terça-feira, 5 de abril de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 24.03.2022

Processo n.º 4992/21.8T8STB.E1

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Sumário:

1 – Em princípio, um adulto que tenha completado 25 anos de idade terá de assegurar a sua subsistência pelos seus próprios meios. Apenas na hipótese de ele o não conseguir fazer se justifica que tal subsistência seja assegurada, total ou parcialmente, por outrem, através da prestação de alimentos.

2 – O direito a alimentos não pode ser reconhecido a quem se colocar voluntariamente numa situação de inactividade laboral ou, sequer, a quem não se esforçar efectivamente no sentido de encontrar uma actividade profissional remunerada, ainda que não seja aquela que corresponde às suas aspirações.

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Beatriz, solteira, maior, instaurou procedimento cautelar de alimentos provisórios contra seus pais, Manuel e Vera, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe, a esse título, € 493 o primeiro e € 246 a segunda.

Os requeridos contestaram. O requerido pugnou pela improcedência da pretensão da requerente. A requerida concluiu que o tribunal deverá fixar pensões de alimentos a favor da requerente de montantes muito diferentes a cargo de cada progenitor.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença julgando o procedimento cautelar improcedente e recusando o decretamento da providência solicitada.

A requerente interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – O facto de ter 25 anos não significa que a Beatriz encontre de imediato emprego para fazer face à sua necessidade de alimentos.

2 – A Beatriz não trabalha ainda, não porque não queira, porque tem a intenção de exercer uma actividade e está inscrita no centro de emprego, mas porque não encontrou emprego.

3 – São milhares e milhares os jovens desempregados e à procura de primeiro emprego.

4 – A ida para Braga é uma decisão voluntária, mas racional e, nessa cidade progressiva e em crescimento, pode encontrar mais facilmente emprego do que em Setúbal.

5 – Se, em Setúbal, tinha direito a que os pais lhe prestassem alimentos, não é por se encontrar em Braga que esse direito se perde.

6 – Os pais têm perfeita capacidade para prestar os alimentos de que carece.

7 – Periga a dignidade da recorrente enquanto pessoa humana se o recurso não tiver provimento, pois a Beatriz é deixada à sua sorte, caindo necessariamente na assistência social.

8 – Por erro de interpretação, foram violados os artigos 2003.º, 2004.º, 2007.º, 2009.º e 2010.º do Código Civil, e 384.º do Código de Processo Civil.

O requerido Manuel apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1 – O recurso interposto pela recorrida afigura-se desconforme com as regras impostas quanto à impugnação da matéria de facto, quer quanto a matéria de Direito.

2 – Tal facto impossibilita, ou dificulta, o recorrido de responder concretamente à alegação da recorrente.

3 – Tal implicando a rejeição do recurso nos termos do nº 1 do artº 640º do CPC.

Assim não se entendendo:

4 – A própria recorrente admite que tem condições para prover ao seu sustento.

5 – Não se encontra demonstrada a necessidade de alimentos a que alude o nº 1 do artº 2004º do CC.

6 – Não se encontram reunidos os requisitos para que seja decretada a providência cautelar para alimentos provisórios.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.

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Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se a recorrente necessita que os requeridos lhe prestem alimentos.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A requerente nasceu em 19 de Março de 1996 e é filha dos requeridos Manuel e Vera.

2. A requerente é solteira e não tem filhos.

3. Até a requerente completar 25 anos, os alimentos eram prestados pelos requeridos, entregando cada um a quantia mensal de € 175,00 e dividindo em partes iguais as despesas de saúde, a que equivalia € 200,00 em média por cada progenitor.

4. Assim que a requerente completou os 25 anos, o requerido cessou a sua contribuição.

5. O requerido Manuel e a requerente actualmente não se relacionam, não se visitam nem se contactam em virtude de um desentendimento ocorrido entre ambos.

6. A requerente não tem emprego nem aufere outros rendimentos sendo sua intenção arranjar um emprego, tendo-se já inscrito no Centro de Emprego.

7. A requerente concluiu a licenciatura em Educação Básica, inicialmente na Universidade de Évora e posteriormente no Instituto Politécnico de Setúbal, em 2021, com a média de 17 valores.

8. A requerente pretende leccionar, sendo requisito obrigatório para exercer a profissão de professora a realização de mestrado.

9. A requerente encontra-se a frequentar o mestrado no Instituto de Educação da Universidade do Minho, em Braga, com duração de dois anos, tendo já procedido à sua inscrição.

10. Para viver em Braga, a requerente carece de um quarto onde possa viver, cuja renda ascende a € 230,00 por mês.

11. Com alimentação gasta, em média, € 300,00 por mês.

12. Em vestuário e calçado despende em média € 40,00 por mês.

13. A requerida necessita de acompanhamento psicológico, no qual despende pelo menos € 130,00 por duas consultas em cada mês.

14. Em artigos de higiene, telefone e transportes despende cerca de € 50,00 por mês.

15. O requerido tem 60 anos de idade, é reformado e aufere uma pensão mensal superior a € 1.600,00 euros líquidos durante 14 meses.

16. O requerido trabalha nas vindimas, auferindo pelo menos € 6,00 por hora, trabalhando no mínimo 5 horas durante um período de 30 dias, o que gera um acréscimo de rendimento de € 900,00.

17. O requerido dispõe de casa com garagem e comprou ainda outra garagem, onde faz trabalhos de carpintaria para se ocupar.

18. O requerido paga à filha Luísa € 175,00 acrescido de metade das despesas de saúde e educação que importam uma média de € 200,00 mensais e das propinas no montante mensal de € 172,50.

19. O requerido despende mensalmente com a alimentação o montante de € 300,00, em vestuário e calçado pelo menos € 20,00, em internet, televisão e telemóvel a quantia de € 34,91 e em água, eletricidade e gás a quantia de cerca de € 60,00.

20. A requerida Vera é enfermeira no Centro Hospitalar de Setúbal e aufere um ordenado líquido de € 1 475,00.

21. A requerida despende com a filha Luísa, nomeadamente com alojamento e alimentação, cerca de € 300,00 por mês.

22. A requerida gasta mensalmente no passe de autocarro da Luísa cerca de € 30,00, com o ginásio e o yoga cerca de € 45,00 e € 10,00 em telemóvel.

23. A requerida tem ainda os seguintes gastos mensais: € 100,00 em gasolina, € 26,22 no seguro do carro; € 70,00 no IMI da sua casa; € 12,00 no imposto de circulação; € 84,00 em eletricidade e gás, € 27,00 em água, € 42,00 em telemóvel da Vodafone, numa média mensal de € 350,00.

24. Paga de amortização do mútuo da casa de habitação a quantia de € 108,74.

25. Em vestuário e calçado gasta pelo menos € 20,00 por mês.

Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:

1. A requerida gasta o montante de € 260,00 em gasolina, imposto de circulação de veículo, seguro de carro e cabeleireiro da Luísa.

2. A requerida, com a sua alimentação, produtos de limpeza e higiene, despende mensalmente € 600,00.

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À data da instauração do presente procedimento cautelar, a recorrente já tinha completado 25 anos de idade, pelo que a questão de saber se ela é titular de um direito à prestação de alimentos por parte dos seus progenitores deverá ser resolvida à luz do regime geral constante dos artigos 2003.º a 2014.º do Código Civil (diploma ao qual pertencem todas as normas doravante referenciadas).

Decorre do artigo 2009.º, n.º 1, al. c), que, sendo a recorrente solteira e não tendo ela filhos, os seus pais estarão vinculados a prestar-lhe alimentos caso se verifiquem os pressupostos legais da existência de tal direito.

O artigo 2003.º, n.º 1, estabelece que, por alimentos, entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.

O artigo 2004.º dispõe que os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los (n.º 1) e que, na sua fixação, se atenderá ainda à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência (n.º 2).

Entendeu-se, na sentença recorrida, que a obrigação de alimentos pressupõe a existência de uma situação de necessidade por parte do alimentando e que tal situação de necessidade consiste na impossibilidade de prover, total ou parcialmente, à sua subsistência com os seus rendimentos, o seu património e a sua força de trabalho. Consequentemente, quem requer alimentos terá de alegar e provar estar impossibilitado ou com grave dificuldade de prover, total ou parcialmente, à sua subsistência, seja com bens pessoais, seja com o seu trabalho, não sendo de admitir, para este efeito, uma necessidade voluntariamente criada.

Este entendimento é o único que se harmoniza com as normas legais que referenciámos. Em princípio, um adulto que tenha completado 25 anos de idade terá de assegurar a sua subsistência pelos seus próprios meios, apenas se justificando que tal subsistência seja assegurada, total ou parcialmente, por outrem, na hipótese de o não conseguir fazer. Tratando-se de um adulto com capacidade para trabalhar, o mesmo só terá direito à prestação de alimentos por outrem se provar que não consegue encontrar trabalho remunerado apesar de se esforçar seriamente nesse sentido. O direito a alimentos não pode ser reconhecido a quem se colocar voluntariamente numa situação de inactividade laboral ou, sequer, a quem não se esforçar efectivamente no sentido de encontrar uma actividade profissional remunerada, ainda que não seja aquela que corresponde às suas aspirações. É neste sentido que deve ser interpretado o disposto na parte final do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 2004.º.

A recorrente recebeu alimentos dos seus progenitores até completar 25 anos de idade. Não obstante, não completou a formação profissional que pretende obter, pois apenas concluiu, em 2021, uma licenciatura, em Educação Básica, e, para ser professora, como ambiciona, terá de concluir o mestrado. Sendo assim, a recorrente, sem prejuízo de tentar concretizar o referido objectivo, terá, antes de mais, de procurar activamente trabalho remunerado, em vez de prolongar a sua dependência económica relativamente aos seus pais, com a agravante de, para viver em Braga, para onde se mudou com o objectivo de prosseguir os seus estudos, ter aumentado o montante das suas despesas, como decorre do n.º 10 dos factos provados.

Constituía ónus da recorrente a alegação e a prova, ainda que meramente indiciária, de factos que indiciassem uma busca efectiva, embora infrutífera, de trabalho remunerado. Ora, isso não foi feito. Apenas ficou demonstrado que a recorrente se encontra inscrita num centro de emprego, não constando da matéria de facto provada desde quando, para que tipo de trabalho se encontra disponível e que resposta tem obtido. A mera inscrição num centro de emprego não é suficiente para demonstrar que a recorrente passou a procurar trabalho remunerado activamente e em tempo útil, nomeadamente respondendo a anúncios de emprego ou enviando o seu currículo a potenciais empregadores. Tanto quanto resulta da matéria de facto provada, a actual prioridade da recorrente é frequentar o mestrado, deslocando-se para longe da sua residência com essa finalidade, e não procurar activamente trabalho remunerado.

Nas alegações de recurso, a recorrente argumenta que a sua deslocação para Braga constituiu uma decisão voluntária, mas racional, pois, nessa cidade, progressiva e em crescimento, pode encontrar mais facilmente emprego do que em Setúbal. Acerca deste argumento, note-se, em primeiro lugar, que o mesmo não encontra sustentação na matéria de facto provada. Acresce que, no requerimento inicial, a recorrente alegou coisa bem diferente, ou seja, que se deslocou para Braga porque o mestrado que pretende frequentar é ministrado no Instituto de Educação da Universidade do Minho, nessa cidade, não existindo em Setúbal (artigos 11.º e 12.º). Não que tenha sido a busca de trabalho remunerado que levou a recorrente a mudar-se para Braga.

Nas alegações de recurso, a recorrente argumenta também que há milhares de jovens à procura do seu primeiro emprego. Isto é verdade, mas na medida em que esses jovens não se encontram disponíveis para qualquer trabalho. A demonstrá-lo, está o facto de haver não menos milhares de postos de trabalho, em diversos sectores da actividade económica, que não são ocupados devido à insuficiência da oferta de mão-de-obra. Ora, quem atinge os 25 anos sem conseguir completar a formação profissional necessária para o exercício da profissão que ambiciona, terá, ao menos num primeiro momento, de se sujeitar a desempenhar um trabalho diverso, num dos sectores da economia em que há oferta de emprego, para assegurar a sua subsistência, em vez de continuar na dependência económica dos seus pais contra a vontade destes, ou de um destes, como a recorrente pretende.

Concluindo, o recurso deverá improceder.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

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Évora, 24.03.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)

 

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