domingo, 14 de julho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.07.2024

Processo n.º 613/22.0T8PTM.E1

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Reivindicação.

Posse.

Invocação de títulos de detenção incompatíveis.

Dano decorrente da privação da possibilidade de uso.

Montante da indemnização.

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Sumário:

1 – Invoca títulos de detenção incompatíveis entre si o réu de uma acção de reivindicação que alega, ora que é possuidor do imóvel reivindicado nos termos do direito de propriedade, ora que é arrendatário do mesmo imóvel.

2 – Com esta última alegação, o réu confessa que não exerce uma posse nos termos do direito de propriedade, nomeadamente que não actua sobre o imóvel com o animus de proprietário.

3 – A ressarcibilidade do denominado dano da privação do uso não depende da alegação e prova da frustração de um concreto propósito do proprietário de utilizar o imóvel, directamente ou cedendo o seu gozo mediante a celebração de um contrato já projectado nos seus elementos essenciais.

4 – Estando provado que o valor locativo do imóvel reivindicado é de € 150 por mês, será esse o montante da indemnização que quem o ocupa ilícita e culposamente tem o dever de pagar ao proprietário.

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Autor/recorrente/recorrido:

- AAA.

Réus/recorrentes/recorridos:

- BBB;

- CCC.

Pedidos:

1 – Condenação dos réus a reconhecerem que o autor é o legítimo proprietário da fracção H do edifício, constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida (…), denominado Edifício (…), Praia da Rocha, em Portimão, fracção descrita a favor do autor na Conservatória do Registo Predial de Portimão com o n.º (…) e pela apresentação (…) de 28.06.2007;

2 – Sejam por tal facto e também com fundamento no disposto no artigo 1311.º do Código Civil, os réus condenados a entregarem tal fracção autónoma ao autor, livre e devoluta, de forma a que este possa desfrutar plenamente do seu direito de propriedade;

3 – Sejam os réus condenados a pagarem, ao autor, a quantia correspondente ao prejuízo que lhe causaram com a ilegítima ocupação da fracção H, tudo com base no disposto no artigo 483.º do C. Civil, quantia essa que, até à data de entrada da presente acção, se computa em € 14.700, relativa a 42 meses, contados ao valor médio de rendimento da fracção, estimado em € 350.

4 – Sejam os réus condenados no pagamento de quantia indemnizatória mensal igual, correspondente a todos os meses em que se mantiver a ocupação ilegítima da fracção pelos réus à mesma quantificação, e até à efectiva recuperação da posse por parte do autor.

5 – Sejam os réus condenados no pagamento dos juros contados dia a dia, à taxa legal, sobre as quantias referidas no ponto anterior do petitório.

Sentença recorrida:

Julgou a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:

a) Declarou que o autor é dono e legítimo proprietário da fracção autónoma designada pela letra H do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida (…), Edifício (…), freguesia e concelho de Portimão, inscrito sob o artigo matricial n.º (…), da freguesia de Portimão e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número (…);

b) Condenou os réus a reconhecerem o autor na referida qualidade;

c) Condenou os réus a restituírem, ao autor, o imóvel melhor identificado em a), livre e devoluto de pessoas e bens, no prazo de um mês, contado a partir do trânsito em julgado da sentença.

d) Absolveu os réus do demais peticionado.

e) Julgou não verificada litigância de má-fé por parte do autor.

Conclusões do recurso interposto pelos réus:

1 – Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pela Meritíssima Juiz do tribunal a quo, que declarou que o ora recorrido é proprietário da fracção em causa naqueles autos e, em consequência, decidiu condenar os recorrentes a restituírem a referida fracção.

2 – A Meritíssima Juiz do tribunal a quo fundamenta a sua decisão com base – única e exclusivamente – na prova documental carreada para os autos, ao arrepio das alegações dos apelantes, bem como das declarações de parte prestadas pelo recorrente BBB e dos depoimentos prestados pelas testemunhas em audiência de julgamento.

3 – Acresce que o tribunal de comarca não fez uma correcta subsunção jurídica dos factos, com a desapropriada aplicação do direito, e no que concretamente diz respeito à verificação do título que legitima a ocupação da fracção, objecto do litígio, por parte dos ora apelantes.

4 – Considerada a facticidade apurada processualmente, o tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, pois dos autos resultaram provas contrárias à declaração do direito de propriedade do recorrido.

5 – Como se demonstra o tribunal de 1.ª instância, admite que o imóvel se encontra na posse dos recorrentes desde o ano de 1990, pelo que não deveria, na sua decisão, ter desconsiderado este facto, que deu como assente.

6 – Consideram os apelantes que, na sentença proferida pelo tribunal a quo, devia o facto n), dado como não provado, ter sido dado como assente.

7 – Incorreu o tribunal a quo no erro de não admitir a junção dos comprovativos da liquidação das rendas, referentes à fracção H.

8 – Ao abrigo da al. c) do artigo 423.º do CPC, seria possível juntar os referidos recibos.

9 – Na eventualidade de considerar que os documentos, cuja junção foi requerida pelos apelantes, estavam fora das condições contidas na al. c), deveria o tribunal de 1.ª instância admitir na mesma a referida junção ao abrigo do artigo 423.º do CPC, por força da aplicação do artigo 9.º, n.º 1, do CC, visando a descoberta da verdade material.

10 – A drástica penalização da rejeição dos documentos traduz-se numa recusa injustificada da procura da verdade material, violadora dum princípio essencial, estruturante do processo civil.

11 – Face aos temas da prova fixados pelo tribunal de comarca no despacho saneador, consideram os apelantes que a rejeição da junção dos documentos em causa é destituída de qualquer sentido, uma vez que a prova da existência de um contrato de arrendamento sobre o imóvel reivindicado constitui um caso típico de fundamento de recusa da sua restituição.

12 – A Meritíssima Juiz do tribunal a quo procedeu a uma desadequada aplicação do direito, porquanto dos factos provados, impeditivos do reconhecimento do direito de propriedade peticionado pelo recorrido, impunha-se a consequente absolvição dos ora recorrentes do pedido à restituição da coisa reivindicada.

13 – Resulta da matéria de facto dada por assente pelo tribunal a quo que os apelantes encontram-se a ocupar o imóvel desde o ano de 1990 (facto 4).

14 – Presume-se que quem está na posse de uma coisa, é titular do direito correspondente aos actos que pratica sobre ela.

15 – Foi seguindo este raciocínio que os apelantes consideraram que, pelo menos desde o ano de 2012, não tendo sido escriturada a compra da fracção H, eram os titulares do direito de propriedade que recai sobre a referida fracção.

16 – Existe uma colisão entre a presunção fundada no registo de um direito (artigo 7.º do CRP), alegada pelo recorrido, e a presunção decorrente da posse (artigo 1268.º do CC) demonstrada pelos recorrentes e reconhecida pelo tribunal a quo.

17 – Colidindo as duas presunções suprarreferidas – a possessória e registal – prevalece a presunção possessória dos apelantes, por ser mais antiga (artigo 1268.º, n.º 1, in fine, do CC).

18 – Ainda que o tribunal a quo declarasse, erradamente, o direito de propriedade do recorrido, nunca por nunca poderia ter decretado a restituição da fracção àquele.

19 – Nos termos do disposto no artigo 1311.º do C.C., a eventual subsistência de um contrato de arrendamento sobre o imóvel reivindicado, funciona como facto impeditivo à procedência do pedido de restituição daquele.

20 – Não lograram os apelantes fazer prova da existência do referido arrendamento, pois as suas declarações, bem como as das suas testemunhas, foram consideradas como insuficientes, pelo tribunal a quo, para fazer a referida prova.

21 – Salienta-se que, de acordo com as disposições legais existentes, o contrato de arrendamento pode ser provado por qualquer meio de prova.

22 – Não deixou o tribunal a quo de se pronunciar sobre o referido contrato, declarando que, a existir um contrato de arrendamento relativo à fracção H, estaria aquele findo há muito.

23 – Contudo, o contrato de arrendamento urbano está sujeito às causas gerais de extinção dos contratos e, não se tendo verificado nenhuma das causas de extinção legalmente consagradas, pugnam os ora recorrentes pela subsistência do arrendamento.

Conclusões do recurso interposto pelo autor:

1 – A circunstância de o autor, proprietário de uma fracção, não conseguir tomar posse da mesma, exercer os seus direitos enquanto proprietário, ou praticar os respectivos actos possessórios sobre a coisa, por culpa dos réus, é uma manifesta lesão.

2 – Ao caso concreto, devia ter sido aplicada a norma disposta no artigo 564.º, n.º 1, do CC, «O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão».

3 – Pelo que deve ser julgado provado, ao contrário do que consta do não provado em h) da sentença, que «ao ficar desapossado da fracção que comprou, o autor sofreu prejuízos, pois ficou impedido de tirar rendimento da mesma».

4 – Deve ainda ser julgado provado que: «Se o autor pretendesse arrendar a fracção para outra qualquer actividade, o valor de mercado para tal arrendamento, aos preços de Janeiro de 2022, seriam sempre entre € 400 e € 350 mensais, tendo em conta o privilegiado local em que se encontra», porque este facto, alegado no artigo 30.º da petição inicial, não é controvertido, por não ter sido impugnado.

5 – Deve ser julgado provado que «a instalação de um ponto de apoio para a actividade profissional do autor, na Praia da Rocha, e naquela zona privilegiada, não pode nunca ser encontrado por um valor inferior a € 350 mensais», porque este facto, alegado no artigo 31º da petição inicial, não é controvertido, por não ter sido impugnado.

6 – No caso de os factos articulados nos artigos 30.º e 31.º da petição inicial não sejam julgados provados, considerando-se o testemunho prestado pelo Eng. DDD, ao minuto 8m30s, é dito expressamente que o preço para uma fracção, com as características e finalidades daquela que consta do processo, naquele local, para arrendar, «andaria à volta de € 150,00 mensais», se for para arrecadação, pelo que pelo menos esse seria o valor do dano.

7 – Da sentença não consta que a testemunha DDD não tenha merecido credibilidade, pelo contrário, essa testemunha foi utilizada como fundamento para considerar provado os factos 10 e 11, pelo que se conclui que a testemunha DDD prestou um testemunho credível.

8 – A lei não obriga a que a prova do dano tenha de ser realizada por documento.

9 – Ainda que não se considerasse provado, por mero raciocínio académico, o valor dos danos provocados ao autor, nos termos do disposto no art. 566º nº 3 do Código Civil, deve o Tribunal julgar equitativamente uma quantia dentro dos limites que tiver por provados.

10 – O tribunal a quo dispunha de factos que lhe permitiam arbitrar uma quantia, até aos valores indicados nos factos 30.º e 31.º da petição inicial, que não são controvertidos, ou, subsidiariamente, pela valoração do depoimento da testemunha DDD, condenando os réus no pagamento de uma indemnização por cada mês de ocupação ilegítima do imóvel até à sua entrega efectiva.

11 – Subsidiariamente, no entendimento em que os factos vertidos na presente acção não são subsumíveis ao instituto da responsabilidade civil e não se vislumbrando outro ao qual se possa realizar essa subsunção, devia ter sido aplicada a norma prevista no artigo 473.º do Código Civil, devendo os factos ser apreciados no âmbito enriquecimento sem causa, dado o manifesto enriquecimento dos réus à custa do empobrecimento do autor.

Questões a decidir:

- No recurso dos réus: Direito do autor à restituição da fracção;

- No recurso dos autores: Direito do autor a uma indemnização pela privação do uso da fracção.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1 – Por escritura de compra e venda celebrada em 7 de Junho de 2018, no Cartório Notarial de Odivelas a cargo da Notária Dra. (…), o autor adquiriu a fracção autónoma designada pela letra H do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida (…), Edifício (…), freguesia e concelho de Portimão, inscrito sob o artigo matricial n.º (…), da freguesia de Portimão e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número (…).

2 – Em data não concretamente apurada, mas após a compra da fracção referida em 1, o autor contactou com os vendedores informando da ocupação da fracção H por parte do réu marido.

3 – Os vendedores disseram que os réus não têm qualquer direito à ocupação da fracção H.

4 – Desde data não concretamente apurada, mas entre 1990 e 2004, que os réus ocupam a fracção melhor identificada em 1.

5 – O autor comunicou por carta, aos réus, a sua qualidade de proprietário, bem como a exigência da retirada dos bens do interior da fracção, a sua desocupação e entrega das chaves.

6 – Àquela missiva, respondeu o 1.º réu, bastante e justamente indignado, informando que é arrendatário daquela fracção e de imediato reiterou a sua vontade na compra do locado, solicitando, para o efeito, toda a informação de venda para que assim pudesse exercer, devidamente, o seu direito de preferência.

7 – Os réus intentaram uma acção judicial para exercício do direito de preferência que correu termos neste Juízo local Cível de Portimão – juiz 1, com o n.º (…), tendo sido proferida sentença, já transitada em julgado, que declarada extinta a instância, por deserção.

8 – Na referida ação judicial o autor deduziu reconvenção, peticionando o reconhecimento do seu direito de propriedade, porém, a reconvenção não foi admitida.

9 – Na referida acção foi dado como provado que o autor é proprietário da fracção H do prédio acima identificado nos termos da presunção legal que decorre da efectivação do registo definitivo na Conservatória do Registo Predial de Portimão.

10 – Os réus continuam na posse da fracção, recusando-se a entregá-la ao autor.

11 – A fracção referida em 1) localiza-se em plena zona da «Fortaleza», na Praia da Rocha, em Portimão, uma área conhecida pela sua aptidão turística.

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

a) O réu BBB teve conhecimento de todos os elementos da compra efectuada pelo autor no dia 12 de Junho de 2018, cinco dias após o dia em que foi outorgada a escritura.

b) No dia 12 de Junho de 2018, o autor foi ao local e, apesar de lhe terem sido facultadas as chaves pelos vendedores, deparou-se com o facto de as chaves não abrirem a porta, com o réu marido, dizendo que os bens que se encontravam dentro da fracção, eram seus, pedindo apenas um tempo para dali os tirar.

c) Logo nessa altura o autor apresentou ao réu marido uma cópia da escritura de compra da fracção, para justificar a sua legitimidade para ali estar, pedindo-lhe a retirada imediata dos bens que estavam no interior da fracção H que havia comprado.

d) O réu marido apenas teve conhecimento da venda da fracção aqui em apreço, quando recebeu uma missiva do autor, a solicitar a desocupação do locado.

e) Os réus apenas tiveram conhecimento de alguns elementos relativos ao negócio de compra e venda da fracção H, aquando da acção judicial, que foram forçados a intentar, para exercerem o seu direito de preferência, que correu termos neste Tribunal da Comarca de Faro, com o n.º (…), no Juízo Local Cível de Portimão – juiz 1.

f) Os vendedores da fracção H sabiam que existe um contrato de arrendamento, remonta aos anos de 1990.

g) Quando adquiriu a fracção autónoma aqui em causa, o autor pretendia aí instalar um ponto de apoio para a sua profissão de engenheiro civil, que desenvolve.

h) Ao ficar desapossado da fracção que comprou, o autor sofreu prejuízos, pois ficou impedido de tirar rendimento da mesma.

i) Um gabinete para instalação de uma actividade profissional como a do autor, na Praia da Rocha, e naquela zona privilegiada, não pode nunca ser encontrado por um valor inferior a € 350 mensais.

j) Se o A. pretendesse arrendar a fracção para outra qualquer atividade, o valor de mercado para tal arrendamento, aos preços de janeiro de 2022, seriam sempre entre 400€ e 350€ mensais, tendo em conta o privilegiado local em que se encontra.

k) Há muito que havia sido acordado e prometido verbalmente aos réus a venda da fracção E e H em simultâneo, e só por lapso, não foi incluída na escritura de compra e venda da fracção E, a referida fracção H.

l) Os réus adquiriram a fracção H quando foi comprada a fracção E.

m) Para evitar alterações na escritura que implicavam maiores gastos, foi acordado que os réus poderiam dar o mesmo uso à fracção H que dariam à fracção E, uma vez que o preço pago no dia da escritura referia-se a duas fracções.

n) Até ao ano de 2012 os réus usavam a fracção H como arrendatários.

o) Desde o ano de 2012 que os réus usam a fracção H como sua, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem a oposição de alguém, ininterruptamente, agindo e comportando-se relativamente ao bem como seus verdadeiros e únicos proprietários – que são – e com a convicção de que não lesavam direitos de outrem.

p) O autor quando adquiriu a fracção H sabia que a referida fracção se encontrava ocupada pelos réus e respectiva família.

q) Os réus, por si e possuidores, executaram obras de conservação e restauro sempre que necessário nos cerca de 20 anos imediatamente anteriores à data de entrada da acção.

r) Os réus liquidam as despesas da fracção aqui em causa, e promovem, às suas expensas, pela sua conservação.

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Direito do autor à restituição da fracção:

1.1. No corpo das alegações, os réus manifestam a vontade de impugnarem a decisão do tribunal a quo sobre o facto provado n.º 4. Porém, omitem qualquer referência a tal pretensão nas conclusões. Sendo o objecto do recurso delimitado pelo teor das conclusões (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), tal pretensão não será analisada.

Diga-se, ainda assim, que a interpretação que os réus fazem do facto em questão não é a correcta. O tribunal a quo julgou provado, não que os réus ocuparam a fracção entre 1990 e 2004, mas sim que essa ocupação teve início em «data não concretamente apurada, mas entre 1990 e 2004». Em consonância, julgou provado que «Os réus continuam na posse da fracção, recusando-se a entregá-la ao autor (n.º 10)».

1.2. Os réus consideram que o conteúdo da al. n) da matéria de facto não provada deverá ser julgado provado. É ele seguinte: «Até ao ano de 2012 os réus usavam a fracção H como arrendatários».

Porém, os réus invocam, não meios de prova que constem do processo ou de registo ou gravação nele realizada, como impõe a al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, mas sim um contrato de arrendamento, que alegam terem em seu poder, que, segundo eles, «prova com toda a certeza que (…) aqueles são arrendatários da fracção in casu». Afirmam os réus que, para provarem a existência do referido contrato de arrendamento, requereram, no dia da realização da audiência final, a junção aos autos dos comprovativos de pagamento das rendas, e que esse requerimento foi indeferido pelo tribunal a quo. Consideram que esta decisão do tribunal a quo é errada, violando o disposto no n.º 3 do artigo 423.º do CPC e o princípio da descoberta da verdade material.

Os réus têm em vista um despacho proferido na audiência final, realizada no dia 01.06.2023, que se encontra documentado na acta respectiva. Esse despacho era susceptível de apelação autónoma, nos termos da al. d) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC. Ora, os réus não interpuseram recurso do mesmo despacho, o qual, em face disso, transitou em julgado, não podendo ser sindicado neste recurso, como aqueles pretendem.

Uma vez que não constam dos autos, não poderão os documentos que os réus referem ser valorados, pelo tribunal ad quem, como meio de prova, como é óbvio. Daí que careça de fundamento a pretensão dos réus de que o conteúdo da al. n) da matéria de facto não provada seja julgado provado.

1.3. Os réus sustentam que o tribunal a quo errou ao considerar demonstrada a titularidade, pelo autor, do direito de propriedade, porquanto se provaram factos impeditivos do reconhecimento desse direito.

Segundo os réus, um desses factos seria a posse que vêm exercendo sobre a fracção, da qual, nos termos do n.º 1 do artigo 1268.º do CC, decorreria a presunção de que são eles os titulares do direito de propriedade. A existência dessa posse seria evidenciada, desde logo, pelo facto de o autor vir reivindicar, dos réus, a fracção. Acresce que está provado que os réus ocupam a fracção desde o ano de 1990.

Os réus reconhecem que o autor beneficia da presunção da existência e da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel, atento o registo da aquisição desse direito a seu favor e o disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial (CRP). Consideram que nos encontramos perante uma colisão entre a presunção fundada no registo e a presunção decorrente da posse e que, sendo o início da posse anterior ao registo, deverá prevalecer esta última, nos termos do artigo 1268.º, n.º 1, in fine, do CC. Ou seja, concluem os réus que a titularidade do direito de propriedade sobre a fracção se presume sua e não do autor.

Será assim?

O primeiro problema com que nos deparamos é o da interpretação da alegação dos réus. Na parte que acabamos de sintetizar, parece que os réus invocam uma posse exercida nos termos do direito de propriedade. Ou seja, que vêm actuando sobre a fracção com o corpus e o animus de proprietários, do que resultaria a presunção que, em seu benefício, invocam. Todavia, os réus alegam, em simultâneo, que são arrendatários da fracção e, consequentemente, titulares de um direito de preferência na compra e venda da mesma.

Esta duplicidade é patente na contestação. Nos artigos 5.º, 9.º, 21.º, 52.º, 59.º e 82.º deste articulado, os réus consideram-se possuidores da fracção nos termos do direito de propriedade. Nos artigos 39.º, 40.º, 56.º, 66.º, 72.º, 75.º e 76.º, consideram-se arrendatários e, consequentemente, titulares do supra referido direito de preferência. Nos artigos 57.º e 55.º, parecem considerar-se, ora possuidores nos termos do direito de propriedade, ora arrendatários. É desconcertante a ligeireza com que os réus saltam da alegação de um para outro título de ocupação da fracção, num registo de absoluta ausência de rigor.

Nas suas alegações de recurso, tal duplicidade mantém-se. Os réus invocam, ora uma posse exercida nos termos do direito de propriedade (conclusões 5 e 14 a 17), ora a qualidade de arrendatários da fracção (conclusões 19 a 23).

Na realidade, os réus invocam, em simultâneo, dois títulos de detenção da fracção que são incompatíveis entre si. Por um lado, dizem-se possuidores da fracção nos termos do direito de propriedade, donde, segundo eles, decorreria a presunção da titularidade deste direito, que invocam em seu benefício. Por outro, alegam que são arrendatários da fracção, o que implica a admissão de que são meros possuidores desta em nome alheio ou detentores [artigo 1253.º, al. c), do CC]. Com esta última alegação, os réus acabam por confessar que não exercem uma posse nos termos do direito de propriedade, nomeadamente que não actuam sobre a fracção com o animus de proprietários. Isto, note-se, independentemente da questão da prova da celebração do contrato de arrendamento que invocam. Não obstante a ausência dessa prova, os réus confessam que não vêm actuando sobre a fracção com o animus de proprietários.

Independentemente desta contradição em que os réus reiteradamente incorrem, é certo que a matéria de facto provada não permite concluir que os réus venham exercendo, sobre a fracção, uma posse exercida nos termos do direito de propriedade.

Está provado que os réus ocupam a fracção desde data não apurada, mas seguramente situada entre 1990 e 2004 (n.º 4). No n.º 10, escreveu-se que os réus continuam «na posse» da fracção, mas a palavra «posse» foi utilizada no seu sentido corrente (ocupar e utilizar a fracção) e não técnico. Se assim não fosse, tratar-se-ia de um elemento puramente conclusivo, cuja inclusão na matéria de facto numa acção com o objecto desta, em que a existência de uma situação de posse em sentido técnico por parte dos réus constitui uma das questões em discussão, teria de ser considerada irrelevante. Nos n.ºs 6 e 7, julgou-se provado que, nas duas ocasiões neles referidas, os réus se intitularam arrendatários da fracção.

Portanto, aquilo que temos, em matéria de factos provados, é que os réus ocupam e utilizam a fracção, intitulando-se arrendatários desta, mas sem conseguirem provar a existência desse alegado arrendamento. Não há factos que permitam concluir que os réus actuem sobre a fracção com a intenção de o fazerem como proprietários desta [atente-se na al. o) dos factos não provados]. Os réus são meros detentores ou possuidores precários, que simplesmente se aproveitaram, ao longo de anos, até o autor comprar a fracção, da tolerância do anterior proprietário desta [artigo 1253.º, al. b), do CC].

Consequentemente, os réus não beneficiam da presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 1268.º do CC. Já o autor beneficia da presunção decorrente do artigo 7.º do CRP. Não tendo essa presunção sido ilidida, o tribunal a quo decidiu acertadamente ao considerá-lo proprietário da fracção.

1.4. Os réus sustentam que, ainda que o autor seja considerado proprietário da fracção, não tem direito à entrega desta, dada a existência do contrato de arrendamento por eles alegado.

Como vimos anteriormente, não se provou a celebração desse contrato de arrendamento, pelo que nada obsta à condenação dos réus a entregarem a fracção ao autor.

Apesar de não ter ficado provada a celebração do referido contrato de arrendamento, o tribunal a quo adiantou que, na hipótese inversa, aquele se encontraria, há muito, extinto.

Os réus pretendem que o tribunal ad quem sindique o acerto desta afirmação. Porém, isso não acontecerá, pois trata-se de questão inútil para a decisão da causa. Com efeito, ainda que, porventura, se considerasse que, a ter sido celebrado, o alegado contrato de arrendamento subsistiria, isso apenas permitiria concluir que, naquela hipótese, o autor não teria direito à entrega da fracção. Mas, como aquela celebração não ficou provada, o contributo desta conclusão para a decisão da causa seria nulo.

1.5. Concluindo:

- Não se altera a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto;

- O autor é o proprietário da fracção;

- Os réus não são possuidores da fracção nos termos do direito de propriedade, nem arrendatários, mas meros detentores ou possuidores precários, que simplesmente se aproveitaram, ao longo de anos, até o autor comprar a fracção, da tolerância do anterior proprietário desta;

- Consequentemente, os réus não têm qualquer título capaz de obstar à procedência da pretensão do autor de que a fracção lhe seja entregue;

- Pelo que o recurso interposto pelos réus terá de improceder.

Direito do autor a uma indemnização pela privação do uso da fracção:

2.1. O autor considera que o conteúdo da al. h) da matéria de facto não provada deverá ser julgado provado. É ele seguinte: «Ao ficar desapossado da fracção que comprou, o autor sofreu prejuízos, pois ficou impedido de tirar rendimento da mesma.»

O autor argumenta que, ainda que não se tivesse provado qual era a concreta utilização que ele pretendia fazer da fracção, é certo que esta tinha, por natureza, um destino: arrecadação. Daí que o simples facto de o autor estar desapossado da fracção há mais de cinco anos o venha impedindo de a utilizar para essa finalidade, pessoalmente ou dando-a de arrendamento, e de retirar rendimento dela, daí resultando um prejuízo para si.

Analisemos a questão, tendo em mente que nos encontramos, por ora, a apreciar apenas a impugnação da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto.

É da natureza das coisas que, se o proprietário for impedido de exercer os seus poderes de gozo e fruição de um imóvel, nomeadamente porque um terceiro o ocupa sem título legítimo, fica impedido de retirar proveito económico dele. Se tiver o imóvel em seu poder, o proprietário pode, ou não, utilizá-lo ou rentabilizá-lo, mas tem, em qualquer caso, a possibilidade de o fazer. Se não tiver o imóvel em seu poder, é seguro que esta possibilidade não existe.

É desta possibilidade de retirar proveito económico do imóvel que a al. h) trata. Daí que se tenha de julgar provado que, ao não ter a fracção em seu poder, o autor tenha ficado impedido de tirar rendimento dela.

Questão diversa é saber se a mera privação dessa possibilidade constitui, em si mesma, um prejuízo indemnizável, ou se, ao invés, apenas é lícito concluir que tal prejuízo se verifica se ficar provado que o proprietário pretendia utilizar, ele próprio, o imóvel, ou rentabilizá-lo, nomeadamente dando-o de arrendamento. Trata-se da questão da ressarcibilidade do denominado dano da privação do uso, que vem suscitando divergências, quer na jurisprudência, quer na doutrina.

Ora, esta última questão é de direito e não de facto. A resposta à questão de saber se a mera privação do uso de uma coisa constitui, para o efeito previsto no n.º 1 do artigo 483.º do CC, um dano, ou se, para que este se verifique, terá de se provar que o proprietário pretendia retirar um concreto proveito económico dessa coisa, utilizando-a ele próprio ou cedendo o seu gozo a terceiro mediante retribuição, não depende da produção de prova, mas sim da interpretação de normas jurídicas e da ponderação de princípios jurídicos.

Consequentemente, a referência ao prejuízo não deverá constar do ponto que será acrescentado ao actual enunciado da matéria de facto provada. Em vez disso, será em sede de análise jurídica da pretensão do autor que abordaremos a questão de saber se a privação do uso da fracção constitui, em si mesma, um prejuízo indemnizável.

Pelo exposto:

- Suprime-se a al. h) da matéria de facto não provada;

- Acrescenta-se, ao actual enunciado da matéria de facto provada, o seguinte:

«12 - Ao ficar desapossado da fracção que comprou, o autor ficou impedido de tirar rendimento da mesma.»

2.2. O autor considera que o conteúdo da al i) da matéria de facto não provada deverá ser julgado provado. É ele seguinte: «Um gabinete para instalação de uma actividade profissional como a do autor, na Praia da Rocha, e naquela zona privilegiada, não pode nunca ser encontrado por um valor inferior a € 350 mensais.»

O autor argumenta que a alegação dessa matéria de facto, constante do artigo 30.º da petição inicial, não foi impugnada pelos réus, pelo que devia ter sido julgada provada. Sem razão, porém. A impugnação dessa alegação resulta dos artigos 88.º a 99.º da contestação, em particular do artigo 89.º, pelo que a matéria em questão não pode ser considerada admitida por acordo, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 574.º do CPC.

O autor argumenta ainda que a al i) se reporta a «um valor mensal, calculado em abstrato, para uma fracção da natureza daquela indicada nos autos», que «não tem qualquer relevância qual o destino que o autor pretendia dar à fracção» e que a prova do referido valor se fez, tendo em conta o depoimento da testemunha DDD, engenheiro civil.

Ouvida a gravação do depoimento de DDD, estranhamos que o autor o invoque como meio de prova da matéria constante da al. i). Em momento algum do seu depoimento aquela testemunha afirmou que um gabinete com a finalidade ali referida e com a localização da fracção reivindicada não possa ser encontrado por um valor inferior a € 350, ou a qualquer outro.

Aquilo que DDD afirmou foi que o valor do arrendamento da fracção para arrecadação é de cerca de € 150 mensais e que aquela não se encontra licenciada para escritório ou outro fim diverso do de arrecadação. DDD esclareceu ainda que a fracção não tem janelas e tem uma área de apenas 7 m2. Atenta esta descrição, não tem, sequer, cabimento a hipótese de a fracção ser utilizada como escritório, pois, além da falta de licenciamento, carece das condições mínimas para ser utilizada com essa finalidade.

Concluímos, assim, que o tribunal a quo decidiu acertadamente ao julgar não provado o conteúdo da al. i).

2.3. O autor considera que o conteúdo da al j) da matéria de facto não provada deverá ser julgado provado. É ele seguinte: «Se o autor pretendesse arrendar a fracção para outra qualquer atividade, o valor de mercado para tal arrendamento, aos preços de Janeiro de 2022, seriam sempre entre € 400 e € 350 mensais, tendo em conta o privilegiado local em que se encontra».

O autor argumenta que a alegação desta matéria de facto, constante do artigo 31.º da petição inicial, não foi impugnada pelos réus, pelo que devia ter sido julgada provada. Porém, tal como aconteceu em relação à matéria da al. i) e do artigo 30.º da petição inicial, não tem razão. A impugnação desta alegação resulta dos artigos 88.º a 99.º da contestação, em particular do artigo 89.º, pelo que a matéria em questão não pode ser considerada admitida por acordo, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 574.º do CPC.

O autor invoca, ainda, o depoimento da testemunha DDD. Aqui, o autor tem razão. DDD, que tem a profissão de engenheiro civil, demonstrou conhecimento do mercado imobiliário e prestou um depoimento sóbrio e credível. Não corroborou os valores alegados pelo autor, que são irrealistas, antes tendo avançado, fundamentando, um valor locativo absolutamente razoável tendo em conta as características e a localização da fracção. Daí que deva ser julgado provado, não a totalidade da matéria da al. j) (que se manterá como não provada), mas o facto, naquela contido, de o autor poder obter um rendimento mensal de € 150 se desse a fracção de arrendamento.

Pelo exposto:

- Mantém-se a al. j) da matéria de facto não provada;

- Acrescenta-se, ao actual enunciado da matéria de facto provada, o seguinte:

«13 - O autor poderia obter um rendimento mensal de € 150 se desse a fracção de arrendamento.»

2.4. Analisemos, agora, a questão da ressarcibilidade do denominado dano da privação do uso.

Como anteriormente assinalámos, esta questão vem suscitando divergências na jurisprudência.

Deparamo-nos com três teses:

1 – A ressarcibilidade do dano da privação do uso depende da alegação e prova da frustração de um concreto propósito do proprietário de utilizar a coisa, directamente ou cedendo o seu gozo mediante um contrato já projectado nos seus elementos essenciais;

2 – O dano da privação do uso constitui um dano autónomo, não dependendo o seu ressarcimento da alegação e prova do propósito referido em 1; basta, para tanto, que o proprietário se veja privado do gozo da coisa em consequência de acto ilícito e culposo de terceiro;

3 – O dano da privação do uso depende da alegação e prova de um genérico propósito de utilizar a coisa, directamente ou mediante a cedência onerosa do seu gozo a terceiro; a prova desse propósito pode decorrer «de presunções naturais ou judiciais a retirar pelas instâncias da factualidade envolvente»[1].

Na generalidade dos casos, as teses enunciadas em 2 e 3 conduzem a resultados semelhantes. Tal decorre da circunstância de, salvo em casos excepcionais, o proprietário de uma coisa ter o propósito de exercer os seus poderes de gozo sobre ela ou, em alternativa, de a rentabilizar, cedendo esse gozo a terceiro mediante retribuição. Admitindo os partidários da 3.ª tese que a prova desse propósito se faça com apelo a presunções naturais ou judiciais, o resultado prático acaba por ser a exclusão da ressarcibilidade do dano da privação do uso apenas quando fique demonstrado que o proprietário não pretendia, de todo, retirar qualquer utilidade da coisa durante o período da ilícita detenção por terceiro, o que acontecerá num número contado de casos.

A questão da ressarcibilidade do dano decorrente da privação do uso é complexa. Desde logo, a sua própria formulação não será, porventura, a mais rigorosa, pois aquilo que verdadeiramente deveria ser discutido é a ressarcibilidade do dano decorrente da privação da possibilidade de uso da coisa pelo seu proprietário[2]. Assim se colocaria o ponto de partida da discussão a montante daquele a que a habitual formulação da questão convida, o que poderia, eventualmente, proporcionar uma discussão mais ampla e rigorosa. Nomeadamente, evitar-se-ia a tentação de deduzir a solução da mera referência, no habitual enunciado da questão, da privação ao uso e não à possibilidade de uso.

Contudo, tendo em conta a matéria de facto provada nos presentes autos, não há necessidade de analisar a questão com tal profundidade para lhe dar uma resposta.

Está provado que o autor comprou a fracção em 2018; posteriormente, comunicou, aos vendedores, que a fracção se encontrava ocupada, o que indicia o seu inconformismo relativamente a essa situação; aos réus, comunicou a sua qualidade de proprietário da fracção e a exigência de desocupação desta, com a entrega das respectivas chaves; na acção de preferência proposta pelos réus, o autor deduziu um pedido reconvencional, peticionando o reconhecimento do seu direito de propriedade; não obstante, os réus continuam a ocupar a fracção; a tudo isto, acresce a própria propositura desta acção.

Resulta desta factualidade que o autor comprou a fracção com a finalidade com que a generalidade das pessoas o faz, ou seja, para a utilizar directamente ou, eventualmente, para a rentabilizar através da cedência a terceiros. É a existência desse propósito que explica os esforços que, desde a aquisição, o autor tem feito no sentido de os réus desocuparem e lhe entregarem a fracção.

De acordo com a tese que acima enunciámos em primeiro lugar, parece que nem assim o autor teria direito a ser indemnizado, uma vez que não logrou provar uma concreta intenção de a utilizar, ele próprio, para determinado fim, ou de a dar de arrendamento através de um contrato já projectado nos seus elementos essenciais. Este resultado demonstra a inadequação daquela tese para uma justa composição dos interesses em jogo, nomeadamente porque coloca, a cargo do lesado, uma verdadeira probatio diabolica. Carece de justificação razoável que, a pretexto da existência de situações, seguramente excepcionais, em que o proprietário não pretende utilizar nem rentabilizar a coisa durante o período em que se verifica a ocupação ilícita por terceiro, se exija, em todos os casos, que o proprietário prove a existência de um concreto propósito de utilização ou rentabilização da coisa, deixando, assim, inúmeras situações lesivas destituídas de tutela por efeito de um standard de prova demasiadamente exigente.

A pretensão indemnizatória do autor encontra fundamento suficiente em qualquer das restantes teses enunciadas. À luz da segunda, pelo simples facto de estar provado que o autor se encontra privado do gozo da fracção em consequência da actuação ilícita e culposa dos réus, que persistem em manter a ocupação apesar de não terem qualquer título que para tanto os legitime. À luz da terceira, porque, como vimos, ficou provada a existência de um genérico propósito do autor de utilizar a fracção.

Sendo assim, a resolução do caso dos autos não requer uma tomada de posição no sentido de optar entre as teses enunciadas em segundo e terceiro lugar. Assim se dispensa uma indagação mais profunda, mas aqui desnecessária, sobre a questão da ressarcibilidade deste dano, e evita-se clivagens, também desnecessárias, entre os membros do colectivo.

2.5. Resta determinar o montante da indemnização a que o autor tem direito.

Está provado que o autor se encontra privado do uso e fruição da fracção desde o momento em que a comprou e que o valor locativo desta é de € 150 por mês. É, pois, esse o montante do dano por ele sofrido em consequência da ocupação ilícita e culposa que os réus vêm fazendo da fracção.

A produção do dano iniciou-se em 07.06.2018, data da celebração do contrato de compra e venda. Desde esta data, decorreram 75 meses e 4 dias, pelo que o valor do dano se cifra em € 11.270. É este o montante da indemnização que os réus têm de pagar ao autor, nos termos dos artigos 483.º, n.º 1, 562.º, 564.º, n.º 1, e 566.º, n.ºs 1 e 2, do CC.

Os réus deverão ser, ainda, condenados a pagar, ao autor, um montante mensal de € 150 desde a data da prolação deste acórdão até àquela em que lhe restituírem a fracção, nos termos do artigo 564.º, n.º 2, do CC.

Os réus deverão, finalmente, ser condenados a pagarem, ao autor, juros de mora, à taxa supletiva legal e contados dia a dia, sobre as quantias que já são devidas e aquelas que venham a sê-lo em consequência da continuação da ocupação ilícita e culposa da fracção até à data em que esta for entregue, nos termos dos artigos 804.º, 805.º, n.º 2, al. b), e 806.º, n.ºs 1 e 2, do CC.

Concluindo, o recurso interposto pelo autor deverá ser julgado parcialmente procedente, nos termos expostos.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto:

- Julgar improcedente o recurso interposto pelos réus, confirmando-se a sentença recorrida na parte por ele visada;

- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo autor, condenando-se os réus a pagarem-lhe a quantia de € 11.270, acrescida de um montante mensal de € 150 desde a data da prolação deste acórdão até àquela em que lhe restituírem a fracção, bem como de juros de mora, à taxa supletiva legal e contados dia a dia, sobre as quantias que já são devidas e aquelas que venham a sê-lo em consequência da continuação da ocupação ilícita e culposa da fracção até à data em que esta for entregue.

As custas do recurso interposto pelos réus ficam inteiramente a cargo destes.

As custas do recurso interposto pelo autor serão suportadas por este e pelos réus na proporção do respectivo decaimento.

Notifique.

*

Évora, 11.07.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)



[1] Acórdão do STJ de 26.05.2009 (Moreira Alves).

[2] A própria referência ao proprietário da coisa é simplificadora, porquanto pode estar em causa o dano decorrente da privação do uso, ou da possibilidade de uso, pelo titular de um direito, diverso do de propriedade, cujo conteúdo integre poderes de gozo sobre uma coisa.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 27.06.2024

Processo n.º 1277/23.9T8FAR.E1

*

Apreciação crítica da prova.

Contrato-promessa de compra e venda.

*

Autores/recorridos:

- AAA;

- BBB.

Réu/recorrente:

- CCC.

Pedidos:

1 – Que seja judicialmente reconhecido que o réu incumpriu o contrato-promessa de compra e venda que celebrou com os autores;

2 – Que, face a esse incumprimento, seja judicialmente declarada a resolução do contrato-promessa de compra e venda;

3 – Que, como consequência desse incumprimento e resolução, o réu seja condenado a pagar, aos autores, a quantia de € 95.000, correspondente ao dobro da quantia por ele recebida a título de sinal e pagamento do preço;

4 – Que, a contar da citação e até ao efectivo pagamento, seja condenado o réu a pagar aos autores juros de mora à taxa legal (actualmente de 4% ao ano) sobre aquela quantia;

Subsidiariamente, caso o primeiro pedido não mereça colhimento, à cautela e por dever de patrocínio:

5 – Seja declarada a nulidade do contrato-promessa de compra e venda por falta de forma à luz do n.º 3 do artigo 410.º do Código Civil e, consequentemente,

Seja o réu condenado a entregar aos autores o valor recebido a título de sinal, início do pagamento do preço e continuação do pagamento, no montante de € 47.500;

Que este valor seja acrescido dos juros de mora, à taxa legal em vigor de 4%, vencidos e vincendos, desde o dia que que as recebeu até a data da entrada desta petição inicial, e que se computam na totalidade em € 1.818,63.

Sentença recorrida:

A) Julgou a acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

- Declarou o incumprimento definitivo, imputável ao réu, do contrato-promessa de compra e venda celebrado com os autores e, em consequência, declarou a resolução desse contrato-promessa;

- Condenou o réu a pagar, aos autores, o montante de € 85.000, acrescido de juros de mora, à taxa de juros civis, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

B) Julgou o incidente de litigância de má-fé improcedente, por não provado, e, em consequência, absolveu os autores do pedido.

Síntese das conclusões do recurso:

1 – Deveriam ter sido considerados não provados os pontos 4, 6, 8, 9, 13 e 14 da matéria de facto considerada provada.

2 - O tribunal a quo deveria ter considerado provado que o recorrente estava dependente da realização da escritura pública para pagar a obra realizada na fracção que adquiriu até ao final de Outubro.

3 – Como resulta da matéria de facto (após as alterações solicitadas), o prazo final para realização da escritura de compra e venda foi o mês de Outubro de 2022.

4 – Após o incumprimento desse prazo, os autores entraram em mora, uma vez que lhes cabia a incumbência de proceder à marcação da escritura.

5 – Em face da mora, o réu notificou os autores, em Dezembro de 2022, concedendo-lhes um prazo de 8 dias para marcação da escritura.

6 – Não tendo os autores procedido à marcação da escritura no prazo de 8 dias concedido pelo réu, a mora dos mesmos converteu-se em incumprimento definitivo, conferindo ao réu o direito de fazer seu o sinal entregue, ou seja, os € 37.500, nos termos do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil.

7 – Ao não ter em consideração toda a prova produzida para determinação da matéria de facto provada, o tribunal a quo violou a alínea a), do n.º 2 do artigo 5.º, e o n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.

8 – Como decorrência das violações anteriores e da errada aplicação do direito subjectivo a que as mesmas conduziram, o tribunal a quo aplicou erradamente a a) do n.º 2 do artigo 805.º, o n.º 1 do artigo 808.º e o n.º 2 do artigo 442.º, todos do Código Civil.

Questões a decidir:

1 – Erro de julgamento da matéria de facto;

2 – Incumprimento do contrato-promessa.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1 – Por escrito particular denominado «Contrato de Promessa de Compra e venda», datado de 14 de Setembro de 2021, o réu e os autores declararam prometer vender e prometer comprar a fracção identificada pela letra I, correspondente ao terceiro andar esquerdo, do prédio urbano, sito em (…), Rua (…), n.º (…), União de Freguesias de (…), concelho de (…), inscrito na matriz sob o art.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o n.º (…).

2 – Mais declararam que o preço seria de € 125.000, com entrega de sinal no montante de € 12.500, com a assinatura do referido escrito.

3 – Por escrito datado de 30 de Maio de 2022, denominado «Aditamento ao Contrato-Promessa de Compra e Venda», as partes acordaram alterar a data de realização da escritura pública para o fim do mês de Julho de 2022 e o reforço do sinal e continuação de pagamento na quantia de € 25.000.

4 – A alteração da data foi solicitada pelo réu porque se encontrava a remodelar outra casa para onde iria habitar e as obras não se encontravam terminadas.

5 – Os autores entregaram ao réu, a título de sinal e reforço, as quantias referidas em 2 e 3.

6 – Em data próxima do final de Julho de 2022, o réu solicitou o adiamento da data para outorga da escritura pública para final de Agosto devido ao atraso nas obras, o que foi aceite pelos autores.

7 – Posteriormente, ficou acordado verbalmente entre os autores e o réu a realização da escritura pública no final de Outubro de 2022.

8 – Em Outubro de 2022, os autores acordaram com o réu alterar a data de realização da escritura pública para Janeiro de 2023, por conveniência daqueles.

9 – Como reforço de sinal e continuação do pagamento do preço, acordaram o pagamento da quantia de € 10.000 em Novembro e da quantia de € 10.000 em Dezembro.

10 – Em 07 de Novembro de 2022, os autores transferiram para o réu a quantia de € 10.000.

11 – Em 02 de Dezembro de 2022, os autores tiveram conhecimento, na sequência de uma nota de notificação do Juízo de Proximidade de Fornos de Algodres, que lhes foi dirigida uma notificação judicial avulsa requerida pelo réu (cf. doc. de fls.20/21, cujo teor se dá por reproduzido).

12 – Na notificação refere-se que os autores não davam quaisquer notícias e que se mostravam desinteressados do negócio, solicitando-se que marcassem, em 8 dias, a escritura de compra e venda, caso contrário o réu perderia o interesse no negócio e faria suas as quantias recebidas (cf. doc. de fls.20/21, cujo teor se dá por reproduzido).

13 – Por carta datada de 11 de Dezembro de 2022, enviada pelos autores ao réu, propuseram formalizar o aditamento através de adenda ao contrato promessa de modo a fixar-se uma data para a escritura de compra e venda para o início de Janeiro de 2023 e pagamento dos € 10.000 referentes a Dezembro como acordado e ficar também consignado o pagamento efectuado dos € 10.000 de Novembro (cf. doc. de fls.22/23, cujo teor se dá por reproduzido).

14 – Em alternativa, propuseram a marcação da escritura de compra e venda pelo réu, informando do dia, hora e local, com 20 dias de antecedência, para poderem ter tempo de organizar a viagem da Suíça a Portugal e os meios de pagamento do preço final (cf. doc. de fls.22/23, cujo teor se dá por reproduzido).

15 – Por carta datada de 09 de Janeiro de 2023, enviada pelos autores ao réu, informaram que estava marcada para o dia 25 de Janeiro, no Cartório Notarial do Dr. (…), em (…), pelas 9h30m, a escritura pública de compra e venda (cf. doc. de fls.24, cujo teor se dá por reproduzido).

16 – Na véspera deste dia a mulher do réu telefonou à agente DDD a confirmar o dia e hora da escritura.

17 – O réu não compareceu no dia e local referidos em 15 (cf. doc. de fls.25vº/26, cujo teor se dá por reproduzido).

18 – O réu informou os autores que realizaria a escritura pública com um acréscimo ao preço acordado.

19 – Por escritura pública, datada de 13 de Março de 2023, o réu declarou vendeu à Sociedade 1, Lda., que declarou comprar, pelo preço de € 130.000, a fracção autónoma referida em 1 (cf. doc. de fls.26vº/28vº, cujo teor se dá por reproduzido).

20 – Nas comunicações entre os autores, o réu e a esposa deste serviu como intermediária a agente imobiliária DDD.

21 – No dia 18 de abril de 2023, o réu procedeu à devolução aos autores da quantia de € 10.000 referida em 10 (cf. doc. de fls.40, cujo teor se dá por reproduzido).

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

A) O réu estava dependente da realização da escritura pública para pagamento da obra realizada na fracção que adquiriram até final de Outubro.

B) O réu pensou que tinha de aceitar a proposta realizada pelos autores de realizar a escritura pública em Janeiro de 2023.

c) O réu recebeu a carta referida em 13 no dia 21 de Dezembro de 2022 e a carta referida em 16 no dia 23 de Janeiro de 2023.

*

1 – Erro de julgamento da matéria de facto:

O recorrente pretende que o tribunal ad quem julgue não provada a matéria constante dos n.ºs 4, 6, 8, 9, 13 e 14 do enunciado da matéria de facto e, por outro lado, provado que ele estava dependente da realização da escritura pública para pagar a obra realizada na fracção que adquiriu até ao final de Outubro.

Antes de entrarmos na análise, ponto por ponto, da pretensão do recorrente, impõe-se clarificar qual é o critério que a lei estabelece para a apreciação da decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto.

Esse critério resulta do n.º 1 do artigo 662.º do CPC. Este preceito legal estabelece que o tribunal ad quem deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Impuserem decisão diversa, sublinhamos. Quando invoque, como fundamento de um pedido de alteração da decisão sobre a matéria de facto, a prova produzida, o recorrente tem o ónus de demonstrar, perante o tribunal ad quem, que o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento, e apenas é lícito concluir que tal erro foi cometido se aquela prova demonstrar, não a versão factual julgada provada, mas uma versão factual diversa.

1.1. O recorrente pretende que os factos provados n.ºs 4 e 6 sejam julgados não provados. São eles os seguintes:

«4 – A alteração da data foi solicitada pelo réu porque se encontrava a remodelar outra casa para onde iria habitar e as obras não se encontravam terminadas.»

«6 – Em data próxima do final de Julho de 2022, o réu solicitou o adiamento da data para outorga da escritura pública para final de Agosto devido ao atraso nas obras, o que foi aceite pelos autores.»

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção sobre esta matéria nos seguintes termos:

«Os motivos para esta alteração de data, bem como de maio para julho e de julho para agosto, resultaram do depoimento da testemunha DDD, agente imobiliária que acompanhou de perto as negociações, servindo de intermediária entre o réu, esposa deste e os autores (art.º 6.º da contestação), demonstrando assim um conhecimento direto e desinteressado dos factos.

Como explicou, até outubro de 2022, as obras na casa adquirida (para a qual o réu e família se mudariam após concretização da venda), não se encontravam concluídas, o que foi corroborado no depoimento da testemunha EEE, que executou parte dos trabalhos, em conjugação com o documento de fls.98/100, o que demonstra que seria do interesse do réu a alteração da data.

Também dos documentos juntos a fls.37/39 e 52/53, ao contrário do sustentado pelo réu, retiramos que a proposta de alteração da data para julho e depois para agosto de 2022 partiu da esposa do réu, a qual demonstra saber que não seria previsível que as obras estivessem concluídas antes em outubro, o que resulta corroborado no contrato de prestação de serviços que foi junto, em que se aponta este mês para a conclusão dos trabalhos.

Apesar do réu ter insistido na versão de que, pese embora não concluídas as obras, poderia entregar a fração prometida vender, sabemos através da testemunha FFF, agente imobiliária que teve intervenção na aquisição da nova habitação, que assim não seria, pois como esta referiu, caso saísse da fração prometida vender não teria para onde ir residir com o agregado familiar, composto por aquele companheira e quatro filhos.

Apesar da a mãe do réu, a testemunha GGG, tenha tentado criar a ideia que poderia acolher o agregado na sua casa, explicou que essa habitação tem apenas dois quartos e uma sala e que se o réu para lá fosse residir teria de arranjar um armazém para guardar os bens (recheio da casa), o que inculca a convicção que não seria exequível uma mudança que não fosse diretamente realizada para a nova casa que este adquiriu.

O que encontra respaldo nos depoimentos das testemunhas HHH, irmão da companheira do réu e FFF, quando afirmaram que o réu e a companheira não tinham dinheiro para a obra, donde, diremos, seria-lhes conveniente permanecer na fração prometida vender enquanto a nova casa não estivesse habitável (factos referidos nos pontos 4 e 6).»

O recorrente argumenta nos seguintes termos:

«Quanto aos factos descritos nos números 4) e 6), os mesmos foram claramente negados pelo depoimento de parte do Réu, concretamente nas passagens de 01:40 a 02:00, 03:00 a 04:13 e 04:49 a 05:45 (na sessão de 25.09.2023, com início às 9:57:43) onde refere, por várias vezes, que nunca pediu qualquer adiamento da escritura de venda da sua habitação.

O Réu explicou ainda que precisava do dinheiro da venda para poder pagar as obras da sua nova casa, para onde iria mudar, pelo que sempre teve interesse em fazer a escritura o mais rápido possível.

Referiu igualmente que a alternativa que sempre propôs foi a realização da escritura com os Autores e a posterior celebração de contrato de arrendamento com estes, para que pudesse continuar a residir na habitação até conclusão das obras da nova casa. Esta foi a única solução proposta pelo Réu, em alternativa à realização da escritura, nunca tendo partido da sua parte a proposta de adiamento da mesma.

A mesma versão é corroborada pelo depoimento da companheira do Réu, JJJ, concretamente nas passagens de 27:39 a 28:10 e 28:37 a 29:08, (na sessão de 25.09.2023, com início às 10:58:09), onde afirmou, de forma segura e credível, que o Réu CCC nunca pediu para adiar a escritura e que os sucessivos adiamentos partiram sempre de iniciativa dos Autores.

No que respeita ao adiamento de Maio, referido no ponto 4, as mensagens de whatsapp trocadas entre a companheira do Réu, JJJ, e a Agente Imobiliária DDD tornam claro que a proposta de adiamento partiu exclusivamente dos Autores (documento n.º 1, junto com a contestação).

Ainda quanto a estes factos, não faz sentido o argumento de que foi o Réu quem solicitou o adiamento da escritura em virtude de a casa nova ainda não estar pronta e o mesmo necessitar de sítio para morar, enquanto as obras não estivessem concluídas.

Na verdade, o Réu e o seu agregado familiar tinham a possibilidade de ficar em casa da mãe do mesmo, de forma temporária, não existindo da parte daquele qualquer necessidade de adiar a escritura por esse motivo.

Este facto foi confirmado pela testemunha MMM, no seu depoimento na sessão de 25.09.2023, com início às 14:31:18, concretamente na passagem de 05:39 a 06:25.

Foi igualmente confirmado pela mãe do Réu, GGG, no seu depoimento na sessão de 25.09.2023, com início às 15:41:03, concretamente na passagem de 02:05 a 03:25 e 07:10 a 07:25.

Ambas as testemunhas referiram claramente que o Réu e o seu agregado familiar poderiam residir de forma provisória na casa da mãe daquele, até porque já o tinham feito no passado, por cerca de 2 ou 3 meses, quando a sua casa necessitou de obras.

Com o devido respeito, não faz sentido que o tribunal conclua, como concluiu, que tal possibilidade não era real, devido ao tamanho da casa da mãe do Réu.

As testemunhas foram peremptórias a afirmar essa possibilidade e, além disso, sublinhe-se que estamos a falar de uma situação provisória, onde habitualmente as pessoas estão dispostas a abdicar das condições de espaço e conforto ideais.

Em face do exposto, e uma vez que todos os adiamentos da escritura foram solicitados pelos Autores, os pontos 4) e 6) deveriam ter sido considerados não provados.»

A argumentação do recorrente não procede.

O recorrente e a sua companheira, a testemunha JJJ, negaram os factos em questão, mas os seus depoimentos não merecem qualquer credibilidade. Ambos procuraram convencer o tribunal a quo de que, por precisarem de dinheiro para irem pagando o custo das obras que decorriam na casa para onde iriam residir, sempre quiseram e estiveram prontos para celebrarem, com os recorridos, o contrato de compra e venda da casa onde residiam. Segundo eles, teria sido por iniciativa e conveniência dos recorridos que a celebração do contrato de compra e venda sofreu os adiamentos referidos nos pontos 4 e 6.

A prova produzida não deixa dúvidas de que, efectivamente, durante o tempo em que decorreram as obras na casa para onde iriam residir, o recorrente e a sua companheira passaram por grandes dificuldades financeiras. Precisavam de dinheiro para assegurarem o sustento do seu agregado familiar, constituído por seis pessoas, e para pagarem o custo daquelas obras, mas nem sempre conseguiram acorrer a todas essas necessidades. Foi só este problema que o recorrente e a sua companheira assumiram na audiência final.

Porém, eles tiveram um outro problema, não menos grave, até à conclusão das obras na sua nova casa: a necessidade de um local para viverem, com os seus quatro filhos, e para depositarem os seus pertences. O recorrente e a sua companheira procuraram convencer o tribunal a quo de que este problema não existia, dado que poderiam ir viver temporariamente para a casa da mãe do primeiro, como, aliás, já havia acontecido anteriormente, embora, então, com menos um filho. Porém, não foram bem sucedidos, nem poderiam sê-lo, dada a dimensão desse problema, contrastante com a exiguidade dos meios de que dispunham para o resolver. Como bem se salienta na sentença recorrida, é evidente que a casa da mãe do recorrente, com apenas dois quartos e uma sala, não tinha as condições mínimas para acolher, além das duas pessoas que já lá residiam, mais seis pessoas, e ainda o recheio da casa do recorrente. Não é uma questão de maior ou menor conforto, como o recorrente pretende, mas, pura e simplesmente, de oito pessoas e o recheio de duas casas não caberem na casa da mãe daquele. Aliás, esta última acabou por reconhecer esse facto no seu depoimento.

Portanto, até à conclusão das obras na sua nova casa, o recorrente e a sua companheira tinham dois problemas, aparentemente inconciliáveis: por um lado, precisavam de receber dinheiro dos recorridos; em contraponto, não podiam sair da casa onde viviam, por não terem para onde ir. Fica, assim, evidente que o recorrente e a sua companheira tinham um forte motivo para protelarem a celebração do contrato de compra e venda até ao momento em que aquelas obras foram concluídas. Ao contrário dos recorridos, note-se.

Nestas circunstâncias, merecem total credibilidade os depoimentos das testemunhas DDD e NNN, que descreveram os factos em questão tal qual foram julgados provados pelo tribunal a quo. O depoimento de DDD, muito circunstanciado, foi, patentemente, espontâneo. DDD respondeu prontamente a todas as perguntas que lhe foram feitas, sem a mínima contradição.

A transcrição das mensagens trocadas entre DDD e JJJ no Whatsapp não deixa a mínima dúvida de que era o recorrente quem vinha solicitando o adiamento da celebração do contrato de compra e venda, de que era no seu interesse que os recorridos iam aceitando os adiamentos por ele solicitados e que isso acontecia porque a casa nova ainda não se encontrava habitável.

Além da sua utilidade intrínseca, tais mensagens foram elucidativas sobre quem falou verdade e quem mentiu em tribunal. As suas autoras foram com elas confrontadas. DDD confirmou ter trocado tais mensagens com JJJ, nelas tendo encontrado corroboração para tudo quanto vinha relatando. Já a JJJ, perante a evidente contradição entre o teor das mensagens e o seu depoimento, restou dizer que não se lembrava de ter trocado as mensagens em questão.

Finalmente, não foi produzida prova de que a hipótese de o recorrente permanecer, com o seu agregado familiar, na casa que prometeu vender aos recorridos após a realização do contrato prometido, contra o pagamento de uma quantia mensal, tenha sido efectivamente proposta, fosse pelo primeiro, fosse pelos segundos. DDD mencionou a existência de uma simples conversa a esse respeito, mas apenas para a hipótese de os recorridos não aceitarem a extensão do prazo. Como os recorridos aceitaram todos os adiamentos que o recorrente lhes solicitou, nunca houve necessidade de este lhes propor tal solução.

Concluindo este ponto, o tribunal a quo não cometeu qualquer erro no julgamento da matéria dos n.ºs 4 e 6.

1.2. O recorrente pretende que os factos provados n.ºs 8 e 9 sejam julgados não provados. São eles os seguintes:

«8 – Em Outubro de 2022, os autores acordaram com o réu alterar a data de realização da escritura pública para Janeiro de 2023, por conveniência daqueles.»

«9 – Como reforço de sinal e continuação do pagamento do preço, acordaram o pagamento da quantia de € 10.000 (dez mil euros) em Novembro e da quantia de € 10.000 em Dezembro.»

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção sobre esta matéria nos seguintes termos:

«Da conjugação do documento de fls.53vº, em conjugação com os depoimentos das testemunhas JJJ e DDD, bem como declarações de parte da autora, retiramos que, em outubro de 2022, foram os autores a solicitar ao réu a alteração da data de realização da escritura pública para janeiro de 2023 (como o réu admite no art.º 45 da contestação).

E se bem que a testemunha JJJ, companheira do réu, tenha tentado fazer passar a ideia que foi pressionada a aceitar essa alteração, a mesma foi acompanhada de uma transferência de € 10.000, a qual o réu admite ter recebido e apenas devolveu na data em que a petição inicial deu entrada em juízo, o que demonstra, em nosso entender, que aceitou os termos propostos pelos autores (factos mencionados nos pontos 8 e 9).

Aliás, do depoimento de parte do réu, assim como das testemunhas JJJ, DDD e FFF, resulta que o problema seria a falta de dinheiro, daqui que as alterações de datas para julho e para janeiro tenham sido acompanhadas de reforços do sinal, não se encontrando explicação para a alegação de que o réu sentiu medo e dúvidas quanto a esta última alteração de data (art.º 48.º), o que, diremos, será irrelevante, na medida em que se evidencia do depoimento da companheira que aquele aceitou e recebeu uma das quantias que serviria para reforço do sinal.»

O recorrente argumenta nos seguintes termos:

«Quanto aos pontos 8) e 9) da matéria de facto provada, os mesmos foram igualmente negados pelo depoimento de parte do Réu, concretamente nas passagens de 07:15 a 08:45, 09:17 a 10:00, 16:15 a 16:52 e 18:48 a 19:18 (na sessão de 25.09.2023, com início às 9:57:43), onde referiu de forma clara que nunca concordou com o adiamento da escritura para Janeiro. Existiu de facto essa proposta por parte dos Autores, mas o Réu afirmou de forma credível e categórica que nunca aceitou a mesma.

É verdade que os Autores transferiram a quantia de 10 mil euros para o Réu, mas sem o acordo deste. Aliás, conforme refere na passagem de 09:17 a 10:00, após receber essa quantia na sua conta, o Réu foi consultar um Advogado para perceber o que devia fazer a seguir, uma vez que não tinha qualquer interesse em realizar a escritura em Janeiro.

Conforme explicou, o Réu apenas não devolveu de imediato a quantia porque foi assim aconselhado pelo Advogado que consultou.

De igual modo, a companheira do Réu, JJJ, refere no seu depoimento, na sessão de 25.09.2023, com início às 10:58:19, passagem de 22:28 a 23:43, que o Réu ligou à Agente Imobiliária DDD a dizer que não ia aceitar qualquer transferência de 10 mil euros, uma vez que não aceitava o adiamento da escritura. Confirmou igualmente que o Réu apenas não devolveu o dinheiro de imediato porque foi aconselhado pelo Advogado a não o fazer.

A propósito destes factos, tanto o Réu como a sua companheira foram peremptórios ao afirmar que era essencial fazerem a escritura em 2022, porquanto as obras da casa nova já estavam praticamente terminadas e necessitavam imperiosamente do dinheiro da venda para poderem pagar a empreiteiros e subempreiteiros, de quem estavam a sofrer pressão.

Além disso, o Réu e a sua companheira estavam a pagar duas casas (a casa objecto do contrato promessa, onda ainda residiam, e a casa nova), o que lhes estava a provocar grande aflição financeira, sendo por isso a venda uma necessidade urgente e inadiável.

Acresce que a casa nova ficou habitável em Setembro de 2022, pelo que não tinham qualquer necessidade de adiar a escritura.

É o que resulta do depoimento do Réu, na sessão de 25.09.2023, com início às 9:57:43, passagens de 18:48 a 19:18, 22:20 a 22:54 e 37:05 a 40:13, bem como do depoimento da sua companheira, JJJ, na sessão de 25.09.2023, com início às 10:58:09, passagens de 08:00 a 08:26, 09:29 a 10:11 e 16:20 a 18:55.

A mesma versão é corroborada pela testemunha MMM, na sessão de 25.09.2023, com início às 14:31:18, na passagem de 03:49 a 05:03, onde refere que o Réu e a companheira estavam desesperados por dinheiro, e que inclusive viu a Sra. JJJ a chorar de desespero.

Também o empreiteiro das obras da nova casa, Sr. EEE, no seu depoimento na sessão de 25.09.2023, com início às 14:45:18, passagem de 12:57 a 15:29, referiu que o Réu estava com pagamentos em falta junto do empreiteiro e dos subempreiteiros.

A testemunha FFF, no seu depoimento na sessão de 25.09.2023, com início às 15:11:56, passagens de 03:22 a 04:00 e 04:40 a 05:29, diz também ter percebido que o casal estava aflito financeiramente e ansioso pela realização da escritura.

Igual versão é apresentada pela mãe do Réu, GGG, no seu depoimento na sessão de 25.09.2023, com início às 15:41:03, passagem de 05:22 a 06:57, onde referiu que o filho andava nervoso e ansioso porque precisava do dinheiro para pagar as obras, tendo igualmente referido que viu a nora a chorar por causa dessa situação.

De resto, as testemunhas EEE (passagem de 15:00 a 15:29, na sessão de 25.09.2023, com início às 14:45:18), FFF (passagem de 05:48 a 06:50, na sessão de 25.09.2023, com início às 15:11:56) e GGG (passagem de 05:22 a 06:57, na sessão de 25.09.2023, com início às 15:41:03) disseram que não lhes fazia qualquer sentido que o Réu quisesse adiar a escritura, uma vez que o mesmo tinha todo o interesse em fazer a mesma o mais rápido possível.

Quanto a estes factos, diga-se ainda que, se tivesse realmente existido um acordo para adiar a escritura para 2023, com reforço do sinal, era verosímil que as partes tivessem reduzido esse acordo a escrito. É verdade que já tinha havido um adiamento meramente verbal, em Julho. No entanto, nessa ocasião não houve qualquer reforço de sinal. Na única situação em que houve reforço de sinal, em Maio de 2022, o acordo de adiamento foi reduzido a escrito (o que se compreende, tendo em conta que as partes costumam ser mais cautelosas quando há dinheiro envolvido). O facto de não ter havido qualquer acordo escrito para adiamento da escritura para Janeiro é também um indício que corrobora a versão do Réu, ou seja, de que esse adiamento nunca foi aceite.

Por fim, refira-se a propósito destes factos que o depoimento da testemunha DDD, Agente Imobiliária interveniente no negócio, não deveria ter merecido do tribunal qualquer credibilidade, uma vez que ficou demonstrado que a mesma tem claro interesse na condenação do Réu. Com efeito, a condenação do Réu enquanto parte faltosa implicaria para o mesmo a obrigação de pagar a segunda parte da comissão de venda à Agência Imobiliária para qual trabalha a Sra. DDD, que por consequência receberia também uma comissão.

Além disso, a Sra. DDD mostrou-se descontente com o Réu e a sua companheira, com quem disse ter tido uma relação pessoal que se deteriorou com a situação em causa.

Isto mesmo foi assumido pela própria testemunha DDD, na sessão de 25.09.2023, com início às 11:40:24, na passagem de 05:25 a 08:10 e 30:40 a 40:00.

Pelos referidos motivos, não deveria o depoimento desta testemunha ter sido tido em consideração no que respeita a esta parte do negócio.

Em face do exposto, os pontos 8) e 9) deveriam ter sido considerados não provados.»

A argumentação do recorrente não procede.

Comecemos pelo fim. O recorrente considera que o depoimento da testemunha DDD não merece credibilidade, uma vez que ficou demonstrado que ela tem interesse na sua condenação, dado que, desta, resultaria o direito a receber o remanescente da comissão pela mediação imobiliária. Acresce, segundo o recorrente, que DDD se mostrou descontente consigo e com a sua companheira.

Relativamente ao interesse que cada um possa ter no desfecho da causa, se é verdade que DDD ficará beneficiada na hipótese de procedência, pela razão que acima referimos, outro tanto acontecerá, até em muito maior medida, com o recorrente e a sua companheira na hipótese de improcedência, por razões óbvias. Não obstante, os meios de prova que o recorrente invoca com vista a que o tribunal ad quem altere a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto são, fundamentalmente, o seu depoimento de parte e o depoimento, na qualidade de testemunha, da sua companheira. Portanto, o próprio recorrente concordará que o simples facto de alguém ter um interesse, directo ou indirecto, no desfecho da causa, não constitui, por si só, razão para desconsiderar o seu depoimento como meio de prova. Constituirá um factor que o tribunal deve ter em conta na produção e na valoração desse depoimento, mas não mais que isso.

O mesmo se diga do mau relacionamento entre DDD, por um lado, e o recorrente e a sua companheira, por outro. O relacionamento entre estes e os autores é de acesa conflitualidade e, não obstante, eles invocam os seus próprios depoimentos como meios de prova credíveis.

Ainda em matéria de credibilidade, tenhamos presente o que, em 1.1, afirmámos relativamente às mensagens trocadas entre DDD e JJJ no Whatsapp. Graças a tais mensagens, ficou patente que DDD falou verdade e que o recorrente e JJJ mentiram. É este o balanço que neste momento se pode fazer sobre quem falou verdade e quem mentiu em tribunal. Avancemos então.

É certo que, em Outubro de 2022, o recorrente já tinha todo o interesse em celebrar, com os recorridos, o contrato de compra e venda, pois, por um lado, mantinha-se a sua necessidade de obter liquidez imediata para pagar o custo das obras realizadas na sua casa nova e, por outro, como essas obras estavam concluídas, nada o prendia à casa que prometera vender. Toda a prova produzida vai nesse sentido.

Todavia, daí não decorre a impossibilidade de ter havido um acordo entre o recorrente e os recorridos no sentido de adiar novamente a celebração do contrato prometido, desta vez para Janeiro de 2023. Da mesma forma que os recorridos haviam acordado em adiar a celebração do contrato prometido por três vezes no exclusivo interesse do recorrente, é plausível que este, por uma vez, acedesse a um pedido de adiamento feito por aqueles. Mais que plausível, seria, até, muito natural, segundo um padrão de reciprocidade e correcção, atento o que estava para trás.

A urgente necessidade de liquidez por parte do recorrente poderia ser colmatada pelos recorridos através de um novo reforço de sinal, não sendo, assim, impeditiva da existência de um acordo entre eles no sentido do adiamento da celebração do contrato prometido para Janeiro de 2023.

À inexistência de um documento que corporize o acordo descrito nos n.ºs 8 e 9 não pode ser atribuído o significado de indiciar que tal acordo não foi celebrado. Os dois adiamentos anteriores também foram acordados de forma verbal, o que demonstra que, nessa fase, estas alterações ao contrato-promessa já eram feitas com base na confiança, como, aliás, a testemunha DDD referiu no seu depoimento.

O facto de, em Outubro de 2022, ao contrário do que aconteceu nas duas alterações anteriores, ter sido estipulado um novo reforço do sinal, não põe em causa o que acabámos de afirmar. Como já referimos, as sucessivas alterações da data da celebração do contrato prometido já eram acordadas numa base de confiança. Acresce que a transferência das quantias correspondentes ao reforço do sinal sempre seria muito facilmente provada através de documentos.

Portanto, as circunstâncias invocadas pelo recorrente não excluem a possibilidade de o acordo descrito nos n.ºs 8 e 9 ter sido celebrado. Resta saber se foi produzida prova dessa celebração.

O recorrente e a sua companheira negaram a existência desse acordo. A recorrida BBB e a testemunha DDD afirmaram que o mesmo foi celebrado. Mais uma vez, temos de nos socorrer de factos indiciários para apurarmos quem fala verdade.

O primeiro facto indiciário é o de, no dia 07.11.2022, os recorridos terem efectuado uma transferência de € 10.000 para o recorrente. Não faria sentido os recorridos terem-no feito se o recorrente tivesse recusado a sua proposta de adiamento da celebração do contrato de compra e venda para Janeiro de 2023 mediante novo reforço do sinal.

Nos seus depoimentos, o recorrente e a sua companheira procuraram negar esta evidência, afirmando que os recorridos efectuaram a transferência dos referidos € 10.000 apesar de o primeiro ter recusado a proposta de adiamento por ele apresentada. Isso seria, no mínimo, inusitado. Uma pessoa minimamente ajuizada não põe em risco uma quantia de € 10.000 entregando-a a outrem com vista à obtenção de uma contrapartida que, de antemão, o receptor lhe comunique não ter a intenção de lhe dar.

Não obstante, admitamos que os recorridos quiseram correr esse risco, efectuando a transferência de € 10.000 não obstante o recorrente ter recusado a sua proposta de adiamento da celebração do contrato prometido para Janeiro de 2023. Qual seria, nessa hipótese, a reacção de uma pessoa que actuasse de acordo com um padrão de normalidade, colocada na situação do recorrente? A resposta é óbvia: devolveria imediatamente os € 10.000, transferindo-os para a conta de origem. Mais não fosse, para evitar que, contra a sua vontade, viesse a entender-se que tinha havido um reforço do sinal.

Que fizeram o recorrente e a sua companheira? Ficaram com os € 10.000 em seu poder, apenas os tendo restituído aos recorridos em 18.04.2023, data em que a presente acção foi proposta. Esta atitude, que constitui o segundo facto indiciário de que nos socorremos, corrobora a versão segundo a qual o acordo descrito nos n.ºs 8 e 9 foi, efectivamente, celebrado. A falta de entrega dos restantes € 10.000 pelos recorridos explica-se pelo que se refere no n.º 11 do enunciado dos factos provados.

O recorrente e a sua companheira procuraram justificar a não restituição imediata dos € 10.000, afirmando que foi esse o conselho de um advogado que então consultaram. Por um lado, atenta a falta de credibilidade dos depoimentos de ambos, nada garante que isso corresponda à verdade. Por outro lado, ainda que fosse verdade, não alteraria a conclusão a que chegámos. Aconselhados ou não, fosse em que sentido fosse, certo é que, objectivamente, a actuação do recorrente e da sua companheira inculca, à luz das regras da experiência comum, que quiseram fazer seus os € 10.000, intenção essa que indicia muito fortemente que a proposta de adiamento da celebração do contrato prometido para Janeiro de 2023 foi aceite.

Verificamos, pois, que, mais uma vez, quem falou verdade foi a testemunha DDD (bem como a recorrida BBB) e quem mentiu foram o recorrente e a sua companheira. Verificação esta que é importante, atendendo a que, de forma reiterada, o recorrente invoca o seu depoimento de parte e as declarações da sua companheira como sendo meios de prova credíveis. É evidente que o não foram. Em contraponto, fica reforçada a credibilidade das declarações da testemunha DDD, tendo, assim, o tribunal a quo andado bem ao julgar provada a versão factual por ela veiculada.

Concluindo este ponto, o tribunal a quo não cometeu qualquer erro no julgamento da matéria dos n.ºs 8 e 9.

1.3. O recorrente pretende que os factos provados n.ºs 13 e 14 sejam julgados não provados. São eles os seguintes:

«13 – Por carta datada de 11 de Dezembro de 2022, enviada pelos autores ao réu, propuseram formalizar o aditamento através de adenda ao contrato promessa de modo a fixar-se uma data para a escritura de compra e venda para o início de Janeiro de 2023 e pagamento dos € 10.000 referentes a Dezembro como acordado e ficar também consignado o pagamento efectuado dos € 10.000 de Novembro (cf. doc. de fls.22/23, cujo teor se dá por reproduzido).»

«14 – Em alternativa, propuseram a marcação da escritura de compra e venda pelo réu, informando do dia, hora e local, com 20 dias de antecedência, para poderem ter tempo de organizar a viagem da Suíça a Portugal e os meios de pagamento do preço final (cf. doc. de fls.22/23, cujo teor se dá por reproduzido).»

Importa ter em conta o teor da al. c) do enunciado dos factos não provados, que é o seguinte:

«c) O réu recebeu a carta referida em 13 no dia 21 de Dezembro de 2022 e a carta referida em 16 no dia 23 de Janeiro de 2023.»

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção sobre esta matéria nos seguintes termos:

«No que concerne aos documentos de fls.22/23 e 24/25, cujo teor não foi impugnado, comprovam a redação e envio das missivas por parte dos autores ao réu, embora não comprovem a receção na morada para a qual foram dirigidas (factos indicados nos pontos 13 a 15).

(…) quanto aos factos mencionados na al. c), não foi efetuada prova acerca da sua verificação (não se comprovando a receção das cartas na morada para onde foram dirigidas).»

O recorrente argumenta nos seguintes termos:

«Quanto aos factos descritos nos números 13) e 14), quer o Réu quer a sua companheira afirmaram de forma decidida não terem recebido qualquer carta enviada pelos Autores. Nessa altura o Réu já tinha mudado de casa, mas mantinha acesso à caixa de correio da casa anterior, tendo ainda assim garantido que não recebeu a carta em causa.

É o que o Réu refere na sessão de 25.09.2023, com início às 9:57:43, nas passagens de 10:03 a 10:25 e 16:15 a 16:52.

O mesmo é referido pela companheira do Réu, JJJ, na sessão de 25.09.2023, com início às 10:58:09, nas passagens de 30:29 a 31:00 e de 31:30 a 31:40.

Acresce que é público e notório o mau funcionamento dos serviços de correio, nos dias que correm, pelo que o envio de uma carta, mesmo que registada, não constitui prova suficiente de que a mesma foi efectivamente recebida pelo destinatário.

Em todo o caso, cumpre referir que do teor dessas cartas não resulta a marcação da escritura por parte dos Autores, no prazo de 8 dias, tal como exigido na Notificação Judicial Avulsa enviada pelo Réu. Do teor da carta resulta que os Autores queriam propor a realização de novo aditamento ao contrato, coisa que já tinha sido rejeitada pelo Réu, ou então a marcação da escritura pelo Réu, no prazo de 20 dias, o que faria com que a mesma só se realizasse já no ano de 2023, coisa que também já tinha sido claramente recusada pelo Réu.»

Esta argumentação apenas demonstra que o recorrente não interpretou correctamente o conteúdo dos n.ºs 13 e 14, nem leu a fundamentação da convicção do tribunal a quo com a atenção devida. Apenas a elaboração e o envio das cartas foi julgado provado, tendo a sua recepção sido julgada não provada, conforme al. c) do enunciado dos factos não provados. Sendo assim, a pretensão do recorrente coincide com o teor da decisão que ele impugna, pelo que nada há a alterar nesta última.

1.4. O recorrente pretende que o conteúdo da al. a) do enunciado dos factos não provados seja julgado provado. É ele o seguinte:

«A) O réu estava dependente da realização da escritura pública para pagamento da obra realizada na fracção que adquiriram até final de Outubro.»

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção sobre esta matéria nos seguintes termos:

«(…) quanto aos factos mencionados na al. a), o decidido fundamenta-se, na insuficiência de prova acerca da sua verificação, sendo certo que o contrato junto a fls. 98/100 não prevê o pagamento de qualquer quantia (iam sendo liquidados com trabalhos realizados pelo réu e possibilidade de encontro de contas, como confirmou a testemunha EEE).»

O recorrente argumenta nos seguintes termos:

«Desde logo cumpre referir que o referido facto padece de um lapso de escrita, uma vez que, conforme decorre dos elementos presentes nos autos, quem estaria dependente da realização da escritura pública para pagamento da obra realizada na fracção que adquirira era o Réu, e não os Autores.

A este propósito, socorremo-nos do alegado quanto aos pontos 8) e 9).

Como acima se disse, tanto o Réu como a sua companheira foram categóricos ao afirmar que era essencial fazerem a escritura em 2022, porquanto as obras da casa nova já estavam praticamente terminadas e necessitavam imperiosamente do dinheiro da venda para poderem pagar a empreiteiros e subempreiteiros, de quem estavam a sofrer pressão e exigências de pagamento.

Remetemos novamente para o depoimento do Réu, na sessão de 25.09.2023, com início às 9:57:43, passagens de 18:48 a 19:18, 22:20 a 22:54 e 37:05 a 40:13, bem como para o depoimento da sua companheira, JJJ, na sessão de 25.09.2023, com início às 10:58:09, passagens de 08:00 a 08:26, 09:29 a 10:11 e 16:20 a 18:55.

Também voltamos a referir o depoimento da testemunha MMM, na sessão de 25.09.2023, com início às 14:31:18, na passagem de 03:49 a 05:03, onde refere que o Réu e a companheira estavam desesperados por dinheiro, e que inclusive viu a Sra. JJJ a chorar de desespero.

De igual modo o próprio empreiteiro das obras da nova casa, Sr. EEE, no seu depoimento na sessão de 25.09.2023, com início às 14:45:18, passagem de 12:57 a 15:29, referiu que o Réu estava com pagamentos em falta junto do empreiteiro e dos subempreiteiros.

A testemunha FFF, no seu depoimento na sessão de 25.09.2023, com início às 15:11:56, passagens de 03:22 a 04:00 e 04:40 a 05:29, disse ter percebido que o casal estava aflito financeiramente e ansioso pela realização da escritura.

Por fim, a mãe do Réu, GGG, no seu depoimento na sessão de 25.09.2023, com início às 15:41:03, passagem de 05:22 a 06:57, referiu também que o filho andava nervoso e ansioso porque precisava do dinheiro para pagar as obras, tendo igualmente referido que viu a nora a chorar por causa dessa situação.

De todos estes depoimentos resulta claro que o Réu estava dependente da realização da escritura pública para pagamento da obra realizada na fracção que adquiriu. Até porque as obras estavam praticamente concluídas em Setembro de 2022, sendo natural e verosímil que empreiteiros e subempreiteiros lhe estivessem a exigir o pagamento das mesmas.»

O recorrente tem razão relativamente ao lapso de escrita que refere, o qual já se encontra corrigido.

Como referimos em 1.1, é fora de dúvida que, durante todo o tempo em que decorreram as obras na sua nova casa, o recorrente e a sua companheira passaram por grandes dificuldades financeiras. Precisavam de dinheiro, quer para suportarem as suas despesas habituais, quer para pagarem o custo daquelas obras, e nem sempre conseguiam acorrer a todos esses encargos.

Como também referimos, agora em 1.2, tais dificuldades financeiras mantinham-se em Outubro de 2022. Admitimos mesmo que, como nessa altura as obras já estavam concluídas, a pressão que o recorrente e a sua companheira sentiam no sentido de pagarem o remanescente do seu custo fosse maior que anteriormente. É evidente que a celebração do contrato de compra e venda com os recorridos proporcionaria, ao recorrente e à sua companheira, a liquidez de que necessitavam.

Ainda assim, não é possível concluir que o recorrido estivesse dependente da celebração daquele contrato para poder pagar o remanescente do custo das obras, pois essa urgente necessidade de liquidez poderia ser colmatada pelos recorridos através de um novo reforço do sinal. Aliás, foi certamente esse o cálculo que o recorrente fez para aceitar a proposta de adiamento da celebração do contrato de compra e venda para Janeiro de 2023.

Concluindo este ponto, deverá manter-se a al. a) do enunciado da matéria de facto não provada.

2 – Incumprimento do contrato-promessa:

O recorrente foi condenado pelo tribunal a quo com fundamento em incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda celebrado com os recorridos, decorrente do facto de ter vendido o imóvel a terceiro.

O recorrente não põe em causa o enquadramento jurídico dado pelo tribunal a quo aos factos julgados provados. Em vez disso, apenas impugnou a decisão sobre a matéria de facto, nos termos que acabámos de analisar, decorrendo a pretendida improcedência da acção de o tribunal ad quem vir a julgar não provada a existência de um acordo no sentido de o contrato prometido ser celebrado apenas em Janeiro de 2023. Ora, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto foi julgada improcedente na sua totalidade. O mesmo é dizer que permanece, como facto provado, a existência do referido acordo (n.ºs 8 e 9 do enunciado da matéria de facto julgada provada).

Estando a sua procedência dependente da alteração da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto e não tendo essa alteração ocorrido, terá o recurso de ser julgado improcedente.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

*

Évora, 27.06.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.ª adjunta)


Acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

Processo n.º 1395/21.8T8BJA.E1 * Direito de preferência. Compropriedade. Conhecimento da venda. Conhecimento das condições da vend...