quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 12.10.2023

Processo n.º 3601/18.7T8LLE.E1

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Sumário:

1 – Numa situação em que o direito de propriedade sobre um imóvel faça parte, em regime de comunhão, de duas heranças distintas, importa distinguir o direito que faz parte de cada herança do direito de cada herdeiro à respectiva herança. O artigo 1405.º, n.º 2, do Código Civil é aplicável no primeiro nível. Os artigos 2078.º e 2091.º, n.º 1, do Código Civil, são aplicáveis no segundo nível.

2 – Se o proprietário de um prédio urbano, onde reside, e de um prédio rústico adjacente, acordar, com os membros de um agregado familiar, que estes passarão a residir consigo e a poder utilizar o prédio rústico com a contrapartida de lhe prestarem os cuidados pessoais de que necessita, os segundos tornar-se-ão possuidores dos prédios em nome do proprietário, nos termos do artigo 1253.º, al. c), do Código Civil. Serão, pois, meros detentores ou possuidores precários.

3 – Se, após a morte do proprietário e possuidor, continuarem a utilizar os prédios em termos idênticos àqueles em que o faziam em vida daquele, os membros daquele agregado familiar continuarão a ser meros detentores ou possuidores precários. Para se tornarem verdadeiros possuidores nos termos do direito de propriedade, terão de inverter o título da posse.

4 – A inversão do título da posse tem de consistir numa oposição expressa através de actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como proprietário) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem.

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Autores/reconvindos: PG e MG.

Réus: HC e SC.

Reconvinte: SC.

Intervenientes principais, como associadas dos autores/reconvindos: MC, MCC e MS.

Pedido dos autores: Condenação dos réus a reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre os dois prédios identificados na petição inicial e a restituírem os mesmos prédios, livres de pessoas e coisas.

Pedido reconvencional: Declaração de que os réus são os legítimos possuidores dos prédios reclamados nos autos; condenação dos autores a reconhecerem que os réus são os legítimos proprietários dos prédios; reconhecimento, aos réus, do direito de propriedade dos prédios por via da usucapião; que seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor dos autores.

Sentença: Julgou a acção procedente, declarando os autores, na qualidade de herdeiros de TH, titulares, em comum e sem determinação de parte, do direito de compropriedade, na proporção de ½, dos dois prédios identificados na petição inicial, e condenando os réus a restituírem os mesmos prédios aos autores, livres de pessoas e coisas; julgou a reconvenção improcedente, absolvendo os autores/reconvindos e as chamadas/reconvindas do pedido.

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Os réus interpuseram recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A. Uma vez que a douta decisão ordena a restituição da casa de habitação dos réus, nos termos do art.º 647º, nº 3 do CPC deve ser dado efeito devolutivo ao presente recurso.

B. A meritíssima Juiz a quo não teve em devida consideração os depoimentos das testemunhas:

− JBB – Em 22 de novembro pelas 13:21h;

− NFS – Em 22 de novembro, pelas 13:31h;

− MPG - Em 22 de novembro, pelas 13:48h;

− JDC: - Em 22 de novembro, pelas 13:59h;

− JCP (filho da ré): - Em 22 de novembro, pelas 14:40h;

− AAA – em 6 de dezembro pelas 13:50.

C. Dos depoimentos destas testemunhas, resulta claramente que deveria ter sido dados como provados os seguintes factos:

- Os Réus deram continuidade à posse que tinha sido dada pelos anteriores proprietários desde 1991;

- Desde 1991 os Réus agiram com a intenção dar continuidade a essa posse;

- Só com a citação os Réus tiveram conhecimento de que existiam interessados nos prédios;

- Até à data da propositura da acção ninguém reclamou a propriedade dos prédios aos Réus;

- Os Autores nunca reclamaram contra a presença e utilização dos imóveis por parte dos Réus.

D. Deve, nos termos do art.º 662.º, nº 1 do CPC determinar-se a alteração da matéria de facto dada como provado pela sentença em recurso e dar-se como provados estes factos.

E. E sendo assim, como se considera, não podia a meritíssima Juiz deixar de considerar que os réus são os verdadeiros proprietários do prédio sub judice, nos termos do art.º 1296.º do CC.

F. A sentença a quo considera que os autores sendo proprietários de metade do prédio deverão ser empossados da totalidade do prédio.

G. Pelo art.º 1405.º, nº 2 do Código Civil - Cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro.

H. Porém, no presente caso não estamos perante um caso de compropriedade em que se possa determinar que os AA., são proprietários de metade, nem os AA., fazem esse pedido ou invocam essa qualidade de comproprietários.

I. A presente ação é intentada como herdeiros do prédio e o normativo a aplicar terá de ser o art.º 2091.º do C. C. que determina que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.

J. Ao não ter em conta este regime normativo, a douta sentença produz um problema que não vai ser possível resolver já que os réus se intitulam proprietários e sendo determinado que os AA., são proprietários de metade terão de interpor ação de divisão de coisa comum nos termos do art.º 925.º do CPC.

K. Resulta claramente que a presente ação não cumpre a exigência do art.º 33º do CPC já que ao não respeitar o citado art.º 2091º do CC, a decisão não produz “o seu efeito útil normal” (nº 2 do art.º 33.º), ou seja não “regula definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado” (n.º 3 do art.º 33.º).

L. Os AA., teriam de vir em conjunto com todos os herdeiros, proceder à reivindicação da propriedade e da respetiva entrega e se alguns não quisessem intervir, cabia-lhes deitar mão da ação de suprimento nos termos do art.º 1000.º a 1005.º do CPC.

M. A própria meritíssima juiz a quo, no decorrer do processo “voltou atrás” e quis corrigir o erro inicial de chamar a juízo as restantes herdeiras, sendo que os autos já se encontravam inquinado - basta cfr., despacho datado de 15.06.2020.

N. Por mera cautela de patrocínio, cumpre, em acréscimo, demonstrar cabalmente que mesmo que se pudesse considerar que algum destes fundamentos configurasse uma efetiva causa de procedência da ação, a mesma não seria apta a produzir os efeitos pretendidos pelos Autores, atenta a sua insusceptibilidade de se fazer por exemplo a tradição de metade de um bem imóvel da forma como o tribunal a quo determinou.

O. Por sua vez, nas Cadernetas Prediais Urbanas, é referido que é TH o cabeça de casal com propriedade plena.

P. Os Autores afirmaram ainda na petição inicial no seu artigo sétimo que “Os bens imóveis supramencionados foram adquiridos por via de sucessão mortis causa pelos descendentes do de cujus, PG e MG, de ora avante os Autores”.

Q. O que é totalmente falso, porque os Autores a adquirir algo apenas adquiriram metade do quinhão hereditário, o que decorre expressamente dos documentos que os próprios Autores juntam nos presentes autos.

R. Não obstante, os Autores no artigo 19.º da petição inicial, posteriormente aperfeiçoada, reconheceram MCC, residente em (…), como uma das herdeiras e que desconheciam os restantes herdeiros cujas identidades se desconhece. Por essa razão, não conseguiram os Autores registar a propriedade plena dos referidos imóveis.

S. É inegável, que os Autores não são os proprietários plenos dos bens imóveis objeto dos presentes autos.

T. Com efeito, todas as dúvidas foram dissipadas com o ofício do Serviço de Finanças de Loulé, que juntou o processo de imposto sucessório n.º 35502 de MMC ocorrido a 23/04/1992.

U. Do processo de imposto sucessório acima referido, resulta que a falecida deixou o seu quinhão hereditário (bens imóveis dos presentes autos) a MC, MCC e MVC (esta também falecida à data do mesmo) e que as mesmas deixarão aos sobrinhos da testadora, suas filhas e irmãs.

V. Mais uma razão pela qual os Autores não conseguiram registar a propriedade plena dos referidos imóveis, nem tão pouco sabiam deste testamento, ou não o quiseram juntar. Juntaram apenas o testamento que mais lhes servia.

W. Não obstante, do ofício do Serviço de Finanças de Loulé, que consta dos presentes autos - conclui-se que existem vários herdeiros legítimos e não apenas os próprios Autores que a todo o custo pretendem “só para si” a propriedade dos bens imóveis que são discutidos nos presentes autos.

Y. Em última instância, nunca poderiam os Autores retirar os Réus de metade dos bens imóveis, pelo menos!

X. Não podem os Autores despejar os Réus de um imóvel em que apenas alegam metade do mesmo.

Z. O novo facto trazido ao processo por parte do Serviço de Finanças de Loulé, demonstra claramente que a doação, pelo proprietário/autor do testamento, dos imóveis aos réus, que está na origem da usucapião alegada nos autos, é posterior ao testamento.

AA. A vontade expressa, pelo proprietário/autor do testamento, já posteriormente à outorga do testamento a favor dos AA, de aprovar a ocupação dos prédios pelos RR como seus proprietários e com animus de aquisição, configura uma evidente revogação do testamento.

BB. Essa ocupação pelos RR., com animus de aquisição é feita desde há mais de 20 anos, à vista de todos e sem oposição de ninguém, designadamente, dos Autores.

CC. Os beneficiários do testamento desinteressaram-se pelos seus quinhões hereditários.

DD. O que também consubstancia uma vontade expressa de aceitar a revogação do testamento e aceitação da usucapião pelos RR..

EE. Como é comummente sabido e resulta da lei, a aquisição da propriedade, por usucapião do identificado imóvel está dependente da verificação destes requisitos legalmente exigidos: a posse em nome próprio do bem, ininterruptamente, por determinado período (de cinco a vinte anos), à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que é o seu exclusivo dono.

FF. Dúvidas pois não podem restar que há muito se constituiu por via da usucapião o direito de propriedade privada dos Réus sobre os prédios identificados na petição inicial.

GG. Conforme, singelamente já se percebeu pelo depoimento das testemunhas até ao momento, a vontade expressa por BFA foi que os RR., ficassem com a propriedade para estes, em compensação da assistência que lhe prestavam na velhice.

HH. Assim, existe fundamento jurídico para se considerar nula a ação em causa e, consequentemente, não se poderia ter decidido pelo deferimento “ainda que parcial” da mesma.

II- Até a simples questão do IMI foi mal interpretada pelo Tribunal a quo, já que os RR., juntaram prova documental do pagamento.

JJ. O carácter necessário do litisconsórcio dimana da ausência no processo, como parte, de alguém cuja intervenção na relação controvertida é exigida pela lei ou pelo negócio jurídico por forma a obter uma decisão apta a produzir, sobre a relação material controvertida, o seu efeito útil normal.

KK. É inquestionável que todos os herdeiros são titulares da relação material controvertida a propriedade do bem reivindicado para a herança e que todos têm interesse direto em demandar.

LL. Deve assim ser revogada a sentença em recurso por ter violado o art.º 1296.º do Código Civil, que permita concluir pela propriedade do imóvel por parte dos réus e ainda por ter violado o art.ºs 33.º do CPC, conjugado com o art.º 2091.º do CC., que obriga a litisconsórcio de todos os herdeiros, absolvendo-se os réus do pedido.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.

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Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as questões a resolver são as seguintes:

- Legitimidade processual dos recorridos PG e MG;

- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

- Verificação dos pressupostos da usucapião.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1) Encontra-se inscrito a favor dos Autores, em comum e sem determinação de parte ou direito, por sucessão hereditária por óbito de TH, ½ do direito de propriedade do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo (…) e ½ do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo (…), ambos sitos em (…), freguesia de (…), concelho de Loulé, e descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs (…) e (…), respectivamente.

2) Os prédios identificados em 1) faziam parte do património conjugal de MMC e BFA, casados que foram entre si sob o regime de comunhão geral de bens, falecidos em 23.04.1992 e 03.06.1994, respectivamente, sem terem deixado descendentes.

3) Por testamento lavrado em 26.10.1978, MMC instituiu como seu herdeiro o marido BFA, com a condição de o mesmo conservar os bens que compreendem a meação da testadora, não podendo deles dispor, por acto entre vivos ou mortis causa, e revertendo os mesmos, por óbito daquele, para os sobrinhos da testadora.

4) Por testamento lavrado em 25.06.1991, BFA instituiu TH como seu único e universal herdeiro.

5) Em 23.08.2013 faleceu TH, tendo deixado como únicos e universais herdeiros o filho PG e a neta MG, filha da sua pré-falecida filha MM.

6) Em data não concretamente apurada, no ano de 1991, a Ré e o seu agregado familiar, do qual o Réu seu filho fazia parte, foram autorizados por BFA a residir e utilizar os prédios referidos em 1) acordando, como contrapartida, prestar-lhe os cuidados pessoais que o mesmo carecesse bem como realizar as actividades relacionadas com a agricultura.

7) O de cujus BFA manteve a posse, como proprietário, dos prédios identificados em 1) até à data da sua morte, ali tendo a sua residência.

8) Os Réus estavam cientes do referido em 7).

9) Após o óbito de BFA os Réus continuaram, ininterruptamente, de forma pacífica e à vista de todos, a ali residir e a tratar e cultivar o terreno conforme faziam em vida daquele.

10) A Ré celebrou contrato de fornecimento de energia eléctrica para o local em seu nome e que se encontra em vigor desde, pelo menos, 20.04.2010.

11) Em 19.01.2018 a Ré inscreveu-se no recenseamento eleitoral indicando a morada do prédio urbano referido em 1) como sendo a sua residência.

12) No ano de 2014, em datas não concretamente apuradas e em diferentes momentos temporais, MS e posteriormente os ora Autores deslocaram-se aos prédios e, identificando-se como proprietários, interpelaram os Réus solicitando que os desocupassem, o que estes que recusaram.

13) Desde a data do óbito de TH que os Autores, herdeiros deste, pagam o IMI referente aos imóveis.

14) Os Autores intentaram a presente acção em 15.11.2018, tendo a Ré sido citada em 21.11.2018 e o Réu em 21.04.2019.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

a) Os Réus deram continuidade à posse que tinha sido dada pelos anteriores proprietários desde 1991.

b) Desde 1991 os Réus agiram com a intenção referida em a).

c) Só com a citação os Réus tiveram conhecimento de que existiam interessados nos prédios.

d) Por várias vezes TH solicitou aos Réus que saíssem dos prédios.

e) Até à data da propositura da acção ninguém reclamou a propriedade dos prédios aos Réus.

f) Os Autores nunca reclamaram contra a presença e utilização dos imóveis por parte dos Réus.

g) Os Réus pagam o IMI relativo aos prédios.

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Questão prévia:

A questão, suscitada pelos recorrentes, do efeito da interposição do recurso, encontra-se ultrapassada. Tal como aqueles pretendiam, foi atribuído efeito suspensivo ao recurso.

Legitimidade processual dos recorridos PG e MG:

Os recorrentes sustentam que os recorridos PG e MG carecem de legitimidade processual devido a preterição de litisconsórcio necessário, nos termos do artigo 33.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC). Fundamentam esta tese com argumentação que assim se resume: 1) Os recorridos PG e MG propuseram a acção na qualidade de herdeiros de TH, pelo que é aplicável, não o artigo 1405.º, n.º 2, do Código Civil (CC), mas sim o artigo 2091.º do mesmo código, que determina que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros; 2) Consequentemente, os recorridos PG e MG tinham de propor a acção acompanhados pelos restantes herdeiros; 3) O desrespeito pelo disposto no artigo 2091.º do CC impede a sentença de produzir o seu efeito útil normal; 4) Com efeito, tendo os recorridos PG e MG, em conjunto, direito a metade de cada prédio, não poderão ser empossados na totalidade destes; mas também não podem ser empossados em metade de cada prédio, por ser impossível a tradição de metade de um imóvel.

Esta argumentação não procede, por várias razões.

Desde logo, os recorrentes confundem dois níveis distintos de direitos: por um lado, o direito de propriedade sobre cada um dos prédios dos autos; por outro, os direitos de cada grupo de herdeiros sobre a respectiva herança. A questão da aplicabilidade do artigo 1405.º, n.º 2, do CC, coloca-se no primeiro nível. A questão da aplicabilidade do 2091.º do CC coloca-se no segundo nível. Desenvolvamos esta ideia.

Os direitos de propriedade sobre os prédios dos autos integravam o património conjugal de MMC e BFA, casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens e falecidos, respectivamente, em 23.04.1992 e 03.06.1994, sem descendentes. Por testamento lavrado em 26.10.1978, MMC instituiu BFA como seu herdeiro, com o encargo de conservar a herança, para que esta revertesse, por sua morte, para os sobrinhos da testadora. Por testamento lavrado em 25.06.1991, BFA instituiu TH como seu único e universal herdeiro.  Em 23.08.2013, morreu TH, tendo deixado, como únicos e universais herdeiros, o recorrido PG, seu filho, e a recorrida MG, sua neta.

Portanto, TH herdou a meação de BFA e as sobrinhas de MMC herdaram a meação desta, com a particularidade de isso ter acontecido na sequência da morte, não da testadora, mas de BFA. Não obstante, é fora de dúvida que as sobrinhas de MMC são herdeiras desta e não de BFA. Estamos perante um fideicomisso (artigos 2286.º a 2296.º do CC), sendo BFA o fiduciário e as sobrinhas de MMC fideicomissárias[1].

Passou, assim, a existir uma situação de comunhão, entre duas heranças distintas, na titularidade do direito de propriedade sobre cada prédio, à qual, nos termos do artigo 1404.º do CC, são aplicáveis as regras da compropriedade, com as necessárias adaptações. Uma dessas regras é a estabelecida pelo artigo 1405.º, n.º 2, do CC: cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro. Logo, qualquer das heranças pode reivindicar os prédios objecto da comunhão.

Passamos ao segundo nível de direitos, dentro de cada uma das heranças. Coloca-se a questão de saber se os recorridos PG e MG têm legitimidade para, por si sós, proporem esta acção na qualidade de herdeiros de TH. Como anteriormente referimos, é neste âmbito que se coloca a questão da aplicabilidade do artigo 2091.º do CC. O n.º 1 deste artigo estabelece que, fora dos casos declarados nos artigos anteriores e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.

TH foi o único herdeiro de BFA. Os herdeiros de TH são apenas os recorridos PG e MG. Facilmente se conclui que a exigência feita pelo artigo 2091.º, n.º 1, do CC, se encontra cumprida. Todos os herdeiros de TH pretendem exercer, em conjunto, o direito da herança deste sobre os prédios dos autos. 

Mais, o artigo 2091.º, n.º 1, do CC, ressalva o disposto no artigo 2078.º do mesmo código. O n.º 1 deste artigo estabelece que, sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens não lhe pertencem por inteiro. Logo, quer o recorrido PG, quer a recorrida MG, têm legitimidade para, sem o outro, pedir a restituição dos bens que constituem a herança de TH. No que concerne à meação de BFA sobre os prédios dos autos, trata-se de um pedido de restituição através do exercício sucessivo do direito à herança de TH e do direito, integrado nesta herança, sobre os prédios dos autos. Como decorre da exposição anterior, qualquer dos referidos recorridos tem legitimidade para exercer o direito da herança de TH sobre os prédios dos autos e, quer esta herança, quer a de MMC, têm legitimidade para, através de qualquer dos seus herdeiros, reivindicar aqueles prédios.

Mais ainda, as herdeiras de MMC são as intervenientes principais, como associadas dos recorridos PG e MG, pelo que, ainda que a acção tivesse de ser proposta, em conjunto, pelos herdeiros, quer de TH, quer de MMC, todos eles figuram como autores. Em caso algum ocorreria preterição de litisconsórcio necessário.

Argumentam os recorrentes, por outro lado, que, integrando a herança de TH apenas a meação de BFA nos direitos de propriedade sobre os prédios dos autos e não a totalidade desses direitos, não poderá ser entregue, aos recorridos PG e MG, a totalidade dos prédios. Não sendo, todavia, possível entregar, a estes recorridos, apenas metade de cada prédio, a sentença não poderá produzir o seu efeito útil normal. Daí a ilegitimidade dos mesmos recorridos, nos termos do artigo 33.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.

Mesmo abstraindo da circunstância de se encontrarem em juízo, na qualidade de autores e reconvindos, quer os herdeiros de TH, quer as herdeiras de MMC, os recorrentes não têm razão. O sentido da permissão contida no artigo 1405.º, n.º 2, do CC, é precisamente o de qualquer consorte poder obter a restituição da coisa comum, ou seja, da totalidade desta. Se assim não fosse, esta norma ficaria esvaziada de conteúdo, por impossibilidade, física ou legal, de divisão da generalidade das coisas. Logo, a sentença que julgasse procedente acção proposta pelos recorridos PG e MG, ou até mesmo só por um deles, produziria o seu efeito útil normal.

Concluindo, os recorridos PG e MG Guerreiro têm legitimidade processual.

Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Os recorrentes pretendem que o conteúdo das als. a) a c), e) e f) dos factos não provados seja julgado provado em sede de recurso.

Está em causa a seguinte matéria:

a) Os réus deram continuidade à posse que tinha sido dada pelos anteriores proprietários desde 1991.

b) Desde 1991 os réus agiram com a intenção referida em a).

c) Só com a citação os réus tiveram conhecimento de que existiam interessados nos prédios.

e) Até à data da propositura da acção ninguém reclamou a propriedade dos prédios aos réus.

f) Os autores nunca reclamaram contra a presença e utilização dos imóveis por parte dos réus.

A al. a) contém apenas matéria de direito, razão suficiente para não poder ser incluída no enunciado dos factos provados (nem no dos não provados, acrescente-se). Como veremos no ponto seguinte da fundamentação, a questão, evidentemente jurídica, de saber se os recorrentes são possuidores, nos termos do direito real que pretendem adquirir através da usucapião, que é o direito de propriedade, dos prédios dos autos, e, na hipótese afirmativa, desde quando, ocupa lugar central na análise jurídica da causa. Não faria sentido trazer para a matéria de facto provada, antecipando-a, a conclusão a que, na sede própria, chegaremos sobre tal questão.

A al. b) fica prejudicada pelo que afirmámos relativamente à al. a). Sendo a alegada intenção dos recorrentes referida, não a um facto, mas à qualificação jurídica de um facto, não pode ser julgada provada ou não provada. Não obstante, fazendo um esforço no sentido de divisar que facto os recorrentes têm em vista através da referência da intenção à “posse”, podemos concluir que se trata da intenção de actuar nos termos descritos nos n.ºs 6 e 9 a 12 do enunciado dos factos provados. Ora, a referência autónoma a tal intenção neste enunciado é inútil. A existência de tal intenção já resulta daqueles pontos da matéria de facto provada, pois nenhum dos factos aí descritos faria sentido sem ela. No ponto seguinte da fundamentação, caracterizaremos tais factos e a intenção com que foram praticados.

O conteúdo das als. c), e) e f) foi desmentido pelos próprios recorrentes, nos seus depoimentos de parte. Ambos afirmaram que, antes da propositura desta acção, os recorridos foram aos prédios dos autos e lhes disseram que estes lhes pertenciam, pretendendo a sua desocupação. Estranha-se que, ainda assim, pretendam que seja julgada provada a referida matéria.

Concluindo, não há fundamento para proceder às alterações que os recorrentes pretendem ver introduzidas na decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto.

Verificação dos pressupostos da usucapião:

Para fundamentar a sua pretensão de ver qualificada a sua actuação sobre os prédios dos autos, desenvolvida desde 1991, como uma posse, em nome próprio, nos termos do direito de propriedade, os recorrentes invocam vários argumentos, que passamos a analisar.

Os recorrentes afirmam que, posteriormente à outorga do testamento a favor de TH, BFA manifestou, de forma expressa, a vontade de aprovar a ocupação dos prédios pelos recorrentes, como seus proprietários e com animus de aquisição. Acrescentam os recorrentes que tal manifestação de vontade configura uma evidente revogação do testamento.

A referida manifestação de vontade por parte de BFA não consta da matéria de facto provada. Aquilo que se provou foi que, em 1991, BFA autorizou a recorrente HC e os restantes membros do agregado familiar desta a habitar e utilizar os prédios dos autos, tendo ficado acordado que, como contrapartida, os membros do referido agregado familiar passariam a prestar-lhe os cuidados pessoais de que ele carecesse, bem como a realizar as actividades relacionadas com a agricultura. BFA continuou a residir nos prédios, mantendo-se como possuidor destes nos termos do direito de propriedade. Em momento algum BFA abandonou os prédios ou cedeu a sua posse aos membros do agregado familiar dos recorrentes. Estes foram, simplesmente, autorizados a habitar e a utilizar os prédios como contrapartida por uma prestação de serviços. BFA e, certamente, os membros adultos do agregado familiar dos recorrentes em 1991, celebraram um contrato mediante o qual estipularam aquelas obrigações. Uma vez que passaram, a partir de então, a exercer poderes de facto sobre os prédios, os réus e os restantes membros do seu agregado familiar tornaram-se possuidores dos mesmos, mas em nome de BFA, o qual manteve a sua posse em nome próprio. Ora, nos termos do artigo 1253.º, al. c), do CC, quem possui em nome alheio não é um verdadeiro possuidor, mas um mero detentor ou possuidor precário.

Com a morte de BFA, a sua posse sobre os prédios foi continuada por TH, seu único herdeiro, e pelas herdeiras do falecido cônjuge daquele. Relativamente a TH, isto resulta directamente do artigo 1255.º do CC, que estabelece que, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa. Relativamente às herdeiras de MMC, resulta da conjugação dos artigos 1255.º, 2286.º, 2290.º, n.º 1, e 2293.º, n.º 1, do CC. Com a morte de TH, os recorridos PG e MG continuaram a posse deste, nos termos do artigo 1255.º do CC. Os recorrentes e os restantes membros do seu agregado familiar permaneceram nos prédios. Actualmente, apenas os recorrentes o fazem.

Coloca-se a questão de saber se, após a morte de BFA, os recorrentes inverteram o título da posse e, assim, se tornaram possuidores, em nome próprio, nos termos do direito de propriedade. O artigo 1263.º, al. d), do CC, prevê, como forma de aquisição da posse, a inversão do título da posse. O artigo 1265.º do CC estabelece que a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse. Não basta uma mera alteração da intenção com que se exerce o poder de facto sobre a coisa para que se verifique a inversão do título da posse. “A inversão do título da posse tem de consistir numa oposição expressa através de actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como proprietário) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem”[2].

Tanto quanto resulta da matéria de facto provada, em momento algum os recorrentes inverteram o título da posse, convertendo a detenção em posse em nome próprio nos termos do direito de propriedade. Limitaram-se a exercer poderes de facto sobre os prédios nos exactos termos em que o faziam em vida de BFA, ou seja, como meros detentores.

Até 2014, é evidente que assim foi. No ano de 2014, em datas não concretamente apuradas e em diferentes momentos temporais, MS e, posteriormente, PG e MG, deslocaram-se aos prédios dos autos e, identificando-se como proprietários, interpelaram os recorrentes, solicitando que estes os desocupassem. Os recorrentes recusaram-se a desocupar os prédios. Contudo, não resulta da matéria de facto se os recorrentes invocaram algum fundamento para essa recusa, nomeadamente que se consideravam proprietários dos prédios. Apenas que se recusaram a desocupar os prédios. Ora, a recusa de entrega dos prédios, sem mais, não configura uma inversão do título da posse. O detentor pode recusar-se a entregar a coisa ao proprietário por razão diversa da de pretender exercer, sobre ela, uma posse nos termos do direito de propriedade. Por exemplo, pode recusar a entrega por duvidar que quem se apresentou perante si, arrogando-se proprietário da coisa, o seja realmente, ou por não estar em condições de entregar a coisa no momento em que para tanto é interpelado (o que é normal tratando-se de uma casa utilizada para habitação), sem que tenha, ele próprio, a intenção de actuar sobre a coisa como se fosse o seu proprietário. Daí que, nem sequer em 2014, os recorrentes tenham invertido o título da posse.

A 1.ª parte do artigo 1290.º do CC estabelece que os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse. Não tendo os recorrentes invertido o título da posse, não poderão adquirir o direito de propriedade sobre os prédios dos autos por usucapião.

A conclusão seria idêntica se se considerasse que os recorrentes inverteram o título da posse em data indeterminada do ano de 2014. Em tal hipótese, por força da 2.ª parte do artigo 1290.º do CC, o tempo necessário para a usucapião só começaria a contar desde a data da inversão do título. Tendo os recorrentes sido citados em 21.11.2018 (HC) e 13.04.2019 (SC), nem sequer 5 anos desse hipotético prazo teriam decorrido até à sua interrupção por efeito do disposto nos artigos 1292.º e 323.º, n.ºs 1 e 2, do CC. Ora, o prazo mais curto de usucapião de imóveis é de 5 anos e é contado desde a data do registo da mera posse, nos termos do artigo 1295.º, n.º 1, al. a), do CC, registo esse que, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, pressupõe uma posse pacífica e pública por tempo não inferior a 5 anos, assim se explicando a excepcional curteza daquele prazo.

Concluímos, assim, que o pedido reconvencional não pode proceder e, por outro lado, que os recorrentes não têm título capaz de obstar à pretensão dos recorridos PG e MG de que os prédios lhes sejam restituídos. Sendo assim, a sentença recorrida deverá manter-se, improcedendo o recurso.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.

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Évora, 12.10.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto



[1] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Sucessões, 4.ª edição, revista, Coimbra Editora, Limitada, 1989, p. 256.

[2] Acórdão do STJ de 17.12.2014 (Maria Clara Sottomayor).

Acórdão da Relação de Évora de 23.05.2024

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