
do C.P.C., deve ser revogada a decisão na parte que condena a recorrente a
pagar a quantia que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação no que
respeita a despesas futuras com deslocações, consultas de ortopedia, fisiatria
e psiquiatria, despesas médicas e medicamentosas, constantes da alínea e) da decisão;
30 –
Em função da impugnação dos factos, os pontos 54 e 60 da fundamentação de facto
deverão ser declarados não provados pelo tribunal ad quem por força da violação dos artigos 342.º do CC e 414.º e 607.º,
n.º 5, do CPC;
31 –
Em caso de entendimento diferente, por não ter sido pedida, por corresponder a condenação
em quantidade superior e em objecto diverso do se pediu, perante a violação do artigo
609.º, n.º 1, do CPC, deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente
do pagamento do que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação no que
respeita às despesas de adaptação do calçado com palmilha compensadora,
previstas na al. f) da decisão.
A
autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O
recurso foi admitido.
Objecto
do recurso
É entendimento uniforme que é pelas
conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste último e se
delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4,
e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso
se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi
artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo
o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
As questões a resolver são as seguintes:
1 – Nulidade da sentença;
2 – Admissibilidade da prestação de
declarações de parte pela recorrida;
3 – Impugnação da decisão sobre a
matéria de facto;
4 – Qualificação dos danos sofridos pela
recorrida;
5 – Determinação e avaliação dos danos não patrimoniais;
6 – Determinação e avaliação dos danos patrimoniais.
Factualidade
apurada
Na sentença recorrida, foram julgados provados
os seguintes factos:
1 – No dia 19 de Julho de 2010, pelas
9.35 horas, na Estrada Nacional n.º 10, ao Km 44.600, no sentido de marcha
Pontes/Setúbal, ocorreu uma colisão.
2 – Na referida colisão foram
intervenientes o veículo automóvel de matrícula QS-xx-xx, conduzido pela
autora, e o veículo automóvel de matrícula xx-xx-EU, conduzido por Jorge.
3 – Tal colisão foi provocada pelo
condutor do veículo automóvel de matrícula matricula xx-xx-EU, o qual saiu da
sua hemi-faixa de rodagem, invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária e foi
embater no veículo QS-xx-xx.
4 – À data do acidente, encontrava-se
transferida para a ré seguradora a responsabilidade civil decorrente de
acidentes de viação provocados pelo veículo de matrícula xx-xx-EU, através de
contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…).
5 – Após o sinistro, a autora foi
conduzida aos serviços de urgência do Hospital de S. Bernardo de Setúbal, onde
lhe foi prestada assistência médica e medicamentosa.
6 – Em face da gravidade das lesões, a autora
foi, nesse mesmo dia, submetida a uma intervenção cirúrgica ao abdómen, tenho
sido efectuada laparotomia, com redução de hérnia diafragmática traumática, por
contusão pulmonar e hemotórax.
7 – Esteve internada durante duas
semanas na Unidade de Cuidados Intensivos.
8 – No dia 23 de Julho de 2010, foi
submetida a nova intervenção cirúrgica para encavilhamento do fémur e redução
de fractura com fixador externo.
9 – Esteve com drenagem torácica durante
8 dias.
10 – Sofreu pequeno derrame pleural à
esquerda.
11 – Em consequência directa da colisão,
a autora sofreu as seguintes lesões: trauma toráco-abdominal com hemotórax e
hérnia diafragmática; fractura segmentar do fémur esquerdo, transtrocantérica e
diafisiária; fractura do pé esquerdo; fractura do maxilar esquerdo com perda de
3 peças dentárias; traumatismo crânio-encefálico com perda de consciência.
12 – No dia 3 de Agosto de 2010, após
estabilização clínica, foi transferida para o Hospital Ortopédico do Outão,
onde permaneceu internada por um período de 6 semanas.
13 – No dia 10 de Agosto de 2010, no
Hospital Ortopédico do Outão, foi submetida a outra intervenção cirúrgica para
remoção do fixador externo e osteossíntese do escafóide társico esquerdo com
placa em ponte e parafusos.
14 – Posteriormente, foi transferida
para o Hospital CUF de Belém.
15 – No mês de Fevereiro de 2011, já no
Hospital CUF de Belém, foi submetida a uma intervenção cirúrgica por se terem
partido os parafusos que haviam sido colocados.
16 – Nessa altura, os médicos
aproveitaram para remover a placa de osteossíntese do pé esquerdo.
17 – No mês de Junho de 2011, foi
submetida a uma quinta intervenção cirúrgica por apresentar atraso na
consolidação da fractura da diáfise do fémur, tendo sido colocado enxerto,
cerclages e factores de crescimento no foco fracturário.
18 – A autora manteve tratamento de
recuperação fisiátrica, em sessões diárias, por um período de 2 anos.
19 – Após a alta hospitalar, manteve
seguimento nos serviços clínicos da ré Companhia de Seguros, onde foi assistida
e tratada e continuou em consultas periódicas.
20 – A data da consolidação médico-legal
das lesões sofridas pela autora em resultado do acidente foi fixada em
19/07/2012.
21 – Em avaliação médico-legal do dano
corporal, realizado no dia 9/12/2015, resulta que a autora apresenta marcha
claudicante, sem recurso a ajudas técnicas.
22 – A autora, em consequência das
lesões, apresenta as seguintes sequelas:
- Abdómen: Cicatriz de ferida cirúrgica,
mediana, vertical, com 20 cm de comprimento, hiperpigmentada, visível;
- Membro inferior direito: Região da
crista ilíaca superior com cicatriz de ferida cirúrgica, horizontal, com 6 cm
de comprimento, hipopigmentada, visível;
- Perímetro da coxa direita: 55 cm;
- Perímetro do tornozelo: 26 cm;
- Membro inferior esquerdo: Perímetro da
coxa esquerda: 58 cm;
- Região trocantérica com cicatriz
vertical, com 7 cm de comprimento, de ferida cirúrgica, horizontal,
hipopigmentada, visível;
- Terço médio da face lateral externa da
coxa, com cicatriz linear com 4 cm de comprimento, vertical, hipopigmentada,
visível;
- Terço inferior da face lateral interna
da coxa esquerda com cicatriz vertical com 13 cm de comprimento, de ferida
cirúrgica, horizontal, hipopigmentada, visível;
- Terço inferior da face lateral externa
da coxa esquerda com cicatriz, de ferida cirúrgica, com 3 cm de comprimento;
- Terço inferior da face lateral interna
da coxa esquerda com cicatriz de ferida cirúrgica, com 6 cm de comprimento,
visível;
- Rigidez da coxo-femoral na abdução e
rotação externa a 30°;
- Perímetro do tornozelo: 25 cm;
- Face interna do pé com cicatriz de
ferida cirúrgica, oblíqua para a frente e para baixo, com 6 cm de comprimento,
linear, visível; Com alterações tróficas hiperpigmentadas na sua periferia;
- Face interna da perna esquerda, terço
inferior, com 3 vestígios cicatriciais, hiperpigmentados;
- Rigidez do tornozelo com 20° de
dorsiflexão e de 35° na flexão plantar; Anquilose do pé;
- Membro em rotação externa, com
encurtamento.
23 – O Défice Funcional Temporário Total
(correspondente ao período de internamento e/ou de repouso absoluto) foi fixado
em 347 dias.
24 – O Défice Funcional Temporário
Parcial (correspondente ao período que se iniciou logo que a evolução das
lesões passou a consentir algum grau de autonomia, ainda que com limitações)
foi fixado em 385 dias.
25 – A Repercussão Temporária na
Actividade Doméstica (correspondente ao período em que a vítima, em virtude do
processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu
condicionada a sua autonomia na realização dos autos inerentes à sua actividade
doméstica habitual) foi fixada em 732 dias.
26 – A autora sofreu dores, sendo o quantum doloris fixável no grau 5 numa
escala de 7 graus de gravidade crescente.
27 – Em termos de repercussão permanente
nas actividades desportivas e de lazer, o dano foi fixável no grau 3 numa
escala de 7 graus de gravidade crescente.
28
– O dano estético permanente fixável no grau 4 numa escala de 7 graus de
gravidade crescente devido à claudicação da marcha e às cicatrizes visíveis.
29 – Em termos de repercussão permanente
na actividade sexual, o dano foi fixável no grau 3 numa escala de 7 graus de
gravidade crescente, atendendo à limitação da anca e membro inferior esquerdo,
com limitações no posicionamento.
30 – A autora apresenta humor deprimido,
elevados níveis de ansiedade e tristeza, choro fácil, insegurança, ideação
suicida, pesadelos, medo, pânico, anedonia, esquecimentos, baixa autoestima,
tendência para o isolamento, vergonha do seu corpo, afectação da sua própria
imagem quer para si quer perante os outros, quadro caracterizado por sintomas
depressivo de perturbação crónica de stress pós traumático.
31 – O Défice Funcional Permanente da
Integridade Físico-Psíquica fixável em 31 pontos, considerando o valor global
da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas serem causa de
limitações funcionais importantes com repercussões na independência da autora.
32 – As sequelas descritas, em termos de
Repercussão Permanente na Actividade Doméstica, são impeditivas do exercício da
actividade doméstica.
33 – A patologia sequelar decorrente das
lesões que ficou a padecer necessita, no futuro, de supervisão clínica de modo
a assegurar a qualidade de vida da autora e para evitar um retrocesso ou
agravamento das sequelas.
34 – Essa patologia sequelar implica as
seguintes dependências permanentes de ajudas:
a) Ajudas medicamentosas (correspondem à
necessidade permanente de recurso a medicação regular – ex: analgésicos,
antiespasmódicos ou antiepilépticos, sem a qual a vitima não conseguirá
ultrapassar as suas dificuldades em termos de termos funcionais e nas situações
da vida diária). Neste caso, terapêutica medica analgésica regular.
b) Tratamentos médicos regulares
(correspondem à necessidade permanente de recurso a tratamentos médicos para
evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas – ex: fisioterapia). Neste
caso, vigilância em Ortopedia, Fisiatria e Psiquiatria.
35 – Após o acidente, a autora e devido
ao forte abalo psíquico de que acometida, careceu de acompanhamento e medicação
do foro psiquiátrico.
36 – A autora esteve sem força no membro
esquerdo e sem possibilidade de se mexer.
37 – A autora teve dores na altura do
acidente, no período pós-operatório e durante os tratamentos a que foi sujeita.
38 – A autora sofre e continuará a
sofrer dores físicas.
39 - A autora tropeça e perde com
facilidade o equilíbrio.
40 – A autora não consegue permanecer
muito tempo em pé.
41 – A autora deixou de se sentir
atraente e bonita.
42 – Sente desgosto em consequência das
diversas cicatrizes e mazelas no corpo.
43 – Tais cicatrizes e mazelas que
ostenta são geradores de um sentimento de vergonha e complexo em expor-se em
público e mesmo na intimidade.
44 – Por causa disso, deixou de ir à
praia.
45 – A autora saía com o marido e com
amigos para conviver e divertir-se, o que deixou de fazer por se sentir
desanimada e desmotivada.
46 – Como consequência das lesões
sofridas aquando do acidente, a autora não consegue: usar sapatos de salto
alto, como antes fazia, dançar, correr, subir e descer escadas, sem apoio, vestir-se
sem estar apoiada ou sentada, subir a um escadote, fazer ginástica, aceder a
sítios altos, como armários e roupeiros, dormir para o lado esquerdo, fazer
caminhadas.
47 – Em resultado das lesões sofridas no
acidente tem dificuldade em se baixar ou ajoelhar, mudar de posição de sentada
para se colocar de pé, tem dificuldade em sair do duche.
48 – A autora era uma pessoa sem
defeitos físicos, bem disposta, confiante, generosa, dinâmica e trabalhadora.
49 – Após o acidente, tornou-se uma
pessoa triste, amargurada, angustiada, desanimada e insegura.
50 – A situação em que se encontra
causa-lhe perturbação e receia que o seu estado de saúde piore.
51 – Após o acidente, por força dele e
das sequelas que dele resultaram para ela, deixou de viajar de mota,
nomeadamente para o estrangeiro, de ir para a neve e fazer ski.
52 – Antes do acidente, a autora dava
catequese, fazia quermesses, envolvia-se em projectos sócio-caritativos da Caritas
Diocesana e da Igreja, o que abandonou após o sinistro por se sentir
desmotivada física e psiquicamente.
53 – A autora nasceu no dia 24/03/1953 e
é casada.
54 – A autora necessita de usar uma
palmilha compensatória no calçado para a dismetria dos membros inferiores.
55 – A autora tem dificuldade em entrar
no carro, primeiro tem de sentar-se no banco e só depois recolher as pernas.
56 – A autora era doméstica e, antes do
acidente, executava todos os trabalhos da lide doméstica da sua casa.
57 – Após o sinistro, passou a precisar
de ajuda de terceira pessoa, para a realização das tarefas domésticas que
exigem esforço, que foi prestada por amigas.
58 – A autora suportou despesas com
deslocações, médicas, medicamentosas e taxas moderadoras no valor de € 609,29.
59 – Como consequência directa e
necessária do acidente, as peças de vestuário que a autora trazia, no valor que
não se logrou concretamente apurar, ficaram inutilizadas.
60 – Com a aquisição da palmilha
compensatória, a autora suportou uma despesa que não se logrou concretamente
apurar.
61 – À data do acidente, a autora tinha
vários pares de sapatos e botas de salto alto de valor que não se logrou
concretamente apurar.
A sentença recorrida julgou não provados
os seguintes factos:
A) A autora ficou a padecer de uma
incapacidade superior a 60%.
B) A autora vai necessitar de se
submeter a intervenção cirúrgica para recuperar das lesões.
C) A hérnia impede a autora de deglutir,
sentindo muitas dores.
D) A autora perdeu o gosto de comer bem,
o que constituía um prazer.
E) A autora não consegue, sem auxílio,
deslocar-se e satisfazer as suas necessidades básicas.
F) A autora gastou a quantia de € 96 por
semana em serviços domésticos.
G) Tendo até a data da entrada em juízo
da acção despendido a quantia de € 9.200 por tais serviços.
H) A sogra da autora teve de ir para o
centro de dia e a mãe da autora teve de regressar ao Canadá.
I) Fora de casa, era a autora quem tudo
administrava, desde bancos, finanças e o consultório médico do marido.
J) Autora dava aulas de moral na escola.
K) A autora viajava para o estrangeiro
três a quatro vezes por ano.
L) A autora gasta em cada palmilha
compensatória € 13.
Fundamentação
1 – Nulidade da sentença:
A
recorrente afirma que a sentença é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1,
alíneas c), d) e e), do CPC, porquanto há contradição entre pontos da matéria
de facto provada, que motivam oposição com a decisão, e o tribunal recorrido
conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
Segundo
a recorrente, a referida contradição verifica-se entre os pontos 54 e 60 dos
factos provados, pois a recorrida não peticionou quantia relativa a adaptação
do calçado, mas sim quantia correspondente às despesas com aquisição de uma
palmilha, três vezes por ano. Há oposição com a decisão porque a condenação da
recorrente a pagar o que se vier a liquidar em incidente de liquidação no que
respeita às despesas com adaptação do calçado não está pedida. Não se trata de
adaptação, mas de eventual aquisição de palmilha, considera a recorrente. Logo,
houve condenação em quantidade superior e em objecto diverso do pedido.
Outro
aspecto em que, segundo a recorrente, a sentença é nula por o tribunal
recorrido ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento, é o da
alegada duplicação de indemnizações atribuídas por danos não patrimoniais e
dano biológico.
É
manifesta a falta de razão da recorrente.
No ponto
54, julgou-se provado que a recorrida necessita de usar uma palmilha
compensatória no calçado para a dismetria dos membros inferiores e, no ponto
60, que, com a aquisição dessa palmilha, a recorrida suportou uma despesa que
não se logrou concretamente apurar. É evidente a inexistência de contradição
entre estes pontos da matéria de facto.
Por outro lado, o ponto F) do
dispositivo da sentença recorrida, que condenou a recorrente a pagar à
recorrida o que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação, no que
respeita às despesas de adaptação do calçado, com uma palmilha compensadora,
não excedeu o pedido constante da alínea A) da parte conclusiva da petição
inicial. Inexistiu, pois, condenação em quantidade superior ou em objecto
diverso do pedido.
Finalmente, ainda que se tivesse
verificado uma duplicação de indemnizações por danos não patrimoniais e dano
biológico, a consequência não seria a nulidade da sentença, como claramente
decorre do artigo 615.º do CPC. Estaríamos, antes, perante um erro de
julgamento.
Conclui-se, assim, que a sentença não é
nula.
2 –
Admissibilidade da prestação de declarações de parte pela autora:
A
recorrente sustenta que as declarações de parte da recorrida foram prestadas de
forma ilegal. Tal ilegalidade decorreria da circunstância de tais declarações
de parte deverem ter lugar antes da restante prova produzida na audiência
final, o que não aconteceu, e de a recorrida ter assistido à prestação dos
depoimentos de todas as testemunhas e peritos antes de depor.
Resulta
da acta da sessão da audiência final que teve lugar no dia 02.03.2017 que, na
sequência de requerimento da própria, a que a recorrente se opôs, o tribunal a quo decidiu tomar declarações de parte
à recorrida. A recorrente não interpôs recurso desta decisão, pelo que a
questão se encontra definitivamente resolvida. Independentemente deste último
aspecto, a recorrente carece de razão, pois o n.º 1 do artigo 466.º do CPC
permite a prestação de declarações de parte até ao início das alegações orais
em 1.ª instância. A circunstância de a recorrida ter assistido à prestação dos
depoimentos de todas as testemunhas e peritos antes de depor não obsta à
admissibilidade das declarações de parte, apenas devendo relevar em sede de
valoração destas pelo julgador, nos termos da 1.ª parte do n.º 3 do mesmo
artigo.
Em
conclusão, o meio de prova em questão foi validamente produzido.
3 –
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente
começa por afirmar, nas suas alegações, que foram incorrectamente julgados os
pontos 19 a 35, 54, 56, 57 e 60, transcrevendo-os. Todavia, apenas
relativamente ao ponto 31 a recorrente cumpre totalmente os ónus que o artigo
640.º do CPC põe a cargo do impugnante da decisão sobre a matéria de facto. No
que concerne aos restantes pontos que referimos, faltam a identificação dos
concretos meios probatórios que, no entendimento da recorrente, impunham
decisão diversa, com a indicação exigida pelo n.º 2, al. a), e a decisão que
deveria ser proferida sobre os mesmos pontos. Consequentemente, a reapreciação da
decisão sobre a matéria de facto terá por objecto apenas o conteúdo do ponto 31.
Julgou-se
provado, neste ponto 31, que “O Défice Funcional Permanente da Integridade
Físico-Psíquica fixável em 31 pontos, considerando o valor global da perda
funcional decorrente das sequelas e o facto destas serem causa de limitações
funcionais importantes com repercussões na independência da autora”. De acordo
com a sentença, o tribunal recorrido formou a sua convicção sobre esta matéria
com base no relatório de avaliação médico-legal do dano corporal efectuado pelo
Gabinete Médico-Legal de Setúbal, completado pelos esclarecimentos prestados
pelo perito que o elaborou. A recorrente censura a sentença recorrida por ter,
nas suas palavras, desprezado o depoimento do médico João Oliveira, que depôs
na qualidade de testemunha e expressou opinião diversa da do perito, defendendo
que a pontuação arbitrada no relatório pericial foi excessiva.
O
artigo 662.º, n.º 1, do CPC, estabelece que a Relação deve alterar a decisão
proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova
produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Escreve, a
propósito, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, que “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria
convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou
daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do
dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (Recursos no Novo Código de Processo Civil,
4.ª edição, p. 274). Prossegue o mesmo Autor: “sem embargo das modificações que
podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja
decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de normas imperativas, à
Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação
e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo tribunal de 1.ª
instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma
decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem
respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de
facto, indicou nas respectivas alegações
que circunscrevem o objecto do recurso” (p. 279-280). À objecção de que a
Relação, por apenas ter ao seu dispor, além do conteúdo material dos autos, a
gravação das provas prestadas oralmente, assim ficando impedida de percepcionar
a totalidade dos elementos de comunicação não verbais que possam ter sido
relevantes para a formação da convicção do juiz da primeira instância, responde
o Autor que vimos citando que tais circunstâncias “deverão ser ponderadas na
ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a
introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação
das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela
existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto
impugnados. (…) se a Relação, procedendo à reapreciação
dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos
impugnados, a convicção acerca da existência de erro deve proceder à
correspondente modificação da decisão” (p. 287-288).
Revertendo
ao caso dos autos, os meios de prova relevantes para a apreciação da matéria
constante do ponto 31 não impõem decisão diversa daquela que o tribunal
recorrido proferiu. O referido ponto 31 espelha as conclusões do relatório
pericial, complementado pelos esclarecimentos prestados pelo seu autor na
audiência final. O depoimento do médico João Oliveira, embora divergente, não
permite, por si só, concluir que o relatório esteja errado e que, em
consequência disso, a decisão sobre o ponto 31 também o esteja.
Os
esclarecimentos prestados pelo perito foram, inclusivamente, mais convincentes
que o depoimento da testemunha João Oliveira. Assim, inquirido sobre a sua
opção de qualificar a sequela em questão como pseudoartrose em vez de
consolidação viciosa, a sua resposta não podia ser mais clara: a qualificação
como consolidação viciosa não é possível porque é fora de dúvida que a fractura
não está consolidada; mais, é sua convicção que tal consolidação nunca virá a
ocorrer, enfatizando a gravidade da referida fractura. Às reservas colocadas
pela recorrente sobre o facto de ter feito a perícia com base em exames médicos
realizados em 2013, também respondeu de forma convincente, afirmando que, dada
a grande lentidão da evolução do processo de consolidação óssea, não havia
qualquer utilidade em pedir novos exames. Portanto, a sentença recorrida
baseou-se, no ponto em questão, numa perícia médico-legal tecnicamente bem
sustentada.
Já
o depoimento da testemunha João Oliveira suscita algumas reservas. Desde logo,
importa ter em consideração que se trata de um médico que trabalha para a
recorrente, oferecendo, consequentemente, menores garantias de isenção que o
perito médico-legal. Acresce que a sua especialidade não é a ortopedia, mas sim
a cirurgia plástica e reconstrutiva, sendo certo que a matéria de facto que
estava em discussão pertence à primeira especialidade. No que concerne ao
conteúdo do depoimento, o mesmo não foi inteiramente convincente. A testemunha
João Oliveira criticou a realização da perícia com base em exames realizados
dois anos antes, mas não explicou devidamente porquê, já que ele próprio
descreveu a consolidação óssea como “um processo muito lento”. Por outro lado,
referiu meros “indícios de consolidação parcial” e admitiu uma evolução futura,
a um ritmo muito lento, dessa consolidação, o que inculca que, na realidade e
tal como referiu o perito médico, a fractura não está consolidada.
Seja
como for, é seguro que não ficou demonstrada a existência de um erro de
julgamento do tribunal recorrido sobre a matéria constante do ponto 31, que
imponha decisão diversa, razão pela qual, considerando o disposto no artigo
662.º, n.º 1, do CPC, é de concluir pela inexistência de fundamento para
alterar a decisão sobre a matéria de facto.
4
– Qualificação dos danos sofridos pela recorrida:
A
sentença recorrida adoptou uma forma de qualificação dos danos que vem fazendo
caminho na nossa jurisprudência desde o final da década passada, qual seja a de
autonomizar o denominado dano biológico dos danos patrimoniais e dos danos não
patrimoniais, atribuindo uma indemnização a esse título.
A
recorrente insurge-se contra tal autonomização do dano biológico, nos termos em
que foi feita pela sentença recorrida, sustentando que a mesma redundou numa
duplicação de indemnizações – a título de danos não patrimoniais e de dano
biológico – pelos mesmos factos, nomeadamente pelas mesmas lesões e sequelas.
Em
face da argumentação da recorrente, a primeira observação a fazer sobre esta
matéria e é a de que um mesmo facto, nomeadamente uma mesma lesão ou uma mesma
sequela, pode gerar um direito a indemnização a títulos diversos, em função da
perspectiva sob a qual seja encarado. Mesmo antes do surgimento, na
jurisprudência portuguesa, do conceito de dano biológico, isso já acontecia, por
referência às categorias legais do dano patrimonial e do dano não patrimonial.
Por exemplo, se o lesado ficar paraplégico, terá seguramente direito a uma
indemnização pelo dano patrimonial que daí decorra (e, mesmo dentro dessa
categoria de dano, em função de várias subcategorias) e a uma indemnização por
danos não patrimoniais. A primeira parcela indemnizatória terá a sua
justificação na diminuição do património do lesado ou na frustração do seu
aumento em consequência da lesão e a segunda tê-la-á, nomeadamente, no
sofrimento físico e no desgosto que o lesado sentirá devido à grave situação de
incapacidade em que caiu.
A
decisão judicial que atribua indemnização a títulos diversos pelo mesmo facto
terá de especificar claramente qual a perspectiva sob a qual atribui cada
parcela indemnizatória. Ora, é isso que a sentença recorrida não fez
inteiramente, pois incluiu, naquilo a que chamou “danos não patrimoniais
stricto sensu”, “a natureza e elevada gravidade das lesões e as sequelas que
ficou a padecer (…), as limitações da locomoção (…), o quadro clínico de foro
psiquiátrico, com síndrome ansioso depressivo compatível com o diagnóstico de
perturbação de stress pós traumático, e recurso necessário a medicação adequada
(…)”, a “dificuldade em subir e descer escadas”, a incapacidade para “correr, saltar,
andar de saltos altos, fazer caminhadas, efectuar viagens e passear de mota,
praticar ski”, “o período de incapacidade temporária total de 347 dias, o
período de incapacidade temporária parcial de 385 dias, a repercussão
temporária na actividade doméstica total de 732 dias (…), a marcha claudicante
(…), a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável em
3/7, a afectação do seu desempenho sexual com repercussão permanente ao nível
da actividade sexual no grau 3/7”, e, mais adiante, justificou a parcela
indemnizatória que atribuiu a título de “dano biológico” com o facto de a
recorrida ter visto “a sua integridade física atingida de forma irreversível,
ficando com 31 pontos de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica,
com diminuição da qualidade de vida em geral, afectada na sua autonomia física
e psíquica” e ter ficado “permanentemente afectada na actividade sexual”, ter
“um encurtamento do membro inferior”, apresentar “marcha claudicante”, ter
“perda de mobilidade, sem conseguir fazer inúmeras tarefas comuns, acrescendo
que ficou a sofrer de uma incapacidade absoluta para o trabalho doméstico”. São
evidentes as zonas de sobreposição das duas categorias de danos, tal como a
recorrente afirma.
A
consequência dessa sobreposição não é, como a recorrente sustenta nas suas
alegações de recurso, a pura e simples revogação da sentença recorrida na parte
que a condena em indemnização por dano biológico e a sua substituição por outra
que a absolva desse pedido. Está provado que a recorrida sofreu os danos que, na
sentença recorrida, mereceram dupla menção sem a necessária diferenciação de
perspectivas, o que, independentemente da questão formal da sua correcta
qualificação jurídica, impõe a sua indemnização. Para tanto, teremos de precisar
a qualificação dos mesmos danos e, feito isso, de os avaliar.
Os
problemas que a sentença recorrida suscita em sede de qualificação dos danos
não decorrem unicamente da apontada inclusão de factos descritos de forma semelhante
em duas categorias de danos diferentes e que deram origem a duas parcelas
indemnizatórias também distintas. Verifica-se um outro problema, a montante,
que poderá explicar, ao menos em parte, a referida sobreposição: o dos termos
da classificação dos danos adoptada na sentença recorrida. Esta distingue os
danos em “danos não patrimoniais stricto
sensu”, “dano biológico” e “danos patrimoniais”, afirmando que é
“entendimento pacífico na nossa jurisprudência que o dano biológico ou
corporal, perspectivado como diminuição somático-psíquica e funcional do
lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de
quem o sofre, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do
seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano
patrimonial, dano não patrimonial ou de um tertium
genus que não se esgota num qualquer dano patrimonial em sentido estrito
(incapacidade permanente ou temporária com reflexos laborais) nem num simples
dano moral (bastante restritivo nos seus pressupostos de admissibilidade).”
A
jurisprudência, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, admite, de um modo
geral, a categoria do dano biológico, embora com divergências sobre o seu
conteúdo e a sua própria autonomia. Se encontramos decisões que aderem, sem
reservas, à tese da autonomia do dano biológico, como é o caso dos acórdãos do
STJ de 20.05.2010, proferido no processo n.º 103/2002.L1.S1 (relator: LOPES DO REGO), de 20.01.2011, proferido no
processo n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1 (relator: SOUTO DE MOURA) e de 17.05.2011,
proferido no processo n.º 7449/05.0TBVFR.P1.S1
(relator: GREGÓRIO SILVA JESUS), outras há que, no fundo, põem em causa a
própria utilidade do conceito, como categoria de danos a indemnizar, como é o
caso do acórdão do STJ de 26.01.2012, proferido no processo n.º 220/2001.L1.S1
(relator: JOÃO BERNARDO), segundo o qual “a conceptualização do dano
biológico não veio “tirar nem pôr” ao que, em termos práticos, já vinha sendo
decidido pelos tribunais, quanto a indemnização pelos danos patrimoniais de
carácter pessoal ou compensação pelos danos não patrimoniais.” No que toca,
especificamente, ao conteúdo do dano biológico, o mesmo é concebido,
geralmente, como tendo natureza mista, patrimonial e não patrimonial – cfr.,
entre outros, os já referidos acórdãos do STJ de 20.05.2010, proferido no
processo n.º 103/2002.L1.S1 (relator:
LOPES DO REGO) e de 20.01.2011,
proferido no processo n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1 (relator: SOUTO DE MOURA) –,
mas em termos nem sempre concordantes.
Porém,
parece-nos que a introdução da categoria do dano biológico no domínio da
responsabilidade civil extraobrigacional não trouxe vantagens relevantes e é
geradora de confusões dispensáveis.
Não
trouxe vantagens porque, ao contrário do que acontece no Direito Italiano, de
onde a categoria do dano biológico foi importada, o regime da responsabilidade
civil extraobrigacional constante do nosso Código Civil, ao consagrar
amplamente a indemnizabilidade, quer do dano patrimonial, nas suas diversas
vertentes, quer do dano não patrimonial, proporciona soluções adequadas à
necessidade de ressarcimento da lesão de bens que é reclamada pelas novas
exigências de tutela da personalidade[1].
Mais, além de o Direito Português permitir tais soluções, a jurisprudência
vinha dando resposta satisfatória às necessidades de evolução do direito da
responsabilidade civil, no sentido do reforço da referida tutela, dentro do
quadro legal existente, assente no binómio dano patrimonial/dano não
patrimonial.
As
confusões que a recepção acrítica da categoria do dano biológico e da sua
colocação no mesmo plano das de dano patrimonial e dano não patrimonial estão à
vista. Sendo o dano biológico um dano-evento ou dano real, não pode ser
considerado como uma categoria jurídica situada no mesmo plano dos danos
patrimoniais e dos danos não patrimoniais, que se reportam aos danos-consequência[2].
O resultado dessa consideração, com a consequente tripartição que acima
referimos, só podia ser aquele que efectivamente vem sendo: a transição, das
categorias do dano patrimonial e do dano não patrimonial para a do dano
biológico, dos danos patrimoniais e não patrimoniais com origem neste último.
Essa migração, cuja utilidade está por demonstrar, vem causando as dificuldades
e perplexidades que a leitura da jurisprudência sobre o tema evidencia[3].
“O dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio,
ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo
consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o
dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia
danos patrimoniais/danos não patrimoniais”[4].
Entendemos,
pois, que deve prevalecer a classificação dos danos estabelecida no Código
Civil, assente na dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais. É certo
que a categoria do dano biológico encontrou acolhimento normativo na Portaria
n.º 377/2008, de 26.05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25.06. Todavia,
estamos, aí, a um nível infra-legal e perante um instrumento normativo que não
tem – nem aliás podia ter, face ao disposto no Código Civil, fonte
hierarquicamente superior – por objecto o estabelecimento de critérios de
fixação judicial de indemnizações por responsabilidade civil.
Concluindo,
a avaliação dos danos sofridos pela recorrida, a que teremos de proceder nos
números seguintes devido, por um lado, à adopção, pela sentença recorrida, do
critério tripartido que refutamos e, por outro lado, à dupla menção de factos
descritos de forma idêntica nas categorias do dano não patrimonial e do dano
biológico, será feita à luz do critério estabelecido no Código Civil, ou seja,
em função da dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais.
5
– Determinação e avaliação dos danos não patrimoniais:
Pelas razões referidas no ponto
anterior, teremos de proceder à identificação dos danos sofridos pela recorrida
que merecem a qualificação de não patrimoniais, seguindo-se a sua avaliação.
Os danos não patrimoniais que se
provaram são os seguintes:
A) Em consequência da colisão, a
recorrida sofreu as lesões descritas no ponto 11 da matéria de facto provada,
que necessariamente lhe provocaram grande sofrimento físico e psíquico,
conforme resulta dos pontos 26 e 37;
B) A recorrida teve de se submeter a 5
intervenções cirúrgicas, descritas nos pontos 6, 8, 13, 15, 16 e 17, o que
necessariamente lhe causou, além de sofrimento físico, preocupação e ansiedade,
antes e depois de cada uma delas;
C) A recorrida esteve com drenagem
torácica durante 8 dias (ponto 9), o que também não pode ter deixado de lhe
causar sofrimento físico;
D) A recorrida esteve internada durante
2 semanas numa unidade de cuidados intensivos e, posteriormente, mais 6 semanas
(pontos 7 e 13); os períodos de internamento hospitalar, sobretudo se, como foi
o caso, a pessoa estiver confinada a uma cama, em repouso absoluto (pontos 23 e
36), são especialmente penosos devido, nomeadamente, ao afastamento de casa e
da família e à perda da privacidade;
E) A recorrida esteve quase 1 ano
sujeita a internamento e/ou a repouso absoluto (ponto 23), o que não pode ter
deixado de lhe provocar enorme sofrimento e ansiedade; foi, além do mais, quase
1 ano de vida perdido;
F) A recorrida esteve em tratamento de
recuperação fisiátrica, com sessões diárias, durante um período de 2 anos, com os
inerentes sacrifício físico e dispêndio de muito tempo, que certamente passaria
de forma mais agradável para si não fora o acidente dos autos;
G) As sequelas com que a recorrida
ficou, descritas nos pontos 22, 39, 40 e 55, pela sua gravidade, causaram e
continuarão a causar-lhe, durante o resto da vida, grande sofrimento físico –
decorrente, nomeadamente, da penosidade acrescida que a execução das tarefas do
dia-a-dia ainda ao seu alcance implicará – e psíquico, como resulta,
nomeadamente, dos pontos 30, 35, 38, 41, 42, 43, 49 e 50;
H) O dano estético foi de grau 4 numa
escala de 7 graus de gravidade crescente devido à claudicação da marcha e às
cicatrizes visíveis;
I) Em consequência das sequelas com que
ficou, a recorrida deixou de fazer várias coisas que lhe davam prazer, como ir
à praia, sair com o marido e com amigos para conviver e divertir-se, usar
sapatos de salto alto, dançar, viajar de mota, ir para a neve e fazer ski (pontos
44, 45, 46, 51;
J) Em termos de repercussão permanente
na actividade sexual, o dano foi fixável no grau 3 numa escala de 7 graus de
gravidade crescente (ponto 29), facto que também constitui uma das causas do
sofrimento psíquico da recorrida (cfr., nomeadamente, o ponto 30);
K) Devido ao estado psíquico em que caiu
por causa do acidente, a recorrida deixou de sentir motivação para participar
em actividades comunitárias com que anteriormente preenchia parte do seu tempo
(ponto 52).
A recorrente considera excessiva a
indemnização atribuída por danos não patrimoniais, no montante de € 60.000,
pugnando pela sua redução para o montante de € 40.000.
O
artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil estabelece que, na fixação da
indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua
gravidade, mereçam a tutela do Direito. A
primeira parte do n.º 4 do mesmo artigo dispõe que o montante da indemnização
será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso,
as circunstâncias referidas no artigo 494.º, a saber, o grau de culpabilidade
do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do
caso. A indemnização por danos não patrimoniais visa compensar o lesado do
sofrimento em que aqueles se traduzem. Como o dano não pode ser suprimido,
procura-se aquela compensação através da atribuição de uma quantia em dinheiro
que, em toda a medida do possível, proporcione ao lesado um benefício
proporcional ao seu sofrimento.
O
sofrimento físico e psíquico causado à recorrida pelo acidente de viação dos
autos foi imenso e prolongar-se-á, seguramente, até à morte daquela. O valor de
€ 40.000, proposto pela recorrente, é exíguo, tendo em conta a gravidade dos
danos não patrimoniais.
O
argumento, a que a recorrente lança mão, de que a indemnização fixada pela
sentença recorrida, de € 60.000, é excessiva por ultrapassar os valores
habitualmente atribuídos pela jurisprudência para ressarcir o dano morte, que
consubstancia a violação do bem supremo que é a vida, além de não ter suporte
factual, é dogmático e superficial, não atentando devidamente naquilo que é a
realidade da vida.
Não
tem suporte factual porque os valores atribuídos pela jurisprudência para
ressarcir o dano morte excedem normalmente os € 50.000 referidos pela
recorrente. Veja-se, a título de exemplo, a seguinte jurisprudência do STJ:
-
Acórdão de 05.02.2009, proferido no processo n.º 08B4093 (relator: OLIVEIRA
ROCHA): € 60.000;
-
Acórdão de 31.01.2012, proferido no processo
n.º 875/05.7TBILH. C1.S1 (relator: NUNO CAMEIRA): € 75.000;
-
Acórdão de 23.02.2011, proferido no
processo n.º 395/03.4GTSTB. L1.S1 (relator: PIRES DA GRAÇA): € 80.000;
-
Acórdão de 18.06.2015, proferido no processo n.º 2567/09.9TBABF.E1.S1
(relatora: FERNANDA ISABEL PEREIRA): € 80.000.
É
dogmático porque se baseia exclusivamente numa hierarquia abstracta de bens
jurídicos, encimada, sem dúvida alguma, pelo bem vida, quando há que atentar
noutros factores mais importantes em sede de indemnização por danos não
patrimoniais, como a intensidade e a duração do sofrimento da vítima, bem como
o de ser esta última a beneficiária da indemnização. Por isso mesmo, trata-se
de uma abordagem superficial, mesmo simplista, da problemática de que nos
ocupamos, devendo ser rejeitada.
No
sentido, que vimos defendendo, da não limitação do montante da indemnização por
danos não patrimoniais graves – como o são os sofridos pela recorrida – pelos
valores habitualmente fixados para a indemnização do dano morte, decidiram, por
exemplo, os acórdãos do STJ de 19.06.2014, proferido no processo n.º
1679/10.0TBVCT.G1 (relator: SÉRGIO POÇAS) e de 08.06.2017, proferido no
processo n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S1 (relatora: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA).
A indemnização a fixar para compensação dos danos
não patrimoniais sofridos pela recorrida não pode, por outro lado, ser limitada
pelo valor a esse título atribuído pela sentença recorrida. Como vimos
anteriormente, a sentença adoptou uma classificação tripartida dos danos
sofridos pela recorrida e atribuiu a maior parcela indemnizatória, de € 80.000,
pelo dano biológico. Com a supressão desta última categoria e a consequente
redistribuição dos danos nela englobados pelas duas restantes – danos não
patrimoniais e danos patrimoniais –, é natural a fixação de parcelas
indemnizatórias superiores àquelas que a sentença recorrida fixou a qualquer
desses títulos. Por outras palavras, as categorias “danos não patrimoniais” e
“danos patrimoniais” são mais amplas nesta decisão que na sentença recorrida,
pelo que se justifica, aqui, a atribuição de parcelas indemnizatórias
superiores às correspondentes a essas mesmas categorias de danos na sentença,
desde que não se ultrapasse, obviamente, o valor global da condenação.
Como acima enfatizámos, o
sofrimento físico e psíquico da recorrida em consequência do acidente foi imenso
e prolongar-se-á, seguramente, até à morte desta, reclamando, por isso, a
atribuição de uma indemnização elevada.
Só
o facto de a recorrida ter sido submetida a 5 intervenções cirúrgicas, com o
inerente sofrimento físico e psíquico, reclama uma indemnização não inferior a
€ 10.000.
O
sofrimento decorrente do facto de a recorrida ter estado sujeita a um período
de internamento e/ou repouso absoluto durante 347 dias, dos quais 8 semanas
foram de efectivo internamento, também reclama, por si só, uma indemnização
significativa. À razão de € 75 por dia – tenha-se em mente que não estamos a
falar de jornadas laborais de 7 ou 8 horas, mas de períodos de 24 sobre 24
horas, períodos esses de sofrimento em vez de tudo aquilo que a vida tem de bom
para ser vivida, pelo que aquele valor diário é razoável –, teremos, apenas a
este título, uma indemnização de € 26.025.
O
sofrimento físico e psíquico decorrente das sequelas também foi grande e
compreende-se porquê.
A
recorrida, com 57 anos à data do acidente, não tinha defeitos físicos. Em
consequência do acidente, ficou com uma perna mais curta que a outra e marcha
claudicante para o resto da vida. Só isto, é suficiente para alterar
profundamente a vida de uma pessoa, a imagem que de si dá aos outros e que de
si mesma tem. Para mais sendo a recorrida uma pessoa que gostava de viver bem a
vida, pois era bem disposta, confiante, dinâmica, trabalhadora, saía com o
marido e com amigos, convivia, divertia-se, gostava de viajar de mota, de ir
para a neve, de fazer ski. Como compensar um dano não patrimonial com a
gravidade deste, que diminui muito efectivamente a qualidade de vida da
recorrida e fará sentir a sua presença em cada passo que esta der até morrer? Nunca
com uma indemnização inferior a € 50.000, no nosso entendimento.
Acrescem
os restantes danos não patrimoniais acima referidos, como são as numerosas
cicatrizes com que a recorrida ficou, bem como as restantes limitações físicas
que passaram a afectá-la. Indemnização inferior a € 110.000 será insuficiente para
compensar tais danos.
6 – Determinação e avaliação dos danos
patrimoniais:
A sentença recorrida incluiu na
categoria do dano biológico o défice funcional permanente da integridade
físico-psíquica de 31 pontos, por constituir uma lesão do direito fundamental à
saúde e integridade física. No nosso entendimento, além da sua vertente não
patrimonial decorrente do sofrimento psíquico que as limitações físicas em
questão causam à recorrida e da maior penosidade que as mesmas limitações
implicam no dia-a-dia desta última, trata-se de um dano patrimonial, a dois
níveis.
Por um lado, antes do acidente, a
recorrida executava todos os trabalhos da lida doméstica da sua casa. Cuidar da
casa de morada da família é um trabalho avaliável em dinheiro. Tanto assim é
que, quando nenhum membro da família o pode fazer, tem de se pagar a terceiro
para realizar tal tarefa. Não pode, pois, como a recorrente faz, dizer-se que
recorrida não trabalhava. Esta não recebia remuneração, uma vez que trabalhava
em proveito do seu próprio agregado familiar, mas evitava a realização da
despesa que implicaria a realização das tarefas em causa por terceiro.
Provou-se que as sequelas decorrentes do
acidente são impeditivas do exercício da actividade doméstica, donde resulta
que a recorrida terá de pagar a terceira pessoa para a ajudar a cuidar de sua casa.
A sentença considerou, bem, que isto constitui um dano patrimonial e, com base
no critério de equidade estabelecido no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil,
atribuiu uma indemnização de € 30.000 a este título.
A isso não obsta, do ponto de vista processual,
a circunstância de a recorrida, na petição inicial, não ter quantificado este
dano na parte em que o perspectivou como futuro. Nomeadamente, os artigos 609.º
do CPC e 556.º, n.º 2, do Código Civil, invocados pela recorrente, não impedem
o tribunal de, ao abrigo do n.º 3 deste último artigo, atribuir quantia
determinada com base na equidade.
Quanto à quantia em si mesma, que a
recorrente considera exorbitante, parece-nos, ao invés, que prima pela
moderação. Ainda que a recorrida consiga assegurar a prestação de serviços
domésticos por terceiro mediante um custo mensal de apenas € 250,
correspondente a menos de metade do actual salário mínimo nacional, gastará,
anualmente, € 3.000, pelo que a quantia arbitrada, de € 30.000, só será
suficiente para 10 anos, quando a esperança de vida de uma mulher com a idade
da recorrida (64 anos) é de cerca de 19 anos. No que concerne ao abatimento
que, no entendimento da recorrente, deveria fazer-se tendo em consideração a
“necessidade de contratar serviços quando as pessoas atingem certa idade”, não
tem razão de ser. Ainda que, com o avançar da idade, a recorrida viesse a
necessitar de contratar alguém para a auxiliar nas tarefas domésticas
independentemente do acidente dos autos, certo é que as limitações funcionais
com que ficou em consequência deste último constituirão sempre um acréscimo
àquelas que decorreriam da velhice, reclamando, portanto, o correspondente
acréscimo do tempo da prestação dos serviços e do respectivo custo.
Deverá, portanto, manter-se a condenação
da recorrente no pagamento de uma indemnização no montante de € 30.000 pelo
dano patrimonial decorrente da necessidade de contratação de terceiro para
executar serviço doméstico.
O referido défice funcional permanente
da integridade físico-psíquica de 31 pontos, aliado aos períodos de défice
funcional temporário total (347 dias) e de défice funcional temporário parcial
(385 dias), implica um dano patrimonial a um segundo nível. Provou-se que, à
data do acidente, a recorrida era doméstica (ponto 56). Com esse fundamento, a
recorrente afirma que as sequelas físicas não tiveram qualquer implicação ao
nível da capacidade de ganho da recorrida. Ou seja, de acordo com este
entendimento, quando o lesado não exerça uma actividade geradora de rendimento
à data da ocorrência do facto lesivo, a sua capacidade de ganho não tem
qualquer valor patrimonial cuja perda ou diminuição seja susceptível de
indemnização.
Discordamos. A perda, total ou parcial,
de capacidade para o trabalho, constitui, em si mesma, um dano patrimonial futuro
e, como tal, indemnizável. Exerça ou não uma actividade geradora de rendimento
à data da lesão, o lesado sofrerá sempre uma diminuição da sua capacidade para
trabalhar, por conta própria ou alheia, e de obter rendimentos por essa via. Uma
pessoa pode não trabalhar em determinado momento da sua vida, contra a sua
vontade ou por opção própria, mas passar a fazê-lo posteriormente. Se essa
pessoa sofrer uma incapacidade para trabalhar, pode a oportunidade de iniciar
uma actividade geradora de rendimento não surgir, ou surgir em condições menos
favoráveis que aquelas que se verificariam sem aquele défice. Tal diminuição da
capacidade de trabalho, com reflexos patrimoniais negativos para o lesado, não
pode deixar de ser indemnizada.
A dificuldade que se levanta é ao nível
do cálculo da indemnização. Num caso, como o dos autos, em que a lesada não
exercia qualquer actividade geradora de rendimento à data do acidente, falta-nos
um ponto de referência como seria o montante do salário caso trabalhasse por
conta de outrem. Ainda assim, terá de se proporcionar à recorrida um valor que
a compense do prejuízo resultante da diminuição da capacidade para trabalhar até
à data em que atingiria a idade da reforma (67 anos). Uma vez que não é
possível o recurso ao critério estabelecido no artigo 566.º, n.º 2, do Código
Civil, face à impossibilidade de averiguar o valor exacto do dano, resta o
recurso ao critério de equidade estabelecido no n.º 3 do mesmo artigo.
A recorrida tinha 57 anos à data do
acidente. Desconhecem-se as suas habilitações profissionais, pelo que deveremos
ter como referência o montante correspondente ao salário mínimo nacional. Considerando
os períodos de défice funcional temporário total (347 dias) e de défice
funcional temporário parcial (385 dias), bem como o défice funcional permanente
da integridade físico-psíquica de 31 pontos com que a recorrida ficou, deverá,
de acordo com o referido critério de equidade, ser atribuída, a este título,
uma indemnização no montante de € 25.000.
Ainda em sede de danos patrimoniais, a
recorrente sustenta que, por falta de prova, a sentença recorrida deve ser
revogada na parte em que a condenou a pagar a quantia que se vier a apurar em
ulterior incidente de liquidação no que respeita a despesas futuras com
deslocações, consultas de ortopedia, fisiatria e psiquiatria, despesas médicas
e medicamentosas. Porém, é evidente a sua falta de razão, pois os factos
descritos nos n.ºs 33 e 34 da sentença recorrida constituem fundamento
suficiente para a referida condenação.
Finalmente, reportando-se à indemnização
atribuída na sentença recorrida pelo dano biológico, a recorrente sustenta que
o tribunal devia ter procedido ao desconto de 1/3 de modo a evitar vantagens
patrimoniais ilícitas da sinistrada. Uma vez que, apesar da refutação, neste
acórdão, da categoria do dano biológico, a questão se suscita, em idêntica
medida, relativamente à indemnização por dano patrimonial, passamos a
analisá-la.
A pretensão da recorrente tem como
pressuposto que o capital produza rendimento líquido, ou seja, superior à taxa
de inflação após o pagamento de impostos e comissões bancárias. Apenas nesta
hipótese a antecipação do pagamento da indemnização relativamente ao momento da
produção do dano futuro implicaria um benefício ilegítimo para o lesado, que
receberia, além da indemnização, o referido rendimento líquido sem causa
justificativa. A recorrente menciona, a propósito, nas suas alegações de
recurso, uma “taxa de juro nominal líquida das aplicações financeiras de 4%
(valor de referência praticado, exemplificadamente, pela CGD e pelo
Millenniumbcp)”.
Porém, a realidade que se nos apresenta
é completamente diferente da descrita. Que saibamos, nenhum banco a operar em
Portugal oferece, há já algum tempo, produtos financeiros sem risco associado
cujas taxas de juro proporcionem rendimento líquido, no sentido acima referido.
Basta a taxa de inflação que se vem verificando para impedir uma apreciação efectiva
do capital depositado. Mais, a instabilidade que nos anos mais recentes se tem
verificado no sistema bancário nem sequer garante a absoluta segurança do
próprio capital depositado. Nestas circunstâncias, não há fundamento para
entender que a antecipação do pagamento da indemnização correspondente ao dano
futuro relativamente à produção deste proporciona algum benefício ao lesado
nem, logicamente, para a dedução de qualquer parcela da indemnização a esse
título.
Recapitulando:
Apurámos as seguintes parcelas
indemnizatórias:
- Danos não patrimoniais: € 110.000;
- Dano patrimonial futuro decorrente da
diminuição da capacidade para o trabalho: € 25.000;
- Dano patrimonial futuro decorrente da
necessidade de contratação de terceiro para executar serviço doméstico: €
30.000.
A condenação constante da alínea d) do
dispositivo da sentença recorrida (€ 609,29 a título de danos patrimoniais) não
foi objecto de recurso, pelo que se mantém.
Não há razão para revogar ou alterar a
condenação constante das alíneas e) e f) do dispositivo da sentença recorrida.
Pelo que o recurso procede parcialmente,
devendo a sentença recorrida ser alterada em conformidade com o exposto.
Decisão
Acordam os juízes do
Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente, alterando
a sentença recorrida nos seguintes termos:
- Condena-se a
recorrente a pagar à recorrida uma indemnização de € 110.000 por danos não
patrimoniais;
- Condena-se
a recorrente a pagar à recorrida uma indemnização de € 25.000 pelo dano
patrimonial futuro decorrente da diminuição da capacidade para o trabalho:
- Mantém-se a condenação da recorrente a pagar à recorrida uma indemnização de €
30.000 pelo dano patrimonial decorrente
da necessidade de contratação de terceiro para executar serviço doméstico;
- Mantém-se a condenação da recorrente a
pagar à recorrida a quantia de € 609,29, pelos danos descritos na alínea d) do
dispositivo da sentença recorrida;
- Mantém-se a condenação da recorrente nos
exactos termos constantes das alíneas e) e f) do dispositivo da sentença
recorrida.
Custas
por recorrente e recorrida na proporção do decaimento.
Notifique.
*
Évora, 22 de Março de 2018
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto
[1] MARIA DA GRAÇA TRIGO, Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo
Direito Português, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Vol. I –
Janeiro-Março 2012, pp. 149-151, 164 e 167.
[2] MARIA DA GRAÇA TRIGO, cit., p.
166.
[3] MARIA DA GRAÇA TRIGO, cit., pp.
148 e 177.
[4] MARIA DA GRAÇA TRIGO, cit., p.
177.