Processo n.º 3601/18.7T8LLE.E1
*
Sumário:
1
– Numa situação em que o direito de propriedade sobre um imóvel faça parte, em
regime de comunhão, de duas heranças distintas, importa distinguir o direito
que faz parte de cada herança do direito de cada herdeiro à respectiva herança.
O artigo 1405.º, n.º 2, do
Código Civil é aplicável no primeiro nível. Os artigos 2078.º e 2091.º, n.º 1, do Código Civil,
são aplicáveis no segundo nível.
2 – Se o proprietário de um prédio
urbano, onde reside, e de um prédio rústico adjacente, acordar, com os membros
de um agregado familiar, que estes passarão a residir consigo e a poder
utilizar o prédio rústico com a contrapartida de lhe prestarem os cuidados
pessoais de que necessita, os segundos tornar-se-ão possuidores dos prédios em
nome do proprietário, nos termos do artigo 1253.º, al. c), do Código Civil.
Serão, pois, meros detentores ou possuidores precários.
3 – Se, após a morte do proprietário e
possuidor, continuarem a utilizar os prédios em termos idênticos àqueles em que
o faziam em vida daquele, os membros daquele agregado familiar continuarão a
ser meros detentores ou possuidores precários. Para se tornarem verdadeiros
possuidores nos termos do direito de propriedade, terão de inverter o título da
posse.
4 – A inversão do título da posse tem de
consistir numa oposição expressa através de actos positivos (materiais ou
jurídicos) inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da
oposição, actuar como proprietário) e praticados na presença ou com o
consentimento daquele a quem os actos se opõem.
*
Autores/reconvindos: PG e MG.
Réus:
HC e SC.
Reconvinte:
SC.
Intervenientes
principais, como associadas dos autores/reconvindos: MC, MCC e MS.
Pedido
dos autores: Condenação dos réus a reconhecerem o direito de propriedade dos
autores sobre os dois prédios identificados na petição inicial e a restituírem
os mesmos prédios, livres de pessoas e coisas.
Pedido
reconvencional: Declaração de que os réus são os legítimos possuidores dos
prédios reclamados nos autos; condenação dos autores a reconhecerem que os réus
são os legítimos proprietários dos prédios; reconhecimento, aos réus, do
direito de propriedade dos prédios por via da usucapião; que seja ordenado o
cancelamento do registo de aquisição a favor dos autores.
Sentença:
Julgou a acção procedente, declarando os autores, na qualidade de herdeiros de TH,
titulares, em comum e sem determinação de parte, do direito de compropriedade,
na proporção de ½, dos dois prédios identificados na petição inicial, e
condenando os réus a restituírem os mesmos prédios aos autores, livres de
pessoas e coisas; julgou a reconvenção improcedente, absolvendo os autores/reconvindos
e as chamadas/reconvindas do pedido.
*
Os
réus interpuseram recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes
conclusões:
A. Uma
vez que a douta decisão ordena a restituição da casa de habitação dos réus, nos
termos do art.º 647º, nº 3 do CPC deve ser dado efeito devolutivo ao presente
recurso.
B. A
meritíssima Juiz a quo não teve em devida consideração os depoimentos das
testemunhas:
− JBB
– Em 22 de novembro pelas 13:21h;
− NFS
– Em 22 de novembro, pelas 13:31h;
− MPG
- Em 22 de novembro, pelas 13:48h;
− JDC:
- Em 22 de novembro, pelas 13:59h;
− JCP
(filho da ré): - Em 22 de novembro, pelas 14:40h;
− AAA
– em 6 de dezembro pelas 13:50.
C. Dos
depoimentos destas testemunhas, resulta claramente que deveria ter sido dados
como provados os seguintes factos:
- Os
Réus deram continuidade à posse que tinha sido dada pelos anteriores proprietários
desde 1991;
- Desde
1991 os Réus agiram com a intenção dar continuidade a essa posse;
- Só
com a citação os Réus tiveram conhecimento de que existiam interessados nos
prédios;
- Até
à data da propositura da acção ninguém reclamou a propriedade dos prédios aos
Réus;
- Os
Autores nunca reclamaram contra a presença e utilização dos imóveis por parte
dos Réus.
D. Deve,
nos termos do art.º 662.º, nº 1 do CPC determinar-se a alteração da matéria de
facto dada como provado pela sentença em recurso e dar-se como provados estes
factos.
E. E
sendo assim, como se considera, não podia a meritíssima Juiz deixar de
considerar que os réus são os verdadeiros proprietários do prédio sub judice,
nos termos do art.º 1296.º do CC.
F. A
sentença a quo considera que os autores sendo proprietários de metade do prédio
deverão ser empossados da totalidade do prédio.
G. Pelo
art.º 1405.º, nº 2 do Código Civil - Cada consorte pode reivindicar de terceiro
a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por
inteiro.
H. Porém,
no presente caso não estamos perante um caso de compropriedade em que se possa determinar
que os AA., são proprietários de metade, nem os AA., fazem esse pedido ou invocam
essa qualidade de comproprietários.
I. A
presente ação é intentada como herdeiros do prédio e o normativo a aplicar terá
de ser o art.º 2091.º do C. C. que determina que os direitos relativos à
herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra
todos os herdeiros.
J. Ao
não ter em conta este regime normativo, a douta sentença produz um problema que
não vai ser possível resolver já que os réus se intitulam proprietários e sendo
determinado que os AA., são proprietários de metade terão de interpor ação de
divisão de coisa comum nos termos do art.º 925.º do CPC.
K.
Resulta claramente que a presente ação não cumpre a exigência do art.º 33º do
CPC já que ao não respeitar o citado art.º 2091º do CC, a decisão não produz “o
seu efeito útil normal” (nº 2 do art.º 33.º), ou seja não “regula definitivamente
a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado” (n.º 3 do
art.º 33.º).
L. Os
AA., teriam de vir em conjunto com todos os herdeiros, proceder à reivindicação
da propriedade e da respetiva entrega e se alguns não quisessem intervir,
cabia-lhes deitar mão da ação de suprimento nos termos do art.º 1000.º a 1005.º
do CPC.
M. A
própria meritíssima juiz a quo, no decorrer do processo “voltou atrás” e quis
corrigir o erro inicial de chamar a juízo as restantes herdeiras, sendo que os
autos já se encontravam inquinado - basta cfr., despacho datado de 15.06.2020.
N. Por
mera cautela de patrocínio, cumpre, em acréscimo, demonstrar cabalmente que mesmo
que se pudesse considerar que algum destes fundamentos configurasse uma efetiva
causa de procedência da ação, a mesma não seria apta a produzir os efeitos pretendidos
pelos Autores, atenta a sua insusceptibilidade de se fazer por exemplo a tradição
de metade de um bem imóvel da forma como o tribunal a quo determinou.
O. Por
sua vez, nas Cadernetas Prediais Urbanas, é referido que é TH o cabeça de casal
com propriedade plena.
P. Os
Autores afirmaram ainda na petição inicial no seu artigo sétimo que “Os bens imóveis
supramencionados foram adquiridos por via de sucessão mortis causa pelos descendentes
do de cujus, PG e MG, de ora avante os Autores”.
Q. O
que é totalmente falso, porque os Autores a adquirir algo apenas adquiriram
metade do quinhão hereditário, o que decorre expressamente dos documentos que
os próprios Autores juntam nos presentes autos.
R. Não
obstante, os Autores no artigo 19.º da petição inicial, posteriormente
aperfeiçoada, reconheceram MCC, residente em (…), como uma das herdeiras e que
desconheciam os restantes herdeiros cujas identidades se desconhece. Por essa
razão, não conseguiram os Autores registar a propriedade plena dos referidos imóveis.
S. É
inegável, que os Autores não são os proprietários plenos dos bens imóveis
objeto dos presentes autos.
T. Com
efeito, todas as dúvidas foram dissipadas com o ofício do Serviço de Finanças
de Loulé, que juntou o processo de imposto sucessório n.º 35502 de MMC ocorrido
a 23/04/1992.
U. Do
processo de imposto sucessório acima referido, resulta que a falecida deixou o
seu quinhão hereditário (bens imóveis dos presentes autos) a MC, MCC e MVC (esta
também falecida à data do mesmo) e que as mesmas deixarão aos sobrinhos da
testadora, suas filhas e irmãs.
V.
Mais uma razão pela qual os Autores não conseguiram registar a propriedade
plena dos referidos imóveis, nem tão pouco sabiam deste testamento, ou não o
quiseram juntar. Juntaram apenas o testamento que mais lhes servia.
W. Não
obstante, do ofício do Serviço de Finanças de Loulé, que consta dos presentes autos
- conclui-se que existem vários herdeiros legítimos e não apenas os próprios
Autores que a todo o custo pretendem “só para si” a propriedade dos bens
imóveis que são discutidos nos presentes autos.
Y. Em
última instância, nunca poderiam os Autores retirar os Réus de metade dos bens imóveis,
pelo menos!
X. Não
podem os Autores despejar os Réus de um imóvel em que apenas alegam metade do
mesmo.
Z. O
novo facto trazido ao processo por parte do Serviço de Finanças de Loulé,
demonstra claramente que a doação, pelo proprietário/autor do testamento, dos
imóveis aos réus, que está na origem da usucapião alegada nos autos, é
posterior ao testamento.
AA. A
vontade expressa, pelo proprietário/autor do testamento, já posteriormente à outorga
do testamento a favor dos AA, de aprovar a ocupação dos prédios pelos RR como seus
proprietários e com animus de aquisição, configura uma evidente revogação do testamento.
BB.
Essa ocupação pelos RR., com animus de aquisição é feita desde há mais de 20
anos, à vista de todos e sem oposição de ninguém, designadamente, dos Autores.
CC. Os
beneficiários do testamento desinteressaram-se pelos seus quinhões
hereditários.
DD. O
que também consubstancia uma vontade expressa de aceitar a revogação do testamento
e aceitação da usucapião pelos RR..
EE.
Como é comummente sabido e resulta da lei, a aquisição da propriedade, por usucapião
do identificado imóvel está dependente da verificação destes requisitos legalmente
exigidos: a posse em nome próprio do bem, ininterruptamente, por determinado
período (de cinco a vinte anos), à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém
e na convicção de que é o seu exclusivo dono.
FF.
Dúvidas pois não podem restar que há muito se constituiu por via da usucapião o
direito de propriedade privada dos Réus sobre os prédios identificados na
petição inicial.
GG.
Conforme, singelamente já se percebeu pelo depoimento das testemunhas até ao momento,
a vontade expressa por BFA foi que os RR., ficassem com a propriedade para
estes, em compensação da assistência que lhe prestavam na velhice.
HH.
Assim, existe fundamento jurídico para se considerar nula a ação em causa e, consequentemente,
não se poderia ter decidido pelo deferimento “ainda que parcial” da mesma.
II-
Até a simples questão do IMI foi mal interpretada pelo Tribunal a quo, já que
os RR., juntaram prova documental do pagamento.
JJ. O
carácter necessário do litisconsórcio dimana da ausência no processo, como
parte, de alguém cuja intervenção na relação controvertida é exigida pela lei
ou pelo negócio jurídico por forma a obter uma decisão apta a produzir, sobre a
relação material controvertida, o seu efeito útil normal.
KK. É
inquestionável que todos os herdeiros são titulares da relação material controvertida
a propriedade do bem reivindicado para a herança e que todos têm interesse direto
em demandar.
LL.
Deve assim ser revogada a sentença em recurso por ter violado o art.º 1296.º do
Código Civil, que permita concluir pela propriedade do imóvel por parte dos
réus e ainda por ter violado o art.ºs 33.º do CPC, conjugado com o art.º 2091.º
do CC., que obriga a litisconsórcio de todos os herdeiros, absolvendo-se os
réus do pedido.
Não
foram apresentadas contra-alegações.
O
recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.
*
Tendo
em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e
delimitam o âmbito da intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se
imponha, as questões a resolver são as seguintes:
-
Legitimidade processual dos recorridos PG e MG;
- Impugnação
da decisão sobre a matéria de facto;
- Verificação
dos pressupostos da usucapião.
*
Na
sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:
1)
Encontra-se inscrito a favor dos Autores, em comum e sem determinação de parte
ou direito, por sucessão hereditária por óbito de TH, ½ do direito de
propriedade do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo (…) e ½ do
prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo (…), ambos sitos em (…),
freguesia de (…), concelho de Loulé, e descritos na Conservatória do Registo Predial
sob os n.ºs (…) e (…), respectivamente.
2) Os
prédios identificados em 1) faziam parte do património conjugal de MMC e BFA,
casados que foram entre si sob o regime de comunhão geral de bens, falecidos em
23.04.1992 e 03.06.1994, respectivamente, sem terem deixado descendentes.
3) Por
testamento lavrado em 26.10.1978, MMC instituiu como seu herdeiro o marido BFA,
com a condição de o mesmo conservar os bens que compreendem a meação da
testadora, não podendo deles dispor, por acto entre vivos ou mortis causa, e revertendo os mesmos,
por óbito daquele, para os sobrinhos da testadora.
4) Por
testamento lavrado em 25.06.1991, BFA instituiu TH como seu único e universal
herdeiro.
5) Em
23.08.2013 faleceu TH, tendo deixado como únicos e universais herdeiros o filho
PG e a neta MG, filha da sua pré-falecida filha MM.
6) Em
data não concretamente apurada, no ano de 1991, a Ré e o seu agregado familiar,
do qual o Réu seu filho fazia parte, foram autorizados por BFA a residir e
utilizar os prédios referidos em 1) acordando, como contrapartida, prestar-lhe
os cuidados pessoais que o mesmo carecesse bem como realizar as actividades
relacionadas com a agricultura.
7) O de cujus BFA manteve a posse, como
proprietário, dos prédios identificados em 1) até à data da sua morte, ali
tendo a sua residência.
8) Os
Réus estavam cientes do referido em 7).
9)
Após o óbito de BFA os Réus continuaram, ininterruptamente, de forma pacífica e
à vista de todos, a ali residir e a tratar e cultivar o terreno conforme faziam
em vida daquele.
10) A
Ré celebrou contrato de fornecimento de energia eléctrica para o local em seu
nome e que se encontra em vigor desde, pelo menos, 20.04.2010.
11) Em
19.01.2018 a Ré inscreveu-se no recenseamento eleitoral indicando a morada do
prédio urbano referido em 1) como sendo a sua residência.
12) No
ano de 2014, em datas não concretamente apuradas e em diferentes momentos
temporais, MS e posteriormente os ora Autores deslocaram-se aos prédios e,
identificando-se como proprietários, interpelaram os Réus solicitando que os
desocupassem, o que estes que recusaram.
13)
Desde a data do óbito de TH que os Autores, herdeiros deste, pagam o IMI
referente aos imóveis.
14) Os
Autores intentaram a presente acção em 15.11.2018, tendo a Ré sido citada em
21.11.2018 e o Réu em 21.04.2019.
A
sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:
a) Os
Réus deram continuidade à posse que tinha sido dada pelos anteriores
proprietários desde 1991.
b)
Desde 1991 os Réus agiram com a intenção referida em a).
c) Só
com a citação os Réus tiveram conhecimento de que existiam interessados nos
prédios.
d) Por
várias vezes TH solicitou aos Réus que saíssem dos prédios.
e) Até
à data da propositura da acção ninguém reclamou a propriedade dos prédios aos
Réus.
f) Os
Autores nunca reclamaram contra a presença e utilização dos imóveis por parte
dos Réus.
g) Os
Réus pagam o IMI relativo aos prédios.
*
Questão
prévia:
A
questão, suscitada pelos recorrentes, do efeito da interposição do recurso,
encontra-se ultrapassada. Tal como aqueles pretendiam, foi atribuído efeito
suspensivo ao recurso.
Legitimidade
processual dos recorridos PG e MG:
Os
recorrentes sustentam que os recorridos PG e MG carecem de legitimidade
processual devido a preterição de litisconsórcio necessário, nos termos do
artigo 33.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC). Fundamentam esta tese com
argumentação que assim se resume: 1) Os recorridos PG e MG propuseram a acção
na qualidade de herdeiros de TH, pelo que é aplicável, não o artigo 1405.º, n.º
2, do Código Civil (CC), mas sim o artigo 2091.º do mesmo código, que determina
que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por
todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros; 2) Consequentemente, os
recorridos PG e MG tinham de propor a acção acompanhados pelos restantes
herdeiros; 3) O desrespeito pelo disposto no artigo 2091.º do CC impede a
sentença de produzir o seu efeito útil normal; 4) Com efeito, tendo os
recorridos PG e MG, em conjunto, direito a metade de cada prédio, não poderão
ser empossados na totalidade destes; mas também não podem ser empossados em
metade de cada prédio, por ser impossível a tradição de metade de um imóvel.
Esta
argumentação não procede, por várias razões.
Desde
logo, os recorrentes confundem dois níveis distintos de direitos: por um lado,
o direito de propriedade sobre cada um dos prédios dos autos; por outro, os
direitos de cada grupo de herdeiros sobre a respectiva herança. A questão da
aplicabilidade do artigo 1405.º, n.º 2, do CC, coloca-se no primeiro nível. A
questão da aplicabilidade do 2091.º do CC coloca-se no segundo nível.
Desenvolvamos esta ideia.
Os
direitos de propriedade sobre os prédios dos autos integravam o património
conjugal de MMC e BFA, casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens
e falecidos, respectivamente, em 23.04.1992 e 03.06.1994, sem descendentes. Por
testamento lavrado em 26.10.1978, MMC instituiu BFA como seu herdeiro, com o
encargo de conservar a herança, para que esta revertesse, por sua morte, para
os sobrinhos da testadora. Por testamento lavrado em 25.06.1991, BFA instituiu TH
como seu único e universal herdeiro. Em
23.08.2013, morreu TH, tendo deixado, como únicos e universais herdeiros, o recorrido
PG, seu filho, e a recorrida MG, sua neta.
Portanto,
TH herdou a meação de BFA e as sobrinhas de MMC herdaram a meação desta, com a
particularidade de isso ter acontecido na sequência da morte, não da testadora,
mas de BFA. Não obstante, é fora de dúvida que as sobrinhas de MMC são
herdeiras desta e não de BFA. Estamos perante um fideicomisso (artigos 2286.º a
2296.º do CC), sendo BFA o fiduciário e as sobrinhas de MMC fideicomissárias[1].
Passou,
assim, a existir uma situação de comunhão, entre duas heranças distintas, na
titularidade do direito de propriedade sobre cada prédio, à qual, nos termos do
artigo 1404.º do CC, são aplicáveis as regras da compropriedade, com as
necessárias adaptações. Uma dessas regras é a estabelecida pelo artigo 1405.º,
n.º 2, do CC: cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que
a este seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro. Logo,
qualquer das heranças pode reivindicar os prédios objecto da comunhão.
Passamos
ao segundo nível de direitos, dentro de cada uma das heranças. Coloca-se a
questão de saber se os recorridos PG e MG têm legitimidade para, por si sós,
proporem esta acção na qualidade de herdeiros de TH. Como anteriormente
referimos, é neste âmbito que se coloca a questão da aplicabilidade do artigo
2091.º do CC. O n.º 1 deste artigo estabelece que, fora dos casos declarados
nos artigos anteriores e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos
relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros
ou contra todos os herdeiros.
TH
foi o único herdeiro de BFA. Os herdeiros de TH são apenas os recorridos PG e MG.
Facilmente se conclui que a exigência feita pelo artigo 2091.º, n.º 1, do CC,
se encontra cumprida. Todos os herdeiros de TH pretendem exercer, em conjunto,
o direito da herança deste sobre os prédios dos autos.
Mais,
o artigo 2091.º, n.º 1, do CC, ressalva o disposto no artigo 2078.º do mesmo
código. O n.º 1 deste artigo estabelece que, sendo vários os herdeiros,
qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens
em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens não lhe
pertencem por inteiro. Logo, quer o recorrido PG, quer a recorrida MG, têm
legitimidade para, sem o outro, pedir a restituição dos bens que constituem a
herança de TH. No que concerne à meação de BFA sobre os prédios dos autos,
trata-se de um pedido de restituição através do exercício sucessivo do direito
à herança de TH e do direito, integrado nesta herança, sobre os prédios dos
autos. Como decorre da exposição anterior, qualquer dos referidos recorridos
tem legitimidade para exercer o direito da herança de TH sobre os prédios dos
autos e, quer esta herança, quer a de MMC, têm legitimidade para, através de
qualquer dos seus herdeiros, reivindicar aqueles prédios.
Mais
ainda, as herdeiras de MMC são as intervenientes principais, como associadas
dos recorridos PG e MG, pelo que, ainda que a acção tivesse de ser proposta, em
conjunto, pelos herdeiros, quer de TH, quer de MMC, todos eles figuram como
autores. Em caso algum ocorreria preterição de litisconsórcio necessário.
Argumentam
os recorrentes, por outro lado, que, integrando a herança de TH apenas a meação
de BFA nos direitos de propriedade sobre os prédios dos autos e não a
totalidade desses direitos, não poderá ser entregue, aos recorridos PG e MG, a
totalidade dos prédios. Não sendo, todavia, possível entregar, a estes
recorridos, apenas metade de cada prédio, a sentença não poderá produzir o seu
efeito útil normal. Daí a ilegitimidade dos mesmos recorridos, nos termos do
artigo 33.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.
Mesmo
abstraindo da circunstância de se encontrarem em juízo, na qualidade de autores
e reconvindos, quer os herdeiros de TH, quer as herdeiras de MMC, os
recorrentes não têm razão. O sentido da permissão contida no artigo 1405.º, n.º
2, do CC, é precisamente o de qualquer consorte poder obter a restituição da
coisa comum, ou seja, da totalidade desta. Se assim não fosse, esta norma
ficaria esvaziada de conteúdo, por impossibilidade, física ou legal, de divisão
da generalidade das coisas. Logo, a sentença que julgasse procedente acção
proposta pelos recorridos PG e MG, ou até mesmo só por um deles, produziria o
seu efeito útil normal.
Concluindo,
os recorridos PG e MG Guerreiro têm legitimidade processual.
Impugnação
da decisão sobre a matéria de facto:
Os
recorrentes pretendem que o conteúdo das als. a) a c), e) e f) dos factos não
provados seja julgado provado em sede de recurso.
Está
em causa a seguinte matéria:
a) Os
réus deram continuidade à posse que tinha sido dada pelos anteriores
proprietários desde 1991.
b)
Desde 1991 os réus agiram com a intenção referida em a).
c) Só
com a citação os réus tiveram conhecimento de que existiam interessados nos
prédios.
e) Até
à data da propositura da acção ninguém reclamou a propriedade dos prédios aos
réus.
f) Os
autores nunca reclamaram contra a presença e utilização dos imóveis por parte
dos réus.
A
al. a) contém apenas matéria de direito, razão suficiente para não poder ser
incluída no enunciado dos factos provados (nem no dos não provados,
acrescente-se). Como veremos no ponto seguinte da fundamentação, a questão,
evidentemente jurídica, de saber se os recorrentes são possuidores, nos termos
do direito real que pretendem adquirir através da usucapião, que é o direito de
propriedade, dos prédios dos autos, e, na hipótese afirmativa, desde quando,
ocupa lugar central na análise jurídica da causa. Não faria sentido trazer para
a matéria de facto provada, antecipando-a, a conclusão a que, na sede própria,
chegaremos sobre tal questão.
A
al. b) fica prejudicada pelo que afirmámos relativamente à al. a). Sendo a
alegada intenção dos recorrentes referida, não a um facto, mas à qualificação
jurídica de um facto, não pode ser julgada provada ou não provada. Não
obstante, fazendo um esforço no sentido de divisar que facto os recorrentes têm
em vista através da referência da intenção à “posse”, podemos concluir que se
trata da intenção de actuar nos termos descritos nos n.ºs 6 e 9 a 12 do
enunciado dos factos provados. Ora, a referência autónoma a tal intenção neste
enunciado é inútil. A existência de tal intenção já resulta daqueles pontos da
matéria de facto provada, pois nenhum dos factos aí descritos faria sentido sem
ela. No ponto seguinte da fundamentação, caracterizaremos tais factos e a intenção
com que foram praticados.
O
conteúdo das als. c), e) e f) foi desmentido pelos próprios recorrentes, nos
seus depoimentos de parte. Ambos afirmaram que, antes da propositura desta
acção, os recorridos foram aos prédios dos autos e lhes disseram que estes lhes
pertenciam, pretendendo a sua desocupação. Estranha-se que, ainda assim,
pretendam que seja julgada provada a referida matéria.
Concluindo,
não há fundamento para proceder às alterações que os recorrentes pretendem ver
introduzidas na decisão do tribunal a quo
sobre a matéria de facto.
Verificação
dos pressupostos da usucapião:
Para
fundamentar a sua pretensão de ver qualificada a sua actuação sobre os prédios
dos autos, desenvolvida desde 1991, como uma posse, em nome próprio, nos termos
do direito de propriedade, os recorrentes invocam vários argumentos, que
passamos a analisar.
Os
recorrentes afirmam que, posteriormente à outorga do testamento a favor de TH,
BFA manifestou, de forma expressa, a vontade de aprovar a ocupação dos prédios
pelos recorrentes, como seus proprietários e com animus de aquisição. Acrescentam os recorrentes que tal
manifestação de vontade configura uma evidente revogação do testamento.
A
referida manifestação de vontade por parte de BFA não consta da matéria de
facto provada. Aquilo que se provou foi que, em 1991, BFA autorizou a
recorrente HC e os restantes membros do agregado familiar desta a habitar e
utilizar os prédios dos autos, tendo ficado acordado que, como contrapartida,
os membros do referido agregado familiar passariam a prestar-lhe os cuidados
pessoais de que ele carecesse, bem como a realizar as actividades relacionadas
com a agricultura. BFA continuou a residir nos prédios, mantendo-se como
possuidor destes nos termos do direito de propriedade. Em momento algum BFA
abandonou os prédios ou cedeu a sua posse aos membros do agregado familiar dos recorrentes.
Estes foram, simplesmente, autorizados a habitar e a utilizar os prédios como
contrapartida por uma prestação de serviços. BFA e, certamente, os membros
adultos do agregado familiar dos recorrentes em 1991, celebraram um contrato
mediante o qual estipularam aquelas obrigações. Uma vez que passaram, a partir
de então, a exercer poderes de facto sobre os prédios, os réus e os restantes
membros do seu agregado familiar tornaram-se possuidores dos mesmos, mas em
nome de BFA, o qual manteve a sua posse em nome próprio. Ora, nos termos do
artigo 1253.º, al. c), do CC, quem possui em nome alheio não é um verdadeiro
possuidor, mas um mero detentor ou possuidor precário.
Com
a morte de BFA, a sua posse sobre os prédios foi continuada por TH, seu único
herdeiro, e pelas herdeiras do falecido cônjuge daquele. Relativamente a TH,
isto resulta directamente do artigo 1255.º do CC, que estabelece que, por morte
do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte,
independentemente da apreensão material da coisa. Relativamente às herdeiras de
MMC, resulta da conjugação dos artigos 1255.º, 2286.º, 2290.º, n.º 1, e 2293.º,
n.º 1, do CC. Com a morte de TH, os recorridos PG e MG continuaram a posse
deste, nos termos do artigo 1255.º do CC. Os recorrentes e os restantes membros
do seu agregado familiar permaneceram nos prédios. Actualmente, apenas os recorrentes
o fazem.
Coloca-se
a questão de saber se, após a morte de BFA, os recorrentes inverteram o título
da posse e, assim, se tornaram possuidores, em nome próprio, nos termos do
direito de propriedade. O artigo 1263.º, al. d), do CC, prevê, como forma de
aquisição da posse, a inversão do título da posse. O artigo 1265.º do CC
estabelece que a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do
detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro
capaz de transferir a posse. Não basta uma mera alteração da intenção com que
se exerce o poder de facto sobre a coisa para que se verifique a inversão do
título da posse. “A inversão do título da posse tem de consistir numa oposição
expressa através de actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores
de que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como proprietário) e
praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem”[2].
Tanto
quanto resulta da matéria de facto provada, em momento algum os recorrentes inverteram
o título da posse, convertendo a detenção em posse em nome próprio nos termos
do direito de propriedade. Limitaram-se a exercer poderes de facto sobre os
prédios nos exactos termos em que o faziam em vida de BFA, ou seja, como meros
detentores.
Até
2014, é evidente que assim foi. No ano de 2014, em datas não concretamente
apuradas e em diferentes momentos temporais, MS e, posteriormente, PG e MG,
deslocaram-se aos prédios dos autos e, identificando-se como proprietários,
interpelaram os recorrentes, solicitando que estes os desocupassem. Os
recorrentes recusaram-se a desocupar os prédios. Contudo, não resulta da
matéria de facto se os recorrentes invocaram algum fundamento para essa recusa,
nomeadamente que se consideravam proprietários dos prédios. Apenas que se
recusaram a desocupar os prédios. Ora, a recusa de entrega dos prédios, sem
mais, não configura uma inversão do título da posse. O detentor pode recusar-se
a entregar a coisa ao proprietário por razão diversa da de pretender exercer,
sobre ela, uma posse nos termos do direito de propriedade. Por exemplo, pode
recusar a entrega por duvidar que quem se apresentou perante si, arrogando-se
proprietário da coisa, o seja realmente, ou por não estar em condições de
entregar a coisa no momento em que para tanto é interpelado (o que é normal
tratando-se de uma casa utilizada para habitação), sem que tenha, ele próprio,
a intenção de actuar sobre a coisa como se fosse o seu proprietário. Daí que,
nem sequer em 2014, os recorrentes tenham invertido o título da posse.
A
1.ª parte do artigo 1290.º do CC estabelece que os detentores ou possuidores
precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído,
excepto achando-se invertido o título da posse. Não tendo os recorrentes
invertido o título da posse, não poderão adquirir o direito de propriedade
sobre os prédios dos autos por usucapião.
A
conclusão seria idêntica se se considerasse que os recorrentes inverteram o
título da posse em data indeterminada do ano de 2014. Em tal hipótese, por
força da 2.ª parte do artigo 1290.º do CC, o tempo necessário para a usucapião
só começaria a contar desde a data da inversão do título. Tendo os recorrentes
sido citados em 21.11.2018 (HC) e 13.04.2019 (SC), nem sequer 5 anos desse
hipotético prazo teriam decorrido até à sua interrupção por efeito do disposto
nos artigos 1292.º e 323.º, n.ºs 1 e 2, do CC. Ora, o prazo mais curto de
usucapião de imóveis é de 5 anos e é contado desde a data do registo da mera
posse, nos termos do artigo 1295.º, n.º 1, al. a), do CC, registo esse que, nos
termos do n.º 2 do mesmo artigo, pressupõe uma posse pacífica e pública por
tempo não inferior a 5 anos, assim se explicando a excepcional curteza daquele
prazo.
Concluímos,
assim, que o pedido reconvencional não pode proceder e, por outro lado, que os
recorrentes não têm título capaz de obstar à pretensão dos recorridos PG e MG de
que os prédios lhes sejam restituídos. Sendo assim, a sentença recorrida deverá
manter-se, improcedendo o recurso.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente,
confirmando-se a sentença recorrida.
Custas
a cargo dos recorrentes.
Notifique.
*
Évora, 12.10.2023
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto