Temas:
- Contrato de prestação de serviços de
contabilidade;
- Estatuto de residente não habitual;
- Responsabilidade contratual;
- União de contratos.
*
Processo n.º 2246/21.9T8PTM.E1
Autores:
- AK;
- TK.
Réus:
- Sociedade 1, Lda.;
- Rui Loureiro;
- Daniel Silva;
- Companhia de Seguros GG, S.A..
Pedidos:
A) Condenação dos réus a pagarem aos
autores € 77.424,06 por danos causados pelo incumprimento das obrigações
assumidas e € 1.855,00 como consequência da violação das obrigações dos réus,
no âmbito da responsabilidade civil contratual;
B) Caso assim não se entenda, condenação
dos réus a pagarem aos autores € 77.424,06 pelos danos causados pelo
incumprimento das obrigações assumidas e € 1.855,00 como consequência da
violação das obrigações dos réus no âmbito da responsabilidade civil
extracontratual;
C) Em todo o caso, condenação dos réus a
pagarem uma indemnização por danos não patrimoniais no valor mínimo de €
10.000,00.
Sentença:
- Acção julgada parcialmente procedente;
- Condenação dos réus Sociedade 1, Lda.
e Daniel Silva a, solidariamente, indemnizarem os autores dos prejuízos que
estes sofreram em virtude de os respectivos rendimentos do ano de 2021 terem
sido tributados como de residentes habituais, em vez de residentes não
habituais, em montante a liquidar e correspondente à respectiva diferença
(imposto pago como residente habitual/imposto a pagar como residente não
habitual);
- Absolvição dos réus Sociedade 1, Lda.,
e Daniel Silva do restante pedido;
- Absolvição do réu Rui Loureiro do
pedido;
- Absolvição da ré Companhia de Seguros GG,
S.A., da instância.
*
Os réus Sociedade 1, Lda. e Daniel
Silva interpuseram recurso de apelação da sentença, tendo formulado as
seguintes conclusões:
1 – A Mma. Juíza, a fls. 18 da sentença
recorrida, assume a existência, entre os autores e os recorrentes, de uma
relação próxima da existente com a empresa daqueles, para depois, a fls. 19,
afirmar que vigorou, entre os autores e Sociedade 1, Lda., um contrato de
prestação de serviços! Afinal, em que ficamos?
2 – O fundamento dessa conclusão, aliás
conclusões (aparência de contrato e contrato), foi a intervenção de Daniel
Silva em relação à AT, relativamente aos autores, aqui recorridos.
3 – Todavia e como foi provado no ponto
12 da factualidade provada, tal intervenção ocorria a pedido dos autores e não
como obrigação contratualmente assumida.
4 – Dos pontos 15, 21 e 25 dos factos
provados resulta que os autores, em Novembro de 2018, quando já tinham
residência permanente em Portugal, pediram a Daniel Silva que tratasse do
estatuto de residente não habitual, mas não o dotaram de qualquer procuração
para o efeito, sendo certo que era obrigatória a intervenção pessoal dos
autores, não havendo qualquer prova de que Daniel Silva tenha aceite essa
incumbência.
5 – De resto, a Mma. Juíza a quo manifesta dúvidas quanto à
eventual existência de um contrato de prestação de serviços relativo ao
tratamento do processo de residente não habitual, já que, a fls. 14 da
sentença, refere que Daniel Silva teria ficado de tratar do processo de
residentes não habituais dos autores, quando estes já eram residentes
permanente em Portugal.
6 – A expressão “teria ficado de tratar” (e não, ficou de tratar) traduz uma
conjugação verbal no condicional, o que significa que esse tratamento estava na
dependência de uma condição necessária para a sua realização, algo em relação
ao qual nada foi provado.
7 – Daí não ter sido feita qualquer
prova quanto à existência de um contrato, ou aparência de contrato (?),
relativamente ao tratamento do processo de residente não habitual dos autores
por Daniel Silva, o que é assumido na sentença.
8 – Assim, a invocação do artigo 799.º
do Código Civil carece de fundamento, já que se refere ao incumprimento do
devedor e, para haver devedor, é necessário que a dívida tenha sido
contratualizada, o que não está provado.
9 – Não se percebe a
condenação referente ao IRS de 2021, porquanto se o processo tivesse sido tratado
(pelos autores) aplicava-se ao IRS de 2019 e o IRS referido no ponto 41 dos
factos provados refere-se a 2019, nada tendo a ver com o de 2021.
10 – Por outro lado, o
artigo 16.º do CIRS considera como residentes não habituais em Portugal os
sujeitos passivos que não tenham sido residentes em território português em
qualquer dos cinco anos anteriores, sendo certo que os autores, desde o dia
07.11.2018 (ponto 25 dos factos provados), passaram a ter residência permanente
em Portugal.
11 – Assim, em 2019, os
autores estavam já legalmente impedidos de obter o estatuto de residentes não
habituais, independentemente de o processo ser ou não tratado e por quem,
inexistindo, por isso, fundamento para a condenação dos aqui recorrentes pelo
incumprimento de uma obrigação que não assumiram, muito menos em relação ao IRS
de 2021.
Os recorridos apresentaram
contra-alegações, com as seguintes conclusões:
A. A alegada impugnação da matéria de
facto, aparentemente feita pelos recorrentes, não cumpre com as exigências
legais impostas pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil considerando a
falta de indicação dos factos incorrectamente julgados e os meios probatórios
que impunham decisão distinta.
B. Os recorrentes apontam contradições
de forma vaga e genérica sem qualquer indicação dos factos provados ou não
provados e dos meios de prova relevantes, pelo que o recurso deve ser
imediatamente rejeitado nesta parte.
Sem conceder,
C. A apreciação da prova assenta na
livre convicção do julgador, nas regras da experiência comum e no princípio da
imediação. O tribunal a quo
fundamentou exaustivamente a sua convicção, analisando criticamente o conjunto
da prova, elaborando uma decisão inatacável.
D. Da produção de prova em audiência de
julgamento o tribunal constatou existir uma relação contratual de prestação de
serviços, geradora de obrigações, com a especificidade de os recorrentes terem
optado, por sua iniciativa, por não cobrar honorários pelos serviços que se
obrigaram a prestar. Existindo, portanto, uma prestação de serviços sem
retribuição admitida pelo artigo 1154.º do Código Civil.
E. Os pontos provados 12 e 13 indicam
claramente que, a partir de 2013, os recorrentes iniciaram a prestação de
serviços relativamente à contabilidade pessoal dos recorridos, ficando
incumbidos de diligenciar junto da Autoridade Tributária para efeitos fiscais,
logo entregar um resultado através do seu trabalho.
F. A douta sentença também esclarece, e
bem, que a gratuitidade do serviço foi unilateralmente estabelecida pelos réus
e, assim, constituindo obrigações geradoras de resultado sob pena de produzirem
prejuízos para os clientes, aqui recorridos.
G. A escolha dos recorrentes em não
cobrarem honorários quanto à contabilidade pessoal dos autores, aqui recorridos,
jamais poderá ser imputada a estes últimos como aqueles pretendem.
H. Os inúmeros emails juntos aos autos
com a petição inicial demonstram, de forma clara e inequívoca, a existência de
uma prestação de serviços dos recorrentes que, anualmente, a pedido e também
por sua livre iniciativa, faziam diligências junto das autoridades fiscais relativamente
à contabilidade pessoal dos recorridos.
I. Em momento algum o tribunal a quo demonstrou incerteza na existência
do contrato, tendo descrito, em inúmeras vezes, a apreciação da prova produzida
em audiência de julgamento que permitiu concluir pela existência de uma relação
de prestação de serviços entre recorrentes e recorridos.
J. Por conseguinte, a impugnação da
matéria de facto deverá ser totalmente improcedente e, consequentemente, a
factualidade dada como provada deve ser mantida na íntegra por resultar da
apreciação da prova produzida e analisada pelo tribunal a quo.
K. Os recorrentes equivocam-se quanto à
condenação respeitante ao IRS de 2021, confundindo o ano em que os recorridos
foram informados da não submissão do formulário para obtenção do estatuto de
residente não habitual, em 2019, com o petitório feito nos presentes autos.
L. Inexiste qualquer erro no processo de
formação da convicção do julgador a quo,
estando perante uma decisão proferida que não merece qualquer censura ou reparo.
M. Na petição inicial os recorridos
solicitaram a condenação dos réus no pagamento dos danos patrimoniais que
consistiam nos impostos que teriam de suportar nos dez anos seguintes enquanto
residentes habituais em Portugal, ou seja: foram peticionados danos relativos
aos IRS de 2019 a 2029.
N. Pelo que o douto tribunal a quo estava obrigado a pronunciar-se
sobre todos esses anos, o que fez de forma fundamentada.
O. Quanto à concessão do estatuto de
residente não habitual, a douta sentença também esclarece, uma vez mais, que o
facto relevante relativo à residência em território português se preenche com a
residência fiscal nos termos do artigo 16.º, n.º 1, do Código de IRS. E, nesse
sentido, encontra-se demonstrado nos autos que a residência fiscal dos autores
se iniciou em Janeiro de 2019, por instrução dada pelo recorrente Daniel Silva.
P. A intenção de obter o estatuto de
residente não habitual iniciou-se por conselho do recorrente Daniel Silva, que
orientou todo o procedimento e a quem foi delegada a função de dar entrada do
pedido na página pessoal da Autoridade Tributária dos recorridos, que tinha
acesso ilimitado e sem controlo desde 2013 conforme factos provados 12 e 13.
Q. Pelo que, se encontravam preenchidos
os requisitos para a obtenção do estatuto de residente não habitual conforme
sugerido e tratado pelo recorrente, e inclusive assumido pelo sócio-gerente da
1.ª recorrente por email junto aos autos.
R. Desta facie, o recurso nesta parte também deverá improceder atendendo que
o tribunal procedeu à análise dos factos, decidindo bem pela procedência do pedido
quanto ao prejuízo relativo à tributação dos rendimentos do ano de 2021.
S. Em suma, jamais poderia ser acolhida
a pretensão dos recorrentes resultando de toda a prova produzida que a decisão
proferida quer quanto à matéria de facto quer de direito desmerece qualquer
censura, pelo que deverá manter-se integralmente a douta e lúcida decisão.
O recurso foi admitido.
*
Questões a decidir:
1 – Existência de um contrato de
prestação de serviços entre os recorrentes e os recorridos;
2 – Danos sofridos pelos recorridos.
*
Na sentença recorrida, foram
julgados provados os seguintes factos:
1. Por volta do ano de 2003/2004, os autores
decidiram vir a Portugal e aproveitar para investir em alguns negócios
imobiliários, tendo criado uma sociedade comercial juntamente com outro sócio
holandês denominada Sociedade 2, Lda., com o NIPC (…), com vista à prossecução
do seu objecto social.
2. Os autores residiam habitualmente nos
Países Baixos, de onde são naturais, e regressavam a Portugal esporadicamente
ao longo do ano para controlo dos seus negócios, repartindo assim o seu tempo
entre os dois países.
3. Necessitando de ajuda especializada
ao nível da contabilidade e fiscalidade, decidiram contratar os serviços da Sociedade
1, Lda., para que tratasse de todas as questões respeitantes à empresa desde o ano
de 2006.
4. Com o apoio dos serviços prestados
pela 1.ª ré que, inclusivamente, auxiliou contabilisticamente os autores para a
concretização de uma alteração societária no ano de 2011, altura em que foi
celebrado um contrato-promessa de cessão de quotas entre os autores e o sócio HN,
no qual adquiriram a quota deste. O contrato definitivo de cessão de quotas foi
celebrado a 14.07.2011 e, seguidamente, inscrito no registo comercial conforme
anotação do depósito 143/2011-07-27 e 144/2011-07-21.
5. Para a suprarreferida alteração
societária, os autores foram aconselhados ao nível contabilístico pela 1ª Ré,
na pessoa do seu responsável técnico Rui Loureiro, então técnico oficial de
contas e hoje designado por contabilista certificado, tendo também sido
trocadas algumas impressões entre este e o advogado dos autores, DD, na altura
e posteriormente.
6. Em 2012 e nos anos seguintes, era
também Daniel Silva, que não era técnico oficial de contas ou contabilista
certificado, mas técnico colaborador a trabalhar para Sociedade 1, Lda., quem
trocava emails e telefonemas com os autores sobre os assuntos contabilísticos e
fiscais da empresa, desde o envio das guias para pagamento das prestações de
impostos até ao pedido de documentos de suporte da contabilidade.
7. Após tais alterações societárias em
que adquiriram a quota do seu anterior sócio, foi igualmente alterado o nome da
firma para Sociedade 3, Lda., conforme Ap. 34/20130701.
8. A sede social da empresa foi até 2021
nos escritórios da sociedade ré.
9. Os autores tinham na altura a técnica
oficial de contas (TOC/CC) JJ, com número de inscrição na OCC n.º 40863, para
tratamento de todas as questões respeitantes à sua fiscalidade pessoal, desde
apresentação das declarações fiscais, pagamento de impostos até à representação
fiscal.
10. A autora teve como representantes
fiscais:
- PP (2004 a 2007), tendo depois sido
alterada a morada fiscal da autora para Ferragudo, em Lagoa;
- JJ (30/11/2008 a 2/1/2019), depois de
ter sido alterada a morada fiscal para a Holanda e em 2019 para (…).
11. E o autor teve como representantes
fiscais:
- TT (2003 a 2006), com alteração de
morada em 2006 para Ferragudo, em Lagoa;
- JJ (2008 a 2014), altura em que foi
anulada a representação fiscal.
Em 02/01/2019 foi efetuada a alteração
de morada para (…).
12. A partir de 2013, Daniel Silva, a
pedido dos autores, passou a realizar algumas interacções com a Autoridade
Tributária, designadamente, através do portal na “área reservada”, como a apresentação
das declarações anuais de rendimentos, pagamento de impostos IRS, IMI, IUC, IS,
IMT e a prestar informações solicitadas pelos autores ou pelo seu contabilista
na Holanda.
13. Os autores confiavam que Daniel
Silva tinha acesso a todas as informações e documentos necessários à realização
das tarefas que lhe solicitavam.
14. Os autores sempre pagaram todos os
honorários devidos pela empresa e despesas pedidas cada vez que Daniel Silva o
solicitava.
15. Daniel Silva sugeriu aos autores a
obtenção do estatuto de residentes não habituais caso quisessem residir em
Portugal, evitando assim a tributação nos Países Baixos.
16. No dia 18 de julho de 2018, Daniel
Silva enviou um email ao 2.º autor com o assunto RNH (sigla de “residência não
habitual”).
17. No dia 18 de Setembro, Daniel Silva
respondeu a KK, assegurando que a residência não habitual significava que o 2.º
autor teria de declarar todos os seus rendimentos sendo que alguns estariam
isentos de acordo com o anexo. Uma das isenções está relacionada com as pensões
(categoria H). Resumindo, essas pensões não seriam tributadas na fonte por ser
não residente e também ficariam isentas de impostos aqui devido à condição de
RNH.
18. A 20 de Setembro de 2018, o
contabilista holandês dos autores KK enviou novo email a Daniel Silva,
alertando que o tratado tributário bilateral entre os Países Baixos e Portugal
estatui que o primeiro poderá taxar a pensão se Portugal não o fizer e
questionava se o 3.º réu tem outros clientes com essa situação e se teria conhecimento
se a pensão seria taxada quando o país de residência fosse Portugal.
19. Nesse mesmo dia Daniel Silva
respondeu a KK esclarecendo que as pensões são taxadas em Portugal para depois
internamente darem isenções, todavia refere que deveriam verificar diretamente
com as autoridades holandesas porque seria esse o país a interpretar a regra.
20. Ainda em 2018, os autores ficaram
convencidos da vantagem do regime da residência não habitual, tendo solicitado
verbalmente a Daniel Silva que tratasse desse assunto.
21. No dia 7 de Novembro de 2018 a 1.ª autora
questiona expressamente Daniel Silva por email, se aquele poderia ir à Câmara
Municipal na semana seguinte para tratar da documentação necessária, sob o
assunto “residência”, e informando de que tinham vendido a casa na Holanda.
22. Daniel Silva responde, no dia
seguinte, só ser possível tratar desse assunto após a chegada dos autores a
Portugal considerando que estava a tratar das declarações de IVA durante aquela
semana.
23. Após regressarem a Portugal, a 1.ª autora
enviou um email ao 3.º réu a perguntar se poderiam ir tratar do assunto naquela
semana, conforme email de 24.11.2018.
24. O 3.º réu responde afirmativamente,
tendo a 1.ª autora questionado se seria necessário fazer uma marcação, ao que
aquele responde negativamente. Assim, Daniel Silva acompanhou os autores à
Câmara Municipal de Lagoa, onde eles obtiveram e lhes foi entregue para
obtenção do seu certificado de registo de cidadão da União Europeia, já
procedimento com vista ao estatuto de residente não habitual a que se iriam
candidatar.
25. No dia 7 de Dezembro de 2018, os
autores venderam a sua casa nos Países Baixos sita em (…), e deixaram de ter
seguro naquele país (elemento obrigatório para a tributação como residentes nos
Países Baixos) e passaram a residir apenas em Portugal.
26. A 27.12.2018 a 1.ª autora volta a
questionar o 3.º réu sobre o procedimento de residência não habitual mormente
se necessitariam de ir ao serviço de finanças, tendo aquele respondido que um
colega seu poderia acompanhá-los ao serviço de finanças de Silves, caso
quisessem, ou poderiam deslocar-se sozinhos devendo apresentar o documento de
residência obtido na Câmara Municipal para actualizarem a morada fiscal desde 1
de Janeiro.
27. A 1.ª autora questionou se tal teria
de ser feito de imediato ou se poderiam aguardar pelo regresso de Daniel Silva
de modo a que fosse este a tratar do assunto, tendo este esclarecido que, se
esperassem pelo seu regresso o início dos efeitos começaria apenas a 2 de Janeiro,
conforme email de 27.12.2018.
28. No dia 9 de Dezembro de 2019, Daniel
Silva informou que iria deixar de trabalhar na empresa da 1.ª ré e que seria a
sua colega Laura que ficaria encarregue das suas contas.
29. A 13 de Abril de 2020 a 1.ª autora
indagou Laura como estava a situação do IRS de 2019, tendo aquela no mesmo dia
respondido que iriam proceder à apresentação da declaração que antes era feita
pelo réu Daniel Silva.
30. A 30 de Junho de 2020 foi
reencaminhado um email para os autores que continha uma conversa entre Daniel
Silva e Laura sobre a verificação feita à declaração de IRS daqueles,
confirmando que o IRS foi aceite como não residente sem divergência e que o
pedido de residente não habitual com início em 2020 tinha sido indeferido mas
estavam a aguardar justificação.
31. O réu Daniel Silva mais indicava que
deveriam efectuar a reclamação do indeferimento do pedido com base no facto de
o IRS de 2019 ter sido aceite como não residente e apresentar justificação para
o facto de terem vindo viver para Portugal somente em 2020.
32. No mesmo dia, Laura responde ao 3.º réu
explanando que seria necessário entregar a declaração de rendimentos de 2019
nos Países Baixos e só com os comprovativos das declarações dos últimos cinco
anos poderiam fazer a reclamação sugerida.
33. No dia 7 de Julho de 2020, Daniel
Silva enviou novamente um email a Laura, o qual foi posteriormente
reencaminhado por esta para a 1.ª autora, explicando que a residência não
habitual não tinha sido aceite por ter sido ultrapassado o prazo para submeter
os últimos formulários, pelo que desde 01.01.2019 os autores eram considerados
residentes habituais em Portugal.
34. Daniel Silva sugeriu procedimento
com vista a que os autores ainda viessem a obter o estatuto pretendido
(provando que foram residentes nos Países Baixos nos últimos cinco anos, pelo
que a consequência era que o período de 10 anos com um regime fiscal mais
vantajoso começaria somente em 2020, ao que o autor lhe comunicou que não seria
possível já pagar impostos nos Países Baixos.
35. No dia 15 de Julho de 2020, Daniel
Silva respondeu, assumindo que os formulários deveriam ter sido submetidos até
31.03.2020 porém, após a sua saída do escritório e passagem dos processos para
a sua colega Laura, todos os assuntos pessoais dos autores ficaram esquecidos
devido ao facto de apenas a Sociedade 3, Lda. estar na lista de clientes da 1.ª
ré.
36. A 20 de Julho de 2020, Laura enviou
um email a KK questionando se poderia fazer uma declaração de substituição de
2019 com estatuto de residente nos Países Baixos.
37. A 28, KK responde negativamente por
email, por os autores não estarem inscritos como residentes e não terem seguro
de saúde lá desde 2019 (condição essencial e obrigatória nos Países Baixos
quando se detém um imóvel e para ser considerado residente fiscal).
38. Alguns dias depois, a 24.08.2020 Laura
envia novo email a KK questionando a possibilidade de os autores entregaram o
IRS nos Países Baixos.
39. No dia seguinte, Laura informa os autores
que dada a resposta negativa de KKiria submeter declaração substitutiva de IRS
e iriam receber nova notificação para pagar a diferença.
40. Assim, a 28.08.2020 a 1.ª autora
volta a questionar se já tinha sido apresentado o IRS de 2019 e qual o montante
total.
41. No mesmo dia, Laura esclarece que
apresentaram o IRS dos autores como não residente e que o valor a pagar seria
de € 1.800, correspondente ao rendimento recebido apenas em território
nacional, sendo a única opção face à informação prestada pelo contabilista
holandês. Todavia para regularizar a situação de 2019 seria necessário
substituir a declaração de IRS e incluindo os rendimentos obtidos nos Países
Baixos, alterando o estatuto para residentes habituais, tudo por email.
42. Nesse mesmo dia, o gerente da 1.ª ré
intervém pela primeira vez neste processo, remetendo um email de fls. 92.
43. No dia 2 de Junho de 2021
procedeu-se à interpelação extra-judicial dos 1.º e 3.º réus conforme cartas
registadas com aviso de receção, cartas que foram recebidas no dia 4.
44. Daniel Silva não respondeu e Sociedade
1, Lda. respondeu, mas nada acrescentando.
45. Os autores têm o estatuto de
residentes e pagaram impostos nessa qualidade.
46. Os autores computaram os danos em €
77.424,06, resultantes da diferença de impostos que pagariam como residentes e
residentes não habituais, nos próximos dez anos.
47. Os autores solicitaram os serviços
contabilísticos do contabilista KK, nos Países Baixos, para aconselhamento
fiscal e também com vista a auxiliar os réus com todos os elementos para a obtenção
do estatuto fiscal de residente não habitual, tendo o contabilista declarado
ter recebido a quantia de € 1.855.
48. Os autores ficaram muito zangados
com a perspectiva de terem de pagar impostos em Portugal, e que contavam não
pagar perante a perspectiva de obter o estatuto de residentes não habituais.
49. Entre a Ordem dos Contabilistas
Certificados e a Companhia de Seguros GG, S.A. foi celebrado um contrato de
seguro de grupo obrigatório de responsabilidade civil dos contabilistas certificados,
titulado pela apólice n.º 206107776 através do qual a ora contestante assumiu
para si transferido, nos termos, com os limites e exclusões aí mencionados, o
risco de «responsabilidade civil que, ao
abrigo da legislação aplicável, seja imputável ao Segurado na sua qualidade de
Contabilista Certificado.»
50. A responsabilidade – cfr. ponto 2
das condições particulares da apólice – está limitada a € 50.000 por
contabilista certificado e por sinistro. Tal contrato ficou ainda sujeito a uma
franquia, ou parte primeira de qualquer indemnização que seja devida sempre a
cargo do segurado de € 5.000, por sinistro individualmente considerado.
51. O presente contrato garante, «até ao limite do capital fixado nas
Condições Particulares, as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao
Segurado, com fundamento em responsabilidade civil decorrente do exercício da
sua atividade profissional de Contabilista Certificado.» - cfr. artigo 3.º
das condições gerais da apólice.
52. Para efeitos da presente apólice, entende-se
por segurado «a pessoa singular, titular
do interesse seguro na qualidade de Contabilista Certificado, que exerça
efetivamente a profissão» - cfr. artigo 1.º, alínea d) das condições gerais
da apólice.
53. Acrescentando a alínea e) do aludido
artigo 1º das condições gerais que é considerado contabilista certificado para
efeitos do contrato de seguro ajuizado, «o
profissional inscrito na Ordem dos Contabilistas Certificados, nos termos do
respetivo Estatuto, sendo-lhe atribuído, em exclusividade, o uso desse título
profissional».
54. O contrato de seguro de
responsabilidade civil profissional, celebrado entre a OCC e a Companhia de
Seguros GG, S.A., tal como os demais seguros de responsabilidade civil
profissional celebrados com outras ordens profissionais (médicos, advogados, engenheiros,
etc.), garantindo a indemnização por prejuízos causados a terceiros pelos
contabilistas certificados e com inscrição em vigor na referida Ordem dos Contabilistas
Certificados, configura um contrato de seguro de grupo.
Na sentença recorrida, foram
julgados não provados os seguintes factos:
- Que algum dos réus tenha assumido
formalmente e perante a Autoridade Tributária a representação fiscal dos
autores;
- Que os autores pagassem os honorários
devidos pelos serviços prestados a cada um dos autores, a nível individual, ou
que tais honorários tivessem sido solicitados;
- Que algum dos réus cobrasse dos
autores individualmente pelos serviços pessoais que não diziam respeito à
sociedade;
- Que Daniel Silva, depois de sair da Sociedade
1, Lda., tenha continuado a tratar dos assuntos relacionados com os autores, em
específico a entrega da declaração de IRS e pedido de residência não habitual;
- Quais os montantes concretos em
impostos que os autores estão obrigados a suportar nos próximos dez anos em
virtude de não terem o estatuto de residente não habitual (diferença entre os
impostos pagos/a pagar em função do estatuto de residente/residente não habitual);
- Que os autores tivessem contratado
expressamente a prestação de serviços a título individual com a Sociedade 1,
Lda..
*
1 – Existência de um
contrato de prestação de serviços entre os recorrentes e os recorridos:
Os recorrentes afirmam que a
conclusão, a que o tribunal a quo
chegou, de que vigorou um contrato de prestação de serviços gratuito entre a
recorrente Sociedade 1, Lda. e os recorridos, não encontra sustentação na
matéria de facto provada.
Não têm razão. A matéria de
facto provada inculca, sem margem para dúvidas, que aquele contrato foi
celebrado e vigorou entre 2013 e 2020. Passamos a justificar esta afirmação.
Os recorridos, então
residentes nos Países Baixos, criaram uma sociedade comercial em Portugal por
volta de 2003/2004, aqui vindo esporadicamente. Em 2006, contrataram a
recorrente Sociedade 1, Lda. para tratar da contabilidade e fiscalidade daquela
sociedade. A partir de 2012, a recorrente Sociedade 1, Lda. passou a tratar da
contabilidade e da fiscalidade da mesma sociedade através do recorrente Daniel
Silva, seu colaborador.
A partir de 2013, o
recorrente Daniel Silva, a pedido dos recorridos, passou a realizar algumas
interacções com a Autoridade Tributária, designadamente através da área reservada
do portal desta, como a apresentação das declarações anuais de rendimentos,
pagamento de impostos IRS, IMI, IUC, IS, IMT. Também a partir de 2013, o
recorrente Daniel Silva passou a prestar informações solicitadas pelos
recorridos ou pelo seu contabilista na Holanda. O recorrente Daniel Silva actuava
nos termos descritos na qualidade de colaborador da recorrente Sociedade 1,
Lda., como vinha fazendo no que respeitava aos assuntos da sociedade criada
pelos recorridos. Tanto assim era que, quando o recorrente Daniel Silva deixou
de trabalhar para a recorrente Sociedade 1, Lda., a situação tributária pessoal
dos recorridos passou a ser acompanhada por outra colaboradora dessa mesma
recorrente, Laura.
Sendo os assuntos de
natureza fiscal relativos à pessoa de cada um dos recorridos tratados, ao longo
de oito anos, por uma sociedade que se dedica a essa actividade, através de colaboradores
seus (o recorrente Daniel Silva e, posteriormente, Laura), é de concluir que
isso acontecia em execução de um contrato de prestação de serviços celebrado
entre a recorrente sociedade e os recorridos. A natureza gratuita desse
contrato explica-se pela coexistência com um contrato de prestação de serviços
oneroso que vigorava entre a recorrente sociedade e a sociedade criada pelos
recorridos.
É neste sentido que, na
sentença recorrida, se afirma que «Existiu
uma relação contratual entre os autores e a Sociedade 1, Lda., próxima da
existente com a Sociedade 3, Lda.”». Próxima, não porque o contrato existente
entre os recorridos (na qualidade de pessoas singulares e não de representantes
de uma sociedade comercial) e a recorrente Sociedade 1, Lda. não existisse ou
não merecesse a qualificação jurídica de prestação de serviços, mas sim porque
esse contrato foi celebrado entre as mesmas pessoas, ainda que, do lado dos
recorridos, em qualidade diversa, em circunstâncias tais que a existência do
contrato de prestação de serviços que os recorridos celebraram em nome próprio se
explica pela coexistência com o contrato de prestação de serviços que os
recorridos celebraram em nome da sociedade. Podemos, sem esforço, concluir que
nos encontramos perante uma união de contratos, na qual o contrato de que os
recorridos são partes se encontra dependente da subsistência daquele em que
estes outorgaram em nome da sociedade. Do ponto de vista económico, a
recorrente Sociedade 1, Lda. obtinha a compensação pelo trabalho desenvolvido
em execução dos dois contratos através da retribuição estipulada em apenas um
deles. Prática esta que não é inédita, longe disso.
Não se verifica, portanto, a
contradição que os recorrentes apontam à sentença recorrida. Em ponto algum
desta o tribunal a quo vacila na
conclusão de que, entre a recorrente Sociedade 1, Lda. e os recorridos, tenha
sido celebrado um contrato de prestação de serviços de natureza gratuita.
Os recorrentes argumentam
que, entre a recorrente Sociedade 1, Lda. e os recorridos, não foi celebrado um
contrato de prestação de serviços escrito, e que os segundos não constituíram
os primeiros como seus procuradores. É verdade que aquele contrato não foi reduzido
a escrito e que os recorridos não constituíram qualquer dos recorrentes como
seu procurador, mas nada disso obsta à sua existência e validade.
Os recorrentes também
argumentam que o tribunal a quo
demonstrou “claramente não ter a certeza
da existência de qualquer contrato, ou sequer aparência de contrato, pois
refere que Daniel Silva teria ficado de tratar do procedimento para a
obtenção do estatuto de residente não habitual”, e não que “o Daniel Silva ficou de tratar”. Também
este argumento não procede. A utilização do condicional explica-se pela
circunstância de o tribunal a quo estar
a resumir as declarações de parte dos autores e não a enunciar um facto julgado
provado, sendo, por isso, justificada e não lhe podendo ser atribuído o
significado que os recorrentes pretendem.
Pelo exposto, concluímos,
como o tribunal a quo, que resulta da
matéria de facto provada que vigorou um contrato de prestação de serviços
gratuito entre a recorrente Sociedade 1, Lda. e os recorridos. As ilações que
os recorrentes pretendem retirar da alegada falta de sustentação daquela
conclusão na matéria de facto provada carecem, elas sim, de fundamento.
2 – Danos sofridos pelos
recorridos:
2.1. Os recorrentes
argumentam que, em 2019, não se verificavam os pressupostos legais da aquisição
do estatuto de residente não habitual pelos recorridos, porquanto estes tinham residência permanente em Portugal desde o dia
07.11.2018 e o artigo 16.º do CIRS considerava como residentes não habituais em
Portugal os sujeitos passivos que não tivessem sido residentes em território
português em qualquer dos cinco anos anteriores. Daí que, segundo os
recorrentes, em 2019, os recorridos já
estivessem legalmente impedidos de obter o estatuto de residentes não
habituais, independentemente de o processo ser ou não tratado e por quem.
Concluem que, também por esta razão, inexiste fundamento para a sua condenação.
Não é
assim.
O n.º 8 do
artigo 16.º do CIRS, entretanto revogado, estabelecia que se consideravam residentes não habituais em território
português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos
dos n.ºs 1 ou 2, não tivessem sido residentes em território português em
qualquer dos cinco anos anteriores.
Os recorridos passaram a
residir exclusivamente em Portugal em 07.12.2018 (e não 07.11.2018, como os
recorrentes afirmam), mas, como se explica na sentença recorrida, só em
02.01.2019 passaram a ter residência fiscal em Portugal. Daí que, ao abrigo do
disposto no referido n.º 8 do artigo 16.º do
CIRS, estivessem em condições de adquirir o estatuto de residentes não
habituais em Portugal.
2.2. Por outro lado, os
recorrentes afirmam não perceberem “a condenação referente ao IRS de 2021, porquanto se o
processo tivesse sido tratado (pelos autores) aplicava-se ao IRS de 2019 e o
IRS referido no ponto 41 dos factos provados refere-se a 2019, nada tendo a ver
com o de 2021”.
A
incapacidade de percepção dos recorrentes não é imputável ao tribunal a quo, porquanto este explicitou as
razões deste segmento da decisão. Assim, diz-se na sentença recorrida:
“(…) é possível concluir que os autores podem ter sofrido um
prejuízo relativamente à tributação dos rendimentos de 2019, 2020 e 2021, mas
já não relativamente aos futuros, quer tendo em conta a volatilidade da lei
quer o desconhecimento dos concretos rendimentos futuros dos autores.
Os autores não demonstraram os efetivos danos decorrentes de
terem os respetivos rendimentos sido tributados enquanto residentes habituais
(e não, como esperavam, residentes não habituais) de 2019 a 2021. Para isso,
deveriam ter alegado e demonstrado os rendimentos elegíveis e a diferença de
aplicação de um e outro regime nos anos de 2020 (relativamente a rendimentos de
2019) e de 2021 (relativamente a rendimentos de 2020) – note-se que a ação
entrou em juízo em outubro de 2021, data em que terão declarado já os
rendimentos à Autoridade Tributária. Não o fizeram – a tabela junta com a
petição não foi suficiente. Por essa razão, não deve o Tribunal remeter tal
apuramento para liquidação.
Relativamente aos rendimentos de 2021, poderiam ter vindo com
articulado superveniente, mas optaram por não o fazer até porque da sua
perspetiva os danos estariam já apurados. O Tribunal poderá condenar os réus em
montante a liquidar – art. 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.”
Ou seja:
a) Não era possível
demonstrar que os recorridos viessem a sofrer danos relativamente à tributação
dos rendimentos que auferissem nos anos de 2022 e seguintes;
b) Era possível
demonstrar os danos sofridos pelos recorridos relativamente à tributação dos
rendimentos que auferissem nos anos de 2019 a 2021; porém, os recorridos não o
fizeram;
c) Tendo em conta que a
acção foi proposta em Outubro de 2021, a ausência de demonstração, pelos
recorridos, dos concretos danos que sofreram relativamente à tributação dos
rendimentos que auferiram nos anos de 2019 e 2020, impede que se relegue a sua
liquidação para a execução da sentença;
d) Em relação aos danos
decorrentes de os rendimentos auferidos pelos recorridos no ano de 2021 terem
sido tributados ao abrigo do regime dos residentes habituais e não, como
esperavam, do regime dos residentes não habituais, é admissível a condenação
dos recorrentes em montante a liquidar em execução da sentença, nos termos do
n.º 2 do artigo 609.º do CPC, porquanto se trata de danos supervenientes.
O
entendimento do tribunal a quo
descrito nas alíneas a) a c) é favorável aos recorrentes. Tanto assim foi, que
determinou a sua absolvição relativamente a danos respeitantes aos anos de
2019, 2020 e 2022 e seguintes.
Só o
entendimento descrito na alínea d) é desfavorável aos recorrentes. Ora, a
argumentação que estes apresentam não se destina a refutá-lo. Os recorrentes
apenas estranham a sua absolvição do pedido de condenação no ressarcimento dos
danos sofridos pelos recorridos relativamente aos rendimentos por estes
auferidos no ano de 2020. Porém, o fundamento dessa absolvição e de o mesmo não
ter acontecido relativamente aos rendimentos auferidos pelos recorridos no ano
de 2021 é explicitada na sentença recorrida e não merece crítica.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos
recorrentes.
Notifique.
*
Évora,
08.02.2024
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª
adjunta)
(2.º
adjunto)