sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 26.10.2023

Processo n.º 988/19.8T8TMR.E2

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Sumário:

1 – As declarações de parte constituem um meio de prova que não pode ser desvalorizado a priori, antes lhes devendo ser atribuído um valor probatório autónomo e podendo, consequentemente, fundar a convicção do julgador sobre um facto sem necessidade de corroboração por outros meios de prova.

2 – Vivendo duas pessoas em união de facto durante cerca de 13 anos, é normal que existam documentos que liguem cada uma delas à casa que alegadamente constituía a residência comum.

3 – Não apresentando a parte onerada com o ónus da prova da união de facto qualquer documento dessa natureza, tal défice de prova documental deve, ele próprio, ser valorado pelo tribunal para formar a sua convicção, como indiciador de que aquela união não se verificava.

4 - Não basta a parte afirmar que vivia em união de facto com determinada pessoa e duas testemunhas corroborarem essa afirmação para que tal fique demonstrado.

(Sumário elaborado apenas para publicação neste blog)

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Autor: Caixa Geral de Aposentações, I.P..

Ré: Margarida.

Pedido: Declaração de inexistência de uma união de facto entre a ré e Fernando.

Sentença: Julgou a acção procedente, declarando a inexistência de união de facto entre a ré e Fernando.

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A ré interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto – concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados:

A Recorrente discorda em absoluto da decisão sobre a matéria de facto que julgou não provados os seguintes factos por si alegados:

1 – A ré viveu efectivamente em união de facto com o falecido Fernando, com quem residiu em casa deste sita em (…), Tomar, desde Abril de 2002 ininterruptamente até à data da sua morte.

2 – A ré e Fernando viviam como se de marido e mulher se tratasse partilhando cama, mesa e habitação.

4 – A ré e Fernando auxiliavam-se e respeitavam-se mutuamente como se de marido e mulher se tratasse.

5 – Trocavam mensagens de cariz amoroso e íntimo pelo telemóvel e deixava-lhe bilhetes escritos em casa.

6 – Saíam juntos para fora da cidade, onde eram vistos a passear, almoçar e jantar e no café como se de marido e mulher se tratasse.

8 – Enquanto a ré manteve o seu relacionamento amoroso com Fernando este já não exercia como padre.

11 - No último ano de vida de Fernando, este e a sua companheira, ora ré, contrataram uma empregada de serviço doméstico para fazer a limpeza da casa e tratar da roupa de ambos.

2 – Pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma auto-suficiente, assumindo um valor probatório autónomo.

CATARINA GOMES PEDRA, A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil. Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito, Universidade do Minho, 2014, p. 145, afirma que:

Texto de 20.1.2017, acessível em

https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia536.html#links.

3 – Com maior abertura ao protagonismo das declarações de partes, MARIANA FIDALGO, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, p. 80, afirma claramente que:

«(…) ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objeto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. (…) defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova.»

Por nós, entendemos que a posição mais correta radica na tese mais ampla e permissiva sobre a potencialidade e centralidade das declarações de parte na formação da convicção do juiz.

4 – É do conhecimento público a existência de padres que mantêm relacionamentos amorosos, além de, por outro lado, termos ainda notícia a nível nacional e internacional de abusos de cariz sexual sobre menores, que, em virtude do seu elevado número deram lugar à constituição de comissões de inquérito para averiguação destes casos, pelo que, causa “estranheza” à recorrente que a meritíssima juíza a quo tenha manifestado a sua “estranheza” (passamos a redundância) pelo facto de Fernando ser padre (e, manter consigo um relacionamento como se de marido e mulher se tratasse, vivendo em união de facto), pois antes de o ser, é um ser humano, como qualquer um de nós, com sentimentos, emoções, carências…

5 – E, como a própria recorrente teve oportunidade de explicar ao tribunal no início do seu depoimento, só passados alguns anos após o óbito do seu companheiro, requereu ao Caixa Geral de Aposentações a atribuição da sua pensão de sobrevivência, por uma questão de ponderação pessoal, pois tem a consciência de que iria ter de enfrentar o preconceito de se ter envolvido emocionalmente com um padre e ter vivido com ele, como se fossem marido e mulher, no entanto, ainda assim, muniu-se da coragem necessária para se manifestar junto de instituições públicas, a quem relatou esta realidade com verdade, que, de resto já era do conhecimento público da cidade onde vivia com Fernando, no intuito de fazer valer o direito que assiste, a ser reconhecida esta união de facto.

6 – Crê-se assim que a valoração dos depoimentos da recorrente e das suas testemunhas pelo tribunal a quo foi feita de forma parcial (eivada de preconceitos e de considerações de ordem moral que não competem ao tribunal tecer e muito menos utilizá-los para fundamentar decisões judiciais, que, no entendimento da recorrente se devem fazer com recurso à legislação, doutrina e jurisprudência!

7 – Sobre a alegada circunstância de a recorrente não se mostrar emocionalmente afectada quando se falou do dia do óbito – tal justifica-se pelo decurso do tempo ocorrido desde a data do óbito – 01.09.2014 e a data da realização da audiência de julgamento – 07.07.2020!!!

8 – Quanto ao facto de o corpo de Fernando ter sido detectado por terceiros e não pela recorrente, deve-se ao facto desta, na altura, se encontrar a dar apoio à sua mãe com 100 anos de idade!

9 – A actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, que, quer a recorrente (em sede de declarações de parte) quer as suas testemunhas demonstraram conhecer ampla e aprofundadamente!

10 – Com efeito, amiúde se não na maioria dos casos, quem tem melhor razão de ciência do que a própria parte?

Em terceiro lugar, o texto do artigo 466.º não degradou o valor probatório das declarações de parte, nem pretendeu vincar o seu caráter subsidiário e/ou meramente integrativo e complementar de outros meios de prova.

11 – O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés.

12 – A credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas, sob pena de esvaziarmos a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal de que foi exemplo o brocardo testis unis, testis nullus (uma só testemunha, nenhuma testemunha).

13 – As declarações da parte podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar – congruentemente – outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento.

14 – Inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações da parte e a prova testemunhal, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada segundo os parâmetros explicitados.

15 – Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.

16 – As partes que presenciaram diretamente factos ou neles intervieram são tecnicamente testemunhas dos mesmos.

Em suma, a testemunha e a parte integram o testemunho em sentido lato enquanto prova pessoal e histórica dos factos em discussão.

A parte é a primeira das testemunhas, é de antever que sejam removidas as anacrónicas reservas à admissibilidade do testemunho de parte como meio epistemologicamente válido da formação da convicção do julgador.

17 – Uma vez que os depoimentos das testemunhas arroladas pela recorrente, prestados de forma isenta, coerente e convincente serviram para formar a convicção do tribunal quanto a estes factos, por maioria de razão também deveriam ter servido, para dar como provados os factos indicados sob os números 1 a 11.

18 – Analisadas as passagens das declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas, assinaladas a negrito, verificamos que foram unânimes a confirmar a ocorrência dos factos que, na sentença sub judice não foram considerados provados – 1 a 11.

19 – Verifica-se ter havido aqui erro de julgamento e erro na apreciação da prova.

20 – Violou a decisão recorrida o disposto nos arts. 644.º do CPC, 341.º, 342.º do CC.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido.

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Questão a resolver: Se devem ser julgados provados os factos que permitiriam concluir que a ré e Fernando viviam um com o outro em união de facto à data da morte deste.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Fernando faleceu em 1 de Setembro de 2014.

2. Em 23 de Fevereiro de 2016, a autora, na qualidade de companheira do falecido, veio habilitar-se à pensão de sobrevivência, juntando para o efeito a documentação legalmente exigida: certidão de nascimento do falecido, certidão de nascimento de si própria, declaração sob compromisso de honra e declaração emitida pela junta de freguesia de atestando que à data do óbito, residia em união de facto com o falecido há mais de dois anos.

3. Em 04 de Março de 2016, a Caixa Geral de Aposentações recebeu uma denúncia anónima, informando que “A senhora em questão foi apenas empregada de limpeza do referido falecido e pode-se comprovar através dos seus familiares (irmão), o qual recebeu o subsídio de funeral. Caso venham a contactar este irmão ou familiares do falecido também comprovam que a senhora D. Margarida foi, pelo próprio falecido, afastado definitivamente de sua empregada cerca de 1 ano antes do seu falecimento e encontrado sozinho na sua residência”.

4. Por ofício de 10 de março de 2016, a Caixa Geral de Aposentações solicitou a VM, irmão do falecido Fernando, solicitar o esclarecimento sobre o motivo pelo qual, aquando o pedido de reembolso das despesas de funeral, informou não existirem familiares com direito a prestações familiares.

5. Por mail de 20 de março de 2016, VM veio informar a Caixa Geral de Aposentações do seguinte: “Tendo eu conhecimento que esta senhora foi empregada do meu irmão, tratando-lhe das limpezas da casa, e era remunerada com descontos para a S.S. e que foi despedida mais de um ano antes do seu falecimento. Quando o meu irmão fez a operação para colocar uma prótese numa perna Agosto de 2013 esta pessoa já lá não trabalhava, e por não ter lá ninguém que tratasse dele, esteve a fazer a recuperação na minha casa, bem como noutras alturas quando se encontrava mais débil e ainda viveu muito tempo depois deste episódio. Foi como empregada que o meu irmão sempre me falou dela. Por esta razão penso que não tinha nada mais a declarar. Até porque na altura do falecimento era outra empregada que estava a fazer este serviço. E foi esta nova empregada que foi chamada para abrir a porta de casa, para a polícia (PSP) entrar, depois de os vizinhos darem falta dele três dias, quando foi encontrado morto sozinho. Não sei como o meu irmão sendo Padre Católico Apostólico Romano pudesse estar a viver em união de facto!...”

6. Entretanto, a Caixa enviou um ofício à Ré informando-a dos novos factos trazidos ao procedimento administrativo.

7. A Ré, em resposta, contestou as declarações do irmão do falecido declarando que não foi empregada da limpeza do falecido o que poderá ser comprovado pela família e amigo e que viveu em união da facto com o falecido tendo pernoitado algumas noites fora nos últimos 3 a 4 meses antes do óbito por a sua mãe estar doente e precisar de ajuda mas não apresentou documentos comprovativos de tais factos.

8. A R. tinha e tem o seu emprego a tempo inteiro como assistente operacional na (…), onde trabalha desde 2004 até à presente data, embora tenha tido anteriormente outros empregos.

9. A R e o falecido fizeram férias juntos, viajaram juntos e faziam férias juntos nomeadamente na Madeira e também foram passar várias vezes temporadas à praia no Algarve.

10. A R. confeccionava as refeições para os dois a maior parte das vezes bem e ocupava-se da lide doméstica.

11. Fernando já não exercia como Padre, nem tinha uma Paróquia atribuída desde Abril de 2002.

Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:

1. A R. viveu efectivamente em união de facto com o falecido Fernando com quem residiu em casa deste sita em (…), Tomar, desde Abril de 2002 ininterruptamente até à data da sua morte.

2. A R. e Fernando viviam como se de marido e mulher se tratasse partilhando cama, mesa e habitação.

3. A R nunca foi empregada de serviço doméstico do seu companheiro que também nunca lhe fez descontos para a Segurança Social nesta qualidade.

4. A R. e Fernando auxiliavam-se e respeitavam-se mutuamente como se de marido e mulher se tratassem.

5. Trocavam mensagens com cariz amoroso e íntimo pelo telemóvel e deixava-lhe bilhetes escritos em casa.

6. Saíam juntos para fora da cidade, onde eram vistos a passear, almoçar e jantar e no café como se de marido e mulher se tratasse.

7. Embora com um certo recato devido à profissão de Padre do Fernando que por este motivo nunca assumiu perante a sua família, designadamente junto dos irmãos o relacionamento amoroso que mantinha com a R. dando-lhes até a entender que esta era apenas sua empregada, para justificar a sua presença constante em sua casa.

8. Enquanto a R. manteve o seu relacionamento amoroso com Fernando este já não exercia como Padre.

9. Nos últimos três ou quatro meses que precederam a sua morte, a R. teve de se ausentar de casa algumas noites para pernoitar em casa de sua mãe, na altura com 100 anos que, entretanto, adoecera.

10. Apesar do que manteve a mesma relação de marido/mulher que mantinha com Fernando.

11. No último ano de vida de Fernando, este e a sua companheira, ora, R. contrataram uma empregada de serviço doméstico para fazer a limpeza da casa e tratar da roupa de ambos.

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Nas suas alegações, a recorrente apresenta extensa argumentação tendente a demonstrar que as declarações de parte constituem um meio de prova que não deve ser desvalorizado a priori, antes lhe devendo ser atribuído um valor probatório autónomo e podendo, consequentemente, fundar a convicção do julgador sobre um facto sem necessidade de corroboração por outros meios de prova.

Concordamos com esta orientação e, lendo a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, parece-nos que o mesmo acontece com o tribunal a quo, pois todos os reparos que este fez às declarações de parte da recorrente se basearam no concreto conteúdo destas, que foi considerado não credível em vários aspectos. Logo, é exclusivamente no plano da apreciação da prova concretamente produzida que a análise da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto terá de ser feita.

Na conclusão 1, a recorrente afirma que a sua discordância tem por objecto a forma como foi julgada a matéria que consta dos n.ºs 1, 2, 4, 5, 6, 8 e 11 dos factos não provados. Todavia, quer do corpo das alegações, quer das conclusões 17 e 18, resulta que a recorrente pretende que todos os factos julgados não provados pelo tribunal a quo (n.ºs 1 a 11) sejam julgados provados.

Como fundamento da sua pretensão, a recorrente invoca o teor das suas declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas SG e IL, considerando que de tais meios de prova, concordantes entre si, resulta a matéria de facto que o tribunal a quo julgou não provada.

A primeira observação a fazer é a de que as declarações de parte da recorrente e os depoimentos das testemunhas SG e IL não foram os únicos meios de prova produzidos na audiência final. Também aí depuseram as testemunhas VM e AF, as quais apresentaram uma versão dos factos muito diferente. Portanto, contrariamente à ideia que a recorrente pretende transmitir nas suas alegações de recurso, o tribunal a quo não decidiu contra a prova produzida, mas apenas contra uma parte desta.

A segunda observação que se impõe é a de que a crítica, que a recorrente dirige ao tribunal a quo, segundo a qual este valorou as suas declarações de parte e os depoimentos das testemunhas SG e IL de forma parcial e eivada de preconceitos e considerações de ordem moral, fundados no facto de Fernando ser padre, não tem razão de ser. Aquilo que o tribunal a quo observou, a propósito da alegada percepção, pelos habitantes de Tomar, de que a recorrente e Fernando constituíam um casal, é que a afirmação de tal percepção por parte da primeira lhe causou estranheza, considerando que o segundo era padre. Não há, nesta observação, qualquer valoração de ordem moral por parte do tribunal a quo. Este não afirmou ou deu a entender que reprovava a alegada união de facto com um padre. Aquilo que causou estranheza ao tribunal a quo foi que as pessoas de Tomar tivessem a percepção de que a recorrente e Fernando formassem um casal, atendendo a que este era padre. O que se compreende, dado que o facto de um homem ser padre impede, à partida, que o mesmo viva em união de facto com uma mulher, pelo que as pessoas contam com essa normalidade na leitura que fazem da realidade. Mais, num passo ulterior da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal a quo desvalorizou expressamente o facto de Fernando ser padre, ao afirmar que, a ter existido uma união de facto, a família daquele conheceria tal situação, tanto mais que aquele já nem sequer exercia.

O tribunal a quo especificou as razões que o levaram a desvalorizar as declarações de parte da recorrente e os depoimentos das testemunhas SG e IL no que concerne à questão central desta acção, que é a existência de uma situação de união de facto entre a recorrente e Fernando à data da morte deste. Ouvida a totalidade da prova produzida na audiência final, acompanhamos a generalidade das reservas feitas pelo tribunal a quo.

Comecemos pela análise das circunstâncias em que Fernando morreu. Este foi encontrado morto em casa, na sequência de um vizinho (Cardoso) ter estranhado não o ver durante algum tempo e, por isso, ter alertado a autoridade policial. Nas suas declarações de parte, a recorrente admitiu que foram estas as circunstâncias em que a morte de Fernando ocorreu.

As circunstâncias descritas inculcam que Fernando não vivia em união de facto com a recorrente à data da sua morte.

A justificação dada pela recorrente para o facto de Fernando ter morrido sozinho em casa e ela só ter tomado conhecimento desse facto quando foi alertada por um telefonema de Cardoso, foi a de que ela, no período que antecedeu a morte, passava períodos de alguns dias em casa de sua mãe, muito idosa, para cuidar desta. Daí a recorrente, segundo afirmou, ter de viver alternadamente em casa de sua mãe e na casa onde alegadamente vivia com o falecido, tendo a morte ocorrido durante uma das suas ausências.

Esta justificação não é credível.

Fernando estava sozinho em casa quando morreu e foi o seu vizinho Cardoso quem estranhou não o ver, ao ponto de solicitar a intervenção da autoridade policial. De acordo com as regras da experiência, uma situação como esta não acontece imediatamente após a morte. Só algum tempo depois desta os vizinhos estranham a ausência do falecido. E é ainda mais algum tempo depois que os vizinhos ficam suficientemente alarmados para tomarem a iniciativa de alertarem as autoridades. Ainda que se trate de um vizinho com quem se tenha um relacionamento próximo, ele só estranhará a ausência se esta se prolongar e só chamará as autoridades quando tal estranheza se avolumar com o decurso do tempo. Pelo menos dois ou três dias de dilação entre a morte e a intervenção das autoridades parecem-nos inevitáveis. Esta ilação encontra corroboração no depoimento da testemunha AF, cunhada de Fernando, segundo o qual este esteve vários dias morto dentro de casa, pois o cadáver já estava a entrar em decomposição quando foi descoberto. Foi AF quem limpou o local de onde o cadáver foi retirado, pelo que estava em boas condições para se aperceber do estado do mesmo.

Foi Cardoso quem alertou a recorrente, através de uma chamada telefónica. Contudo, não foi a recorrente quem Cardoso alertou em primeiro lugar. Segundo a própria recorrente, depois do telefonema de Cardoso, foi à casa de Fernando, onde entrou com a sua chave. Porém, quando a recorrente chegou, já aí se encontravam várias pessoas: a polícia, o médico de família do falecido e um juiz amigo do falecido. A porta da casa tinha sido aberta com a chave da empregada doméstica. Após a recorrente se identificar, um agente da PSP ordenou-lhe que esta entregasse a sua chave, o que ela fez.

Esquematicamente: a recorrente encontrava-se em casa de sua mãe, Fernando morreu sozinho em sua casa, foi um vizinho quem estranhou a ausência deste e, quando foi necessário abrir a porta da casa, foi chamada a empregada doméstica.

A estes factos, adicionemos quatro outros.

Quer a casa da mãe da recorrente, quer a casa de Fernando, situam-se em Tomar. Segundo a testemunha IL, bastam oito minutos para percorrer, de automóvel, a distância que as separa.

Segundo relatou a recorrente, sua mãe era muito idosa à data do óbito de Fernando, mas só viria a falecer cerca de cinco anos depois. Em 2014, a mãe da recorrente teve um problema de visão e, em consequência disso, não podia cuidar de si e de sua casa. Daí que necessitasse do auxílio da recorrente. Todavia, não estava acamada.

Foi o irmão do falecido, VM, quem tratou do funeral e pagou o respectivo custo. VM residia em S. Romão, na Serra da Estrela, tendo tomado conhecimento de que o irmão falecera através do já anteriormente referido amigo deste que era juiz, o qual lhe telefonou. Logo de seguida, telefonou-lhe um agente da PSP, solicitando-lhe que se apresentasse em Tomar, para tratar dos assuntos relacionados com a morte do irmão, o que fez. Tudo isto foi relatado por VM, ouvido na qualidade de testemunha, cujo depoimento nos pareceu absolutamente espontâneo e credível.

Fernando tinha sérios problemas de saúde, como a própria recorrente relatou, ainda que só em parte. Nomeadamente, teve em infarto em 2001.

Ficamos assim com o cenário completo, que nos suscita as observações que se seguem.

É, no mínimo, duvidoso que a necessidade – que não colocamos em causa – de a recorrente auxiliar sua mãe impusesse que ela passasse noites seguidas em casa desta. Se a mãe da recorrente não estava acamada e a razão da sua incapacidade para cuidar de si e da casa era um problema de visão, bastaria a presença da filha durante o dia, ou durante a parte do dia em que não estivesse no seu posto de trabalho. Residindo a oito minutos de automóvel da casa de sua mãe, a recorrente poderia circular entre uma casa e a outra sem grande dificuldade. Não precisava de passar períodos superiores a uma semana em casa de sua mãe, como afirmou fazer.

A circunstância de Fernando ter uma saúde frágil torna ainda menos compreensíveis as alegadas ausências da recorrente durante vários dias seguidos para cuidar de sua mãe. No decurso das suas declarações de parte, a recorrente justificou o facto de Fernando lhe deixar frequentemente recados escritos em casa, entre os quais aquele que juntou com a contestação, nos seguintes termos: ele sabia mais ou menos a hora a que eu chegava e, se saísse, se fosse ver futebol com vizinho do 2.º andar, ou se fosse caminhar, deixava recados a dizer que não estava no momento em casa e para eu não me preocupar, pois estava tudo bem; em 2001 ele teve um infarto e sabia que eu me preocupava com ele. É evidente o contraste entre esta alegada preocupação exacerbada da recorrente com o estado de saúde de Fernando, que levaria este a deixar-lhe recados escritos para que ela não ficasse preocupada com o simples facto de chegar a casa e ele lá não estar, e a displicência com que a mesma recorrente, na última fase da vida de Fernando, o teria deixado em casa sozinho durante dias a fio. Mais, durante o tempo em que Fernando esteve morto em casa, a recorrente, não só não apareceu lá, ainda que de passagem, como nem sequer deve ter telefonado para perguntar se aquele estava bem. Se tiver telefonado e as suas chamadas não tiverem sido atendidas, é incompreensível, caso vivesse com o falecido em união de facto, que não tenha ido a casa averiguar se algo de anormal se passava.

As circunstâncias em que Fernando morreu e o seu corpo foi encontrado apontam, pois, decisivamente, no sentido de que ele não vivia com a recorrente em união de facto, ao menos à data da sua morte. Não é crível que, se essa união de facto existisse, a recorrente estivesse ausente de casa durante vários dias seguidos, sem sequer lá passar ao menos uma vez por dia. Como não é crível que a recorrente não falasse com Fernando através do telefone durante vários dias seguidos. Tendo Fernando morrido sozinho em casa e o seu cadáver aí permanecido vários dias (não sabemos quantos), até que um vizinho estranhasse a sua ausência e alertasse a autoridade policial, parece-nos evidente que a recorrente, que se encontrava na mesma localidade mas completamente alheada em relação à situação daquele, não vivia em união de facto com o mesmo. É esta a única explicação plausível para o facto de ter sido necessário que um vizinho alertasse a autoridade policial sobre a ausência de Fernando para que o corpo deste fosse encontrado, enquanto a recorrente de nada se apercebeu e só apareceu em casa daquele quando foi avisada.   

Indício evidente de que a recorrente não vivia em união de facto com Fernando à data da morte deste foi também a circunstância de ter sido a empregada doméstica daquele a pessoa chamada para abrir a porta de casa e não a recorrente, como decerto aconteceria se fosse reconhecida como companheira do falecido. Quando a recorrente chegou a casa de Fernando, já lá estavam outras pessoas, além de, pelo menos, um agente da PSP. E, quando lá chegou, foi-lhe retirada a chave da casa.

Sintomático da ausência de uma relação de união de facto entre a recorrente e Fernando à data da morte deste é também o facto de ter sido o irmão daquele a tratar do funeral e a pagar o respectivo custo. A justificação dada pela recorrente foi a de que ficou impedida de tratar do funeral ao ser-lhe vedado o acesso à casa onde alegadamente viveria com Fernando, através da retirada da chave da porta. Esta justificação não convence. Primeiro, porque a própria retirada da chave sem oposição da recorrente, que nada fez para a recuperar, indicia, em si mesma, que a recorrente não vivia em união de facto com o falecido. Segundo, porque, se a recorrente pretendesse tratar do funeral e pagar o respectivo custo, seria normal, no mínimo, procurar conversar sobre esse assunto com o irmão do falecido. Toda a descrita actuação da recorrente seria deveras estranha se ela vivesse em união de facto com o falecido.

Concluímos, assim, pela inexistência de prova segura de que a recorrente vivesse em união de facto com Fernando quando este morreu.

Mais, nem sequer pode ser julgado provado que tal união de facto alguma vez tenha existido.

As declarações de parte da recorrente foram parcas em pormenores sobre a alegada vida em comum com Fernando. A recorrente produziu um depoimento defensivo, omitindo pormenores importantíssimos da vida daquele, os quais, a ter havido vida em comum, a teriam seguramente marcado. Só através das testemunhas VM e AF foi possível saber, por exemplo, que Fernando teve cancro no colon e, por isso, teve de usar um saco de ostomia durante algum tempo.

Já os depoimentos das testemunhas VM e AF nos pareceram espontâneos e foram corroborados por diversas circunstâncias que se apuraram, pelo que merecem credibilidade.

Segundo a recorrente, VM nunca foi à casa onde ela e Fernando viviam. Os contactos entre os dois irmãos eram apenas através do telefone. Pessoalmente, só quando Fernando ia visitá-lo a S. Romão, na Serra da Estrela, o que acontecia, sobretudo, no Natal.

VM descreveu o seu relacionamento com o irmão de forma completamente diversa. Segundo esta testemunha, tinha com Fernando um relacionamento normal de irmãos, ou seja, falavam ao telefone de vez em quando e visitavam-se mutuamente com a periodicidade que a distância entre as suas residências permitia. VM deslocava-se a Tomar para visitar o irmão uma média de três vezes por ano, embora pudesse passar mais de um ano sem o fazer. Para o fim da vida do irmão, ia visitá-lo mais frequentemente. Visitava-o sempre em casa dele, que identificou. Encontrou o irmão sempre sozinho em sua casa. Foi-lhe perguntado se havia em casa do irmão objectos que sugerissem que aí residia uma mulher, ao que respondeu que não conseguia responder porque não frequentava os quartos e não estava atento a pormenores dessa natureza. Ter-lhe-ia sido fácil responder simplesmente que não, sem ter o cuidado de desvalorizar a sua própria resposta, o que corrobora a honestidade no seu testemunho.

Segundo VM, o irmão também o visitava em sua casa e aí costumava ficar durante alguns dias. Fazia-o “uma meia dúzia de vezes por ano”. Ia normalmente sozinho, mas houve uma vez em que foi com um juiz que era muito amigo dele. Nunca levou outra pessoa. Uma dessas visitas ocorreu pouco tempo antes da morte do irmão.

VM também relatou que seu irmão passou períodos em sua casa a recuperar de intervenções cirúrgicas a que foi submetido.

Sobre a recorrente, VM afirmou que o irmão lhe disse que ela era sua empregada doméstica e que só a viu duas vezes. Disse-lhe também o irmão que a recorrente trabalhou para ele durante alguns anos e que a despediu “um ano, um ano e tal, antes de falecer”, devido a um “desvio de dinheiros”. Um amigo do irmão arranjou-lhe então uma senhora que fazia limpeza em casa dele. Fazia lá umas horas às quintas-feiras. Só viu esta senhora uma vez. Esta senhora trabalhou para o irmão mais ou menos no meio ano que antecedeu a morte deste.

Sobre a morte do irmão, VM disse que dela tomou conhecimento através de um telefonema do juiz que era amigo daquele. Ou seja, observamos nós, Fernando tinha o irmão como pessoa de referência para ser avisada se alguma coisa lhe acontecesse, tendo, tudo o indica, fornecido o contacto deste àquele que parece ter sido o seu amigo mais chegado. Nada disto faria sentido se Fernando e a recorrente vivessem um com o outro em união de facto. Sintomaticamente, logo a seguir ao telefonema do amigo do irmão, um agente da PSP telefonou a VM, solicitando-lhe que se apresentasse em Tomar a fim de tratar dos assuntos relacionados com a morte do irmão. VM assim fez, tendo-lhe a PSP entregue a chave da casa do irmão.

AF, casada com VM, descreveu o relacionamento entre este e o irmão como sendo próximo, ao contrário da ideia que a recorrente pretendeu transmitir. Segundo AF, Fernando ia visitá-los a S. Romão muitas vezes, nunca tendo levado a recorrente consigo. Também passou períodos em casa da testemunha e do marido para recuperar de intervenções cirúrgicas, por viver sozinho e não ter quem dele cuidasse. Após o transplante de coração, que AF calculou ter sido realizado em 2008, Fernando esteve três meses na sua casa em recuperação.

AF acompanhou o marido em algumas das visitas que este fez ao cunhado. Este disse-lhes que tinha uma empregada. Visitavam o cunhado em casa deste, onde nunca viram a recorrente. Nunca viu qualquer objecto ou peça de roupa em casa do cunhado que sugerisse que lá vivia uma mulher, o que confirmou quando, juntamente com as irmãs daquele, esvaziou a casa após o óbito.

Acerca da recorrente, AF afirmou que Fernando disse, a si e ao seu marido, que se tratava de uma empregada doméstica e que “a tinha posto de lá para fora” cerca de um ano antes de morrer. Quando despediu a recorrente, Fernando contratou outra empregada, que ia fazer a limpeza às quintas feiras.

É evidente a incompatibilidade das declarações prestadas pela recorrente com os depoimentos das testemunhas VM e AF. E, repetimos, ao contrário da recorrente, estas duas testemunhas prestaram depoimentos espontâneos e circunstanciados, em termos que não nos suscitam qualquer reserva.

Já os depoimentos das testemunhas SG e IL, amigas da recorrente, suscitam as maiores reservas. Ambas afirmaram que a recorrente viveu com Fernando até à morte deste. Porém, pouco sabiam, por conhecimento directo, acerca dessa alegada vida em comum. Aquilo que relataram baseou-se quase exclusivamente naquilo que a recorrente lhes disse. Nomeadamente, nenhuma delas alguma vez esteve com o suposto casal ou se relacionou directamente com Fernando.

Os factos de que aquelas duas testemunhas revelaram ter conhecimento directo são insuficientes para que se possa considerar que a recorrente e Fernando alguma vez viveram um com o outro em união de facto.

Numa ocasião, a recorrente levou SG à casa de Fernando, que aí se não encontrava. A recorrente mostrou-lhe o interior da casa, nomeadamente “o quarto deles, onde ambos dormiam”. Ou seja, SG viu aquilo que a recorrente lhe mostrou e ouviu aquilo que a recorrente lhe disse. Dessa visita nada de útil resultou para a prova de que a recorrente efectivamente vivia nessa casa. O facto de a recorrente ter a chave da casa de Fernando não demonstra que ela aí residisse. Se fosse empregada doméstica, seria natural que tivesse a chave. Também é possível que a recorrente, em algum momento, tenha mantido alguma proximidade ou, mesmo, intimidade com Fernando, o que explicaria a posse da chave. Por si só, a posse da chave não demonstra que a recorrente vivesse na casa em questão, em união de facto com o proprietário desta.

Outro facto de que SG tinha conhecimento directo é o seguinte: como residia numa casa que dá para as traseiras da de Fernando, via, de vez em quando, este e a recorrente à janela. Também este facto pode ser explicado pelo facto de a recorrente ser empregada doméstica de Fernando, ou de, em algum momento, estes terem mantido um relacionamento íntimo, ou até de serem, simplesmente, amigos. Não demonstra que eles vivessem um com o outro em união de facto.

O facto de SG ter encontrado a recorrente e Fernando a fazer compras também não demonstra que eles vivessem um com o outro em união de facto. Se a recorrente fosse apenas empregada doméstica de Fernando, seria normal irem ambos às compras, para mais tendo este problemas cardíacos e motores.

No mais, o conhecimento de SG baseou-se exclusivamente naquilo que ouviu da recorrente: a suspeita de gravidez, a suposta vivência em comum com Fernando, a suposta alternância entre a casa da mãe e a deste último durante o período que antecedeu o óbito, a negação de que a recorrente fosse empregada doméstica de Fernando, os relatos de “coisas íntimas”, as supostas visitas a Fernando quando este esteve internado num hospital em Coimbra, os factos relativos à morte de Fernando.

Os factos de que IL teve conhecimento directo foram apenas os seguintes: encontrou, duas ou três vezes, a recorrente a almoçar com Fernando num restaurante na Nazaré, e viu-os algumas vezes a andar de automóvel juntos. No mais, só sabia aquilo que a recorrente lhe ia dizendo.

Uma das coisas que a recorrente lhe disse até é algo bizarra. Disse IL que a recorrente a convidou para ir a casa dela ver “o nosso quarto”, ou seja, o quarto onde ela e Fernando dormiriam. Porquê o quarto, especificamente?

Outros convites se seguiram, mas IL nunca foi à casa onde a recorrente supostamente viveria com Fernando. IL também nunca convidou o suposto “casal” para ir a sua casa, apesar de se apresentar como amiga íntima e de longa data da recorrente.

Igualmente bizarras eram as repetidas referências, relatadas por IL, que, nas suas conversas com a recorrente, esta fazia ao “nosso quarto”. Porquê esta obsessão com o quarto?

Em suma, os depoimentos das testemunhas SG e IL pouca utilidade têm para a prova dos factos em análise. No essencial, o que estas testemunhas sabiam baseava-se exclusivamente naquilo que a recorrente lhes dizia.

A recorrente juntou aos autos um escrito, a si dirigido, que, numa ocasião, Fernando deixou em casa. O teor desse escrito é o seguinte: “Margarida, bem vinda! Estás em tua casa! Um beijo muito muito grande!”. Este documento inculca precisamente o contrário daquilo que a recorrente pretende. Não faz sentido pôr à vontade, escrevendo “bem vinda” e “estás em tua casa”, a quem já lá resida. Pelo contrário, aquilo que se pretende com uma mensagem como esta é receber afavelmente, em casa, alguém que aí não reside. A parte final do referido escrito inculca o mesmo que o facto, provado, de a recorrente e Fernando terem viajado e passado férias um com o outro: em algum momento, eles mantiveram uma relação mais próxima ou, mesmo, íntima, um com o outro. A natureza exacta dessa relação não é clara, mas é seguro que, durante o tempo em que a mesma perdurou, a recorrente era mais que uma simples empregada doméstica de Fernando. O que, obviamente, não significa que eles tenham, alguma vez, vivido um com o outro em união de facto.

Por outro lado, surpreende a falta de documentos comprovativos de que a recorrente residisse, em algum momento, na mesma casa que Fernando. A recorrente alegou ter vivido com este em união de facto desde o final do ano de 2001 até 01.09.2014, data da morte. Quase 13 anos. Seria natural que a recorrente tivesse em seu nome algum contrato de fornecimento de serviços à alegada residência comum. Ou, ao menos, que algum contrato por si celebrado, respeitante à sua pessoa, estivesse domiciliado nessa morada. Por exemplo, decorre da prova produzida que a recorrente tinha uma viatura automóvel, pelo que se parte do princípio de que tinha carta de condução e seguro. Seria normal que a morada fornecida à entidade emitente da carta de condução e à seguradora fosse a da alegada residência comum. Também está provado que a recorrente trabalhava a tempo inteiro por conta de outrem, pelo que deveria fazer descontos para a segurança social. Seria normal que a morada indicada à entidade patronal e à segurança social fosse a da alegada residência comum. O mesmo se diga relativamente à situação fiscal da recorrente. Seria normal que a morada indicada à Autoridade Tributária e Aduaneira fosse a da alegada residência comum. Também é natural que a recorrente tivesse uma conta bancária, mais não seja para receber o seu vencimento. Seria normal que a morada fornecida ao banco fosse a da alegada residência comum. Em todas estas hipóteses, gerar-se-iam documentos indicando, como domicílio da recorrente, a casa onde esta afirma ter vivido com Fernando em união de facto. Todavia, nem um só documento dessa natureza foi junto aos autos. Este défice de prova documental tem de ser valorado no sentido de indiciar que a recorrente nunca viveu na mesma casa que Fernando.

Por último, abordemos a questão da aparente contradição resultante de ter sido, por um lado, julgado provado que a recorrente confeccionava as refeições para si e para Fernando a maior parte das vezes e se ocupava da lida doméstica, e, por outro, julgado não provado que, entre Abril de 2002 e a data da morte de Fernando, este e a recorrente vivessem na mesma casa como se fossem marido e mulher, partilhando cama e mesa. A explicação mais plausível seria, à partida, a de a recorrente ter sido empregada doméstica de Fernando. Contudo, ficou provado que a recorrente tinha e tem, desde 2004, um emprego a tempo inteiro, como assistente operacional, na (…), o que, em princípio, afastaria aquela hipótese. A isso se soma o facto de se ter provado que a recorrente e Fernando fizeram viagens e passaram férias juntos, nomeadamente na Madeira e no Algarve.

Lida a fundamentação expendida pelo tribunal a quo e ouvida a totalidade da prova produzida, parece-nos possível harmonizar os referidos factos.

A necessidade que Fernando tinha de uma empregada doméstica era limitada, o que é demonstrado pelo facto, referido pelas testemunhas VM e AF, de a empregada que aquele teve nos últimos meses da sua vida apenas trabalhar para si uma vez por semana, durante “umas horas”, às quintas-feiras. Sendo assim, era possível a recorrente ter um emprego a tempo inteiro e trabalhar, durante curtos períodos do dia, como empregada doméstica de Fernando.

A objecção de que não é habitual a entidade patronal e a empregada doméstica fazerem viagens e passarem férias um com o outro não tem um valor absoluto. Não é normal, mas é possível. Pode, na realidade, acontecer que duas pessoas ligadas entre si por um vínculo laboral passem a ter, em determinada altura, uma relação mais próxima, seja de amizade, seja mesmo mais íntima, que os leve a estar um com o outro fora do âmbito da prestação de trabalho, nomeadamente passeando e passando férias juntos. Tanto quanto isso pode acontecer com duas pessoas sem o referido vínculo laboral. Em qualquer caso, sem que tal implique a existência de uma união de facto entre essas duas pessoas. O facto de duas pessoas passarem férias e passearem juntas repetidamente poderá indiciar a existência de uma situação de união de facto, mas não mais do que isso. No caso da recorrente e de Fernando, tal indiciação é contrariada pelo conjunto de circunstâncias que acima analisámos, que não se compatibilizam com a existência da alegada situação de união de facto.

Inexiste, assim, fundamento para julgar provado qualquer dos factos que o tribunal a quo julgou não provados. Não basta a recorrente afirmar que vivia em união de facto com Fernando e duas testemunhas corroborarem essa afirmação para que isso fique demonstrado. Verificam-se demasiadas incongruências para que tal versão factual possa ser julgada provada.

Concluindo, a sentença recorrida deverá ser mantida na íntegra, improcedendo o recurso.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

*

Évora, 26.10.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta


Acórdão da Relação de Évora de 23.05.2024

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