Processo n.º 2108/21.0T8FAR.E1
*
Sumário:
1 – Quando
invoque, como fundamento de um pedido de alteração da decisão sobre a matéria
de facto, os factos tidos como assentes ou a prova produzida, o recorrente tem
o ónus de demonstrar, perante o tribunal ad
quem, que o tribunal a quo
cometeu um erro de julgamento, e apenas é lícito concluir que tal erro foi
cometido se aqueles elementos demonstrarem, não a versão factual julgada
provada, mas uma versão factual diversa.
2 – É inútil a
discussão, em sede de recurso, da questão da licitude e utilizabilidade de
determinado meio de prova, se este não influiu na formação da convicção do
tribunal a quo, conforme
expressamente consignado na fundamentação da sentença.
3 – Não é
admissível a formulação de pedidos novos em sede de recurso.
4 – A
hipotética existência de um enriquecimento sem causa de um dos comproprietários
de uma coisa à custa de um correspondente empobrecimento do outro, resultante
do pagamento de despesas comuns por um deles, apenas poderia gerar um direito
de crédito, na esfera jurídica do segundo, contra o primeiro. O referido
enriquecimento em nada alteraria a situação de compropriedade, não permitindo,
ao tribunal, decretar, como seu efeito, a transmissão forçada do direito do
comproprietário enriquecido para a esfera jurídica do comproprietário empobrecido,
de forma a que este passasse a ser o proprietário exclusivo.
*
Autor/recorrente:
- Horácio.
Ré/recorrida:
- Carmen.
Pedidos:
A) Seja determinada a
aquisição da quota parte de 50% que actualmente não se encontra registada em
nome do autor, no que diz respeito ao prédio urbano destinado à habitação sito em
(…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) com a fracção “E”, que
se compõe de 3 quartos, sala comum, 2 casas de banho, cozinha, hall e despensa
e descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o registo n.º (…) do
mesmo sítio e freguesia, por aquisição originária, através do instituto da usucapião,
prescrição aquisitiva que se invoca expressamente, nos termos dos artigos 1287.º,
1292.º, 1296.º, 1298.º alínea b) a 1317.º, todos do Cód. Civil.
A-1) Requer seja ordenado
a alteração no que se refere ao registo do imóvel em causa no sentido em que
tal imóvel fique registado única e exclusivamente a favor do ora aqui autor,
uma vez que ele é o seu único proprietário, verdadeira e materialmente.
Subsidiariamente,
B) Deve a presente acção
ser julgada provada e procedente e, em consequência, ser a ré condenada a pagar
ao autor a quantia de € 103.807,63, acrescida dos juros legais vincendos desde
a citação, contados à taxa de 4%, até integral e efectivo pagamento.
Sentença
recorrida:
- Julgou a acção
improcedente, absolvendo a ré do pedido;
- Condenou o autor no
pagamento de uma multa de 12 UC por litigância de má-fé.
Síntese das «conclusões» do recurso:
- O conteúdo dos n.ºs 1, 9
e 11 a 16 do enunciado dos factos provados deve ser julgado não provado;
- O conteúdo das als. e),
f) e k) do enunciado dos factos não provados deve ser julgado provado;
- É ilegal a utilização,
como meio de prova, do auto de notícia, da gravação, não autorizada, de uma
conversa mantida entre a recorrida e um suposto arrendatário da fracção, e da
transcrição de mensagens;
- Verificou-se um
enriquecimento sem causa da recorrida, à custa do recorrente, no montante de €
106.633,88, correspondente a metade do valor actual da fracção;
- Sendo a fracção
insusceptível de divisão em substância, esta terá de ser feita nos termos dos
artigos 925.º a 929.º do CPC e de acordo com a compensação por enriquecimento
sem causa;
- O recorrente não litigou
de má-fé.
O recorrente
encerrou as alegações nos seguintes termos:
«Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa doutamente
suprirá requer a V. Exa. Que decrete a procedência das presentes alegações,
determinando a revogação da sentença proferida, e que seja decretado que: A) Se
proceda à avaliação do referido imóvel, de maneira a determinar o seu valor; B)
Determinar que a R. é devedora do A. em metade do valor do imóvel, nos termos
que foram determinados pelo perito avaliador; C) Seja adjudicado ao A., ora
Recorrente, o imóvel, declarando-se que a R. devedora de metade do valor do
imóvel ao A., tendo em conta os valores determinados pela avaliação, tendo em
conta que o total das despesas suportadas com o imóvel foram feitas pelo A., a
título de enriquecimento sem causa, acrescido dos juros legais vincendos desde
a citação, contados à taxa de 4% até integral e efetivo pagamento».
Questões a decidir:
1 – Impugnação da decisão
sobre a matéria de facto;
2 – Enriquecimento sem
causa;
3 – Avaliação e divisão da
fracção;
4 – Litigância de má-fé.
Factos
julgados provados pelo tribunal a quo:
1. Autor e ré viveram como
marido e mulher, com partilha de cama, mesa e habitação, desde 1998.
2. Encontra-se descrita
sob o n.º (…), da Conservatória do Registo Predial de (…), a fracção autónoma
designada pela letra “E”, primeiro andar esquerdo, destinada a habitação,
composta por 3 quartos, sala comum, 2 casas de banho, cozinha, hall, despensa,
2 varandas e arrecadação na cave, situado (…).
3. Pela apresentação n.º (…),
de (…), foi averbada a “aquisição” da fração referida em 2., a favor da ré e do
autor, por compra.
4. Pela apresentação n.º (…),
de (…), foi averbada “hipoteca voluntária” sobre a fração referida em 2., com
um montante de capital de 99.760,00 €, a favor do Crédito Predial Português,
S.A., tendo como sujeitos passivos a ré e o autor.
5. Pela apresentação n.º (…),
de (…), foi averbada “hipoteca voluntária” sobre a fracção referida em 2., com
um montante de capital de 14.964,00 €, a favor do Crédito Predial Português,
S.A., tendo como sujeitos passivos a ré e o autor.
6. Manuel e Natália foram
“fiadores” dos empréstimos concedidos e garantidos pelas “hipotecas”
mencionadas em 4. e 5..
7.
A fração
referida em 2. encontra-se inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 7679.
8.
Após a
aquisição referida em 3., autor e ré passaram a residir na fração mencionada, o
que aconteceu até ao final de 2006.
9.
No início de
2007, de comum acordo, mudaram-se para Calle (…), Bloco 7, Bajo Izqierdo,
Ayamonte, Espanha.
10.
Em 21/01/2007, nasceu a filha de ambos, Mariana.
11.
O
relacionamento referido em 1. terminou em março de 2012, tendo ficado a ré a
residir na mesma habitação, até aos dias de hoje.
12.
Aquando da
rutura das partes referida em 11., o autor queria ceder a terceiros a
utilização da fração referida em 2., contra o pagamento de uma prestação,
enquanto a ré pretendia vender a mesma.
13.
Após a
separação mencionada em 11., ainda em 2012, e pelo menos até 2020, por acordo
verbal, o autor cedeu a utilização do imóvel a terceiros, contra o pagamento de
uma prestação, no valor mensal de 600,00 € em 2020.
14.
Porquanto a
ré tomou conhecimento dos factos referidos em 13., acabou por aceitar tal
situação, de forma a que fossem pagas as despesas relativas à mesma fração.
15.
Desde a
aquisição referida em 3., até à data em que se separaram em 2012, o autor e ré
dividiram o pagamento de todos os encargos comuns, entre os quais os relativos
aos impostos, às despesas de manutenção, ao empréstimo e a todo o tipo de
responsabilidades exigidas pela fração referida em 2..
16.
Após a
separação das partes referida em 11., apenas o autor procedeu ao pagamento dos
encargos relacionados com a fração referida em 2..
17.
O autor tem
residência em Palma del Rio, na província de Córdova, na comunidade autónoma da
Andaluzia, em Espanha, pelo menos desde 2017.
Factos
julgados não provados pelo tribunal a quo:
a) A relação existente
entre autor e ré pouco durou e, ainda no ano da aquisição da fração referida em
2., a ré decidiu separar-se do autor, afirmando que não queria saber do imóvel,
e que não iria proceder a qualquer outro pagamento.
b) Ainda em 2002, o autor
acordou verbalmente com a ré, que adquiria a parte que lhe pertencia no imóvel
e que a ré deixava de ter qualquer direito sobre o mesmo e que não teria de
fazer mais nenhum outro pagamento.
c) Em virtude da separação
referida, as partes não formalizaram o acordado, mas a ré assegurou ao autor
que assim que estivesse em condições anímicas que o contactaria para que
formalizassem o que acordaram, junto da instituição financeira onde tinham o
crédito, bem como tratando da respetiva escritura.
d) A ré nunca mais
contactou o autor e nunca chegaram a formalizar o que havia sido acordado
verbalmente.
e) A ré nunca fez qualquer
pagamento relacionado com a fração referida em 2..
f) O autor pagou sempre os
respetivos impostos, as despesas de manutenção da casa e o empréstimo para a
aquisição da fração referida em 2..
g) O autor sempre teve no
imóvel referido em 2. a sua residência.
h) É no referido imóvel
que passa temporadas quando está em Portugal, pois tem outra residência em
Espanha, país onde também trabalha.
i) É no referido imóvel
que pernoita, recebe amigos, toma refeições.
j) Desde a separação
definitiva das partes, o autor tem atuado como único proprietário do imóvel, à
vista de toda a gente e sem que alguma vez alguém o tenha impedido ou contra
ele se tenha insurgido, entendendo o autor que assim o é.
k) O autor pagou, pelo
referido imóvel, a quantia de 206.807,25 € (duzentos e seis mil oitocentos e
sete euros e vinte e cinco cêntimos), tendo pago a metade deste valor que seria
devida pela ré.
*
1 –
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
1.1. O
recorrente pretende que o facto provado n.º 1 seja julgado não provado. É ele o
seguinte: «Autor e ré viveram como marido
e mulher, com partilha de cama, mesa e habitação, desde 1998.»
Apreciando:
Nos artigos 1.º
e 2.º da petição inicial, o recorrente admite expressamente ter vivido com a
recorrida como se fossem marido e mulher, pois identifica-a como sendo a sua «companheira» no ano de 2002 e alega
que, nesse mesmo ano, ela decidiu «separar-se
imediatamente». Nas próprias alegações de recurso, o recorrente admite que
houve uma «separação» (n.ºs
200, 202 e 272) e fala nos «mantimentos
que abasteciam o casal», concluindo nunca ter a recorrida «contribuído para a vida em comum do casal»
(n.º 242). Portanto, o próprio recorrente não é coerente em relação a esta
matéria.
O facto de o
recorrente e a recorrida terem adquirido, em comum, uma fracção autónoma
destinada a habitação, para mais com recurso a crédito bancário, inculca que a
referida relação existiu efectivamente e que, quer o recorrente, quer a
recorrida, a encaravam como sólida e previsivelmente duradoura. De acordo com
as regras da experiência comum, a generalidade das pessoas não compra um imóvel
destinado a habitação a meias com uma pessoa com quem apenas mantenha uma fugaz
relação amorosa, nem contrata, para o efeito, um empréstimo bancário em
conjunto com essa pessoa. A versão que o recorrente sustenta nas suas alegações
é, pois, inverosímil.
Os depoimentos
invocados pelo recorrente também não demonstram, de forma alguma, que ele e a
recorrida tenham mantido uma mera relação de namoro. Analisemos as transcrições
relevantes:
- «26- Referiu o A., ao minuto 6:00 do seu depoimento que “(…) longe de
sermos um casal normal, discutíamos muito (…)”.» O recorrente considera que
ele e a recorrida constituíam um casal. Em sua opinião, só não eram um «casal normal» porque discutiam muito.
- «37- Ao minuto 38:38 do depoimento do A., o Sr. Dr. Advogado do A.
pergunta: “Quando viviam juntos como repartiam as despesas do casal, no dia a
dia?”, o A. responde: “Eram feitas por mim, no dia a dia na alimentação, nunca
almoçava em casa, sempre fui eu a pagar as comidas.”» O recorrente não nega
que ele e a recorrida viveram juntos. Ao contrário, admite esse facto ao afirmar,
tendo-o como ponto de referência temporal, que a alimentação sempre foi paga
por si.
- «38 - Por fim, ao minuto 1:09:18 do depoimento do A., foi perguntado
pelo Sr. Dr. Juíz: “água, luz, gás, supermercado, quem pagava?”, ao que o A.
responde: “Íamos de 15 em 15 dias abastecermo-nos no supermercado dos meus
pais, comíamos fora em alguns dias, a maioria das vezes eu é que pagava (…)
através da conta multibanco.”» Esta descrição, pelo recorrente, da rotina
que mantinha com a recorrida, inculca que viviam como marido e mulher, com
partilha de cama, mesa e habitação, tal como o tribunal a quo julgou provado. Faziam compras juntos, como geralmente faz
quem mantém comunhão de vida e não faz quem a não mantém. Saber quem pagava o
preço dos bens adquiridos é indiferente para este efeito.
- «53 - Ao minuto 16:10, o Sr. Dr. Advogado da parte da R. pergunta:
“Sabe se durante o período que viviam juntos quem pagava o empréstimo?”, ao que
a testemunha (Elsa Botelho) responde: “O empréstimo saía de uma conta que era
do meu irmão, era o primeiro titular da conta, e a seguir eram os meus pais
como fiadores e a última a Sra. Carmen.”» A testemunha Elsa Botelho, irmã
do recorrente, admitiu que este e a recorrida viveram juntos.
- «55 - Ao que o Sr. Dr. Advogado da parte da R lhe pergunta: “O seu
irmão disse-lhe isso quando?”, ao que a testemunha (Elsa Botelho) responde:
“Depois de se separaram. Quando tiveram vida em comum, não sei.”» A
testemunha Elsa Botelho afirma expressamente que o recorrente e a recorrida
tiveram vida em comum e separaram-se.
Do n.º 88 das
alegações de recurso parece resultar que o recorrente tem uma concepção muito
peculiar sobre o que seja viver como marido e mulher, com partilha de cama,
mesa e habitação. Aí se afirma que «o A.
e a R. não viveram como marido e mulher, com partilha de cama, mesa e
habitação, não passando de uma relação esporádica e pontual onde o A. procedia
ao pagamento de todas as despesas relativas ao imóvel e a si próprio.»
Aparentemente, para o recorrente, quando não se verifica uma divisão
igualitária das despesas comuns, não há vida em comum. Não é assim, obviamente.
Quantos agregados familiares são, ainda hoje, por opção ou devido a situações
de desemprego de longa duração ou de incapacidade para o trabalho, sustentados
com os rendimentos de um único dos cônjuges ou unidos de facto! Não é por isso
que deixa de existir vida em comum entre estes.
Inexiste,
assim, fundamento para alterar a decisão do tribunal a quo sobre o n.º 1 da matéria de facto provada.
1.2. O
recorrente pretende que o facto provado n.º 9 seja julgado não provado. É ele o
seguinte: «No início de 2007, de comum
acordo, mudaram-se para Calle (…), Bloco 7, Bajo Izqierdo, Ayamonte, Espanha.»
O tribunal a quo fundamentou a sua convicção sobre
esta matéria nos seguintes termos:
«Quanto aos factos vertidos nos pontos 1., 8., 9. e 11.,
referentes às datas de início da relação entre as partes, sua mudança para o
imóvel mencionado nos autos, posterior mudança para Espanha para habitação
propriedade da Ré e fim da mesma relação, teve-se em conta, em primeiro lugar,
o relatório pericial psicológico junto pela Ré (vide referências n.ºs 9833884,
de 28/02/2022, e sua tradução, com a referência 129138791, de 03/11/2022). Tal
relatório, datado de 2013, contém entrevista concedida pelo próprio Autor a
psicóloga interveniente em processo de regulação das responsabilidades
parentais decorrido em Espanha, descrevendo as datas suprarreferidas. Apesar de
tal documento ter sido impugnado pelo Autor, o que é certo é que nenhuma prova
ou início de prova efetuou em sentido contrário, mas apenas corroborou os
mesmos, designadamente o que a seguir se referirá, pelo que se considerou o
teor de tal documento.
Tais factos foram ainda confirmados pelo depoimento e
declarações de parte da Ré. Efetivamente, a mesma prestou declarações de uma
forma que nos mereceu credibilidade, descrevendo pormenorizadamente os passos
da relação mantida entre as partes. A única possível divergência para com o documento
antes citado resulta do facto de esta ter afirmado que a relação se iniciou em
1996 ou 1998, enquanto o relatório mencionado refere como data de início o ano
de 1998, considerando-se assim esta última data.
Acresce que o próprio Autor, nas suas declarações de parte,
afirmou ter iniciado relação com a Ré nos anos 90, ter vivido com a mesma
vários anos na fração, ter vivido com a Ré em Espanha quando esta ali residia
(após 2007), apesar da turbulência existente na relação, e ter participado em
entrevista com psicóloga em Espanha, de onde surgiu o relatório suprarreferido.
Confirma ainda tal versão o depoimento da testemunha Maria Dominguez,
prima da Ré, que com um discurso aparentemente credível, apesar de claramente
emotivo, afirmou ter acompanhado a sua prima nestes períodos, já que esta é
como uma irmã para si.
Em igual sentido, prestou depoimento a testemunha Martín López,
médico que trabalhou num estabelecimento médico com a Ré, durante a laboração
desta em Portugal, para além de ser amigo do casal e ter convivido com ambos
regularmente, tendo respondido às questões de uma forma desinteressada e
credível.»
A argumentação
apresentada pelo recorrente, em vez de procurar refutar esta fundamentação,
demonstrando o seu eventual desacerto, e, por essa via, evidenciando a
existência de um erro de julgamento por parte do tribunal a quo, passa completamente ao lado dela, ignorando-a pura e
simplesmente.
O recorrente
transcreve excertos das declarações de parte por si prestadas que em nada
infirmam a fundamentação do tribunal a quo acima transcrita sobre o teor das
referidas declarações. Os excertos dos depoimentos das testemunhas Elsa Botelho,
Maria Dominguez, Martin Lopez e Laura Iglésias que o recorrente invoca não têm
qualquer relevância para a questão de facto que analisamos.
O recorrente
parece ignorar o disposto no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, segundo o qual a
Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos
tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem
decisão diversa. Impuserem decisão diversa, sublinhamos. Quando invoque, como
fundamento de um pedido de alteração da decisão sobre a matéria de facto, os
factos tidos como assentes ou a prova produzida, o recorrente tem o ónus de
demonstrar, perante o tribunal ad quem,
que o tribunal a quo cometeu um erro
de julgamento, e apenas é lícito concluir que tal erro foi cometido se aqueles
elementos demonstrarem, não a versão factual julgada provada, mas uma versão
factual diversa. Ora, tal demonstração não foi feita, pelo que o facto provado
n.º 9 deverá manter-se.
1.3. O
recorrente pretende que o facto provado n.º 11 seja julgado não provado. É ele
o seguinte: «O relacionamento referido em
1. terminou em março de 2012, tendo ficado a ré a residir na mesma habitação,
até aos dias de hoje.»
A
fundamentação da convicção do tribunal a
quo é a que transcrevemos em 1.2.
O recorrente
argumenta nos seguintes termos:
«112 - O mesmo raciocínio e excertos transcritos (a propósito do
n.º 9) se pode dizer relativamente ao facto n.º 11 dos factos dado como
provados – também não deveria ter sido considerado provado que o relacionamento
terminou em março de 2012. No sentido de que existisse qualquer união de facto.
113 - Até porque a atual companheira do A., Isabel Fuentes
respondeu, a instâncias, no seu depoimento, ao minuto 11:00, que “[vive em
união de facto com o autor] desde 2012, e conhecemo-nos em 2010.”»
Os excertos
transcritos a propósito do n.º 9 em nada infirmam o facto provado n.º 11. O
recorrente parece insistir na ideia de que nunca existiu uma união de facto
entre ele e a recorrida, a qual refutámos em 1.1.
O excerto do
depoimento da actual companheira do recorrente também não contraria o facto provado
n.º 11. Esta testemunha afirmou que conheceu o recorrente em 2010 e vive em
união de facto com ele desde 2012. Esta versão factual é perfeitamente
compatível com o facto de a união entre o recorrente e a recorrida ter
terminado em Março de 2012.
1.4. O
recorrente pretende que os factos provados n.ºs 12 a 14 sejam julgados não
provados. São eles os seguintes:
«Aquando da rutura das partes referida em 11., o autor queria
ceder a terceiros a utilização da fração referida em 2., contra o pagamento de
uma prestação, enquanto a ré pretendia vender a mesma.»
«Após a separação mencionada em 11., ainda em 2012, e pelo menos
até 2020, por acordo verbal, o autor cedeu a utilização do imóvel a terceiros,
contra o pagamento de uma prestação, no valor mensal de 600,00 € em 2020.»
«Porquanto a
ré tomou conhecimento dos factos referidos em 13., acabou por aceitar tal
situação, de forma a que fossem pagas as despesas relativas à mesma fração.»
O tribunal a quo fundamentou a sua convicção sobre
esta matéria nos seguintes termos:
«No que diz respeito aos factos constantes dos pontos 12. e 14.,
referentes aos diferentes destinos que as partes pretendiam dar à fração
autónoma descrita nos autos e posterior assentimento dado pela Ré à solução
praticada pelo Autor, resulta da conjugação das declarações das próprias partes
e prova testemunhal.
De facto, em depoimento e declarações de parte da ré, esta
esclareceu que pretendia vender a fração em causa nos autos, tendo-se deslocado
por diversas vezes ao imóvel para colocar anúncios de venda do mesmo, os quais
eram retirados, supostamente pelo Autor. Ao contrário do que pretendia,
descobriu que o Autor havia cedido a terceiros a fração, tendo falado com a mãe
do Autor e tendo-se resignado a situação. Acresce a este facto, o ter solicitado
a nomeação de um advogado oficioso, que se arrastou por vários anos sem solução
(conforme documentos que juntou, datados de 2019).
Corrobora tal versão o depoimento da testemunha Maria Dominguez,
prima da Ré, tendo afirmado ter acompanhado a prima nessa tarefa, pelo menos
uma vez.
Por tal razão, não mereceu credibilidade a versão apresentada
pelo Autor, no seu articulado e nas suas declarações de parte, não tendo sido
produzida qualquer outra prova nesse sentido.
Em face da prova destes factos, e com os mesmos fundamentos,
deram-se como não provados os factos vertidos nas alíneas b) a d), que
consubstanciam o contrário dos factos provados.
Quanto à cedência onerosa do imóvel a terceiros, concretizada no
ponto 13., tal resulta, desde logo, da própria confissão do autor, que na sua
petição inicial reconhece ter dado tal imóvel de arrendamento (vide ponto 29 -
referência citius n.º 9151206, de 22/07/2021).
A duração temporal de tal cedência (2012 a 2020), ausência de
cumprimento da legislação em vigor (quanto a contrato e recibos) e valor de
contraprestação de 2020 (600,00€) resulta da informação constante do Auto de
Notícia junto pela Ré, em 14/06/2023 (referência citius n.º 11398542).
Efetivamente, de tal documento retira-se que, em 24/07/2020,
foram identificadas por entidade policial três pessoas como arrendatários do
imóvel (Mauro Branco, ali residente há 8 anos, ou seja, desde aproximadamente
2012, Jorge Sousa, ali residente há 2 anos, e Bruno Vasco, ali residente desde
março de 2020), os quais pagavam, em conjunto, a renda supramencionada ao
Autor. E pagavam tais montantes usualmente por transferência bancária, como é
possível verificar pelos extratos juntos pelo próprio Autor.
O conteúdo de tal auto é ainda corroborado pelo depoimento e
declarações de parte da Ré, que confirmou os contactos tidos com o primeiro dos
referidos arrendatários, após se ter deslocado à fração e ter detetado que o
Autor havia mudado a fechadura da fração e cedido a utilização da mesma.
Por todas estas razões, não foi atribuída credibilidade
suficiente ao depoimento da testemunha Hugo Brito, proprietário de outra fração
autónoma naquele prédio, o qual afirmou nunca ter visto qualquer habitante ou
arrendatário na fração, após a separação do casal, encontrando-se a casa
normalmente fechada.
Tal poder-se-á dever ao facto desta testemunha deter três
habitações, uma em Portugal, no prédio da fração em causa, outra em Espanha,
outra na Suíça, residindo alternadamente entre as mesmas, mas contraria
frontalmente os depoimentos que de seguida se referirão.
Aliás, nas suas declarações de parte, o Autor reconheceu que Mauro
Branco poderia ter estado pontualmente no imóvel, mas que não recebeu qualquer
renda por tal cedência, sendo que os valores constantes das transferências
bancárias recebidas em nome deste (e constantes dos extratos bancários
mencionados) se devem a trabalhos efetuados pelo Autor (de web design), o que
não mereceu de forma alguma a nossa credibilidade (quer por corresponder ao valor
que os arrendatários afirmaram à entidade policial, quer pela sua regularidade
mensal e data de pagamento nos primeiros dias de cada mês).
Ao contrário, a testemunha Martín López, afirmou que reside
perto da fração em causa, passa por ali regularmente e via pessoas a viver lá,
com roupa estendida inclusivamente.»
O recorrente
sustenta que o auto de notícia referido no trecho da fundamentação que acabámos
de transcrever não é utilizável como meio de prova, porquanto:
- O auto de notícia, sendo
um documento autêntico, faz prova plena dos factos que nele são referidos como
praticados pela autoridade ou oficial público documentador, bem como dos que
nele são atestados como objecto da sua percepção direta, mas não daqueles que
constituem objecto de ciência perante ele produzidos ou constantes de
documentos que lhe sejam apresentados, nem sequer dos que sejam objecto de
apreciação ou juízos pessoais seus;
- Pelo que não garante a
veracidade das declarações nele documentadas;
- As declarações, constantes
do auto, de quem se apresentou como arrendatário da fracção, são falsas;
- Essa falsidade acarreta
a nulidade do auto.
O recorrente
tem razão quando afirma que o facto de as declarações dos alegados
arrendatários da fracção terem sido reproduzidas no auto de notícia não garante
que as mesmas correspondam à verdade. Já não tem razão quando afirma que a
eventual falsidade dessas declarações acarreta a nulidade do auto de notícia.
Em si mesmo, o auto de notícia será sempre válido, ainda que documente
declarações falsas (o que não está demonstrado no caso dos autos, note-se).
Tratar-se-á, em qualquer caso, de um meio de prova válido e admissível, a valorar
pelo tribunal de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
Foi
precisamente isto que o tribunal a quo
fez, ao concluir que a matéria do n.º 13 se provou com base na conjugação
de vários meios de prova, a saber: confissão constante do artigo 29.º da
petição inicial, declarações do recorrente e da recorrida, auto de notícia e
depoimento da testemunha Martín López.
Portanto, nada
obstava à valoração do auto de notícia nos termos em que o tribunal a quo o fez.
As objecções
feitas pelo recorrente com fundamento nos excertos de depoimentos que
transcreve nas alegações, todos eles descontextualizados, não têm razão de ser.
As declarações
da recorrida foram no sentido que o tribunal a quo julgou provado. Os excertos dessas declarações que o
recorrente transcreve não sustentam a conclusão que este pretende retirar.
As declarações
do recorrente é que carecem de credibilidade, considerando a globalidade dos
meios de prova. Avulta a afirmação de que amigos seus viveram na fracção, mas
nunca a título de arrendamento. Esta afirmação é claramente falsa. Em vez de
transcrever inúmeros trechos irrelevantes das suas declarações, teria sido,
isso sim, muito útil fornecer uma explicação plausível para o facto de ter
admitido, no artigo 29.º da petição inicial, que deu a fracção de arrendamento[1], quando
afinal não houve, segundo diz, qualquer arrendamento. Tal como seria
interessante o recorrente procurar refutar a observação, muito justamente feita
pelo tribunal a quo, sobre a falta de
credibilidade da sua afirmação de que as quantias depositadas na sua conta
bancária por Mauro Branco (que é um dos indivíduos identificados no auto de
notícia como arrendatários) não eram rendas, mas sim a contrapartida de
trabalho, por si prestado, de «web design». Isso, o recorrente não fez.
O recorrente
afirma que «A alegação relativamente aos
arrendamentos nunca poderia proceder – para tal acontecer, na nossa modesta
opinião, teria de ter sido através de Reconvenção – que não houve.» Porém,
não justifica tal afirmação, indicando a norma legal de que resultaria a
referida exigência. Trata-se de mais uma das inúmeras afirmações sem qualquer
fundamento que constam das alegações de recurso.
Em suma, o
tribunal a quo decidiu acertadamente
ao julgar provada a matéria constante dos n.ºs 12 a 14 e fundamentou
adequadamente a sua convicção, fundamentação essa que o recorrente não refuta.
Já o recorrente faltou nitidamente à verdade, mormente ao negar a evidente
presença de arrendatários na fracção ao longo de anos.
1.5. O
recorrente pretende que os factos provados n.ºs 15 e 16 sejam julgados não
provados. São eles os seguintes:
«Desde a aquisição referida em 3., até à data em que se
separaram em 2012, o autor e ré dividiram o pagamento de todos os encargos
comuns, entre os quais os relativos aos impostos, às despesas de manutenção, ao
empréstimo e a todo o tipo de responsabilidades exigidas pela fração referida
em 2..»
«Após a separação das partes referida em 11., apenas o autor
procedeu ao pagamento dos encargos relacionados com a fração referida em 2..»
Como
fundamento da sua pretensão, o recorrente transcreve vários excertos das
declarações da recorrida. Porém, não vemos em que medida as afirmações
reproduzidas infirmem a decisão do tribunal a
quo e a circunstanciada fundamentação por este expendida. Na sua
globalidade, o depoimento da recorrida foi claramente no sentido que o tribunal
a quo julgou provado.
O recorrente
transcreve vários trechos das suas próprias declarações, mas os mesmos não
merecem credibilidade, pelas razões referidas pelo tribunal a quo e, em particular, por aquelas que
anteriormente referimos. O recorrente faltou nítida e repetidamente à verdade
nas declarações que prestou.
Concluindo, o
tribunal a quo decidiu acertadamente,
com fundamentação que merece a nossa concordância. Aliás, também aqui, o
recorrente nem sequer ensaiou refutar a referida fundamentação, tendo-se, mais
uma vez, limitado a reproduzir excertos descontextualizados de alguns
depoimentos, muitos deles sem a menor relevância para a análise desta questão
de facto, e a reiterar conclusões que foram convincentemente refutadas pelo
tribunal a quo.
1.6. O
recorrente pretende que o conteúdo das als. e), f) e k) do enunciado dos factos
não provados seja julgado provado. É ele o seguinte:
«A ré nunca fez qualquer pagamento relacionado com a fração
referida em 2.»
«O autor pagou sempre os respetivos impostos, as despesas de
manutenção da casa e o empréstimo para a aquisição da fração referida em 2.»
«O autor pagou, pelo referido imóvel, a quantia de 206.807,25 €
(duzentos e seis mil oitocentos e sete euros e vinte e cinco cêntimos), tendo
pago a metade deste valor que seria devida pela ré.»
A
fundamentação apresentada pelo recorrente resume-se no seguinte:
«276 – Deveria ter sido considerado provado do desconto na
alínea e) dos factos considerados não provados, fruto de tudo o alegado, e
devido à falta de prova documental por parte da R. e perante todos os
documentos juntos pelo A. juntos aos autos.
277 – Bem como deveria ter sido considerado provado o facto
descrito na alínea f) dos factos considerados não provados, pelas mesmas razões
referidas no artigo precedente.
278 – Bem como a alínea k), pelas mesmas razões.»
Esta
fundamentação não cumpre as exigências decorrentes do artigo 640.º, n.º 1, al.
b), do CPC. O recorrente limita-se a remeter para «tudo o alegado», para a alegada «falta de prova documental por parte da R.» e para «todos os documentos» por si juntos aos
autos, o que, obviamente, não consubstancia uma especificação de concretos
meios probatórios que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da
recorrida.
1.7. O
recorrente suscita a questão da utilizabilidade, como meio de prova, da
gravação, efectuada pela recorrida, de uma «conversa
telefónica que realizou para com o arrendatário, já depois deste ser
confrontado com as autoridades judiciais, do qual surgiu a auto de notícia.»
Sustenta o recorrente que se trata de um meio de prova ilícito e, como tal,
inutilizável.
Trata-se,
porém, de uma questão sem utilidade para a decisão do recurso, uma vez que o
tribunal a quo não utilizou a gravação
em causa como meio de prova, como expressamente consignou em sede de
fundamentação da convicção.
O mesmo se
diga em relação às transcrições de mensagens alegadamente trocadas pela recorrida
e um dos supostos arrendatários da fracção. É inútil discutir a questão da sua
licitude e utilizabilidade como meio de prova, uma vez que o tribunal a quo não as utilizou.
2 –
Enriquecimento sem causa:
O recorrente formulou,
a título subsidiário, o pedido de condenação da recorrida a pagar-lhe a quantia
de € 103.807,63, acrescida dos juros legais vincendos desde a citação, contados
à taxa de 4%, até integral e efectivo pagamento.
O recorrente
fundou este pedido na alegação de que foi ele quem efectuou todos os pagamentos
referentes à aquisição da fracção. Já a recorrida, segundo ele, nunca procedeu
a qualquer pagamento relativo à fracção. Considera o recorrente que, em face
disso, se verificou um enriquecimento sem causa da recorrida à sua custa, correspondente
a metade do valor por si pago pela fracção, que foi de € 213. 267,75. Conclui o
recorrente que a recorrida se encontra obrigada a restituir-lhe o montante
desse enriquecimento, nos termos dos artigos 473.º e 479.º, n.º 1, do CC.
Porém, não se
provaram os factos em que o recorrente fundou este pedido, a saber:
- A recorrida nunca fez
qualquer pagamento relacionado com a fracção [al. e)];
- O recorrente pagou
sempre os impostos, as despesas de manutenção e o empréstimo para a aquisição
da fracção [al. f)];
- O recorrente pagou, pela
referida fracção, a quantia de € 206.807,25, tendo pago a metade deste valor
que seria devida pela recorrida [al. k)].
Pelo
contrário, aquilo que se provou foi precisamente o oposto daquilo que o
recorrente alegou, ou seja:
- Desde que compraram a
fracção até à data em que se separaram (2012), o recorrente e recorrida
dividiram o pagamento de todos os encargos comuns, entre os quais os relativos
aos impostos, às despesas de manutenção, ao empréstimo e a todo o tipo de
responsabilidades exigidas pela fracção. (n.º 15);
-
Após a
separação, apenas o recorrente procedeu ao pagamento dos encargos relacionados
com a fracção (n.º 16);
- Após a separação, mas ainda
em 2012, e pelo menos até 2020, o recorrente cedeu a utilização da fracção a
terceiros contra o pagamento de uma prestação mensal, que era de € 600 em 2020
(n.º 13);
-
A recorrida acabou
por aceitar tal situação, de forma a que fossem pagas as despesas relativas à
mesma fração (nº 14).
Consequentemente,
carece de fundamento o pedido de condenação da recorrida a pagar, ao
recorrente, a quantia por este pretendida, com fundamento em enriquecimento sem
causa. É certo que, desde a separação, apenas o recorrente procedeu ao
pagamento dos encargos relacionados com a fracção, mas também o é que, a partir
de então, ele deu a fracção de arrendamento, o que lhe proporcionou uma renda
mensal que, em 2020, era de € 600. Não é, assim, possível concluir que se tenha
verificado um enriquecimento da recorrida à custa do recorrente.
3 – Avaliação
e divisão da fracção:
No pressuposto
de que tem direito a receber, da recorrida, metade do valor da fracção com
fundamento em enriquecimento sem causa, o recorrente pede que o tribunal ad quem:
- Determine a avaliação da
fracção;
- Determine que a recorrida
é devedora e o recorrente é credor de metade do valor do imóvel, nos termos que
forem determinados pelo perito avaliador;
- Adjudique a fracção ao recorrente,
declarando que a recorrida é devedora de metade do valor daquela, tendo em
conta o resultado da avaliação, a título de enriquecimento sem causa, acrescida
dos juros legais vincendos desde a citação, contados à taxa de 4% até integral
e efectivo pagamento.
Ou seja, o
recorrente formula pedidos novos em sede de recurso, pretendendo,
aparentemente, transformar, nesta fase, a presente acção declarativa comum numa
acção com processo especial de divisão de coisa comum. É por demais evidente
que não pode fazê-lo, tendo em conta, nomeadamente, o princípio da estabilidade
da instância e a finalidade dos recursos – cfr., nomeadamente, os artigos
260.º, 265.º, n.º 2, 627.º, n.º 1, 639.º, 640.º e 925.º a 930.º do CPC.
Também do
ponto de vista substantivo as referidas pretensões do recorrente carecem,
manifestamente, de fundamento. Desde logo, não ficou provada a existência de um
enriquecimento sem causa da recorrida à custa do recorrente. Todavia, ainda que
fosse de concluir que tal enriquecimento acorreu, daí apenas resultaria, para o
recorrente, um direito de crédito, de natureza pecuniária. O hipotético
enriquecimento sem causa da recorrida à custa do recorrente em nada alteraria a
situação de compropriedade em que a fracção se encontra, não permitindo, ao
tribunal, decretar, como seu efeito, a transmissão forçada do direito da
recorrida para a esfera jurídica do recorrente, de forma a que este passasse a
ser o proprietário exclusivo da mesma fracção.
4 –
Litigância de má-fé:
O tribunal a quo condenou o recorrente em multa por
litigância de má-fé com dois fundamentos:
1.º – O recorrente
indicou, como morada da recorrida, a fracção dos autos, quando sabia que a
mesma residia na morada indicada no facto provado n.º 9.
2.º – Na presente acção, o
recorrente pede que seja reconhecida a aquisição da quota parte de 50% da
fracção que se encontra registada a favor da recorrida, invocando, para o
efeito, a usucapião. Porém, posteriormente à propositura da presente acção, o
recorrente propôs, contra a recorrida, uma acção com processo especial de
divisão de coisa comum, na qual pede que seja posto termo à situação de compropriedade
sobre a fracção. Estas duas versões são, logo à partida, antagónicas entre si.
Acresce que não se fez prova alguma dos pressupostos da usucapião na presente
acção, sendo certo que o Autor não podia ignorar a falta de verificação desses
pressupostos, pelo menos desde a data da propositura da acção de divisão de
coisa comum. Não obstante, a presente acção prosseguiu.
O recorrente
insurge-se contra a sua condenação por litigância de má-fé, mas a sua
argumentação resume-se ao seguinte:
«418 – Quanto ao primeiro pedido na sua petição inicial, o A.
bem como o seu mandatário especificaram que se tratou de um erro na transmissão
dos factos por parte do A. No seu mandatário, nunca, durante todo o percurso do
processo se tentou provar nada do que estivesse contido nesses factos
articulados.
419 - Quanto ao resto da factualidade, como o ora Recorrente
defende, trata-se de uma errada interpretação dos factos pelo tribunal e
consequente errada qualificação jurídica que foi dada aos mesmos.»
Em face desta
argumentação, concluímos que o recorrente não tem como explicar o que o levou a
indicar, como morada da recorrida, um local onde sabia que ela não residia, para
mais conhecendo o local onde ela efectivamente residia. Esta actuação
processual, qualificável, no mínimo, como gravemente negligente, integra a
previsão do artigo 542.º, n.º 2, al. c), do CPC, pois consubstanciou uma omissão
grave do dever de cooperação.
No que
concerne ao pedido de reconhecimento da aquisição da quota-parte de 50% da
fracção que se encontra registada a favor da recorrida com fundamento em
usucapião, a primeira observação a fazer é a de que o erro de transmissão
alegado pelo recorrente não ficou provado. Por outro lado, ficou por explicar a
razão pela qual o recorrente não desistiu do pedido logo que se apercebeu
daquele hipotético erro, que o teria levado a formular um pedido manifestamente
improcedente. Em vez disso, a acção prosseguiu para apreciação, quer do pedido
principal, quer do pedido subsidiário. Mais: como vimos no ponto anterior, já
em sede de recurso, o recorrente insiste na pretensão de lhe ser adjudicada a
quota-parte da recorrida na fracção, agora com fundamento diverso e, também
ele, manifestamente improcedente. Esta actuação do recorrente integra a
previsão do artigo 542.º, n.º 2, al. a), do CPC.
Em face do
exposto, concluímos não haver razão para alterar a sentença recorrida também no
tocante à condenação do recorrente em multa por litigância de má-fé.
*
Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença
recorrida.
Custas a cargo
do recorrente.
Notifique.
*
Évora,
23.05.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.ª adjunta)
[1] Artigo 29.º da petição inicial: «E mesmo relativamente a arrendamentos, quando os faz, pontualmente, é o mesmo que manda proceder à elaboração de contratos que paga os seus custos, que cobra as rendas e passa os respetivos recibos.»