Processo n.º 4006/16.0T8STB.E1
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Sumário:
1
– Nos regimes de comunhão de adquiridos e de comunhão geral, o património comum
dos cônjuges é um património colectivo, uma comunhão de mão comum, não ficando,
por isso, qualquer dos seus titulares com uma quota sobre cada um dos bens que
o integram em cada momento. O património comum pertence, em bloco, a ambos os
cônjuges.
2
– Daí que, não obstante o disposto no artigo 1714.º, n.º 3, do Código Civil,
seja juridicamente inadmissível a dação em cumprimento, entre cônjuges, que
tenha por objecto metade de um bem comum do casal.
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Relatório
JP, notário, com domicílio em (…),
impugnou judicialmente, nos termos dos artigos 140.º e seguintes do Código do
Registo Predial, a decisão proferida pelo conservador da 1.ª Conservatória do
Registo Predial de (…) que recusou um pedido, por si efectuado, de registo de aquisição,
por dação em cumprimento, de metade de duas fracções autónomas.
Após a prolação de despacho de
sustentação por parte do conservador recorrido, nos termos do artigo 142.º-A,
n.º 1, do Código do Registo Predial, o processo foi remetido ao Tribunal
Judicial da Comarca de (…), nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
O
Ministério Público emitiu o parecer previsto no artigo 146.º, n.º 1, do Código do Registo Predial
e, em seguida, foi proferida sentença, que julgou o recurso improcedente.
O recorrente não se conformou
com essa sentença, tendo dela recorrido para esta Relação, nos termos do artigo
147.º, n.º 1, do Código do Registo Predial. As suas alegações contêm as
seguintes conclusões:
A) O
Senhor Conservador recorrido praticou actos que a lei não admite (nulos) porque
as irregularidades cometidas e os fundamentos invocados, dada a sua gravidade,
não podem deixar de ser considerados como insanáveis, influindo na decisão da
causa;
B) As doutas decisões recorridas padecem de um erro
notório de apreciação do Direito que foi erroneamente aplicado;
C) O Senhor Conservador a quo claramente não soube valorar o conteúdo da escritura de dação
em cumprimento, senão não teria concluído pela inexistência do direito que se
pretende transmitir, que nitidamente consta da mesma;
D) O Senhor Conservador a quo claramente não deu preferência, a que por lei era obrigado a
dar, ao suprimento de deficiências e à provisoriedade por dúvidas, nem à
possibilidade de desistência do pedido de registo;
E) Proferindo a sentença ora em crise, a Mma. Sra. Juiz a
quo deu cobertura legal a actos nulos do Sr. Conservador. Ao que acresce;
F) O Ministério Público pronunciou-se no sentido de
ser dado provimento ao recurso, acompanhando a posição do ora apelante.
O recurso foi admitido.
Foram observados os vistos legais.
Objecto
do recurso
É entendimento uniforme que é pelas
conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o
âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º,
n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha
(artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo
663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo
o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
As questões a resolver são as seguintes:
1 – Natureza jurídica da comunhão de
bens no âmbito do casamento celebrado sob os regimes da comunhão geral ou da
comunhão de adquiridos;
2 – Admissibilidade legal da dação em
cumprimento, entre pessoas casadas entre si sob um dos referidos regimes, de
bens integrados na comunhão.
Factualidade
apurada
Na sentença recorrida, foram julgados provados
os seguintes factos:
1 – No dia 05.04.2015, em (…), no
Cartório Notarial de JP, JM e SP declararam que:
A) O primeiro é dono de metade de duas
fracções autónomas correspondentes às letras JA e DL, inscritas na matriz sob o
artigo (…) e descritas sob o artigo (…) da freguesia de (…), da Conservatória
do Registo Predial de (…);
B) O primeiro é devedor à segunda da
quantia de € 33.720, proveniente de empréstimos anteriores ao casamento;
C) O primeiro, para liquidação total da
supra referida dívida, dá em cumprimento, à segunda, metade das referidas
fracções autónomas;
D) A segunda aceita o presente contrato,
ficando extinta a dívida, sendo que a fracção JA constitui a sua habitação
própria e permanente, e já é proprietária da outra metade.
2 – JM e SP são casados sob o regime de
comunhão geral de bens.
3 – Em 20.04.2016, o senhor notário JP
apresentou, na 1.ª Conservatória do Registo de (…), pedido de registo de
aquisição a favor de SP sobre as duas fracções autónomas correspondentes às
letras JA e DL, inscritas na matriz sob o artigo (…) e descritas sob o artigo (…)
da freguesia de (…), da Conservatória do Registo Predial de (…), titulado pela
escritura referida em 1.
4 – Em 28.04.2016, o senhor Conservador da
1.ª Conservatória do Registo Predial de (…) proferiu despacho de qualificação
com o seguinte teor: “Recusada a aquisição
a favor de SP por inexistência do direito que se pretende transmitir face ao
regime de comunhão geral de bens dos titulares inscritos, pois estamos perante bens
comuns do património dos cônjuges. Artigos: 68.º, 69.º n.º 2 e 9.º n.º 1 do
Código do Registo Predial”, para ambas as fracções autónomas.
Fundamentação
A
situação dos autos resume-se assim: JM e SP são casados entre si sob o regime
da comunhão geral; integram o património comum do casal duas fracções
autónomas; JM, declarando dever determinada quantia a SP e com vista à extinção
dessa dívida, efectuou, a favor desta, uma dação em cumprimento que teve por
objecto metade das duas referidas fracções autónomas.
Será
isto possível?
O
recorrente entende que sim, invocando, em abono da sua tese, o disposto no
artigo 1714.º, n.º 3, do Código Civil (diploma ao qual pertencem todos os
artigos adiante mencionados sem indicação da fonte).
Este
artigo tem, como epígrafe, “Imutabilidade das convenções antenupciais e do
regime de bens resultantes da lei”, e estabelece o seguinte: 1. Fora dos casos
previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento,
nem as convenções antenupciais, nem os regimes de bens legalmente fixados. 2.
Consideram-se abrangidos pelas proibições do número anterior os contratos de
compra e venda e sociedade entre os cônjuges, excepto quando estes se encontrem
separados judicialmente de pessoas e bens. 3. É lícita, contudo, a participação
dos dois cônjuges na mesma sociedade de capitais, bem como a dação em
cumprimento feita pelo cônjuge devedor ao seu consorte.
Perante
uma redacção aparentemente linear como é a do n.º 3, o recorrente conclui não
haver margem para dúvidas de que a dação em cumprimento em causa nestes autos é
legalmente admissível, não obstante o facto de JM e SP serem casados sob o
regime da comunhão geral. Sustenta o recorrente que entendimento diverso, como
foi o adoptado na sentença recorrida, redunda em ignorar a regra hermenêutica
segundo a qual, onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo.
Porém, o
problema não se resolve de forma tão simples. Uma outra regra da hermenêutica
jurídica, absolutamente fundamental, é a de que “A interpretação não deve
cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento
legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as
circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo
em que é aplicada” (artigo 9.º, n.º 1). Reconstituir, a partir dos textos, o
pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, implica
interpretar cada norma, não isoladamente, mas sim levando em consideração a
globalidade do sistema normativo em que a mesma se insere. “Nenhum preceito
pode ser interpretado isoladamente do contexto.
(…) Cada um dos números dum artigo só é compreensível se o situarmos perante
todo o texto do artigo, cada artigo perante os que o antecedem ou imediatamente
o seguem. Atender ao contexto é situar
uma disposição.”[1]
Portanto,
o artigo 1714.º, n.º 3, como qualquer outra norma jurídica, tem de ser
interpretado tendo em conta o conjunto de normas que regulam as relações
patrimoniais entre os cônjuges e, em particular, aquelas que estabelecem o
regime jurídico da comunhão de bens.
Para
essa contextualização, é essencial, antes de mais, atentar no disposto no
artigo 1730.º, inserido na subsecção que regula a comunhão de adquiridos, mas
aplicável à comunhão geral de bens ex vi artigo
1734.º.
O n.º 1
do artigo 1730.º estabelece que os cônjuges participam por metade no activo e
no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso. Em
anotação a este artigo, ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA: “O
comproprietário pode, na falta de convenção em contrário, sair a todo o momento
do regime de contitularidade, exigindo a divisão da coisa comum (art. 1412.º).
Outro tanto não podem fazer os cônjuges, visto a comunhão durar enquanto,
persistindo o vínculo conjugal entre eles, se mantiverem as razões da afectação
especial dos bens que a compõem. (…) na compropriedade, embora haja um único
direito de propriedade, há várias quotas ideais desse direito (do direito e não
da coisa) na titularidade dos comproprietários, enquanto na propriedade colectiva (correspondente à
chamada propriedade de mão comum –
Gemeinschaft zur gesammten Hand – do direito germânico), havendo também um único direito sobre o património, não há
sequer uma divisão de quotas (ideais)
desse direito entre os cônjuges, titulares do património. Não há quotas
pertencentes a cada um dos cônjuges, porque o património comum pertence em
bloco a ambos eles. É, hoc sensu, uma propriedade do casal, uma propriedade colectiva. (…) Quando, por conseguinte,
no artigo 1730.º se prescreve que os cônjuges participam por metade no
activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista fixar a quota
parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do
património comum (…). Não se pretende de modo nenhum (…) definir o objecto do direito de cada cônjuge na
constância do matrimónio”[2].
A
conclusão idêntica se chega através da análise do regime contido no artigo
1685.º. O n.º 1 dispõe que cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para
depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem
prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários. O
n.º 2 do mesmo artigo ressalva que a disposição que tenha por objecto coisa
certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de
exigir o respectivo valor em dinheiro. Ou seja, o n.º 1 admite a disposição mortis causa da meação nos bens comuns,
não de uma pretensa quota de 50% sobre cada um destes bens. São coisas
completamente diferentes, como vimos acima. O n.º 2, embora não ferindo de
nulidade a disposição mortis causa que
tenha por objecto um bem comum certo e determinado, como fazia o Código Civil
de 1867, converte tal disposição num direito, que atribui ao beneficiário, a
exigir o respectivo valor em dinheiro. A razão de ser desta conversão legal da
disposição de coisa certa em legado pecuniário, que contrasta com o regime
fixado pelo artigo 2252.º para o legado de coisa só em parte pertencente ao
testador, é a mesma que vimos a propósito do artigo 1730.º: “O património comum
dos cônjuges é um património colectivo
(uma comunhão de mão comum) (…) que
não confere a nenhum dos seus titulares, nem direitos sobre coisas certas e
determinadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas. O facto de
um prédio pertencer em comum a ambos os cônjuges não significa, por outras
palavras, que qualquer deles se possa intitular dono do prédio ou sequer
titular do direito a metade desse prédio. O património
colectivo pode mudar continuamente de conteúdo e tão-pouco pode saber-se,
com antecedência, quais são os bens que concretamente virão a pertencer a cada
um dos seus titulares, na altura em que se proceda à sua partilha.”[3]
Só assim
enquadrado, o artigo 1714.º, n.º 3, revela verdadeiramente a regra nele contida.
O legislador não sentiu necessidade de restringir expressamente a
admissibilidade da dação em cumprimento entre cônjuges aos bens próprios de
cada um destes porque, devido à própria natureza jurídica da comunhão, tal
dação não é, sequer, concebível se tiver por objecto bens integrados nesta
última. A comunhão traduz-se numa propriedade colectiva e esta é, por
definição, “una, indivisível, sem quotas”[4]. Por outras palavras e
recorrendo agora à lição de PEREIRA COELHO, “Os bens comuns constituem uma
massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede
certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco,
podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito
sobre ela”[5]. Ou ainda à lição de MANUEL
DOMINGUES DE ANDRADE: “(…) a massa patrimonial em questão não se reparte entre
essas pessoas por quotas ideais, como na compropriedade ou comunhão de tipo
romano. Antes, (…) ela pertence em bloco
e só em bloco a todas essas pessoas, à
colectividade por elas formada. Pertence-lhes solidariamente. Cada uma
delas não tem qualquer fracção de direito que lhe corresponda individualmente e de que, como tal, possa dispor”.[6]
Sendo
assim, tem de se concluir que todo o teor da dação em cumprimento descrita no
ponto 1 da matéria de facto julgada provada assentou num equívoco: O de que o
alegado devedor era dono de metade de cada uma das fracções autónomas em causa.
Não o era, pelo que não podia, logicamente, transmitir essas pretensas
quotas-partes sobre tais imóveis. Como acertadamente afirmou o conservador do
registo predial, o direito que se pretendia transmitir não existe, pura e
simplesmente. Consequentemente, o conservador não podia deixar de recusar o
pedido de registo apresentado pelo recorrente, nos termos do disposto nos
artigos 9.º, n.º 1, 68.º e 69.º, n.º 2, do Código do Registo Predial.
Resulta do exposto que o recurso não merece provimento, devendo manter-se
a decisão recorrida.
Decisão
Acordam os juízes do
Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a
decisão recorrida.
Custas
pelo recorrente.
Notifique.
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Évora, 12.10.2017
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto
[1] OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 2.ª
edição, p. 363.
[2] Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª edição revista e actualizada, p.
436-437.
[3] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, obra citada, p. 312-313.
[4] ANTUNES VARELA, Direito da Família, p. 375.
[5] Curso de Direito da Família, p. 478.
[6] Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 225.