Processo n.º 613/22.0T8PTM.E1
*
Reivindicação.
Posse.
Invocação de
títulos de detenção incompatíveis.
Dano
decorrente da privação da possibilidade de uso.
Montante da
indemnização.
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Sumário:
1 – Invoca
títulos de detenção incompatíveis entre si o réu de uma acção de reivindicação
que alega, ora que é possuidor do imóvel reivindicado nos termos do direito de
propriedade, ora que é arrendatário do mesmo imóvel.
2 – Com esta
última alegação, o réu confessa que não exerce uma posse nos termos do direito
de propriedade, nomeadamente que não actua sobre o imóvel com o animus de proprietário.
3 – A
ressarcibilidade do denominado dano da privação do uso não depende da alegação
e prova da frustração de um concreto propósito do proprietário de utilizar o
imóvel, directamente ou cedendo o seu gozo mediante a celebração de um contrato
já projectado nos seus elementos essenciais.
4 – Estando
provado que o valor locativo do imóvel reivindicado é de € 150 por mês, será
esse o montante da indemnização que quem o ocupa ilícita e culposamente tem o
dever de pagar ao proprietário.
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Autor/recorrente/recorrido:
- AAA.
Réus/recorrentes/recorridos:
- BBB;
- CCC.
Pedidos:
1 – Condenação dos réus a reconhecerem
que o autor é o legítimo proprietário da fracção H do edifício, constituído em
propriedade horizontal, sito na Avenida (…), denominado Edifício (…), Praia da
Rocha, em Portimão, fracção descrita a favor do autor na Conservatória do
Registo Predial de Portimão com o n.º (…) e pela apresentação (…) de
28.06.2007;
2 – Sejam por tal facto e
também com fundamento no disposto no artigo 1311.º do Código Civil, os réus
condenados a entregarem tal fracção autónoma ao autor, livre e devoluta, de
forma a que este possa desfrutar plenamente do seu direito de propriedade;
3 – Sejam os réus
condenados a pagarem, ao autor, a quantia correspondente ao prejuízo que lhe
causaram com a ilegítima ocupação da fracção H, tudo com base no disposto no
artigo 483.º do C. Civil, quantia essa que, até à data de entrada da presente
acção, se computa em € 14.700, relativa a 42 meses, contados ao valor médio de
rendimento da fracção, estimado em € 350.
4 – Sejam os réus
condenados no pagamento de quantia indemnizatória mensal igual, correspondente
a todos os meses em que se mantiver a ocupação ilegítima da fracção pelos réus
à mesma quantificação, e até à efectiva recuperação da posse por parte do autor.
5 – Sejam os réus
condenados no pagamento dos juros contados dia a dia, à taxa legal, sobre as
quantias referidas no ponto anterior do petitório.
Sentença
recorrida:
Julgou a acção
parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a) Declarou que o autor é
dono e legítimo proprietário da fracção autónoma designada pela letra H do
prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida
(…), Edifício (…), freguesia e concelho de Portimão, inscrito sob o artigo
matricial n.º (…), da freguesia de Portimão e descrito na Conservatória do
Registo Predial de Portimão sob o número (…);
b) Condenou os réus a
reconhecerem o autor na referida qualidade;
c) Condenou os réus a
restituírem, ao autor, o imóvel melhor identificado em a), livre e devoluto de
pessoas e bens, no prazo de um mês, contado a partir do trânsito em julgado da
sentença.
d) Absolveu os réus do
demais peticionado.
e) Julgou não verificada
litigância de má-fé por parte do autor.
Conclusões do
recurso interposto pelos réus:
1 – Vem o presente recurso
interposto da sentença proferida pela Meritíssima Juiz do tribunal a quo, que declarou que o ora recorrido
é proprietário da fracção em causa naqueles autos e, em consequência, decidiu
condenar os recorrentes a restituírem a referida fracção.
2 – A Meritíssima Juiz do tribunal
a quo fundamenta a sua decisão com
base – única e exclusivamente – na prova documental carreada para os autos, ao
arrepio das alegações dos apelantes, bem como das declarações de parte
prestadas pelo recorrente BBB e dos depoimentos prestados pelas testemunhas em
audiência de julgamento.
3 – Acresce que o tribunal
de comarca não fez uma correcta subsunção jurídica dos factos, com a
desapropriada aplicação do direito, e no que concretamente diz respeito à
verificação do título que legitima a ocupação da fracção, objecto do litígio,
por parte dos ora apelantes.
4 – Considerada a
facticidade apurada processualmente, o tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, pois dos autos
resultaram provas contrárias à declaração do direito de propriedade do recorrido.
5 – Como se demonstra o tribunal
de 1.ª instância, admite que o imóvel se encontra na posse dos recorrentes
desde o ano de 1990, pelo que não deveria, na sua decisão, ter desconsiderado este
facto, que deu como assente.
6 – Consideram os apelantes
que, na sentença proferida pelo tribunal a
quo, devia o facto n), dado como não provado, ter sido dado como assente.
7 – Incorreu o tribunal a quo no erro de não admitir a junção
dos comprovativos da liquidação das rendas, referentes à fracção H.
8 – Ao abrigo da al. c) do
artigo 423.º do CPC, seria possível juntar os referidos recibos.
9 – Na eventualidade de
considerar que os documentos, cuja junção foi requerida pelos apelantes,
estavam fora das condições contidas na al. c), deveria o tribunal de 1.ª
instância admitir na mesma a referida junção ao abrigo do artigo 423.º do CPC,
por força da aplicação do artigo 9.º, n.º 1, do CC, visando a descoberta da
verdade material.
10 – A drástica
penalização da rejeição dos documentos traduz-se numa recusa injustificada da procura
da verdade material, violadora dum princípio essencial, estruturante do
processo civil.
11 – Face aos temas da
prova fixados pelo tribunal de comarca no despacho saneador, consideram os
apelantes que a rejeição da junção dos documentos em causa é destituída de
qualquer sentido, uma vez que a prova da existência de um contrato de
arrendamento sobre o imóvel reivindicado constitui um caso típico de fundamento
de recusa da sua restituição.
12 – A Meritíssima Juiz do
tribunal a quo procedeu a uma
desadequada aplicação do direito, porquanto dos factos provados, impeditivos do
reconhecimento do direito de propriedade peticionado pelo recorrido, impunha-se
a consequente absolvição dos ora recorrentes do pedido à restituição da coisa
reivindicada.
13 – Resulta da matéria de
facto dada por assente pelo tribunal a
quo que os apelantes encontram-se a ocupar o imóvel desde o ano de 1990
(facto 4).
14 – Presume-se que quem
está na posse de uma coisa, é titular do direito correspondente aos actos que
pratica sobre ela.
15 – Foi seguindo este
raciocínio que os apelantes consideraram que, pelo menos desde o ano de 2012,
não tendo sido escriturada a compra da fracção H, eram os titulares do direito
de propriedade que recai sobre a referida fracção.
16 – Existe uma colisão
entre a presunção fundada no registo de um direito (artigo 7.º do CRP), alegada
pelo recorrido, e a presunção decorrente da posse (artigo 1268.º do CC) demonstrada
pelos recorrentes e reconhecida pelo tribunal a quo.
17 – Colidindo as duas
presunções suprarreferidas – a possessória e registal – prevalece a presunção
possessória dos apelantes, por ser mais antiga (artigo 1268.º, n.º 1, in fine, do CC).
18 – Ainda que o tribunal a quo declarasse, erradamente, o direito
de propriedade do recorrido, nunca por nunca poderia ter decretado a
restituição da fracção àquele.
19 – Nos termos do
disposto no artigo 1311.º do C.C., a eventual subsistência de um contrato de arrendamento
sobre o imóvel reivindicado, funciona como facto impeditivo à procedência do pedido
de restituição daquele.
20 – Não lograram os
apelantes fazer prova da existência do referido arrendamento, pois as suas declarações,
bem como as das suas testemunhas, foram consideradas como insuficientes, pelo
tribunal a quo, para fazer a referida
prova.
21 – Salienta-se que, de
acordo com as disposições legais existentes, o contrato de arrendamento pode
ser provado por qualquer meio de prova.
22 – Não deixou o tribunal
a quo de se pronunciar sobre o
referido contrato, declarando que, a existir um contrato de arrendamento
relativo à fracção H, estaria aquele findo há muito.
23 – Contudo, o contrato
de arrendamento urbano está sujeito às causas gerais de extinção dos contratos
e, não se tendo verificado nenhuma das causas de extinção legalmente consagradas,
pugnam os ora recorrentes pela subsistência do arrendamento.
Conclusões do
recurso interposto pelo autor:
1 – A circunstância de o
autor, proprietário de uma fracção, não conseguir tomar posse da mesma, exercer
os seus direitos enquanto proprietário, ou praticar os respectivos actos
possessórios sobre a coisa, por culpa dos réus, é uma manifesta lesão.
2 – Ao caso concreto,
devia ter sido aplicada a norma disposta no artigo 564.º, n.º 1, do CC, «O dever de indemnizar compreende não só o
prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em
consequência da lesão».
3 – Pelo que deve ser
julgado provado, ao contrário do que consta do não provado em h) da sentença,
que «ao ficar desapossado da fracção que
comprou, o autor sofreu prejuízos, pois ficou impedido de tirar rendimento da
mesma».
4 – Deve ainda ser julgado
provado que: «Se o autor pretendesse
arrendar a fracção para outra qualquer actividade, o valor de mercado para tal
arrendamento, aos preços de Janeiro de 2022, seriam sempre entre € 400 e € 350
mensais, tendo em conta o privilegiado local em que se encontra», porque
este facto, alegado no artigo 30.º da petição inicial, não é controvertido, por
não ter sido impugnado.
5 – Deve ser julgado
provado que «a instalação de um ponto de
apoio para a actividade profissional do autor, na Praia da Rocha, e naquela
zona privilegiada, não pode nunca ser encontrado por um valor inferior a € 350
mensais», porque este facto, alegado no artigo 31º da petição inicial, não
é controvertido, por não ter sido impugnado.
6 – No caso de os factos
articulados nos artigos 30.º e 31.º da petição inicial não sejam julgados
provados, considerando-se o testemunho prestado pelo Eng. DDD, ao minuto 8m30s,
é dito expressamente que o preço para uma fracção, com as características e
finalidades daquela que consta do processo, naquele local, para arrendar, «andaria à volta de € 150,00 mensais»,
se for para arrecadação, pelo que pelo menos esse seria o valor do dano.
7 – Da sentença não consta
que a testemunha DDD não tenha merecido credibilidade, pelo contrário, essa
testemunha foi utilizada como fundamento para considerar provado os factos 10 e
11, pelo que se conclui que a testemunha DDD prestou um testemunho credível.
8 – A lei não obriga a que
a prova do dano tenha de ser realizada por documento.
9 – Ainda que não se
considerasse provado, por mero raciocínio académico, o valor dos danos
provocados ao autor, nos termos do disposto no art. 566º nº 3 do Código Civil,
deve o Tribunal julgar equitativamente uma quantia dentro dos limites que tiver
por provados.
10 – O tribunal a quo dispunha de factos que lhe
permitiam arbitrar uma quantia, até aos valores indicados nos factos 30.º e 31.º
da petição inicial, que não são controvertidos, ou, subsidiariamente, pela
valoração do depoimento da testemunha DDD, condenando os réus no pagamento de
uma indemnização por cada mês de ocupação ilegítima do imóvel até à sua entrega
efectiva.
11 – Subsidiariamente, no
entendimento em que os factos vertidos na presente acção não são subsumíveis ao
instituto da responsabilidade civil e não se vislumbrando outro ao qual se
possa realizar essa subsunção, devia ter sido aplicada a norma prevista no artigo
473.º do Código Civil, devendo os factos ser apreciados no âmbito
enriquecimento sem causa, dado o manifesto enriquecimento dos réus à custa do
empobrecimento do autor.
Questões a
decidir:
- No recurso dos réus:
Direito do autor à restituição da fracção;
- No recurso dos autores: Direito
do autor a uma indemnização pela privação do uso da fracção.
Factos
julgados provados pelo tribunal a quo:
1 – Por escritura de
compra e venda celebrada em 7 de Junho de 2018, no Cartório Notarial de
Odivelas a cargo da Notária Dra. (…), o autor adquiriu a fracção autónoma
designada pela letra H do prédio urbano constituído em regime de propriedade
horizontal, sito na Avenida (…), Edifício (…), freguesia e concelho de
Portimão, inscrito sob o artigo matricial n.º (…), da freguesia de Portimão e
descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número (…).
2 – Em data não
concretamente apurada, mas após a compra da fracção referida em 1, o autor
contactou com os vendedores informando da ocupação da fracção H por parte do
réu marido.
3 – Os vendedores disseram
que os réus não têm qualquer direito à ocupação da fracção H.
4 – Desde data não
concretamente apurada, mas entre 1990 e 2004, que os réus ocupam a fracção
melhor identificada em 1.
5 – O autor comunicou por
carta, aos réus, a sua qualidade de proprietário, bem como a exigência da
retirada dos bens do interior da fracção, a sua desocupação e entrega das chaves.
6 – Àquela missiva,
respondeu o 1.º réu, bastante e justamente indignado, informando que é
arrendatário daquela fracção e de imediato reiterou a sua vontade na compra do
locado, solicitando, para o efeito, toda a informação de venda para que assim
pudesse exercer, devidamente, o seu direito de preferência.
7 – Os réus intentaram uma
acção judicial para exercício do direito de preferência que correu termos neste
Juízo local Cível de Portimão – juiz 1, com o n.º (…), tendo sido proferida
sentença, já transitada em julgado, que declarada extinta a instância, por
deserção.
8 – Na referida ação
judicial o autor deduziu reconvenção, peticionando o reconhecimento do seu
direito de propriedade, porém, a reconvenção não foi admitida.
9 – Na referida acção foi
dado como provado que o autor é proprietário da fracção H do prédio acima
identificado nos termos da presunção legal que decorre da efectivação do
registo definitivo na Conservatória do Registo Predial de Portimão.
10 – Os réus continuam na
posse da fracção, recusando-se a entregá-la ao autor.
11 – A fracção referida em
1) localiza-se em plena zona da «Fortaleza»,
na Praia da Rocha, em Portimão, uma área conhecida pela sua aptidão turística.
Factos
julgados não provados pelo tribunal a quo:
a) O réu BBB teve
conhecimento de todos os elementos da compra efectuada pelo autor no dia 12 de Junho
de 2018, cinco dias após o dia em que foi outorgada a escritura.
b) No dia 12 de Junho de
2018, o autor foi ao local e, apesar de lhe terem sido facultadas as chaves
pelos vendedores, deparou-se com o facto de as chaves não abrirem a porta, com
o réu marido, dizendo que os bens que se encontravam dentro da fracção, eram
seus, pedindo apenas um tempo para dali os tirar.
c) Logo nessa altura o autor
apresentou ao réu marido uma cópia da escritura de compra da fracção, para
justificar a sua legitimidade para ali estar, pedindo-lhe a retirada imediata
dos bens que estavam no interior da fracção H que havia comprado.
d) O réu marido apenas
teve conhecimento da venda da fracção aqui em apreço, quando recebeu uma
missiva do autor, a solicitar a desocupação do locado.
e) Os réus apenas tiveram
conhecimento de alguns elementos relativos ao negócio de compra e venda da fracção
H, aquando da acção judicial, que foram forçados a intentar, para exercerem o
seu direito de preferência, que correu termos neste Tribunal da Comarca de
Faro, com o n.º (…), no Juízo Local Cível de Portimão – juiz 1.
f) Os vendedores da fracção
H sabiam que existe um contrato de arrendamento, remonta aos anos de 1990.
g) Quando adquiriu a fracção
autónoma aqui em causa, o autor pretendia aí instalar um ponto de apoio para a
sua profissão de engenheiro civil, que desenvolve.
h) Ao ficar desapossado da
fracção que comprou, o autor sofreu prejuízos, pois ficou impedido de tirar
rendimento da mesma.
i) Um gabinete para
instalação de uma actividade profissional como a do autor, na Praia da Rocha, e
naquela zona privilegiada, não pode nunca ser encontrado por um valor inferior
a € 350 mensais.
j) Se o A. pretendesse
arrendar a fracção para outra qualquer atividade, o valor de mercado para tal
arrendamento, aos preços de janeiro de 2022, seriam sempre entre 400€ e 350€
mensais, tendo em conta o privilegiado local em que se encontra.
k) Há muito que havia sido
acordado e prometido verbalmente aos réus a venda da fracção E e H em
simultâneo, e só por lapso, não foi incluída na escritura de compra e venda da
fracção E, a referida fracção H.
l) Os réus adquiriram a
fracção H quando foi comprada a fracção E.
m) Para evitar alterações
na escritura que implicavam maiores gastos, foi acordado que os réus poderiam
dar o mesmo uso à fracção H que dariam à fracção E, uma vez que o preço pago no
dia da escritura referia-se a duas fracções.
n) Até ao ano de 2012 os réus
usavam a fracção H como arrendatários.
o) Desde o ano de 2012 que
os réus usam a fracção H como sua, à vista e com o conhecimento de toda a
gente, sem a oposição de alguém, ininterruptamente, agindo e comportando-se
relativamente ao bem como seus verdadeiros e únicos proprietários – que são – e
com a convicção de que não lesavam direitos de outrem.
p) O autor quando adquiriu
a fracção H sabia que a referida fracção se encontrava ocupada pelos réus e
respectiva família.
q) Os réus, por si e
possuidores, executaram obras de conservação e restauro sempre que necessário
nos cerca de 20 anos imediatamente anteriores à data de entrada da acção.
r) Os réus liquidam as
despesas da fracção aqui em causa, e promovem, às suas expensas, pela sua
conservação.
*
Direito do
autor à restituição da fracção:
1.1. No corpo
das alegações, os réus manifestam a vontade de impugnarem a decisão do tribunal
a quo sobre o facto provado n.º 4.
Porém, omitem qualquer referência a tal pretensão nas conclusões. Sendo o
objecto do recurso delimitado pelo teor das conclusões (artigos 635.º, n.º 4, e
639.º, n.º 1, do CPC), tal pretensão não será analisada.
Diga-se, ainda
assim, que a interpretação que os réus fazem do facto em questão não é a
correcta. O tribunal a quo julgou
provado, não que os réus ocuparam a fracção entre 1990 e 2004, mas sim que essa
ocupação teve início em «data não
concretamente apurada, mas entre 1990 e 2004». Em consonância, julgou
provado que «Os réus continuam na posse
da fracção, recusando-se a entregá-la ao autor (n.º 10)».
1.2. Os réus
consideram que o conteúdo da al. n) da matéria de facto não provada deverá ser
julgado provado. É ele seguinte: «Até ao
ano de 2012 os réus usavam a fracção H como arrendatários».
Porém, os réus
invocam, não meios de prova que constem do processo ou de registo ou gravação
nele realizada, como impõe a al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, mas sim um
contrato de arrendamento, que alegam terem em seu poder, que, segundo eles, «prova com toda a certeza que (…) aqueles
são arrendatários da fracção in casu». Afirmam os réus que, para provarem a
existência do referido contrato de arrendamento, requereram, no dia da
realização da audiência final, a junção aos autos dos comprovativos de pagamento
das rendas, e que esse requerimento foi indeferido pelo tribunal a quo. Consideram que esta decisão do
tribunal a quo é errada, violando o
disposto no n.º 3 do artigo 423.º do CPC e o princípio da descoberta da verdade
material.
Os réus têm em
vista um despacho proferido na audiência final, realizada no dia 01.06.2023,
que se encontra documentado na acta respectiva. Esse despacho era susceptível
de apelação autónoma, nos termos da al. d) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC.
Ora, os réus não interpuseram recurso do mesmo despacho, o qual, em face disso,
transitou em julgado, não podendo ser sindicado neste recurso, como aqueles
pretendem.
Uma vez que
não constam dos autos, não poderão os documentos que os réus referem ser
valorados, pelo tribunal ad quem,
como meio de prova, como é óbvio. Daí que careça de fundamento a pretensão dos
réus de que o conteúdo da al. n) da matéria de facto não provada seja julgado
provado.
1.3. Os réus
sustentam que o tribunal a quo errou
ao considerar demonstrada a titularidade, pelo autor, do direito de
propriedade, porquanto se provaram factos impeditivos do reconhecimento desse
direito.
Segundo os
réus, um desses factos seria a posse que vêm exercendo sobre a fracção, da qual,
nos termos do n.º 1 do artigo 1268.º do CC, decorreria a presunção de que são eles
os titulares do direito de propriedade. A existência dessa posse seria
evidenciada, desde logo, pelo facto de o autor vir reivindicar, dos réus, a
fracção. Acresce que está provado que os réus ocupam a fracção desde o ano de
1990.
Os réus
reconhecem que o autor beneficia da presunção da existência e da titularidade
do direito de propriedade sobre o imóvel, atento o registo da aquisição desse
direito a seu favor e o disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial
(CRP). Consideram que nos encontramos perante uma colisão entre a presunção
fundada no registo e a presunção decorrente da posse e que, sendo o início da
posse anterior ao registo, deverá prevalecer esta última, nos termos do artigo
1268.º, n.º 1, in fine, do CC. Ou
seja, concluem os réus que a titularidade do direito de propriedade sobre a
fracção se presume sua e não do autor.
Será assim?
O primeiro
problema com que nos deparamos é o da interpretação da alegação dos réus. Na
parte que acabamos de sintetizar, parece que os réus invocam uma posse exercida
nos termos do direito de propriedade. Ou seja, que vêm actuando sobre a fracção
com o corpus e o animus de proprietários, do que resultaria a presunção que, em seu
benefício, invocam. Todavia, os réus alegam, em simultâneo, que são
arrendatários da fracção e, consequentemente, titulares de um direito de
preferência na compra e venda da mesma.
Esta
duplicidade é patente na contestação. Nos artigos 5.º, 9.º, 21.º, 52.º, 59.º e
82.º deste articulado, os réus consideram-se possuidores da fracção nos termos
do direito de propriedade. Nos artigos 39.º, 40.º, 56.º, 66.º, 72.º, 75.º e
76.º, consideram-se arrendatários e, consequentemente, titulares do supra
referido direito de preferência. Nos artigos 57.º e 55.º, parecem
considerar-se, ora possuidores nos termos do direito de propriedade, ora
arrendatários. É desconcertante a ligeireza com que os réus saltam da alegação
de um para outro título de ocupação da fracção, num registo de absoluta
ausência de rigor.
Nas suas
alegações de recurso, tal duplicidade mantém-se. Os réus invocam, ora uma posse
exercida nos termos do direito de propriedade (conclusões 5 e 14 a 17), ora a
qualidade de arrendatários da fracção (conclusões 19 a 23).
Na realidade,
os réus invocam, em simultâneo, dois títulos de detenção da fracção que são
incompatíveis entre si. Por um lado, dizem-se possuidores da fracção nos termos
do direito de propriedade, donde, segundo eles, decorreria a presunção da
titularidade deste direito, que invocam em seu benefício. Por outro, alegam que
são arrendatários da fracção, o que implica a admissão de que são meros
possuidores desta em nome alheio ou detentores [artigo 1253.º, al. c), do CC].
Com esta última alegação, os réus acabam por confessar que não exercem uma
posse nos termos do direito de propriedade, nomeadamente que não actuam sobre a
fracção com o animus de proprietários.
Isto, note-se, independentemente da questão da prova da celebração do contrato
de arrendamento que invocam. Não obstante a ausência dessa prova, os réus
confessam que não vêm actuando sobre a fracção com o animus de proprietários.
Independentemente
desta contradição em que os réus reiteradamente incorrem, é certo que a matéria
de facto provada não permite concluir que os réus venham exercendo, sobre a
fracção, uma posse exercida nos termos do direito de propriedade.
Está provado
que os réus ocupam a fracção desde data não apurada, mas seguramente situada
entre 1990 e 2004 (n.º 4). No n.º 10, escreveu-se que os réus continuam «na posse» da fracção, mas a palavra «posse» foi utilizada no seu sentido
corrente (ocupar e utilizar a fracção) e não técnico. Se assim não fosse,
tratar-se-ia de um elemento puramente conclusivo, cuja inclusão na matéria de
facto numa acção com o objecto desta, em que a existência de uma situação de
posse em sentido técnico por parte dos réus constitui uma das questões em
discussão, teria de ser considerada irrelevante. Nos n.ºs 6 e 7, julgou-se
provado que, nas duas ocasiões neles referidas, os réus se intitularam
arrendatários da fracção.
Portanto,
aquilo que temos, em matéria de factos provados, é que os réus ocupam e
utilizam a fracção, intitulando-se arrendatários desta, mas sem conseguirem
provar a existência desse alegado arrendamento. Não há factos que permitam
concluir que os réus actuem sobre a fracção com a intenção de o fazerem como
proprietários desta [atente-se na al. o) dos factos não provados]. Os réus são
meros detentores ou possuidores precários, que simplesmente se aproveitaram, ao
longo de anos, até o autor comprar a fracção, da tolerância do anterior
proprietário desta [artigo 1253.º, al. b), do CC].
Consequentemente,
os réus não beneficiam da presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 1268.º do
CC. Já o autor beneficia da presunção decorrente do artigo 7.º do CRP. Não
tendo essa presunção sido ilidida, o tribunal a quo decidiu acertadamente ao considerá-lo proprietário da
fracção.
1.4. Os réus
sustentam que, ainda que o autor seja considerado proprietário da fracção, não
tem direito à entrega desta, dada a existência do contrato de arrendamento por
eles alegado.
Como vimos
anteriormente, não se provou a celebração desse contrato de arrendamento, pelo
que nada obsta à condenação dos réus a entregarem a fracção ao autor.
Apesar de não
ter ficado provada a celebração do referido contrato de arrendamento, o
tribunal a quo adiantou que, na
hipótese inversa, aquele se encontraria, há muito, extinto.
Os réus
pretendem que o tribunal ad quem
sindique o acerto desta afirmação. Porém, isso não acontecerá, pois trata-se de
questão inútil para a decisão da causa. Com efeito, ainda que, porventura, se
considerasse que, a ter sido celebrado, o alegado contrato de arrendamento
subsistiria, isso apenas permitiria concluir que, naquela hipótese, o autor não
teria direito à entrega da fracção. Mas, como aquela celebração não ficou
provada, o contributo desta conclusão para a decisão da causa seria nulo.
1.5.
Concluindo:
- Não se altera a decisão
proferida pelo tribunal a quo sobre a
matéria de facto;
- O autor é o proprietário
da fracção;
- Os réus não são
possuidores da fracção nos termos do direito de propriedade, nem arrendatários,
mas meros detentores ou possuidores precários, que simplesmente se
aproveitaram, ao longo de anos, até o autor comprar a fracção, da tolerância do
anterior proprietário desta;
- Consequentemente, os
réus não têm qualquer título capaz de obstar à procedência da pretensão do
autor de que a fracção lhe seja entregue;
- Pelo que o recurso
interposto pelos réus terá de improceder.
Direito do
autor a uma indemnização pela privação do uso da fracção:
2.1. O autor
considera que o conteúdo da al. h) da matéria de facto não provada deverá ser
julgado provado. É ele seguinte: «Ao
ficar desapossado da fracção que comprou, o autor sofreu prejuízos, pois ficou
impedido de tirar rendimento da mesma.»
O autor
argumenta que, ainda que não se tivesse provado qual era a concreta utilização
que ele pretendia fazer da fracção, é certo que esta tinha, por natureza, um
destino: arrecadação. Daí que o simples facto de o autor estar desapossado da fracção
há mais de cinco anos o venha impedindo de a utilizar para essa finalidade, pessoalmente
ou dando-a de arrendamento, e de retirar rendimento dela, daí resultando um
prejuízo para si.
Analisemos a
questão, tendo em mente que nos encontramos, por ora, a apreciar apenas a
impugnação da decisão do tribunal a quo
sobre a matéria de facto.
É da natureza
das coisas que, se o proprietário for impedido de exercer os seus poderes de
gozo e fruição de um imóvel, nomeadamente porque um terceiro o ocupa sem título
legítimo, fica impedido de retirar proveito económico dele. Se tiver o imóvel
em seu poder, o proprietário pode, ou não, utilizá-lo ou rentabilizá-lo, mas
tem, em qualquer caso, a possibilidade de o fazer. Se não tiver o imóvel em seu
poder, é seguro que esta possibilidade não existe.
É desta
possibilidade de retirar proveito económico do imóvel que a al. h) trata. Daí
que se tenha de julgar provado que, ao não ter a fracção em seu poder, o autor
tenha ficado impedido de tirar rendimento dela.
Questão
diversa é saber se a mera privação dessa possibilidade constitui, em si mesma,
um prejuízo indemnizável, ou se, ao invés, apenas é lícito concluir que tal
prejuízo se verifica se ficar provado que o proprietário pretendia utilizar,
ele próprio, o imóvel, ou rentabilizá-lo, nomeadamente dando-o de arrendamento.
Trata-se da questão da ressarcibilidade do denominado dano da privação do uso,
que vem suscitando divergências, quer na jurisprudência, quer na doutrina.
Ora, esta última
questão é de direito e não de facto. A resposta à questão de saber se a mera
privação do uso de uma coisa constitui, para o efeito previsto no n.º 1 do
artigo 483.º do CC, um dano, ou se, para que este se verifique, terá de se
provar que o proprietário pretendia retirar um concreto proveito económico
dessa coisa, utilizando-a ele próprio ou cedendo o seu gozo a terceiro mediante
retribuição, não depende da produção de prova, mas sim da interpretação de
normas jurídicas e da ponderação de princípios jurídicos.
Consequentemente,
a referência ao prejuízo não deverá constar do ponto que será acrescentado ao
actual enunciado da matéria de facto provada. Em vez disso, será em sede de
análise jurídica da pretensão do autor que abordaremos a questão de saber se a
privação do uso da fracção constitui, em si mesma, um prejuízo indemnizável.
Pelo exposto:
- Suprime-se a al. h) da
matéria de facto não provada;
- Acrescenta-se, ao actual
enunciado da matéria de facto provada, o seguinte:
«12 - Ao ficar desapossado da fracção que comprou, o autor ficou
impedido de tirar rendimento da mesma.»
2.2. O autor
considera que o conteúdo da al i) da matéria de facto não provada deverá ser
julgado provado. É ele seguinte: «Um
gabinete para instalação de uma actividade profissional como a do autor, na
Praia da Rocha, e naquela zona privilegiada, não pode nunca ser encontrado por
um valor inferior a € 350 mensais.»
O autor
argumenta que a alegação dessa matéria de facto, constante do artigo 30.º da
petição inicial, não foi impugnada pelos réus, pelo que devia ter sido julgada
provada. Sem razão, porém. A impugnação dessa alegação resulta dos artigos 88.º
a 99.º da contestação, em particular do artigo 89.º, pelo que a matéria em
questão não pode ser considerada admitida por acordo, nos termos dos n.ºs 1 e 2
do artigo 574.º do CPC.
O autor
argumenta ainda que a al i) se reporta a «um
valor mensal, calculado em abstrato, para uma fracção da natureza daquela
indicada nos autos», que «não tem
qualquer relevância qual o destino que o autor pretendia dar à fracção» e que
a prova do referido valor se fez, tendo em conta o depoimento da testemunha DDD,
engenheiro civil.
Ouvida a
gravação do depoimento de DDD, estranhamos que o autor o invoque como meio de
prova da matéria constante da al. i). Em momento algum do seu depoimento aquela
testemunha afirmou que um gabinete com a finalidade ali referida e com a localização
da fracção reivindicada não possa ser encontrado por um valor inferior a € 350,
ou a qualquer outro.
Aquilo que DDD
afirmou foi que o valor do arrendamento da fracção para arrecadação é de cerca
de € 150 mensais e que aquela não se encontra licenciada para escritório ou
outro fim diverso do de arrecadação. DDD esclareceu ainda que a fracção não tem
janelas e tem uma área de apenas 7 m2. Atenta esta descrição, não tem, sequer,
cabimento a hipótese de a fracção ser utilizada como escritório, pois, além da
falta de licenciamento, carece das condições mínimas para ser utilizada com
essa finalidade.
Concluímos,
assim, que o tribunal a quo decidiu
acertadamente ao julgar não provado o conteúdo da al. i).
2.3. O autor
considera que o conteúdo da al j) da matéria de facto não provada deverá ser
julgado provado. É ele seguinte: «Se o autor
pretendesse arrendar a fracção para outra qualquer atividade, o valor de
mercado para tal arrendamento, aos preços de Janeiro de 2022, seriam sempre
entre € 400 e € 350 mensais, tendo em conta o privilegiado local em que se
encontra».
O autor
argumenta que a alegação desta matéria de facto, constante do artigo 31.º da
petição inicial, não foi impugnada pelos réus, pelo que devia ter sido julgada
provada. Porém, tal como aconteceu em relação à matéria da al. i) e do artigo
30.º da petição inicial, não tem razão. A impugnação desta alegação resulta dos
artigos 88.º a 99.º da contestação, em particular do artigo 89.º, pelo que a
matéria em questão não pode ser considerada admitida por acordo, nos termos dos
n.ºs 1 e 2 do artigo 574.º do CPC.
O autor
invoca, ainda, o depoimento da testemunha DDD. Aqui, o autor tem razão. DDD,
que tem a profissão de engenheiro civil, demonstrou conhecimento do mercado
imobiliário e prestou um depoimento sóbrio e credível. Não corroborou os
valores alegados pelo autor, que são irrealistas, antes tendo avançado,
fundamentando, um valor locativo absolutamente razoável tendo em conta as
características e a localização da fracção. Daí que deva ser julgado provado,
não a totalidade da matéria da al. j) (que se manterá como não provada), mas o
facto, naquela contido, de o autor poder obter um rendimento mensal de € 150 se
desse a fracção de arrendamento.
Pelo exposto:
- Mantém-se a al. j) da
matéria de facto não provada;
- Acrescenta-se, ao actual
enunciado da matéria de facto provada, o seguinte:
«13 - O autor poderia obter um rendimento mensal de € 150 se
desse a fracção de arrendamento.»
2.4. Analisemos,
agora, a questão da ressarcibilidade do denominado dano da privação do uso.
Como
anteriormente assinalámos, esta questão vem suscitando divergências na
jurisprudência.
Deparamo-nos
com três teses:
1 – A ressarcibilidade do
dano da privação do uso depende da alegação e prova da frustração de um
concreto propósito do proprietário de utilizar a coisa, directamente ou cedendo
o seu gozo mediante um contrato já projectado nos seus elementos essenciais;
2 – O dano da privação do
uso constitui um dano autónomo, não dependendo o seu ressarcimento da alegação
e prova do propósito referido em 1; basta, para tanto, que o proprietário se
veja privado do gozo da coisa em consequência de acto ilícito e culposo de
terceiro;
3 – O dano da privação do
uso depende da alegação e prova de um genérico propósito de utilizar a coisa,
directamente ou mediante a cedência onerosa do seu gozo a terceiro; a prova
desse propósito pode decorrer «de
presunções naturais ou judiciais a retirar pelas instâncias da factualidade
envolvente»[1].
Na
generalidade dos casos, as teses enunciadas em 2 e 3 conduzem a resultados
semelhantes. Tal decorre da circunstância de, salvo em casos excepcionais, o
proprietário de uma coisa ter o propósito de exercer os seus poderes de gozo
sobre ela ou, em alternativa, de a rentabilizar, cedendo esse gozo a terceiro
mediante retribuição. Admitindo os partidários da 3.ª tese que a prova desse
propósito se faça com apelo a presunções naturais ou judiciais, o resultado prático
acaba por ser a exclusão da ressarcibilidade do dano da privação do uso apenas
quando fique demonstrado que o proprietário não pretendia, de todo, retirar
qualquer utilidade da coisa durante o período da ilícita detenção por terceiro,
o que acontecerá num número contado de casos.
A questão da
ressarcibilidade do dano decorrente da privação do uso é complexa. Desde logo,
a sua própria formulação não será, porventura, a mais rigorosa, pois aquilo que
verdadeiramente deveria ser discutido é a ressarcibilidade do dano decorrente
da privação da possibilidade de uso da coisa pelo seu proprietário[2]. Assim
se colocaria o ponto de partida da discussão a montante daquele a que a
habitual formulação da questão convida, o que poderia, eventualmente, proporcionar
uma discussão mais ampla e rigorosa. Nomeadamente, evitar-se-ia a tentação de
deduzir a solução da mera referência, no habitual enunciado da questão, da
privação ao uso e não à possibilidade de uso.
Contudo, tendo
em conta a matéria de facto provada nos presentes autos, não há necessidade de
analisar a questão com tal profundidade para lhe dar uma resposta.
Está provado
que o autor comprou a fracção em 2018; posteriormente, comunicou, aos
vendedores, que a fracção se encontrava ocupada, o que indicia o seu
inconformismo relativamente a essa situação; aos réus, comunicou a sua
qualidade de proprietário da fracção e a exigência de desocupação desta, com a
entrega das respectivas chaves; na acção de preferência proposta pelos réus, o
autor deduziu um pedido reconvencional, peticionando o reconhecimento do seu
direito de propriedade; não obstante, os réus continuam a ocupar a fracção; a
tudo isto, acresce a própria propositura desta acção.
Resulta desta
factualidade que o autor comprou a fracção com a finalidade com que a generalidade
das pessoas o faz, ou seja, para a utilizar directamente ou, eventualmente,
para a rentabilizar através da cedência a terceiros. É a existência desse
propósito que explica os esforços que, desde a aquisição, o autor tem feito no
sentido de os réus desocuparem e lhe entregarem a fracção.
De acordo com
a tese que acima enunciámos em primeiro lugar, parece que nem assim o autor
teria direito a ser indemnizado, uma vez que não logrou provar uma concreta
intenção de a utilizar, ele próprio, para determinado fim, ou de a dar de
arrendamento através de um contrato já projectado nos seus elementos essenciais.
Este resultado demonstra a inadequação daquela tese para uma justa composição
dos interesses em jogo, nomeadamente porque coloca, a cargo do lesado, uma
verdadeira probatio diabolica. Carece
de justificação razoável que, a pretexto da existência de situações,
seguramente excepcionais, em que o proprietário não pretende utilizar nem
rentabilizar a coisa durante o período em que se verifica a ocupação ilícita
por terceiro, se exija, em todos os casos, que o proprietário prove a
existência de um concreto propósito de utilização ou rentabilização da coisa,
deixando, assim, inúmeras situações lesivas destituídas de tutela por efeito de
um standard de prova demasiadamente
exigente.
A pretensão
indemnizatória do autor encontra fundamento suficiente em qualquer das
restantes teses enunciadas. À luz da segunda, pelo simples facto de estar
provado que o autor se encontra privado do gozo da fracção em consequência da
actuação ilícita e culposa dos réus, que persistem em manter a ocupação apesar
de não terem qualquer título que para tanto os legitime. À luz da terceira,
porque, como vimos, ficou provada a existência de um genérico propósito do
autor de utilizar a fracção.
Sendo assim, a
resolução do caso dos autos não requer uma tomada de posição no sentido de
optar entre as teses enunciadas em segundo e terceiro lugar. Assim se dispensa
uma indagação mais profunda, mas aqui desnecessária, sobre a questão da
ressarcibilidade deste dano, e evita-se clivagens, também desnecessárias, entre
os membros do colectivo.
2.5. Resta determinar
o montante da indemnização a que o autor tem direito.
Está provado
que o autor se encontra privado do uso e fruição da fracção desde o momento em
que a comprou e que o valor locativo desta é de € 150 por mês. É, pois, esse o
montante do dano por ele sofrido em consequência da ocupação ilícita e culposa
que os réus vêm fazendo da fracção.
A produção do
dano iniciou-se em 07.06.2018, data da celebração do contrato de compra e venda.
Desde esta data, decorreram 75 meses e 4 dias, pelo que o valor do dano se
cifra em € 11.270. É este o montante da indemnização que os réus têm de pagar
ao autor, nos termos dos artigos 483.º, n.º 1, 562.º, 564.º, n.º 1, e 566.º,
n.ºs 1 e 2, do CC.
Os réus
deverão ser, ainda, condenados a pagar, ao autor, um montante mensal de € 150 desde
a data da prolação deste acórdão até àquela em que lhe restituírem a fracção,
nos termos do artigo 564.º, n.º 2, do CC.
Os réus
deverão, finalmente, ser condenados a pagarem, ao autor, juros de mora, à taxa
supletiva legal e contados dia a dia, sobre as quantias que já são devidas e
aquelas que venham a sê-lo em consequência da continuação da ocupação ilícita e
culposa da fracção até à data em que esta for entregue, nos termos dos artigos 804.º,
805.º, n.º 2, al. b), e 806.º, n.ºs 1 e 2, do CC.
Concluindo, o
recurso interposto pelo autor deverá ser julgado parcialmente procedente, nos
termos expostos.
*
Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto:
- Julgar improcedente o
recurso interposto pelos réus, confirmando-se a sentença recorrida na parte por
ele visada;
- Julgar parcialmente
procedente o recurso interposto pelo autor, condenando-se os réus a pagarem-lhe
a quantia de € 11.270, acrescida de um montante mensal de € 150 desde a data da
prolação deste acórdão até àquela em que lhe restituírem a fracção, bem como de
juros de mora, à taxa supletiva legal e contados dia a dia, sobre as quantias
que já são devidas e aquelas que venham a sê-lo em consequência da continuação
da ocupação ilícita e culposa da fracção até à data em que esta for entregue.
As custas do
recurso interposto pelos réus ficam inteiramente a cargo destes.
As custas do
recurso interposto pelo autor serão suportadas por este e pelos réus na
proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
*
Évora,
11.07.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.º adjunto)
(2.ª adjunta)
[1] Acórdão do STJ de
26.05.2009 (Moreira Alves).
[2] A própria referência
ao proprietário da coisa é simplificadora, porquanto pode estar em causa o dano
decorrente da privação do uso, ou da possibilidade de uso, pelo titular de um
direito, diverso do de propriedade, cujo conteúdo integre poderes de gozo sobre
uma coisa.