segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 07.11.2024

Processo n.º 1653/22.4T8FAR.E1

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Sumário:

1 – Decorre do artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, que a sentença deve enunciar os factos julgados provados e não provados. Não que o tribunal deva reproduzir o conteúdo integral de meios de prova, nomeadamente de natureza documental, no enunciado da matéria de facto provada e não provada.

2 – O Direito não confere protecção a toda e qualquer situação de confiança, sob pena de, em contrapartida, estar a limitar a liberdade de quem, com o seu comportamento, criou essa confiança, em medida intolerável à luz do princípio da liberdade de actuação dos sujeitos privados.

3 – Não é qualquer conduta contraditória com uma conduta anterior do mesmo sujeito que configura um abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium. Se a alteração de comportamento tiver uma justificação que torne compreensível a mudança de atitude por parte do agente, a situação de confiança que este tiver gerado não merecerá protecção por parte do Direito, o que se traduz na ininvocabilidade do instituto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por parte do sujeito que se sentir defraudado.

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Autores/reconvindos/recorrentes:

AAA;

BBB.

Ré/reconvinte/recorrida:

Sociedade 1.

Pedidos:

Dos autores/reconvindos/recorrentes:

a) Condenação da ré/reconvinte/recorrida a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, por caducidade decorrente da oposição à renovação do contrato de arrendamento comunicada pelos autores/reconvindos/ recorrentes no dia 01.02.2021, com efeitos para o dia 28.02.2022;

b) Condenação da ré/reconvinte/recorrida a proceder à entrega imediata da loja existente no rés-do-chão direito, correspondente à fracção autónoma designada pela letra “B” do imóvel melhor identificado no artigo 1.º do presente articulado, aos autores, livre e devoluta de pessoas e bens;

c) Condenação da ré/reconvinte/recorrida a pagar, aos autores/ reconvindos/recorrentes, o valor das rendas que se forem vencendo até efectiva entrega do imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens.

Da ré/reconvinte/recorrida:

Condenação dos autores/reconvindos/recorrentes a pagarem-lhe uma indemnização de € 26.213, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data da dedução da reconvenção até efectivo e integral pagamento.

Sentença recorrida:

Julgou a acção totalmente improcedente e a reconvenção parcialmente procedente:

a) Absolvendo a ré/reconvinte/recorrida dos pedidos;

b) Condenando os autores/reconvindos/recorrentes a pagarem, à ré/reconvinte/recorrida, a quantia global de € 25.513, a título de indemnização pela «quebra/margem de vendas», no montante de € 24.803, e pela substituição do reclamo, no montante de € 710, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data de 22.06.2022, até efectivo e integral pagamento;

c) Absolvendo os autores/reconvindos/recorrentes do demais peticionado pela ré/reconvinte/recorrida.

Conclusões do recurso:

I. O presente recurso versa sobre matéria de facto, com reapreciação da prova gravada e, também, sobre matéria de direito, a qual, relativamente à procedência da acção, não está dependente da alteração da matéria de facto, mas dela beneficiará.

II. Ao contrário da prática corrente e dos melhores usos jurisprudenciais, a matéria de facto dada como provada na douta sentença proferida, nomeadamente nos pontos n.º 5, 11, 12, 13 e 14, não se limita aos factos alegados e provados por cada uma das partes, contendo já uma apreciação jurídica e conclusiva do tribunal a quo, o que é perfeitamente censurável!

III. Na matéria de facto, apenas devem constar factos sem quaisquer interpretações e/ou conclusões, não sendo lícito ao tribunal a quo fazer constar daquela a motivação da fundamentação da matéria de facto e/ou as suas conclusões.

IV. Razão pela qual entendemos que a sentença recorrida deverá ser revogada quanto aos factos provados sob os n.ºs 5, 11, 12, 13 e 14, requerendo-se a V. Exas. a sua substituição por outros que se limitem a dar como provado o efectivamente alegado e provado pelas partes quanto àqueles pontos em concreto, dando por reproduzido o teor dos documentos em causa, aceites por ambas as partes, e que são mencionados na motivação da decisão sobre a matéria de facto, mais concretamente o teor dos documentos n.ºs 9, 10 e 11 juntos com a petição inicial, dos documentos n.ºs 16, 17 e 19 juntos com a contestação e dos documentos n.ºs 14 a 18 e 21 juntos com a réplica.

V. Caso não se entenda ser de fazer a substituição integral dos factos provados acima mencionados, então pretende-se com o presente recurso alterar os factos provados n.ºs 12 e 13.

VI. Adicionalmente, requer-se a V. Exas. que se dignem determinar a ampliação a matéria de facto provada, ordenando que lhe seja aditado o valor da renda comercial mensal da loja arrendada à recorrida e, bem assim, as comunicações trocadas entre as partes relativas ao pedido reconvencional.

VII. O ponto 12 inserto na matéria de facto provada é completamente conclusivo e contrário à prova produzida, fazendo corresponder automaticamente, em termos de matéria de facto, um nexo de causalidade entre os valores constantes do documento n.º 16 junto com a contestação e a obra realizada pelos recorrentes, o que não tem correspondência com a realidade e com a prova produzida.

VIII. Em primeiro lugar, o documento n.º 16 não é nenhum documento oficial contabilístico através do qual possa ser aferida a veracidade da informação nele constante, assim como as restantes variáveis que necessariamente se têm de ter em consideração na quantificação de um valor a título de quebras de vendas, tais como o total das receitas em comparação com os custos, os quais são variáveis e crescentes ao longo dos anos tendo em conta a taxa de inflação e/ou outros acertos.

IX. Em segundo lugar, a própria análise crítica daquele documento n.º 16 deveria obrigatoriamente ter conduzido a uma decisão de facto diferente. Efectivamente, sob o ponto 11, o tribunal a quo considerou provado que a obra dos recorrentes iniciou em maio de 2018, pelo que se questiona a razão de se estar a calcular quebras de venda relativamente aos primeiros quatro meses de 2019 por comparação com os meses homólogos de 2017, ao invés de se comparar com o ano imediatamente anterior, e afirmar que existe um nexo de causalidade da quebra de vendas assim verificada com a obra dos recorrentes? Impossível!

X. Tem de ser ponto assente que a variação negativa verificada nos primeiros quatro meses do ano de 2017 para 2018 não está relacionada com a obra dos recorrentes! O que torna incomparável, para efeitos de imputação de responsabilidade aos recorrentes, a facturação daqueles mesmos meses do ano de 2017 com o ano de 2019 que deveria, outrossim, ter sido comparado, querendo, com o ano imediatamente anterior.

XI. Acresce que – mal – na análise crítica deste documento, o tribunal a quo nem sequer teve em consideração a margem normal de oscilação do próprio negócio da recorrida e que foi confessada pelo seu legal representante, em declarações de parte, situar-se na casa de um dígito, entre o 0 e o 9, conforme as declarações prestadas na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 08.09.2023, as quais ficaram gravadas no sistema áudio digital do tribunal com o seu nome, com inicio às 15:56 e término às 16:55 e com a duração total de 00:58:51, entre o minuto 00:30:07 e o minuto 00:33:51 e cujo excerto se transcreveu supra.

XII. Esta oscilação normal do negócio deveria ter sido tomada em consideração, só podendo ser imputável, eventualmente, aos recorrentes, oscilações superiores ao normal e próprio risco do negócio, sendo certo que, conforme resulta da análise daquele documento n.º 16, não é líquido que aquela variação normal se cinja a um dígito (veja-se o caso de fevereiro de 2018, em que a obra ainda não tinha iniciado).

XIII. Apesar do tribunal a quo ter alicerçado a sua decisão neste depoimento que considerou honesto e credível, nada é referido na douta sentença proferida quanto aos factos confessados desfavoráveis à posição da recorrida, como o já mencionado, ou contraditórios com outros factos públicos e notórios.

XIV. Efectivamente, nas declarações prestadas em tribunal e já mencionadas, o legal representante da recorrida afirmou que era normal existir uma oscilação positiva na facturação das lojas nos períodos de férias escolares do Carnaval e da Páscoa, o que é frontalmente contrariado pelos números constantes do documento n.º 16 quanto analisado com base nos despachos n.º 8294-A/2016, publicado no DR n.º 120, 2.ª série, parte C, de 24.06.2016 e n.º 5458-A/2017, publicado no DR n.º 119, 2.ª série, parte C, de 22.06.2017, no âmbito dos quais foram fixadas as interrupções lectivas para aqueles anos.

XV. Se atentarmos ao documento n.º 16 e às interrupções lectivas do Carnaval, verifica-se que não obstante no ano de 2018 o Carnaval ter sido mesmo a meio do mês de fevereiro – em data que a obra ainda nem tinha começado -, ao contrário do que ocorreu em 2017 que foi no último dia do mês e prolongou-se para março, a Livraria CCC em Faro sofreu uma variação negativa de 15%, o que contraria, com números, as declarações do legal representante da ré e em cuja credibilidade o tribunal a quo tanto se alicerçou, considerando-as «claras, sinceras e particularmente esclarecedoras», o mesmo sucedendo para as férias da Páscoa.

XVI. Ou seja, em fevereiro de 2018, mês em que ocorreu a interrupção lectiva do Carnaval e quando ainda nem sequer tinha iniciado a obra dos recorrentes, a recorrida sofreu uma quebra de vendas de 15% (dois dígitos) com referência ao mês de fevereiro de 2017 (cuja interrupção lectiva entrou pelo mês de março a dentro), fazendo, assim, questionar as remanescentes oscilações negativas verificadas no resto do ano de 2018 e no ano de 2019 e a respectiva imputação, sem mais, à obra dos recorrentes.

XVII. Concluindo-se, assim, que não se pode dar como provado que toda e qualquer variação negativa na facturação da recorrida verificada durante aqueles anos seja exclusivamente devida à obra dos recorrentes.

XVIII. Aliás, no ponto 11 dos factos provados foi considerado assente que no mês de junho de 2018 a loja da recorrida sofreu uma inundação causada pela obra dos recorrentes, sendo que, naquele mês, comparado com o mês homólogo do ano anterior, a Recorrida teve um acréscimo na faturação de 2%, tendo novo acréscimo de 4% no mês de julho de 2018, contrariando, mais uma vez, o facto provado sob o n.º 12 da sentença recorrida, porquanto, da análise daquele documento é impossível extrair qualquer nexo de causalidade entre os dados nele constantes e a obra dos recorrentes.

XIX. Contrariando também as declarações prestadas pelo legal representante da ré e pela testemunha DDD quanto ao suposto crescimento do volume de faturação geral das lojas da Livraria CCC, temos, ainda, a carta remetida pela ré aos recorrentes datada de 04.03.2021 em resposta à oposição à renovação do contrato e junta como doc. 9 com a petição inicial, e que se deve considerar assente por acordo das partes e consta do facto provado n.º 5, em que a própria ré admite, no terceiro parágrafo que «nos últimos anos e apesar das dificuldades que afectam o nosso mercado…».

XX. Dificuldades essas que são de conhecimento público e notório e que resultaram do aparecimento de novas tecnologias associadas à leitura de livros, como os áudio livros ou os e-readers e afins, assim como da insolvência de grandes livreiros como a Bulhosa e a Europa América.

XXI. Acresce, ainda, que, conforme resultou do depoimento da testemunha DDD, no depoimento que prestou na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 20.11.2023, o qual ficou gravado no sistema áudio digital do tribunal com o seu nome, com início às 09:22 e término às 10:11 e a duração total de 00:49:05, entre o minuto 00:18:06 e o minuto 00:20:09, cujo excerto se transcreveu supra, as oscilações no volume de facturação podem ocorrer tanto por questões externas, como internas, tais como a mudança de equipas ou de gerência, as quais de acordo com aquele depoimento seriam resolvidas num curto espaço de tempo e que não se tinham verificado neste caso concreto.

XXII. Sucede que esta última afirmação foi frontalmente contrariada pela testemunha EEE, na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 08.09.2023, cujo depoimento ficou gravado no sistema de áudio digital do tribunal daquele dia, com início às 11:00 e término às 12:12 e com a duração total de 01:11:50, entre o minuto 00:03:31 e o minuto 00:04:21, cujo excerto se transcreveu supra, tendo a testemunha confirmado ser gerente da Livraria CCC do Forum Algarve desde 2014, tendo acumulado a função de gerência da loja em causa nos autos desde finais de 2015 até junho de 2019, ou seja, durante quase 4 anos.

XXIII. Mais confirmou esta testemunha que a sua sede era na loja do Fórum, não se deslocando diariamente à loja em causa nos autos, onde só ia pelo tempo estritamente necessário, regressando sempre à loja do Fórum.

XXIV. Por outro lado, a recorrida não provou, não alegou, nem demonstrou nos autos quem é que assumiu as tarefas de gerência da loja em causa nos autos após a cessação de funções como gerente da testemunha EEE que apenas ficou alocado à loja do Fórum, nem a senioridade ou experiência profissional dessa pessoa que veio substituir aqueloutro.

XXV. Concluindo-se, portanto, que, durante o período dos alegados prejuízos invocados pela ré, esta loja em concreto i) não tinha um gerente de loja sempre presente; ii) foi alvo de mudança de equipa e iii) foi alvo de mudança de responsável/gerência de loja, tudo factores internos que contribuem para uma oscilação negativa no volume de facturação da recorrida, conforme resultou do depoimento da testemunha DDD.

XXVI. Para além destas questões, esqueceu-se, ainda, o tribunal a quo de ter em consideração as obras de melhorias realizadas pela recorrida durante o período de encerramento de maio/junho de 2019, as quais foram realizadas na sequência do sinistro provocado pela obra da recorrida, conforme depoimento da testemunha FFF prestado na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 08.09.2023, o qual ficou gravado no sistema de áudio digital do tribunal com o nome da referida testemunha, com início pelas 13:51 e fim pelas 15:31, com a duração total de 01:40:33, cujo excerto entre o minuto 00:26:29 e o minuto 00:27:50 se transcreveu supra.

XXVII. Atenta a simplicidade das obras necessárias realizar devido ao sinistro e que poderiam ter sido executadas, na totalidade, no prazo de 1/ 2 dias, o impacto no volume de facturação das obras de melhoria também deveria ter sido equacionado pelo tribunal a quo, o que afastaria, uma vez mais, o nexo de causalidade entre as oscilações das vendas verificadas naqueles dois meses e a obra dos recorrentes.

XXVIII. Não podia, ainda, o tribunal a quo esquecer que a recorrida já foi indemnizada pelo seguro contratado durante a obra pelos recorrentes, nos termos dos documentos 14, 15, 16, 17 e 18 juntos aos autos com a réplica, o qual incluía danos provocados a terceiros a título de responsabilidade civil.

XXIX. Pelo que a imputação do valor de quebra de vendas constante deste documento n.º 16 exclusivamente à obra dos Recorrentes é tão somente irresponsável, sendo certo que, em termos de matéria de facto provada, o tribunal a quo poderia apenas ter dado, querendo, como provado, o conteúdo do documento n.º 16 junto com a contestação, sem dele fazer constar qualquer nexo de causalidade de imputação daqueles valores à obra dos recorrentes, o qual deveria ser apreciado, posteriormente, aquando da aplicação do direito aos factos.

XXX. Em suma, quanto a este ponto 12 da matéria de facto, com base na prova acima mencionada, requer-se a V. Exas. que se dignem ordenar a sua revogação, sugerindo-se, alternativamente, a seguinte redacção para este facto: «Em virtude do referido em 11., nos períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado, nos anos de 2018 e de 2019, a ré sofreu uma quebra de venda de livros não escolares de montante não concretamente apurado.»

XXXI. Os recorrentes entendem, ainda, que o facto provado sob o n.º 13 deverá ser revogado, nomeadamente por não ter resultado da prova produzida que o reclamo tenha sido danificado na sequência da obra dos recorrentes, muito pelo contrário.

XXXII. Aliás, todas as testemunhas que depuseram sobre este facto, nomeadamente as testemunhas GGG, HHH e EEE, referiram, sem exceção, que o reclamo da Livraria CCC era muito velho, estava muito sujo de pombos, não tinha manutenção alguma há vários anos e encontrava-se muito ressequido pelo sol, imputando a queda daquelas letras a estas situações e não à obra realizada pelos recorrentes, conforme excertos dos respetivos depoimentos que se transcreveram nas motivações supra, ai se indicando com precisão as passagens e minutos das gravações de cada um daqueles depoimentos.

XXXIII. Mais resultou da prova produzida, nomeadamente da conjugação daqueles depoimentos com o depoimento da também testemunha FFF que aquele reclamo já foi substituído por um outro, cuja factura não foi junta aos autos, o qual é em tudo idêntico ao reclamo da Livraria CCC do Fórum Algarve e que é um facto público e notório do conhecimento do tribunal a quo.

XXXIV. Ficou, também, provado do depoimento da testemunha FFF que o orçamento junto aos autos é para um reclamo com características físicas diferentes do reclamo substituído, sendo certo que o orçamento é datado de 23.07.2019, quando o reclamo só terá sido danificado e posteriormente substituído em 28.08.2020, conforme resultou do doc. 21 junto com a réplica em conjugação com o depoimento das testemunhas GGG, HHH e FFF e, bem assim, com as declarações de parte do autor.

XXXV. Termos em que, a respeito do facto provado n.º 13 entendemos que, com base na prova acima descrita, deveria ser o mesmo totalmente eliminado porquanto a prova produzida não tem interesse para qualquer um dos pedidos formulados pelas partes ou, alternativamente, deverá o mesmo passar a ser reformulado da seguinte forma: «Em agosto de 2020, a ré substituiu o reclamo da fachada principal da fracção autónoma designada pela letra “B” do imóvel identificado em 1., cujo preço de aquisição não foi apurado.»

XXXVI. Ao contrário daquilo que deveria ser a prática judicial, é por demais evidente da análise da sentença recorrida, que o tribunal a quo ajustou a matéria de facto à decisão final pretendida proferir, quando deveria, em primeiro lugar, apreciar e decidir quanto à matéria de facto provada e não provada alegada pelas partes e, posteriormente, interpretá-la à luz das regras de direito, aplicando este àquelas.

XXXVII. Tanto assim é que, apesar se se encontrar peticionado pelos recorrentes a condenação da sociedade ré a pagar-lhes o valor das rendas no montante mensal de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), que se forem vencendo até efectiva entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, o tribunal a quo não considerou provado nem não provado o montante da renda comercial do imóvel em causa, tendo omitido, por completo, tal facto da douta sentença recorrida.

XXXVIII. A verdade é que esse facto resultou cabalmente provado quer por acordo entre as partes, quer dos documentos juntos como doc. 23 pelos recorrentes com o requerimento datado de 06.10.2022, quer ainda do depoimento da testemunha JJJ e das declarações de parte prestadas pelo recorrente marido, cujos excertos se deixaram transcritos supra com indicação precisa dos exactos minutos dos respectivos depoimentos.

XXXIX. Termos em que, sendo julgado procedente o presente recurso, se requer a V. Exas. que se dignem acrescentar à matéria provada um novo facto, sugerindo-se a seguinte formulação: «A renda mensal de mercado da loja arrendada pela ré aos autores é no montante actual de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).»

XL. Falta, ainda, à matéria de facto provada, todas as comunicações trocadas entre as partes com relação aos pedidos reconvencionais formulados pela recorrida na presente acção, e cujos conteúdos se devem considerar provados por acordo entre as partes, e que se consideram importantes na apreciação daqueles pedidos.

XLI. Pelo que em termos de matéria de facto, consideram os recorrentes que o tribunal a quo deveria ter feito constar expressamente da matéria de facto provada o teor da resposta remetida pelos recorrentes à comunicação referida no ponto 14 da matéria de facto junta como doc. 21 com a réplica, tal como deveria ter feito constar da matéria de facto provada os e-mails datados de 10.02.2022, 24.02.2022 e de 25.02.2022 juntos como doc. 11 com a petição inicial, o que se requer a V. Exas. que determinem.

XLII. Em termos de matéria de direito, entendem os recorrentes que o tribunal a quo aplicou e interpretou erradamente o instituto do abuso de direito, não tendo apreciado factos que considerou provados (como por exemplo, o facto n.º 5) aquando da análise e aplicação daquele instituto ao caso concreto, aplicando e interpretando, por isso, erradamente o artigo 334.º do Código Civil e, bem assim, aplicando e interpretando erradamente as normas relativas à obrigação de indemnização previstas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil.

XLIII. Para apreciação do abuso de direito, o tribunal a quo baseou-se, pura e simplesmente, na ausência de comunicação prévia quanto à intenção e/ou mesmo à submissão da candidatura da recorrida ao reconhecimento da loja em causa nos autos como «Espaço com História».

XLIV. Porém, da matéria de facto provada e que consta já da douta sentença proferida, existem muitos outros factos que, caso tivessem sido devidamente analisados à luz deste instituto, levariam com certeza a uma diferente decisão.

XLV. Efetivamente, sob o facto provado n.º 5, o tribunal a quo considerou assente que «Após a carta referida em 4., os autores e a ré encetaram negociações (através da troca de cartas, em março de 2021, de emails, em fevereiro e em março de 2022 e da realização de duas reuniões, em junho de 2021 e em janeiro de 2022, respetivamente) para a celebração de um novo contrato de arrendamento, as quais não lograram obter sucesso», sendo que a carta referida em 4. é a carta de oposição à renovação do contrato remetida no dia 01.02.2021 com produção de efeitos de cessação do contrato a 28.02.2022.

XLVI. Portanto, o tribunal a quo deu como provado e demonstrado que, durante mais de um ano, as partes estiveram a negociar a celebração de um novo contrato de arrendamento sem que a recorrida tenha, nesse período de tempo, levantado qualquer questão quanto à validade ou produção de efeitos da comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento, muito pelo contrário!

XLVII. Aliás, na carta de resposta à oposição à renovação do contrato junta como doc. 9 com a petição inicial e admitida por acordo, a recorrida reconhecia os efeitos daquela comunicação no que respeitava à cessação do contrato de arrendamento então em curso.

XLVIII. A recorrida e recorrentes reuniram-se, pelo menos, em junho de 2021 e janeiro de 2022 para negociarem os termos e condições de um novo contrato de arrendamento, sem que aquela tenha comunicado e/ou informado os recorrentes da sua não aceitação da cessação do contrato e/ou da apresentação da sua candidatura ao programa das lojas com história.

XLIX. A apresentação da candidatura a este programa com o completo desconhecimento dos recorrentes teve como intuito e objectivo – conseguido alcançar – impedir a participação daqueles no âmbito da consulta pública obrigatória, para que não pudessem pronunciar-se sobre o mesmo pugnando pelo seu não reconhecimento porquanto a loja em causa é uma livraria perfeitamente banal, sem qualquer emblema ou apontamento histórico, seja no que se refere aos bens móveis nela existentes, seja ao negócio que lá é prosseguido, não se distinguindo esta loja de qualquer outra loja da mesma marca num qualquer centro comercial.

L. A única razão que encontramos neste caso em concreto para esta loja ter sido distinguida com aquele reconhecimento está relacionada com a própria da marca Livraria CCC (marca reconhecidamente forte e pertencente a um dos principais grupos editoriais que é a Sociedade 2) e não com a loja em si, o que se torna efectivamente evidente da análise da própria candidatura submetida e junta como doc. 3 com a contestação.

LI. A verdade é que os recorrentes, durante todo o período de um ano de negociações que se seguiram à oposição do contrato, agiram com base na confiança de que o contrato de arrendamento terminaria no dia 28.02.2022, ignorando, sem culpa, que a recorrida tinha intenções de agir desconformemente às negociações que estava a manter com aqueles, actuando em dois planos paralelos em simultâneo e com o completo desconhecimento daqueles.

LII. Concluindo-se, que existiu um comportamento anterior (agir em conformidade com a cessação do contrato de arrendamento ao negociar a celebração de um novo contrato) desconforme com o actual (oposição à cessação do contrato de arrendamento em virtude do reconhecimento como «Espaço com História»), ambos imputáveis à recorrida.

LIII. Aliás, se atentarmos ao facto provado n.º 8, cuja comunicação foi recebida pelos recorrentes no dia 02.03.2022 – já depois da data da cessação do contrato – percebe-se bem o comportamento abusivo da ré que, ainda sem lhe ter sido reconhecido aquele estatuto, já invocava artimanhas legais – cuja invocação poderia ter efectuado desde a data da recepção da comunicação de oposição à renovação do contrato – para justificar a recusa de entrega do imóvel na data da cessação do contrato de arrendamento, as quais foram julgadas – bem – totalmente improcedentes pelo tribunal a quo.

LIV. Por seu turno, os recorrentes agiram de boa-fé, ignorando, sem culpa, a intenção da recorrida agir de forma contrária ao comportamento anterior, sem nada que o pudesse indicar em qualquer uma das comunicações trocadas ou em qualquer uma das reuniões mantidas com aquela até à data da cessação do contrato de arrendamento – 28.02.2022.

LV. Os recorrentes ficaram, assim, prejudicados, injustamente, com o comportamento contraditório da recorrida, porquanto poderiam ter negociado os termos e condições daquele novo contrato e/ou da manutenção em vigor deste contrato de arrendamento com base em diferentes pressupostos.

LVI. Termos em que se requer a V. Exas. que, julgando procedente o presente recurso, se dignem revogar a douta sentença proferida, devendo, consequentemente, ser declarado cessado o contrato de arrendamento celebrado entre as partes no dia 28.02.2022 por verificação do preenchimento dos requisitos legais do instituto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, com as demais consequências legais.

LVII. Julgando-se procedente aquele pedido, os demais pedidos formulados na petição inicial deverão, também, ser julgados procedentes por serem a consequência jurídica daqueloutro, pelo que se requer a V. Exas. que determinem a restituição imediata do imóvel locado nos termos peticionados e, bem assim, a condenação da recorrida no pagamento de uma valor mensal no montante de € 1.500,00 desde março de 2022, inclusive, até à restituição do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, pela ocupação ilícita daquele espaço.

LVIII. Por último, quanto ao pedido reconvencional e respectiva condenação dos Recorrentes, entendem estes que não ficou provado nem demonstrado em primeiro lugar, a existência do dano/prejuízo e, em segundo lugar o nexo de causalidade entre esses mesmos prejuízos/danos e a obra realizada pelos recorrentes, o que deveria ter conduzido à improcedência daqueles pedidos, nos termos já referidos acima quanto à alteração dos pontos 12 e 13 da matéria de facto, os quais se dão aqui por reproduzidos.

LIX. Entendendo o tribunal a quo que pudessem existir danos de quebras de vendas imputáveis directamente à obra dos recorrentes, e não lhe sendo possível concluir por qualquer valor atendendo à falta de prova produzida pela recorrida a esse respeito – sobre quem incumbia o ónus da prova –, competiria ao tribunal a quo, querendo, relegar a quantificação daqueles danos/prejuízos para liquidação em sede de execução de sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 609.º do Código de Processo Civil.

LX. Requerendo-se a V. Exas. que, julgando o presente recurso procedente por provado, se dignem revogar a douta sentença recorrida, substituindo-a, nesta parte, por outra que absolva os recorrentes do peticionado por falta de prova quanto ao valor dos prejuízos e respectivo nexo de causalidade e/ou, alternativamente, condene os recorrentes no pagamento de uma indemnização pela quebra das vendas a liquidar em execução de sentença, assim se fazendo justiça!

LXI. No que se refere à indemnização peticionada pela substituição do reclamo, refira-se, em primeiro lugar, que não ficou demonstrado qualquer nexo de causalidade entre os danos nele verificados e qualquer conduta dos recorrentes, conforme também já expendido.

LXII. Em todo o caso, ainda que se considerasse existir um nexo de causalidade, nunca o tribunal a quo poderia condenar os recorrentes no pagamento de um qualquer orçamento, porquanto tal afronta e viola grosseiramente as regras indemnizatórias previstas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil, segundo os quais a obrigação de indemnização deverá consistir na reconstituição da situação que existiria, a menos que tal não seja possível.

LXIII. No caso em concreto, a reconstituição era possível mas não foi peticionada pela recorrida (tal como não foi peticionado o pagamento do reclamo que efetivamente substituiu o danificado), razão pela qual o tribunal a quo deveria, sem mais, ter julgado o pedido de condenação dos recorrentes num montante orçamentado – em 2019 - muito antes da verificação do possível evento danoso – em 2020 - totalmente improcedente por não provado e, consequentemente, deveria ter absolvido os recorrentes daquele pedido, o que se requer a V. Exas. que determinem na sequência da procedência do presente recurso.

Questões a decidir:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Abuso de direito por parte da recorrida;

3 – Responsabilidade civil dos recorrentes.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1 – Encontra-se registado, com compra, a favor de BBB e de AAA, pela Ap. (…), o prédio urbano sito na Rua (…), n.º (…), em Faro (Sé), freguesia de Faro (Sé e São Pedro), constituído sob o regime de propriedade horizontal, pela Ap. (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro com o n.º (…).

2 – Por escritura pública, datada de 8 de Março de 1978, com o título «Trespasse e Novo Arrendamento», o rés-do-chão dito do imóvel identificado em 1 (que, após a constituição da propriedade horizontal, passou a corresponder à fracção autónoma designada pela letra “B”), foi arrendado à ré.

3 – Em resposta à proposta, remetida pelos autores à ré, por carta datada de 20 de Dezembro de 2016, de actualização de renda e alteração do regime do contrato de arrendamento, a ré, por carta, datada de 20 de Janeiro de 2017, informa os autores que «relativamente às novas condições propostas, a saber: transição do contrato de arrendamento para o NRAU, passando este a ter prazo certo, com duração de cinco anos e manutenção do valor atual de renda (de 400,00 €), com as atualizações mensais previstas na lei, cumpre-nos informar a sua aceitação por esta Empresa, pelo que confirmamos a submissão do contrato ao NRAU, nas indicadas condições, a partir do dia 01/03/2017.»

4 – Em 1 de Fevereiro de 2021, os autores remeteram à ré, a carta, com o assunto «Oposição à renovação do contrato de arrendamento do estabelecimento sito na Rua (…), n.º (…), (…), em Faro», da qual consta, entre o mais, o seguinte:

«(…) o prazo inicial dos cinco anos terminará no próximo dia 28.02.2022.

Nesse sentido, na qualidade de Senhorios do imóvel acima identificado vimos, pela presente e ao abrigo das disposições conjugadas constantes do n.º 1 do artigo 9.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, com o n.º 1 do artigo 1110.º e a alínea a) do n.º 1 do artigo 1097.º do Código Civil, comunicar-lhes a nossa vontade expressa de OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO do mesmo contrato.

Com a oposição à renovação agora comunicada, o contrato de arrendamento terminará de produzir quaisquer efeitos no próximo dia 28.02.2022, devendo, até àquela data, V. Ex.ª proceder à entrega do imóvel locado, livre de devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação.»

5 – Após a carta referida em 4., os autores e a ré encetaram negociações (através da troca de cartas, em Março de 2021, de e-mails, em Fevereiro e em Março de 2022 e da realização de duas reuniões, em Junho de 2021 e em Janeiro de 2022, respectivamente) para a celebração de um novo contrato de arrendamento, as quais não lograram obter sucesso.

6 – No dia 2 de Junho de 2021, em sessão da Assembleia Municipal, foi aprovado o Regulamento n.º 286/2021 (Regulamento «Município de Faro – Espaços com História»), o qual foi publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 23 de Agosto de 2021.

7 – No dia 29 de Julho de 2021, a ré apresentou a sua candidatura à distinção «Município de Faro – Espaços com História»;

8 – No dia 24 de Fevereiro de 2022, a ré remeteu aos autores, a carta, com o assunto «Contrato de arrendamento da Livraria CCC sita na Rua (…), n.º (…), fração B 8000-306 Faro», da qual consta, entre o mais, o seguinte:

«(…) a Livraria CCC celebrou, em 08/03/1978, um contrato de arrendamento tendo por objeto o locado supra identificado, tendo a V. comunicação de 20/12/2016 dado início a um processo negocial do qual resultou a transição para o NRAU e a consequente celebração de um novo contrato, com prazo certo, e duração de cinco anos, com início em 01/03/2017.

Ora, nos termos da legislação atualmente em vigor, nos cinco primeiros anos após o início do contrato, não pode o senhorio opor-se à sua renovação, pelo que o contrato se renovou, por efeito da lei, por igual período.»

9 – Em reunião ordinária pública da Câmara Municipal de Faro, realizada no dia 28 de Fevereiro de 2022, foi aprovada, por unanimidade, a Proposta n.º 107/2022/CM – Pedido de Reconhecimento da Livraria CCC a «Espaço com História»;

10 – No dia 4 de Março de 2022, a ré remeteu aos autores, a carta, com o assunto «Reconhecimento da Livraria CCC sita na Rua (…), n.º (…), fração B 8000-306 Faro como “Espaço com História”», da qual consta, entre o mais, o seguinte:

«(…) vimos informar que, em reunião ordinária pública da Câmara Municipal de Faro de 28.02.2022 (proposta n.º 107/2022/CM), foi aprovado o reconhecimento da Livraria CCC de Faro como “Espaço com História”, nos termos previstos no artigo 6.º da Lei 42/2017, de 14 de junho, e do Regulamento n.º 786/2021 “Município de Faro – Espaços com História”.

Do citado reconhecimento e do regime legal aplicável aos “Espaços com História” decorre que, ainda que o contrato de arrendamento do imóvel tenha transitado para o NRAU nos termos da lei então aplicável, não podem V. Exas. opor-se à renovação do novo contrato celebrado à luz do NRAU, por um período adicional de cinco anos.»

11 – Durante o período compreendido entre Maio de 2018 e entre data não concretamente apurada nos meses de Setembro ou de Outubro de 2020, os autores realizaram obras de restauro no imóvel referido em 1, as quais causaram constrangimentos à utilização, pela ré, da fracção autónoma designada pela letra “B” (em particular, ocorreram inundações em Junho, Outubro e Novembro de 2018 e em Maio de 2019, que limitaram o acesso à loja, e implicaram o seu encerramento para reparações nos períodos compreendidos entre 1 a 4 de Novembro de 2018 e entre 20 de Maio a 24 de Junho de 2019).

12 – Em virtude do referido em 11, nos períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado, nos anos de 2018 e de 2019, a ré sofreu uma quebra de vendas de livros não escolares, de montante correspondente a cerca de € 56.558,63 (cinquenta e seis mil, quinhentos e cinquenta e oito euros e sessenta e três cêntimos), a que corresponde uma margem de € 24.803,00 (vinte e quatro mil, oitocentos e três euros), em comparação com os períodos homólogos de 2017.

13 – Em virtude do referido em 11, foram danificadas duas letras (em particular, o “R” e o “N”) do reclamo existente na fachada da fracção autónoma designada pela letra “B”, do imóvel identificado em 1, tendo a sua substituição integral sido orçamentada em € 710,00 (setecentos e dez euros).

14 – Pela carta, datada de 8 de Março de 2021, a ré solicitou aos autores o pagamento dos montantes referidos em 12 e 13, sem sucesso.

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

a) A ré comunicou, à representante dos autores, que estava a decorrer o processo de reconhecimento da sua loja como «Loja com História», junto do Município de Faro.

b) Durante o período compreendido entre Junho de 2019 e Julho de 2020, o empreiteiro dos autores utilizou a energia eléctrica da fracção autónoma designada pela letra “B”, sem o consentimento e/ou a autorização da ré, o que implicou, para a ré, um custo adicional de € 700,00 (setecentos euros).

c) Todos os constrangimentos à utilização, pela ré, da fracção autónoma designada pela letra “B”, decorrentes das obras de restauro do imóvel referido em 1., nomeadamente, os referidos em 12 e 13, foram indemnizados pela seguradora dos autores.

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1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

1.1. Os recorrentes pretendem a eliminação dos n.ºs 5, 11, 12, 13 e 14 do enunciado dos factos provados, substituindo-os por outros «em que sejam eliminadas as referências conclusivas e interpretativas do tribunal a quo constantes daqueles factos provados, as quais deveriam constar exclusivamente da motivação da decisão sobre a matéria de facto, limitando-se os factos provados ao efectivamente alegado e provado pelas partes quanto àqueles pontos em concreto».

Porém, os recorrentes não especificam a «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas» [artigo 640.º, n.º 1, al. c), do CPC], ou seja, as concretas alterações que pretendem ver introduzidas naqueles pontos da matéria de facto. Não cumprem, pois, o ónus estabelecido naquela norma legal. Consequentemente, a sua pretensão não poderá ser apreciada.

1.2. Ainda em relação ao n.º 5 do enunciado dos factos provados, os recorrentes pretendem que o mesmo seja substituído pela reprodução do teor da totalidade das comunicações ali referidas.

Não o faremos. Decorre do artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, que a sentença deve enunciar os factos julgados provados e não provados. Não que o tribunal deva reproduzir o conteúdo integral de meios de prova, nomeadamente de natureza documental, no enunciado da matéria de facto provada e não provada. Tal reprodução vem-se, infelizmente, vulgarizando, estimulada pelos recursos que a informática proporciona ao utilizador, mas é errada. Tamanha é a vulgarização desse erro que, como acontece neste recurso, já se censura o tribunal a quo por ter cumprido aquelas normas legais, extraindo, dos meios de prova, os factos úteis para a decisão da causa, em vez de ceder à tentação de vazar, acriticamente, a totalidade do conteúdo da prova documental nos enunciados da matéria de facto provada e não provada. Tal censura não tem razão de ser.

A afirmação, feita pelos recorrentes, de que, ao «não individualizar aquelas comunicações, é notório que o tribunal a quo não as analisou criticamente e/ou considerou aquando da fundamentação de direito», é puramente gratuita. O tribunal não tem de reproduzir, na sentença, o conteúdo integral dos meios de prova com vista a demonstrar que os apreciou devidamente. A ser assim, o tribunal também teria de reproduzir integralmente os depoimentos prestados na audiência final, para que ficasse claro que os tinha apreciado. Isso constituiria um perfeito absurdo e uma grosseira violação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.

Sendo assim, a redacção do n.º 5 do enunciado dos factos provados deverá manter-se.

1.3. Os recorrentes pretendem que o n.º 12 do enunciado dos factos provados seja eliminado ou, subsidiariamente, que a sua redacção passe a ser a seguinte: «Em virtude do referido em 11, nos períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado, nos anos de 2018 e de 2019, a ré sofreu uma quebra de venda de livros não escolares de montante não concretamente apurado.»

A crítica fundamental que os recorrentes, a este propósito, fazem ao tribunal a quo, é a de este «dar como provada uma margem de quebra de vendas com base num quadro de excel preparado pela ré, cujo conteúdo foi devidamente impugnado, sem sequer exigir os documentos contabilísticos base através dos quais aquele quadro terá sido supostamente preparado e através dos quais se pudesse confirmar a veracidade dos números apresentados, quer quanto a receitas, quer quanto a custos, nomeadamente os balancetes analíticos».

Esta crítica tem razão de ser. Contudo, ela não justifica a eliminação do n.º 12. Apenas impõe que a sua redacção seja alterada em conformidade com aquilo que os recorrentes pretendem. Passamos a justificar esta tomada de posição.

É fora de dúvida que a realização das obras descritas no n.º 11 causou significativa perturbação no funcionamento da loja da recorrida, com repercussão directa no volume das vendas de livros, que diminuiu. Os depoimentos do legal representante da recorrida, MMM, e das testemunhas EEE e DDD são eloquentes a esse respeito. Nem poderia deixar de ser assim, atenta a natureza e a dimensão das obras em causa e tendo em conta as regras da experiência comum. Daí que o n.º 12 não possa ser eliminado. A existência de uma quebra do volume de vendas de livros não escolares em consequência das obras descritas no n.º 11 tem de constar do enunciado dos factos provados.

Contudo, o único meio de prova dos exactos valores percentuais da referida quebra de vendas durante o período de execução da obra, bem como da tradução monetária dessa quebra, é o documento junto com a contestação sob o n.º 16. Trata-se de um documento elaborado pela contabilista da recorrida, em que esta declara o seguinte: «(…) com base no conhecimento da entidade e da informação económico-financeira de cuja preparação sou responsável, certifico, para efeitos de apuramento de quebra de vendas e outros prejuízos na Livraria CCC de Faro, que a loja mencionada evidenciou os valores indicados na informação anexa.» A informação anexa é constituída por uma folha que menciona diversos valores, percentuais e monetários, reportados a cada um dos meses dos anos de 2018 e 2019, bem como os valores monetários globais. Nada mais.

Como os recorrentes acertadamente salientam, o conteúdo deste documento foi por eles impugnado. MMM, EEE e DDD descreveram genericamente a dimensão da quebra do volume de vendas de livros não escolares, mas não tinham, obviamente, memória, nem das exactas percentagens respeitantes a cada mês, nem dos valores monetários das perdas. Aliás, se os tivessem discriminado nos seus depoimentos, não mereceriam qualquer credibilidade, pois, com grande probabilidade, ter-se-iam limitado a memorizá-los para esse efeito a partir de dados fornecidos por terceiros. Factos desta natureza provam-se através de elementos contabilísticos, eventualmente com o auxílio de peritos, e não por «declarações» emitidas por um colaborador da parte ou por depoimentos prestados na audiência final.

Consequentemente, não pode considerar-se demonstrado, com o grau de segurança necessário para a formulação de um juízo de prova, que as percentagens das quebras do volume de vendas de livros não escolares durante o tempo em que as obras decorreram, bem como a sua tradução monetária, tenham sido as referidas no documento a que nos vimos referindo.

Deverá, pois, o n.º 12 do enunciado dos factos provados passar a ter a seguinte redacção: «Em virtude do referido em 11, nos períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado, nos anos de 2018 e de 2019, a ré sofreu uma quebra de venda de livros não escolares de montante não concretamente apurado.» A parte suprimida deverá ser aditada ao enunciado dos factos não provados.

1.4. Os recorrentes pretendem que o n.º 13 do enunciado dos factos provados seja eliminado ou, subsidiariamente, que a sua redacção passe a ser a seguinte: «Em agosto de 2020, a ré substituiu o reclamo da fachada principal da fracção autónoma designada pela letra “B” do imóvel identificado em 1, cujo preço de aquisição não foi apurado.» Consideram que não foi produzida prova de que o reclamo tenha ficado danificado em consequência das obras realizadas a seu mando e que, pelo contrário, aquilo que resultou dos depoimentos das testemunhas que depuseram sobre esta matéria foi que o reclamo «era muito velho, estava muito sujo de pombos, não tinha manutenção alguma há vários anos e encontrava-se muito ressequido pelo sol, imputando a queda daquelas letras a estas situações e não à obra realizada pelos recorrentes». Salientam ainda que nunca foi junta aos autos a factura relativa à aquisição do novo reclamo.

Os recorrentes têm razão.

Não foi produzida prova de que o descolamento das duas letras do reclamo anterior tenha sido consequência da realização das obras. Aquilo que resulta dos depoimentos das testemunhas que sobre esta matéria se pronunciaram (EEE, HHH, GGG e FFF) é que se tratava de um reclamo velho e deteriorado pelo sol e pela acumulação de dejectos de pombos, pelo que não constitui um facto anormal o descolamento e consequente queda ao chão de duas letras.

GGG assegurou que, quando o andaime foi retirado, o reclamo estava intacto, só posteriormente tendo caído uma das letras, que podia ser recolada caso fosse essa a vontade da recorrida.

HHH, que sucedeu a GGG como director da obra, afirmou que, quando assumiu essa função, o reclamo continuava no sítio dele e intacto. A certa altura, o reclamo teve de ser retirado e foi no momento da sua reposição que uma das letras se descolou. Nessa altura, a letra foi novamente colada ao reclamo.

O então gerente da livraria, EEE, alvitrou mesmo que o reclamo em causa foi substituído, não por ter sofrido qualquer deterioração em consequência das obras, mas por estar velho e sujo.

Note-se, por último, que o documento junto com a contestação sob o n.º 17 constitui um mero orçamento, não sendo, por isso, idóneo para provar a realização de uma despesa por parte da recorrida.

Pelo exposto, deverá ser eliminado o n.º 13 do enunciado da matéria de facto provada. O seu conteúdo deverá ser aditado ao enunciado dos factos não provados, com excepção da referência final ao valor constante do orçamento que constitui o documento junto com a contestação sob o n.º 17, que, atentas a falta de prova de um nexo de causalidade entre a execução da obra e a necessidade de substituição do reclamo anterior e a própria natureza desse documento, carece de relevância para a decisão da causa.

1.5. Os recorrentes pretendem que, ao enunciado da matéria de facto provada, seja aditado o seguinte: «A renda mensal de mercado da loja arrendada pela ré aos autores é no montante actual de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).»

Como adiante veremos, a recorrida não agiu em abuso de direito ao invocar, como fundamento para a não restituição do locado, o reconhecimento da loja neste existente como «Espaço com História». Em consequência disso, não será determinada tal restituição. Sendo assim, o facto que os recorrentes pretendem ver aditado ao enunciado da matéria de facto provada carece de relevância para a decisão da causa, não tendo lugar nesse enunciado.

Convém lembrar, a este propósito, que o artigo 130.º do CPC estabelece que não é lícito realizar actos inúteis no processo, consagrando, assim, o princípio da limitação dos actos. Sendo irrelevante para a decisão da causa, o aditamento que os recorrentes pretendem introduzir na matéria de facto provada, ainda que tivesse fundamento em face da prova produzida, traduzir-se-ia na prática de um acto inútil e, como tal, proibido.

1.6. Nas conclusões XL e XLI, os recorrentes pretendem que o tribunal ad quem adite, ao enunciado da matéria de facto provada, o conteúdo de «todas as comunicações trocadas entre as partes com relação aos pedidos reconvencionais formulados pela recorrida na presente acção, e cujos conteúdos se devem considerar provados por acordo entre as partes, e que se consideram importantes na apreciação daqueles pedidos. Pelo que em termos de matéria de facto, consideram os recorrentes que o tribunal a quo deveria ter feito constar expressamente da matéria de facto provada o teor da resposta remetida pelos recorrentes à comunicação referida no ponto 14 da matéria de facto junta como doc. 21 com a réplica, tal como deveria ter feito constar da matéria de facto provada os e-mails datados de 10.02.2022, 24.02.2022 e de 25.02.2022 juntos como doc. 11 com a petição inicial».

Como referimos em 1.2, constitui um erro técnico e uma violação do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º do CPC vazar-se, pura e simplesmente, a totalidade do conteúdo de prova documental nos enunciados da matéria de facto provada e não provada. Em vez disso, o que deve constar daqueles enunciados são os factos relevantes para a decisão da causa que sejam julgados provados e não provados, o que pressupõe a sua prévia apreciação e selecção.

Consequentemente, tal como em 1.2, não procederemos ao aditamento pretendido pelos recorrentes, os quais, saliente-se, nem sequer indicam qual seria a utilidade de tal aditamento para a decisão da causa.

2 – Abuso de direito por parte da recorrida:

Os recorrentes sustentam que a recorrida actuou com abuso de direito ao invocar a qualificação da loja existente no locado como «Espaço com História» com a finalidade de obstar à cessação do contrato de arrendamento. A fundamentação é, sucintamente, a seguinte:

- Na sequência da oposição à renovação do contrato de arrendamento por parte dos recorrentes, a recorrida remeteu, a estes, uma carta em que declarou aceitar a produção dos efeitos daquela oposição e se mostrou disponível para negociar um novo contrato;

- Os recorrentes e a recorrida encetaram negociações, trocando cartas e e-mails e realizando duas reuniões, tendo em vista a celebração de um novo contrato de arrendamento, embora sem sucesso;

- No decurso dessas negociações, os recorrentes apresentaram, por escrito, uma proposta concreta de celebração de novo contrato de arrendamento, através de e-mail enviado em 10.02.2022;

- Ou seja, desde a data da comunicação da oposição à renovação do contrato de arrendamento (01.02.2021) até à data da cessação deste (28.02.2022), as partes mantiveram-se em contacto, sempre no sentido de negociarem a celebração de um novo contrato, destinado a produzir efeitos a partir de 01.03.2022;

- Durante todo o ano que antecedeu a data prevista para o final do contrato, nunca a recorrida comunicou, deu a entender ou informou os recorrentes de que não aceitava a produção dos efeitos da cessação do contrato de arrendamento, muito pelo contrário;

- Simultaneamente e à socapa, em 29.07.2021, a recorrida apresentou a sua candidatura à distinção «Município de Faro – Espaços com História», cujo estatuto lhe foi reconhecido na reunião ordinária pública da Câmara Municipal de Faro realizada no dia 28.02.2022;

- Durante todo esse período e apesar de se encontrar a negociar com os recorrentes a celebração de um novo contrato, a recorrida não os informou da apresentação daquela candidatura nem da pendência daquele processo;

- Os recorrentes nunca pensaram ou equacionaram a hipótese de a recorrida recorrer a tal subterfúgio apenas para evitar a cessação do contrato de arrendamento, porquanto a loja em questão é uma livraria perfeitamente banal, sem qualquer emblema ou apontamento histórico, seja no que se refere aos bens móveis nela existentes, seja ao negócio que lá é prosseguido, não se distinguindo de qualquer outra loja da mesma marca num qualquer centro comercial;

- Com o descrito comportamento, a recorrida não permitiu que os recorrentes participassem activamente no processo de reconhecimento de «Loja com História» que correu na Câmara Municipal de Faro, porquanto dele não tiveram, sem culpa porque nunca o poderiam prever ou antecipar, conhecimento atempado;

- Assim, o investimento de confiança dos recorrentes na cessação do contrato de arrendamento no dia 28.02.2022 está perfeitamente justificado pelos comportamentos anteriores da recorrida que ficaram provados na sentença ora em crise, ainda que de forma abreviada;

- Concluindo-se que existiu um comportamento anterior (agir em conformidade com a cessação do contrato de arrendamento ao negociar a celebração de um novo contrato) desconforme com o actual (oposição à cessação do contrato de arrendamento em virtude do reconhecimento como «Espaço com História»), ambos imputáveis à recorrida;

- Os recorrentes ficaram injustamente prejudicados com o comportamento contraditório da recorrida, porquanto poderiam ter negociado os termos e condições daquele novo contrato e/ou da manutenção em vigor deste contrato de arrendamento com base em diferentes pressupostos;

- Pelo que se verificam os pressupostos da figura do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, devendo ser declarado cessado o contrato de arrendamento celebrado entre as partes no dia 28.02.2022.

Esta argumentação assenta em duas ideias fundamentais:

1.ª – Num primeiro momento, a recorrida aceitou a oposição à renovação do contrato de arrendamento; posteriormente, opôs-se; daí que nos encontremos perante um venire contra factum proprium por parte da recorrida;

2.ª – No decurso de negociações entre os recorrentes e a recorrida, esta, sem dar conhecimento àqueles, candidatou-se à atribuição de um título que, após lhe ter sido concedido, utilizou para obstar à cessação do contrato de arrendamento.

Analisemo-las.

Não é qualquer conduta contraditória com uma conduta anterior do mesmo sujeito que configura um abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium. «Ressalvada ficará (…) a possibilidade de o venire assentar numa circunstância justificativa e, designadamente, no surgimento ou na consciência de elementos que determinem o agente a mudar de atitude. O venire contra factum proprium só o será, em última análise, se não tiver nenhum factor que o justifique.»[1] Não existe, na nossa ordem jurídica, «uma proibição genérica de contradição. Apenas circunstâncias especiais podem levar à sua aplicação.»[2]

A recorrida conformou-se com a oposição à renovação do contrato de arrendamento por parte dos recorrentes num momento em que ainda não dispunha do título que posteriormente invocou com a finalidade de obstar à cessação daquele contrato. A própria candidatura à obtenção desse título ocorreu posteriormente à data em que foi notificada da oposição à renovação do contrato. Logo que esse título lhe foi atribuído, a recorrida invocou-o perante os recorrentes.

Analisada a situação sob a perspectiva dos recorrentes, admite-se que estes, em face de a recorrente se ter conformado com a cessação do contrato quando foi notificada da oposição à sua renovação e ter mantido essa mesma postura ao longo do processo negocial, tenham confiado que, caso este último não tivesse sucesso, ela restituiria o locado na data para o efeito fixada.

Contudo, o Direito não confere protecção a toda e qualquer situação de confiança, sob pena de, em contrapartida, limitar a liberdade de quem criou essa confiança em medida intolerável à luz do princípio da liberdade de actuação dos sujeitos privados. Recordemos o que acima defendemos, citando a lição de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO: se a alteração de comportamento tiver uma justificação que torne compreensível a mudança de atitude por parte do agente, a situação de confiança que este tiver gerado não merecerá protecção por parte do Direito, o que se traduz na ininvocabilidade do instituto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por parte do sujeito que se sentir defraudado.

É o que se verifica nestes autos. A alteração da atitude da recorrida relativamente à cessação do contrato teve uma causa objectiva: a superveniente atribuição, à loja que funciona no locado, do título de «Espaço com História». Aquela alteração ocorreu logo que esse título foi atribuído e por causa dessa atribuição. Deve, por isso, considerar-se justificada.

A atribuição, à loja que funciona no locado, do título de «Espaço com História», ocorreu na sequência de a recorrida a ele se ter candidatado. Coloca-se, pois, a questão de saber se tal candidatura no decurso das negociações com os recorrentes ou, ao menos, a ausência de prestação de informação, a estes, da apresentação dessa candidatura, configura uma situação de abuso de direito.

A resposta a esta questão é negativa.

Não podemos perder de vista que a protecção jurídica da confiança adquirida por determinada pessoa na coerência do comportamento de outra tem sempre, como contrapartida, uma limitação, também obviamente jurídica, da liberdade de actuação desta última. Ora, em princípio, as pessoas só podem considerar-se vinculadas a determinadas acções ou omissões por efeito da prática de actos que a lei reconheça como fontes dessa vinculação, sejam eles voluntários (caso típico do contrato) ou involuntários (como acontece na responsabilidade civil aquiliana). Fora desse âmbito, inexiste, em princípio, fundamento jurídico para considerar que, por praticar determinado acto, um sujeito fique, ipso facto, vinculado a não praticar, futuramente, qualquer outro que com ele seja contraditório. Se a prática do primeiro acto tiver criado, em terceiros, uma situação de confiança em que o agente não pratique, no futuro, actos que com o primeiro se não harmonizem, tal confiança não será, em regra, digna de tutela jurídica. Solução diversa determinaria uma violenta compressão da liberdade individual, ampliando desmesuradamente o âmbito das fontes de vinculação jurídica das pessoas.

A esta luz, consideramos não haver fundamento para considerar que o facto de a recorrida ter manifestado, perante os recorrentes, uma atitude de conformismo relativamente à oposição destes à renovação do contrato, a impedisse de, sem violação de valores relevantes para o Direito, como o da protecção da confiança, se candidatar à atribuição, à loja que funciona no locado, do título de «Espaço com História». Dado o interesse que a recorrida sempre demonstrou na manutenção da loja no locado – daí o início de negociações tendentes à celebração de novo contrato –, ficou claro que aquele conformismo se baseava na constatação da inexistência de fundamento para assumir atitude diversa e não em falta de interesse naquela manutenção. Logo, nem sequer é surpreendente que, paralelamente ao decurso das negociações com os recorrentes e perante a ausência de resultado destas, a recorrida tenha procurado resolver o problema que decorreria da desocupação do locado através de um meio legal alternativo.

Também não há fundamento para considerar que, por não ter informado os recorrentes, fosse na qualidade de senhorios, fosse na de contraparte num processo negocial, do facto de se ter candidatado à atribuição, à loja que funciona no locado, do título de «Espaço com História», a recorrida tenha actuado com abuso de direito ao invocar a qualificação da loja como «Espaço com História» com a finalidade de obstar à cessação do contrato de arrendamento. O procedimento de atribuição daquele título, regulado no artigo 6.º da Lei n.º 42/2017, de 14.06, e no Código do Procedimento Administrativo (cfr o artigo 8.º daquela lei), tem natureza administrativa, decorrendo entre o requerente e a câmara municipal, prevendo o n.º 3 do referido artigo 6.º um período de consulta pública de 20 dias. Nomeadamente, o dever de proceder segundo as regras da boa fé durante um processo negocial, consagrado no n.º 1 do artigo 227.º do CC, não impõe um dever de informar a contraparte de uma candidatura com a natureza daquela que a recorrida efectuou. Repetimos, perante a situação em que a oposição à renovação do contrato de arrendamento colocou a recorrida, tem de se reconhecer, a esta, plena liberdade para, ao mesmo tempo que tentava resolver esse problema por via da negociação de um novo contrato de arrendamento com os recorrentes, procurar fazê-lo por meios alternativos, desde que legais, como era o caso da candidatura à atribuição, à loja que funciona no locado, do título de «Espaço com História».

Concluindo este ponto, inexiste fundamento para considerar que a recorrida actuou com abuso de direito ao invocar a qualificação da loja existente no locado como «Espaço com História» com a finalidade de obstar à cessação do contrato de arrendamento.

3 – Responsabilidade civil dos recorrentes:

A alteração da redacção do n.º 12 e a eliminação do n.º 13 do enunciado da matéria de facto provada tem evidente repercussão em matéria de responsabilidade civil dos recorrentes.

Terá de manter-se a condenação dos recorrentes a pagarem, à recorrida, uma indemnização pelo prejuízo decorrente da quebra de vendas resultante da execução das obras. Todavia, dada a falta de prova do montante exacto desse prejuízo, a condenação terá de ser na quantia que for liquidada ulteriormente, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º do CPC.

Por outro lado, deverá ser revogada a condenação dos recorrentes a pagarem, à recorrida, a quantia de € 710 a título de indemnização pelos alegados danos causados pelas obras no reclamo da loja.

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Dispositivo:

Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, determinando-se o seguinte:

- O n.º 12 do enunciado dos factos provados passa a ter a seguinte redacção: «Em virtude do referido em 11, nos períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado, nos anos de 2018 e de 2019, a ré sofreu uma quebra de venda de livros não escolares de montante não concretamente apurado.»

- Adita-se, ao enunciado dos factos não provados, o seguinte: «d) O montante da quebra de venda de livros não escolares referida no n.º 12 foi de cerca de € 56.558,63, a que corresponde uma margem de € 24.803.»

- O n.º 13 do enunciado da matéria de facto provada é eliminado.

- Adita-se, ao enunciado dos factos não provados, o seguinte: «e) Em virtude do referido em 11, foram danificadas duas letras (em particular, o “R” e o “N”) do reclamo existente na fachada da fracção autónoma designada pela letra “B”, do imóvel identificado em 1.»

- Revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou os recorrentes a pagarem, à recorrida, a quantia global de € 25.513, a título de indemnização pela «quebra/margem de vendas», no montante de € 24.803, e pela substituição do reclamo, no montante de € 710, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data de 22.06.2022, até efectivo e integral pagamento.

- Condena-se os recorrentes a pagarem, à recorrida, uma indemnização pela quebra das vendas de livros não escolares, ocorrida nos períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado, nos anos de 2018 e de 2019, em consequência das obras descritas no n.º 11 do enunciado da matéria de facto provada.

- Confirma-se, em tudo o mais, a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes e da recorrida, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 75% para os recorrentes e 25% para a recorrida.

Notifique.

*

Évora, 07.11.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.ª adjunta)



[1] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. V, 3.ª edição, página 307.

[2] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Obra citada, página 315.


Acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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