sábado, 21 de outubro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 28.09.2023

Processo n.º 2910/22.5T8STB-C.E1

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Sumário:

1 – Não obstante o depoimento de parte ter como finalidade primacial recolher a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária, o julgador pode aproveitar a sua parte não confessória para formar a sua convicção, que valorará livremente, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC. Aquele aproveitamento não depende da corroboração da parte não confessória do depoimento de parte por outro(s) meio(s) de prova.

2 – Todavia, o julgador deverá ser, perante cada caso concreto, especialmente cauteloso na apreciação do depoimento de parte, pois a circunstância de este provir de alguém que tem um interesse directo na causa aumenta muito significativamente o risco de falsidade.

3 – A transmissão gratuita, pelo insolvente, do direito de propriedade sobre um veículo, efectuada dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, está sujeita a resolução incondicional em benefício da massa insolvente.

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Autora: Massa Insolvente de Automóveis, Lda.

Réus: FS e JS

Pedidos:

“I – Se digne declarar resolvido, de forma incondicional, a favor da massa insolvente o negócio jurídico transmitido a título gratuito que incidiu sobre o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo C350 CDI, matrícula 00-XX-00, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE; II – Condenar ambos os R. a procederem à entrega da viatura mencionada à A. em prazo nunca superior a 10 (dez) dias.

Se assim se não entender,

III – Se digne declarar resolvido a favor da massa insolvente o negócio jurídico de alienação do veículo automóvel de marca Mercedes, modelo C350 CDI, matrícula 00-XX-00, nos termos da conjugação dos n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5 alíneas a), b) e c) do art.º 120.º do CIRE.”

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A autora interpôs recurso de apelação da sentença, mediante a qual o tribunal a quo julgou a acção improcedente, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. A titularidade do registo automóvel constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito;

2. Cabe à parte contrária o ónus de provar de que o direito inscrito no registo não é pertencente ao titular registado;

3. A doutrina e a jurisprudência vêm assumindo várias posições no que tange à função e valoração das declarações de parte e, com as necessárias adaptações, do depoimento de parte;

4. A tese do princípio da prova tem sido a mais publicitada pela jurisprudência, defendendo que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova;

5. O depoimento de parte do recorrido foi o único meio de prova que o tribunal a quo se sustentou para formar a sua convicção;

6. O depoimento do recorrido é um discurso seco, trabalhado, sem uma razoável correlação e encadeamento fáctico e sem qualquer razoabilidade do ponto de vista dos acontecimentos normais da vida real;

7. A livre apreciação da prova é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias;

8. A não documentação de atos dotados de uma alta ou frequente documentação, conduzindo a um absoluto ou notável défice documental, gera a presunção da inexistência dos atos;

9. O recorrido não logrou demonstrar e provar a titularidade do direito de propriedade sob a viatura;

10. O recorrido não logrou demonstrar e provar os atos de posse sob a viatura;

11. A doação de bens comuns é nula nos termos da conjugação do n.º 1 do art.º 1764.º com o art.º 294.º ambos do Código Civil;

12. O recorrido JS estava de má-fé pois conhecia a situação de insolvência da sociedade Automóveis, Lda.;

13. A transmissão da titularidade da viatura da recorrida FS para o recorrido JS foi a título gratuito;

14. A resolução do negócio em benefício da massa é oponível ao recorrido JS nos termos do n.º 1 do art.º 124.º do CIRE;

15. Os pontos de factos provados com os números 14, 15 e 16 devem ser considerados como não provados;

16. O ponto de facto não provado com a alínea a) deve ser considerado provado.

Termos em que, nos melhores de Direito que V. Exas doutamente suprirão, deverá o presente recurso ordinário de apelação ser aceite e, por conseguinte, julgado totalmente procedente, substituindo-se a sentença proferida pelo tribunal a quo por outra que:

A. Julgue os pontos de factos provados sob os números 14, 15 e 16 como factos não provados;

B. Julgue o ponto de facto não provado sob a alínea a) como facto provado;

C. Declare a resolução em benefício da massa insolvente do negócio jurídico de transmissão da viatura registado em 29.10.2021;

D. Declare a oponibilidade da resolução ao recorrido JS;

E. Fixe um prazo para entrega da viatura à massa insolvente (art.º 126.º/3 CIRE).

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido.

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Questões a resolver:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Verificação dos pressupostos da resolução em benefício da massa insolvente.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – Por sentença proferida em 17 de Maio de 2022, nos autos de processo de insolvência n.º 2910/22.5T8STB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo do Comércio de Setúbal - Juiz 1 de Setúbal, foi declarada insolvente a sociedade Automóveis, Lda..

2 – O anúncio da insolvência foi publicado no Portal CITIUS em 17.05.2022.

3 – Por despacho datado de 25.05.2022 foi nomeado administrador da insolvência (…), que ora representa a massa insolvente.

4 – A sociedade insolvente foi constituída em 25.01.2006, tendo como sócios JS e RS.

5 – Assumindo ambos a gerência da sociedade.

6 – JS cessou as funções de gerente em 28.08.2018.

7 – Tendo vendido as suas participações sociais a RS e CS em 05.09.2018.

8 – Em 29.10.2021, a insolvente tinha registado em seu nome o veículo de matrícula 00-XX-00, da marca Mercedes-Benz.

9 – Pela apresentação 2802, datada de 29.10.2021, o registo de propriedade passou a estar em nome de FS.

10 – E pela apresentação 7228, datada de 06.01.2022, o registo de propriedade passou a estar em nome de JS.

11 – JS e FS são casados entre si desde 18.11.1978, no regime de comunhão de adquiridos.

12 – A transmissão do veículo de matrícula 00-XX-00, da marca Mercedes-Benz, da insolvente para FS, não implicou o pagamento de qualquer preço.

13 – Sendo que o valor actual do mesmo ascende a cerca de € 10.000,00.

14 – Pelo réu JS foi pago à ré FS o valor de € 2.500,00 para que ocorresse a transferência de propriedade referida em 10.

15 – Desde 2015 que é o réu JS quem paga os impostos e as revisões do veículo de matrícula 00-XX-00.

16 – Foi ele quem adquiriu e pagou o mesmo, dando um veículo seu em troca e pagando um acréscimo de € 8.000,00.

Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:

a) Quem adquiriu a viatura em 2015 foi a sociedade insolvente;

b) Nessa data a ré FS era sócia da sociedade insolvente.

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Questão prévia:

A recorrente juntou três documentos com as alegações de recurso, pelo que, em princípio, se colocaria a questão da admissibilidade dessa junção face ao disposto no artigo 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC). Verificamos, todavia, que o documento n.º 1 é a sentença que declarou a insolvência da sociedade Automóveis, Lda., o documento n.º 2 é a sentença recorrida e o documento n.º 3 é o mesmo que foi junto com a petição inicial sob o n.º 7. Sendo assim, a sua junção na fase de recurso é irrelevante, pois todos eles já constam, ou destes autos, ou do processo principal.

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1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A recorrente pretende que o conteúdo dos n.ºs 14 a 16 seja julgado não provado e que o conteúdo da al. a) seja julgado provado.

Resulta da sentença que o tribunal a quo formou a sua convicção sobre toda essa matéria de facto com base no depoimento de parte do recorrido JS, o qual, no seu entendimento, não foi contrariado por qualquer outro meio de prova. Ouvido aquele depoimento de parte, verificamos que o tribunal a quo aceitou acriticamente a totalidade da versão factual apresentada pelo depoente. Porém, ao fazê-lo, cometeu um erro de julgamento, pelas razões que passamos a expor.

Em primeiro lugar, não é exacto que o depoimento de parte do recorrido JS não tenha sido contrariado por qualquer outro meio de prova. Na questão central da titularidade do direito de propriedade do veículo entre 25.11.2015 e 29.10.2021, aquele depoimento é contrariado pelo teor da certidão do registo automóvel e da mensagem da recorrida FS juntas à petição inicial como documentos n.ºs 1 e 7.

De acordo com a referida certidão do registo automóvel, foi a sociedade Automóveis, Lda., a titular do direito de propriedade sobre o veículo entre 25.11.2015 e 29.10.2021. Constituindo o registo definitivo presunção (ilidível – artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil) de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ex vi artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12.02), a recorrente está dispensada de provar os factos constitutivos do direito de propriedade da sociedade Automóveis, Lda. sobre o veículo entre aquelas duas datas (artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil). São os recorridos que estão onerados com o ónus da prova de que, apesar daquele registo, a sociedade Automóveis, Lda. não foi a proprietária do veículo entre 25.11.2015 e 29.10.2021.

Assim recolocada a questão, fica claro que, sendo o depoimento de parte do recorrido JS o único meio de prova que contraria a presunção decorrente do registo automóvel, a posição dos recorridos fica, logo à partida, fragilizada em matéria probatória.

O depoimento de parte tem como finalidade primacial recolher a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária. Não obstante, não proibindo a lei o aproveitamento da parte não confessória do depoimento de parte para a formação da convicção do julgador, deve entender-se que tal aproveitamento é admissível. Nessa parte, o depoimento deverá ser livremente valorado, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC.

A lei não exige, sequer, que, para que possa valer como meio de prova, a parte não confessória do depoimento de parte seja corroborada por outro(s) meio(s) de prova. Em face disso, carece de fundamento a exigência, feita por alguma doutrina e jurisprudência, dessa corroboração. No limite, a convicção do julgador poderá formar-se exclusivamente com base num depoimento de parte.

Contudo, uma coisa é exigir, em abstracto, que o depoimento de parte seja corroborado por outro(s) meio(s) de prova para que possa ser utilizado pelo julgador para formar a sua convicção e outra, diferente, é o julgador dever ser, perante cada caso concreto, especialmente cauteloso na apreciação do depoimento de parte. Aquela exigência só pode ser feita pela lei, o que, como vimos, não acontece. Já esta especial cautela encontra plena justificação nas regras da experiência, pois a circunstância de o depoimento de parte provir de alguém que tem um interesse directo na causa aumenta muito significativamente o risco de falsidade. Foi nesta estrita medida que acima afirmámos que, sendo o depoimento de parte do recorrido JS o único meio de prova que contraria a presunção decorrente do registo automóvel, a posição dos recorridos fica, logo à partida, fragilizada em matéria probatória.

Assentes estas ideias gerais, atentemos no depoimento de parte do recorrido JS.

Dificilmente encontraremos um depoimento menos credível.

JS afirmou peremptoriamente que o veículo, comprado em 2015, sempre foi seu. Estava em nome da sociedade Automóveis, Lda., da qual era sócio-gerente, mas era seu. Foi ele quem o comprou e pagou, em parte através da entrega de outro veículo automóvel e, na parte restante, em dinheiro. Não se apercebeu de que o veículo foi registado em nome da sociedade. Isso aconteceu porque “quem foi à conservatória foi o outro sócio, que pôs o carro em nome da firma”. Não foi ele próprio a tratar do registo porque o transmitente “tinha muita pressa de transferir o carro do nome dele” e não teve disponibilidade para se deslocar, ele próprio, à conservatória. Não assinou o requerimento de registo. Foi o outro sócio quem o fez. Só mais tarde soube que o veículo ficara registado em nome da sociedade, mas “não ligou”. Não transferiu, então, o veículo para o seu nome “para não ficarem mais nomes no livrete”. Para si, era igual o veículo estar em seu nome ou no da sociedade, pois era a única pessoa que utilizava o veículo, que pagava as despesas com este, nomeadamente com combustível. Oficina, pneus, era tudo pago por si. Era a sociedade quem pagava o IUC do veículo, fazendo-o com dinheiro que lhe entregava. Em 2018, deixou de ser sócio da Automóveis, Lda., mas, como tinha plena confiança nesta, nem sequer então transferiu o carro para o seu nome. Andava, então, a pensar trocá-lo, pelo que “não havia necessidade de gastar dinheiro na conservatória”. Questionado sobre o que determinou a transferência do veículo para o nome do seu cônjuge, a recorrida FS, em 2021, respondeu que o veículo estava pago, era seu, tendo dito àquela: “não tens carro nenhum em teu nome, fica em teu nome”. Em vez de o carro ficar em seu nome, ficou em nome dela. Não houve outra razão para a transferência de nome nessa altura. Três meses depois, passaram o carro para o seu nome devido a interesses particulares do casal. Foi uma coisa entre e depoente e o seu cônjuge, resolveram mudar o carro de nome. Houve um “pagamentozeco” entre eles só para resolver a situação, de € 2.500. Pagou € 2.500 ao seu cônjuge. Confrontado com a falta de junção de documentos comprovativos das despesas que diz ter feito com o veículo, respondeu que não pedia as facturas relativas ao combustível porque não precisava delas. Tem as facturas da oficina, mas não os comprovativos do pagamento. As facturas estão, umas em seu nome, outras em nome da sociedade. Questionado sobre se a sociedade deduzia as facturas emitidas em seu nome para efeitos fiscais, respondeu que as facturas ficavam no tablier do veículo e que não se lembrava se entregou alguma factura na contabilidade da sociedade, acrescentando: “não me lembro, se calhar entreguei alguma, não sei, não me lembro”.

Nada disto é credível.

Desde logo, a versão factual descrita contradiz aquela que foi alegada na contestação e na mensagem, dirigida pela recorrida FS ao administrador da insolvência, que consta do documento junto à petição inicial sob o n.º 7.

Transcrevemos a referida mensagem, na parte que nos interessa: “O veículo automóvel identificado na missiva enviada, foi por mim adquirida e paga á muitos anos, mas nunca alterei a titularidade em 29-10-2021, procedi a essa alteração, a compra ocorreu em 2015. Em 6-1-2022 transferi a propriedade pelo valor de 2500,00.”

Na contestação, os recorridos alegaram, em síntese, que, desde 2015, FS tem a posse do veículo, suportando o custo do IUC, das revisões, das inspecções e os demais encargos com o mesmo. FS estava completamente convencida de que o veículo estava em seu nome desde o momento em que adquiriu a sua posse e assumiu todos os encargos inerentes à propriedade. Posteriormente, FS vendeu o veículo a JS por € 2.500.

Perante isto, em que ficamos? A versão dos recorridos, que apresentaram contestação conjunta, é aquela que alegaram neste articulado e que FS descreveu na mensagem que dirigiu ao administrador da insolvência, ou é aquela que JS narrou na audiência final? Uma vez que são incompatíveis entre si, pelo menos uma delas é falsa. Uma coisa é certa: pelo menos uma vez, JS faltou à verdade. Ou o fez na contestação, ou o fez no depoimento de parte. Em qualquer caso, esta duplicidade mina, logo à partida, a credibilidade de todas as suas afirmações.

Por outro lado, em si mesmo, o depoimento de parte prestado por JS foi inverosímil do princípio ao fim.

Para alguém que é sócio de uma sociedade por quotas, é fundamental a separação entre o seu património e o da sociedade. Se um bem integrar o património da sociedade, responderá pelas dívidas desta. Se o mesmo bem integrar o património do sócio, isso não acontecerá, por regra (artigos 197.º, n.º 3, e 198.º do Código das Sociedades Comerciais). Não é crível que um sócio seja desleixado ao ponto de adquirir um veículo para si, a troco de dinheiro seu e de um veículo também seu, suportando todos os custos decorrentes da sua utilização, e o registe, ou peça a outrem para o registar, ou deixe outrem registá-lo, em nome da sociedade, expondo-o assim aos credores desta. Tal hipótese, embora não seja impossível, contraria as regras da experiência. Se o registo do veículo em nome da sociedade tivesse sido requerido por erro do sócio do depoente, seria incompreensível, pela mesma razão, manter essa situação ao longo de anos.

Uma coisa é adquirir um veículo em nome da sociedade e o mesmo ser utilizado para fins pessoais de um gerente. É muito vulgar isso acontecer. O referido risco de exposição do bem aos credores da sociedade é compensado pelas vantagens fiscais decorrentes de o custo da aquisição e da utilização do veículo ser imputado à sociedade. Coisa totalmente diferente e sem sentido seria manter o veículo em nome da sociedade, mas ser o gerente a suportar o custo de aquisição e utilização do veículo. Seria expor este bem aos credores da sociedade sem usufruir qualquer vantagem.

Não é, pois, crível que JS tenha querido adquirir o veículo para si. Se deixou que o mesmo estivesse registado em nome da sociedade durante anos, foi porque quis que o mesmo fosse propriedade da sociedade.

A descrição, feita por JS, das circunstâncias que teriam determinado o suposto erro de registo, não é credível. Decorre do seu depoimento que foi ele quem negociou e celebrou o contrato que teve por efeito a aquisição do veículo. Nesse momento, o transmitente ter-lhe-á, certamente, entregue o documento necessário para a alteração do registo, assinado. Então, das duas, uma: ou esse documento estava completamente preenchido, identificando o adquirente, ou os campos relativos à identificação do adquirente estavam em branco. Na primeira hipótese, se JS pretendia adquirir o veículo para si, a pessoa identificada como adquirente seria forçosamente ele. Não faria sentido que, querendo adquirir o veículo para si, aceitasse um documento destinado a requerer o registo que mencionasse a sociedade como adquirente. Na segunda hipótese, ainda que não pudesse deslocar-se à conservatória, não é crível que JS não preenchesse os campos destinados à identificação do adquirente com os seus dados pessoais antes de o entregar a outrem para ir requerer o registo. Em qualquer das duas referidas hipóteses, seria o próprio JS a pessoa mencionada no documento destinado à realização do registo como adquirente. Logo, o registo não poderia deixar de ser efectuado figurando ele como adquirente. Nunca o veículo poderia ser registado em nome da sociedade. Tendo, porém, o registo sido efectuado figurando a sociedade como adquirente do veículo, não há como deixar de concluir que o documento destinado a requerer o registo indicava, como adquirente, a sociedade. O mesmo é dizer que, com altíssima probabilidade, ou o transmitente preencheu aquele documento indicando JS como adquirente, na presença deste último, ou foi o próprio JS quem preencheu o mesmo documento indicando a sociedade como adquirente.

Poderá aventar-se uma terceira hipótese: o documento destinado a requerer o registo foi entregue, pelo transmitente, a JS, com a identificação do adquirente em branco, e este, por seu turno, em vez de acabar de o preencher, identificando-se como adquirente do veículo, entregou esse documento ao outro gerente da sociedade tal como o recebera, para que este requeresse a alteração do registo. Nesta hipótese, das duas, uma: ou JS deu instruções ao outro gerente no sentido de este acabar de preencher o documento indicando-o como adquirente do veículo, ou não deu. Em qualquer caso, tanto desleixo por parte de JS seria incompreensível. Se não podia deslocar-se à conservatória, ao menos acabasse de preencher o documento destinado à alteração do registo, nele se identificando como sendo o adquirente do veículo. Para quê deixar essa tarefa para o outro gerente da sociedade, sujeitando-se a que este registasse indevidamente o veículo em nome da sociedade, independentemente de lhe ter dado, ou não, instruções sobre isso? Mais, por que razão JS pediu ao outro gerente da sociedade para ir à conservatória requerer o registo, se se tratava de um assunto estranho à vida da sociedade?

A resposta de JS quando lhe foi perguntado em que nome a oficina que prestava assistência ao veículo emitia as facturas relativas a esse serviço entre 2015 e 29.10.2021 foi a seguinte: umas vezes em seu nome, outras em nome da sociedade. Questionado sobre se a sociedade deduzia as facturas emitidas em seu nome para efeitos fiscais, respondeu que as facturas ficavam no tablier do veículo e que não se lembrava se entregou alguma factura na contabilidade da sociedade, acrescentando: “não me lembro, se calhar entreguei alguma, não sei, não me lembro”.

Estamos perante mais um exemplo da falta de credibilidade deste depoimento de parte.

JS afirmou que levava o veículo a uma única oficina. Logo, não se percebe por que razão, para o mesmo veículo, a oficina emitiria as facturas/recibos, umas vezes em nome da sociedade, outras em nome de JS. Há muito tempo que a emissão desses documentos é feita digitalmente, pelo que, a menos que haja intervenção humana, a facturação relativa a um veículo é feita sempre em nome da mesma entidade. A única explicação possível seria a apontada variação da indicação do devedor ser feita a pedido do próprio JS. Porém, não divisamos a utilidade de um tal procedimento.

A displicência com que JS afirmou que as facturas/recibos ficavam no tablier do veículo e que não se lembrava se entregou alguma delas na contabilidade da sociedade para ser incluída nas despesas desta é espantosa. Uma factura/recibo emitida em nome da sociedade permitiria o pagamento de menos impostos. Está em causa um maior ou menor lucro da sociedade. Como acreditar que JS nem sequer se recordasse se entregou alguma factura para ser imputada nos custos de funcionamento da sociedade?

Regressemos ao tema da alegada indiferença de JS sobre a propriedade do veículo, que teria determinado a sua inércia em requerer a alteração do registo de forma a nele constar como titular daquele direito. De acordo com o seu depoimento, essa indiferença ter-se-á prolongado por cerca de seis anos, entre 2015 e 2021. Nem sequer em 2018, quando deixou de ser sócio da Automóveis, Lda., terá sentido necessidade de requerer a alteração do registo de forma a passar a figurar como proprietário, por ter plena confiança na sociedade. Além de que andava a pensar em trocar o veículo, pelo que “não havia necessidade de gastar dinheiro na conservatória”.

Porém, em 2021, JS mudou radicalmente de opinião. Impunha-se, então, alterar o registo de forma a nele figurar o seu cônjuge, FS, como proprietária do veículo. Subitamente, deixou de ser relevante a despesa decorrente da alteração do registo, bem como o facto de ficarem “mais nomes no livrete”. E qual foi a razão desta mudança de opinião? Segundo JS, o facto de FS não ter qualquer veículo em seu nome. Ora, esta alegação não convence. Se o facto de FS não ter qualquer veículo em seu nome tinha sido indiferente até então, por que razão passou a ser relevante de um momento para o outro? JS não teve resposta para esta questão. Teve de reconhecer que não houve outra razão para a transferência de nome nessa altura.

Parece-nos evidente que a finalidade da alteração do registo em 29.10.2021 consistiu na saída do direito de propriedade sobre o veículo do património social, não na aquisição desse direito por um dos recorridos. Esta aquisição foi apenas uma consequência necessária daquela alienação. Há um trecho do depoimento de JS que revela que assim foi. Ao minuto 7:20 da gravação, este disse: “O carro era meu, estava pago, na altura disse, olha, fica em teu nome, não tens carro nenhum em teu nome, fica em teu nome. O carro estava pago, era meu, em vez de ir para o meu nome, foi para o nome dela.” Repetimos: “em vez de ir para o meu nome, foi para o nome dela”. Ou seja, interessava era que o veículo deixasse de pertencer à sociedade, sendo secundário se passaria a estar registado em nome de um ou do outro dos recorridos. Por isso, a passagem para o nome de JS chegou a ser ponderada. Foi aí que o critério por este referido funcionou: como FS não tinha qualquer veículo em seu nome, foi em nome dela que o registo ficou. Daqui também se infere que JS tinha, pelo menos, um veículo registado em seu nome. Se assim não fosse, aquele critério não permitiria uma decisão sobre para quem o veículo seria transmitido.

A narrativa de JS tornou-se ainda menos verosímil a partir do momento em que lhe foi perguntado por que razão, pouco mais de dois meses depois da transferência do direito de propriedade sobre o veículo para a esfera jurídica do seu cônjuge, mais precisamente em 06.01.2022, foi novamente requerida a alteração do registo de forma a que do mesmo passasse a constar o seu próprio nome como sendo o proprietário. Tendo em conta a inércia de JS, ao longo de cerca de seis anos, em registar o veículo em seu nome, causa, efectivamente, a maior estranheza que, no espaço de cerca de dois meses e uma semana, o registo tenha sido alterado duas vezes, a segunda das quais entre duas pessoas casadas entre si no regime de comunhão de adquiridos. Mais uma vez, a despesa decorrente da alteração do registo e o facto de ficarem “mais nomes no livrete” foram considerados irrelevantes. Qual foi a finalidade dessa segunda transferência? A resposta dada por JS traduziu-se numa recusa de resposta, numa “não resposta”. Disse ele (minuto 8:02 da gravação) que “Foi interesses pessoais entre o casal, interesses pessoais entre nós. (…) Foi uma coisa entre nós em casa, resolvemos mudar o carro de nome, pronto. (…) Houve um pagamentozeco só assim para resolver a situação (…) sim, € 2.500.” Ficou, assim, tudo por explicar. Que “coisa” foi essa? Qual foi a finalidade do “pagamentozeco”? JS fechou-se e nada esclareceu. A conclusão a retirar só pode ser uma: com a súbita circulação do direito de propriedade sobre o veículo entre os patrimónios da sociedade e de cada um dos recorridos visou-se, exclusivamente, subtrair aquele direito aos efeitos patrimoniais da insolvência da sociedade, declarada poucos meses depois, em 17.05.2022.

Estranha-se, finalmente, a absoluta ausência de corroboração documental da versão factual veiculada por JS no seu depoimento de parte. Nomeadamente, não consta dos autos uma única factura/recibo relativa a despesas com o veículo que tivesse sido emitida em nome de JS, indiciando que este o considerasse um bem pessoal e não da sociedade. A não junção de tais documentos aos autos legitima a suspeita de que todos eles foram emitidos em nome da sociedade até ao dia 29.01.2021. Caso contrário, seria normal que esses documentos fossem apresentados.

Concluindo, mesmo admitindo em termos amplos a utilizabilidade do depoimento de parte como meio de prova, não pode ser reconhecido, em concreto, qualquer valor probatório ao depoimento de JS, por ter sido nitidamente falso. Daí que o conteúdo dos n.ºs 14 a 16, que o tribunal a quo julgou provado unicamente com base naquele depoimento, deva ser julgado não provado. O conteúdo da alínea a), que o tribunal a quo julgou não provado também com base naquele depoimento, deverá ser julgado provado, tendo em conta que a sociedade insolvente beneficiava da presunção da titularidade do direito de propriedade sobre o veículo decorrente do registo automóvel e que essa presunção não foi ilidida.

Pelo exposto:

- São eliminados os actuais n.ºs 14 a 16 da matéria de facto provada e a actual al. a) da matéria de facto não provada;

- Acrescenta-se, sob o n.º 14, o seguinte facto provado: “Quem adquiriu a viatura em 2015 foi a sociedade Automóveis, Lda.”;

- As als. a) a d) da matéria de facto não provada passam a ter a seguinte redacção:

a) Pelo réu JS foi pago, à ré FS, o valor de € 2.500,00, para que ocorresse a transferência de propriedade referida em 10;

b) Desde 2015 que é o réu JS quem paga os impostos e as revisões do veículo de matrícula 00-XX-00;

c) Foi o réu JS quem adquiriu e pagou o veículo de matrícula 00-XX-00, dando um veículo seu em troca e pagando um acréscimo de € 8.000,00;

d) Na data referida em 14, a ré FS era sócia da sociedade Automóveis, Lda..

2 – Verificação dos pressupostos da resolução em benefício da massa insolvente:

O artigo 120.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) dispõe que podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência (n.º 1), considerando-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência (n.º 2) e presumindo-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados (n.º 3). O n.º 4 do mesmo artigo estabelece que, salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data. Segundo o n.º 5, entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência; b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente; c) Do início do processo de insolvência.

O artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE, estabelece que são resolúveis em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos, os actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais.

O artigo 124.º, n.º 1, do CIRE, estabelece que a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores pressupõe a má fé destes, salvo tratando-se de sucessores a título universal ou se a nova transmissão tiver ocorrido a título gratuito.

Analisemos a situação dos autos à luz destes preceitos legais.

A transmissão do direito de propriedade sobre o veículo que foi registada em 29.10.2021, da sociedade insolvente para a recorrida FS, não implicou o pagamento de qualquer preço. Ou seja, tratou-se de uma alienação a título gratuito. Por outro lado, o período que mediou entre aquela transmissão e o início do processo de insolvência não excedeu dois anos. Estão, assim, preenchidos os pressupostos da resolução incondicional daquele negócio translativo do direito de propriedade sobre o veículo, estabelecidos no citado artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE.

Também a alteração do registo automóvel no sentido de JS nele passar a figurar como proprietário do veículo não implicou o pagamento, a FS, de qualquer quantia. Na realidade, o domínio sobre o veículo manteve-se na esfera dos recorridos, casados entre si sob o regime da comunhão de adquiridos, tudo apontando no sentido de que estes procederam a uma mera alteração do registo. Sendo assim, nos termos do artigo 124.º, n.º 1, do CIRE, a resolução em benefício da massa insolvente é oponível ao recorrido JS.

O artigo 126.º, n.º 1, do CIRE, estabelece que a resolução tem efeitos retroactivos, devendo reconstituir-se a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado ou omitido, consoante o caso. O direito de propriedade sobre o veículo passará, assim, a integrar a massa insolvente da sociedade Automóveis, Lda., devendo ser fixado um prazo para os recorridos procederem à entrega do veículo ao administrador da insolvência, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.

Conclui-se, assim, que o tribunal a quo devia ter julgado procedente o pedido principal. Tendo, em vez disso, julgado a acção improcedente, impõe-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão que julgue aquele pedido procedente, declarando resolvido, a favor da massa insolvente da sociedade Automóveis, Lda., o negócio jurídico mediante o qual esta sociedade transmitiu o direito de propriedade sobre o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo C350 CDI, matrícula 00-XX-00, para a recorrida FS. Os recorridos deverão proceder à entrega do veículo ao administrador da insolvência no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado deste acórdão.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e declarando-se resolvido, a favor da massa insolvente da sociedade Automóveis, Lda., o negócio jurídico mediante o qual esta sociedade transmitiu o direito de propriedade sobre o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo C350 CDI, matrícula 00-XX-00, para a recorrida FS. Os recorridos deverão proceder à entrega do veículo ao administrador da insolvência no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado deste acórdão.

Custas a cargo dos recorridos.

Notifique.

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Évora, 28.09.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.ª adjunta


Acórdão da Relação de Évora de 23.05.2024

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