Processo n.º 1653/22.4T8FAR.E1
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Sumário:
1 – Decorre do artigo 607.º,
n.ºs 3 e 4, do CPC, que a sentença deve enunciar os factos julgados provados e
não provados. Não que o tribunal deva reproduzir o conteúdo integral de meios
de prova, nomeadamente de natureza documental, no enunciado da matéria de facto
provada e não provada.
2 – O Direito não confere
protecção a toda e qualquer situação de confiança, sob pena de, em
contrapartida, estar a limitar a liberdade de quem, com o seu comportamento,
criou essa confiança, em medida intolerável à luz do princípio da liberdade de
actuação dos sujeitos privados.
3 – Não é qualquer conduta
contraditória com uma conduta anterior do mesmo sujeito que configura um abuso
de direito, na modalidade de venire
contra factum proprium. Se a alteração de comportamento tiver uma
justificação que torne compreensível a mudança de atitude por parte do agente,
a situação de confiança que este tiver gerado não merecerá protecção por parte
do Direito, o que se traduz na ininvocabilidade do instituto do abuso de
direito, na modalidade de venire contra
factum proprium, por parte do sujeito que se sentir defraudado.
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Autores/reconvindos/recorrentes:
AAA;
BBB.
Ré/reconvinte/recorrida:
Sociedade 1.
Pedidos:
Dos autores/reconvindos/recorrentes:
a) Condenação da ré/reconvinte/recorrida
a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre as partes,
por caducidade decorrente da oposição à renovação do contrato de arrendamento
comunicada pelos autores/reconvindos/ recorrentes no dia 01.02.2021, com efeitos
para o dia 28.02.2022;
b) Condenação da ré/reconvinte/recorrida
a proceder à entrega imediata da loja existente no rés-do-chão direito,
correspondente à fracção autónoma designada pela letra “B” do imóvel melhor
identificado no artigo 1.º do presente articulado, aos autores, livre e devoluta
de pessoas e bens;
c) Condenação da ré/reconvinte/recorrida
a pagar, aos autores/ reconvindos/recorrentes, o valor das rendas que se forem
vencendo até efectiva entrega do imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens.
Da ré/reconvinte/recorrida:
Condenação dos autores/reconvindos/recorrentes
a pagarem-lhe uma indemnização de € 26.213, acrescida de juros de mora,
calculados à taxa legal, desde a data da dedução da reconvenção até efectivo e
integral pagamento.
Sentença recorrida:
Julgou a acção totalmente improcedente e
a reconvenção parcialmente procedente:
a) Absolvendo a ré/reconvinte/recorrida
dos pedidos;
b) Condenando os
autores/reconvindos/recorrentes a pagarem, à ré/reconvinte/recorrida, a quantia
global de € 25.513, a título de indemnização pela «quebra/margem de vendas», no montante de € 24.803, e pela
substituição do reclamo, no montante de € 710, acrescida dos juros de mora,
vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data de
22.06.2022, até efectivo e integral pagamento;
c) Absolvendo os
autores/reconvindos/recorrentes do demais peticionado pela
ré/reconvinte/recorrida.
Conclusões do recurso:
I. O presente recurso versa sobre
matéria de facto, com reapreciação da prova gravada e, também, sobre matéria de
direito, a qual, relativamente à procedência da acção, não está dependente da
alteração da matéria de facto, mas dela beneficiará.
II. Ao contrário da prática corrente e
dos melhores usos jurisprudenciais, a matéria de facto dada como provada na
douta sentença proferida, nomeadamente nos pontos n.º 5, 11, 12, 13 e 14, não
se limita aos factos alegados e provados por cada uma das partes, contendo já
uma apreciação jurídica e conclusiva do tribunal a quo, o que é perfeitamente censurável!
III. Na matéria de facto, apenas devem
constar factos sem quaisquer interpretações e/ou conclusões, não sendo lícito
ao tribunal a quo fazer constar
daquela a motivação da fundamentação da matéria de facto e/ou as suas
conclusões.
IV. Razão pela qual entendemos que a
sentença recorrida deverá ser revogada quanto aos factos provados sob os n.ºs
5, 11, 12, 13 e 14, requerendo-se a V. Exas. a sua substituição por outros que
se limitem a dar como provado o efectivamente alegado e provado pelas partes
quanto àqueles pontos em concreto, dando por reproduzido o teor dos documentos
em causa, aceites por ambas as partes, e que são mencionados na motivação da
decisão sobre a matéria de facto, mais concretamente o teor dos documentos n.ºs
9, 10 e 11 juntos com a petição inicial, dos documentos n.ºs 16, 17 e 19 juntos
com a contestação e dos documentos n.ºs 14 a 18 e 21 juntos com a réplica.
V. Caso não se entenda ser de fazer a
substituição integral dos factos provados acima mencionados, então pretende-se
com o presente recurso alterar os factos provados n.ºs 12 e 13.
VI. Adicionalmente, requer-se a V. Exas.
que se dignem determinar a ampliação a matéria de facto provada, ordenando que
lhe seja aditado o valor da renda comercial mensal da loja arrendada à recorrida
e, bem assim, as comunicações trocadas entre as partes relativas ao pedido
reconvencional.
VII. O ponto 12 inserto na matéria de
facto provada é completamente conclusivo e contrário à prova produzida, fazendo
corresponder automaticamente, em termos de matéria de facto, um nexo de
causalidade entre os valores constantes do documento n.º 16 junto com a
contestação e a obra realizada pelos recorrentes, o que não tem correspondência
com a realidade e com a prova produzida.
VIII. Em primeiro lugar, o documento n.º
16 não é nenhum documento oficial contabilístico através do qual possa ser
aferida a veracidade da informação nele constante, assim como as restantes variáveis
que necessariamente se têm de ter em consideração na quantificação de um valor
a título de quebras de vendas, tais como o total das receitas em comparação com
os custos, os quais são variáveis e crescentes ao longo dos anos tendo em conta
a taxa de inflação e/ou outros acertos.
IX. Em segundo lugar, a própria análise
crítica daquele documento n.º 16 deveria obrigatoriamente ter conduzido a uma
decisão de facto diferente. Efectivamente, sob o ponto 11, o tribunal a quo considerou provado que a obra dos recorrentes
iniciou em maio de 2018, pelo que se questiona a razão de se estar a calcular
quebras de venda relativamente aos primeiros quatro meses de 2019 por
comparação com os meses homólogos de 2017, ao invés de se comparar com o ano
imediatamente anterior, e afirmar que existe um nexo de causalidade da quebra
de vendas assim verificada com a obra dos recorrentes? Impossível!
X. Tem de ser ponto assente que a
variação negativa verificada nos primeiros quatro meses do ano de 2017 para
2018 não está relacionada com a obra dos recorrentes! O que torna incomparável,
para efeitos de imputação de responsabilidade aos recorrentes, a facturação daqueles
mesmos meses do ano de 2017 com o ano de 2019 que deveria, outrossim, ter sido comparado,
querendo, com o ano imediatamente anterior.
XI. Acresce que – mal – na análise
crítica deste documento, o tribunal a quo
nem sequer teve em consideração a margem normal de oscilação do próprio negócio
da recorrida e que foi confessada pelo seu legal representante, em declarações
de parte, situar-se na casa de um dígito, entre o 0 e o 9, conforme as
declarações prestadas na sessão da audiência de julgamento realizada no dia
08.09.2023, as quais ficaram gravadas no sistema áudio digital do tribunal com o
seu nome, com inicio às 15:56 e término às 16:55 e com a duração total de
00:58:51, entre o minuto 00:30:07 e o minuto 00:33:51 e cujo excerto se
transcreveu supra.
XII. Esta oscilação normal do negócio
deveria ter sido tomada em consideração, só podendo ser imputável,
eventualmente, aos recorrentes, oscilações superiores ao normal e próprio risco
do negócio, sendo certo que, conforme resulta da análise daquele documento n.º
16, não é líquido que aquela variação normal se cinja a um dígito (veja-se o
caso de fevereiro de 2018, em que a obra ainda não tinha iniciado).
XIII. Apesar do tribunal a quo ter alicerçado a sua decisão neste
depoimento que considerou honesto e credível, nada é referido na douta sentença
proferida quanto aos factos confessados desfavoráveis à posição da recorrida,
como o já mencionado, ou contraditórios com outros factos públicos e notórios.
XIV. Efectivamente, nas declarações
prestadas em tribunal e já mencionadas, o legal representante da recorrida afirmou
que era normal existir uma oscilação positiva na facturação das lojas nos períodos
de férias escolares do Carnaval e da Páscoa, o que é frontalmente contrariado
pelos números constantes do documento n.º 16 quanto analisado com base nos despachos
n.º 8294-A/2016, publicado no DR n.º 120, 2.ª série, parte C, de 24.06.2016 e
n.º 5458-A/2017, publicado no DR n.º 119, 2.ª série, parte C, de 22.06.2017, no
âmbito dos quais foram fixadas as interrupções lectivas para aqueles anos.
XV. Se atentarmos ao documento n.º 16 e
às interrupções lectivas do Carnaval, verifica-se que não obstante no ano de
2018 o Carnaval ter sido mesmo a meio do mês de fevereiro – em data que a obra
ainda nem tinha começado -, ao contrário do que ocorreu em 2017 que foi no
último dia do mês e prolongou-se para março, a Livraria CCC em Faro sofreu uma
variação negativa de 15%, o que contraria, com números, as declarações do legal
representante da ré e em cuja credibilidade o tribunal a quo tanto se alicerçou, considerando-as «claras, sinceras e particularmente esclarecedoras», o mesmo
sucedendo para as férias da Páscoa.
XVI. Ou seja, em fevereiro de 2018, mês
em que ocorreu a interrupção lectiva do Carnaval e quando ainda nem sequer
tinha iniciado a obra dos recorrentes, a recorrida sofreu uma quebra de vendas
de 15% (dois dígitos) com referência ao mês de fevereiro de 2017 (cuja
interrupção lectiva entrou pelo mês de março a dentro), fazendo, assim,
questionar as remanescentes oscilações negativas verificadas no resto do ano de
2018 e no ano de 2019 e a respectiva imputação, sem mais, à obra dos recorrentes.
XVII. Concluindo-se, assim, que não se
pode dar como provado que toda e qualquer variação negativa na facturação da recorrida
verificada durante aqueles anos seja exclusivamente devida à obra dos recorrentes.
XVIII. Aliás, no ponto 11 dos factos
provados foi considerado assente que no mês de junho de 2018 a loja da recorrida
sofreu uma inundação causada pela obra dos recorrentes, sendo que, naquele mês,
comparado com o mês homólogo do ano anterior, a Recorrida teve um acréscimo na
faturação de 2%, tendo novo acréscimo de 4% no mês de julho de 2018,
contrariando, mais uma vez, o facto provado sob o n.º 12 da sentença recorrida,
porquanto, da análise daquele documento é impossível extrair qualquer nexo de
causalidade entre os dados nele constantes e a obra dos recorrentes.
XIX. Contrariando também as declarações
prestadas pelo legal representante da ré e pela testemunha DDD quanto ao
suposto crescimento do volume de faturação geral das lojas da Livraria CCC,
temos, ainda, a carta remetida pela ré aos recorrentes datada de 04.03.2021 em resposta
à oposição à renovação do contrato e junta como doc. 9 com a petição inicial, e
que se deve considerar assente por acordo das partes e consta do facto provado
n.º 5, em que a própria ré admite, no terceiro parágrafo que «nos últimos anos e apesar das dificuldades que
afectam o nosso mercado…».
XX. Dificuldades essas que são de
conhecimento público e notório e que resultaram do aparecimento de novas
tecnologias associadas à leitura de livros, como os áudio livros ou os e-readers
e afins, assim como da insolvência de grandes livreiros como a Bulhosa e a
Europa América.
XXI. Acresce, ainda, que, conforme
resultou do depoimento da testemunha DDD, no depoimento que prestou na sessão
da audiência de julgamento realizada no dia 20.11.2023, o qual ficou gravado no
sistema áudio digital do tribunal com o seu nome, com início às 09:22 e término
às 10:11 e a duração total de 00:49:05, entre o minuto 00:18:06 e o minuto
00:20:09, cujo excerto se transcreveu supra, as oscilações no volume de facturação
podem ocorrer tanto por questões externas, como internas, tais como a mudança
de equipas ou de gerência, as quais de acordo com aquele depoimento seriam
resolvidas num curto espaço de tempo e que não se tinham verificado neste caso
concreto.
XXII. Sucede que esta última afirmação
foi frontalmente contrariada pela testemunha EEE, na sessão da audiência de
julgamento realizada no dia 08.09.2023, cujo depoimento ficou gravado no
sistema de áudio digital do tribunal daquele dia, com início às 11:00 e término
às 12:12 e com a duração total de 01:11:50, entre o minuto 00:03:31 e o minuto
00:04:21, cujo excerto se transcreveu supra, tendo a testemunha confirmado ser
gerente da Livraria CCC do Forum Algarve desde 2014, tendo acumulado a função
de gerência da loja em causa nos autos desde finais de 2015 até junho de 2019,
ou seja, durante quase 4 anos.
XXIII. Mais confirmou esta testemunha
que a sua sede era na loja do Fórum, não se deslocando diariamente à loja em
causa nos autos, onde só ia pelo tempo estritamente necessário, regressando
sempre à loja do Fórum.
XXIV. Por outro lado, a recorrida não
provou, não alegou, nem demonstrou nos autos quem é que assumiu as tarefas de
gerência da loja em causa nos autos após a cessação de funções como gerente da
testemunha EEE que apenas ficou alocado à loja do Fórum, nem a senioridade ou
experiência profissional dessa pessoa que veio substituir aqueloutro.
XXV. Concluindo-se, portanto, que,
durante o período dos alegados prejuízos invocados pela ré, esta loja em
concreto i) não tinha um gerente de loja sempre presente; ii) foi alvo de
mudança de equipa e iii) foi alvo de mudança de responsável/gerência de loja,
tudo factores internos que contribuem para uma oscilação negativa no volume de
facturação da recorrida, conforme resultou do depoimento da testemunha DDD.
XXVI. Para além destas questões,
esqueceu-se, ainda, o tribunal a quo
de ter em consideração as obras de melhorias realizadas pela recorrida durante
o período de encerramento de maio/junho de 2019, as quais foram realizadas na
sequência do sinistro provocado pela obra da recorrida, conforme depoimento da
testemunha FFF prestado na audiência de discussão e julgamento realizada no dia
08.09.2023, o qual ficou gravado no sistema de áudio digital do tribunal com o
nome da referida testemunha, com início pelas 13:51 e fim pelas 15:31, com a duração
total de 01:40:33, cujo excerto entre o minuto 00:26:29 e o minuto 00:27:50 se transcreveu
supra.
XXVII. Atenta a simplicidade das obras
necessárias realizar devido ao sinistro e que poderiam ter sido executadas, na
totalidade, no prazo de 1/ 2 dias, o impacto no volume de facturação das obras de
melhoria também deveria ter sido equacionado pelo tribunal a quo, o que afastaria, uma vez mais, o nexo de causalidade entre
as oscilações das vendas verificadas naqueles dois meses e a obra dos recorrentes.
XXVIII. Não podia, ainda, o tribunal a quo esquecer que a recorrida já foi
indemnizada pelo seguro contratado durante a obra pelos recorrentes, nos termos
dos documentos 14, 15, 16, 17 e 18 juntos aos autos com a réplica, o qual
incluía danos provocados a terceiros a título de responsabilidade civil.
XXIX. Pelo que a imputação do valor de
quebra de vendas constante deste documento n.º 16 exclusivamente à obra dos
Recorrentes é tão somente irresponsável, sendo certo que, em termos de matéria
de facto provada, o tribunal a quo
poderia apenas ter dado, querendo, como provado, o conteúdo do documento n.º 16
junto com a contestação, sem dele fazer constar qualquer nexo de causalidade de
imputação daqueles valores à obra dos recorrentes, o qual deveria ser
apreciado, posteriormente, aquando da aplicação do direito aos factos.
XXX. Em suma, quanto a este ponto 12 da
matéria de facto, com base na prova acima mencionada, requer-se a V. Exas. que
se dignem ordenar a sua revogação, sugerindo-se, alternativamente, a seguinte
redacção para este facto: «Em virtude do referido
em 11., nos períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado,
nos anos de 2018 e de 2019, a ré sofreu uma quebra de venda de livros não
escolares de montante não concretamente apurado.»
XXXI. Os recorrentes entendem, ainda,
que o facto provado sob o n.º 13 deverá ser revogado, nomeadamente por não ter
resultado da prova produzida que o reclamo tenha sido danificado na sequência
da obra dos recorrentes, muito pelo contrário.
XXXII. Aliás, todas as testemunhas que
depuseram sobre este facto, nomeadamente as testemunhas GGG, HHH e EEE,
referiram, sem exceção, que o reclamo da Livraria CCC era muito velho, estava
muito sujo de pombos, não tinha manutenção alguma há vários anos e
encontrava-se muito ressequido pelo sol, imputando a queda daquelas letras a
estas situações e não à obra realizada pelos recorrentes, conforme excertos dos
respetivos depoimentos que se transcreveram nas motivações supra, ai se
indicando com precisão as passagens e minutos das gravações de cada um daqueles
depoimentos.
XXXIII. Mais resultou da prova
produzida, nomeadamente da conjugação daqueles depoimentos com o depoimento da
também testemunha FFF que aquele reclamo já foi substituído por um outro, cuja
factura não foi junta aos autos, o qual é em tudo idêntico ao reclamo da Livraria
CCC do Fórum Algarve e que é um facto público e notório do conhecimento do tribunal
a quo.
XXXIV. Ficou, também, provado do
depoimento da testemunha FFF que o orçamento junto aos autos é para um reclamo
com características físicas diferentes do reclamo substituído, sendo certo que
o orçamento é datado de 23.07.2019, quando o reclamo só terá sido danificado e
posteriormente substituído em 28.08.2020, conforme resultou do doc. 21 junto
com a réplica em conjugação com o depoimento das testemunhas GGG, HHH e FFF e,
bem assim, com as declarações de parte do autor.
XXXV. Termos em que, a respeito do facto
provado n.º 13 entendemos que, com base na prova acima descrita, deveria ser o
mesmo totalmente eliminado porquanto a prova produzida não tem interesse para
qualquer um dos pedidos formulados pelas partes ou, alternativamente, deverá o
mesmo passar a ser reformulado da seguinte forma: «Em agosto de 2020, a ré substituiu o reclamo da fachada principal da
fracção autónoma designada pela letra “B” do imóvel identificado em 1., cujo
preço de aquisição não foi apurado.»
XXXVI. Ao contrário daquilo que deveria
ser a prática judicial, é por demais evidente da análise da sentença recorrida,
que o tribunal a quo ajustou a
matéria de facto à decisão final pretendida proferir, quando deveria, em
primeiro lugar, apreciar e decidir quanto à matéria de facto provada e não
provada alegada pelas partes e, posteriormente, interpretá-la à luz das regras
de direito, aplicando este àquelas.
XXXVII. Tanto assim é que, apesar se se
encontrar peticionado pelos recorrentes a condenação da sociedade ré a
pagar-lhes o valor das rendas no montante mensal de € 1.500,00 (mil e quinhentos
euros), que se forem vencendo até efectiva entrega do imóvel livre e devoluto
de pessoas e bens, o tribunal a quo não
considerou provado nem não provado o montante da renda comercial do imóvel em
causa, tendo omitido, por completo, tal facto da douta sentença recorrida.
XXXVIII. A verdade é que esse facto
resultou cabalmente provado quer por acordo entre as partes, quer dos
documentos juntos como doc. 23 pelos recorrentes com o requerimento datado de 06.10.2022,
quer ainda do depoimento da testemunha JJJ e das declarações de parte prestadas
pelo recorrente marido, cujos excertos se deixaram transcritos supra com
indicação precisa dos exactos minutos dos respectivos depoimentos.
XXXIX. Termos em que, sendo julgado
procedente o presente recurso, se requer a V. Exas. que se dignem acrescentar à
matéria provada um novo facto, sugerindo-se a seguinte formulação: «A renda mensal de mercado da loja arrendada
pela ré aos autores é no montante actual de € 1.500,00 (mil e quinhentos
euros).»
XL. Falta, ainda, à matéria de facto
provada, todas as comunicações trocadas entre as partes com relação aos pedidos
reconvencionais formulados pela recorrida na presente acção, e cujos conteúdos
se devem considerar provados por acordo entre as partes, e que se consideram importantes
na apreciação daqueles pedidos.
XLI. Pelo que em termos de matéria de
facto, consideram os recorrentes que o tribunal a quo deveria ter feito constar expressamente da matéria de facto
provada o teor da resposta remetida pelos recorrentes à comunicação referida no
ponto 14 da matéria de facto junta como doc. 21 com a réplica, tal como deveria
ter feito constar da matéria de facto provada os e-mails datados de 10.02.2022,
24.02.2022 e de 25.02.2022 juntos como doc. 11 com a petição inicial, o que se
requer a V. Exas. que determinem.
XLII. Em termos de matéria de direito,
entendem os recorrentes que o tribunal a
quo aplicou e interpretou erradamente o instituto do abuso de direito, não
tendo apreciado factos que considerou provados (como por exemplo, o facto n.º
5) aquando da análise e aplicação daquele instituto ao caso concreto, aplicando
e interpretando, por isso, erradamente o artigo 334.º do Código Civil e, bem
assim, aplicando e interpretando erradamente as normas relativas à obrigação de
indemnização previstas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil.
XLIII. Para apreciação do abuso de
direito, o tribunal a quo baseou-se,
pura e simplesmente, na ausência de comunicação prévia quanto à intenção e/ou
mesmo à submissão da candidatura da recorrida ao reconhecimento da loja em
causa nos autos como «Espaço com História».
XLIV. Porém, da matéria de facto provada
e que consta já da douta sentença proferida, existem muitos outros factos que,
caso tivessem sido devidamente analisados à luz deste instituto, levariam com
certeza a uma diferente decisão.
XLV. Efetivamente, sob o facto provado
n.º 5, o tribunal a quo considerou
assente que «Após a carta referida em 4.,
os autores e a ré encetaram negociações (através da troca de cartas, em março
de 2021, de emails, em fevereiro e em março de 2022 e da realização de duas
reuniões, em junho de 2021 e em janeiro de 2022, respetivamente) para a
celebração de um novo contrato de arrendamento, as quais não lograram obter sucesso»,
sendo que a carta referida em 4. é a carta de oposição à renovação do contrato
remetida no dia 01.02.2021 com produção de efeitos de cessação do contrato a 28.02.2022.
XLVI. Portanto, o tribunal a quo deu como provado e demonstrado
que, durante mais de um ano, as partes estiveram a negociar a celebração de um
novo contrato de arrendamento sem que a recorrida tenha, nesse período de
tempo, levantado qualquer questão quanto à validade ou produção de efeitos da
comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento, muito pelo contrário!
XLVII. Aliás, na carta de resposta à
oposição à renovação do contrato junta como doc. 9 com a petição inicial e
admitida por acordo, a recorrida reconhecia os efeitos daquela comunicação no
que respeitava à cessação do contrato de arrendamento então em curso.
XLVIII. A recorrida e recorrentes
reuniram-se, pelo menos, em junho de 2021 e janeiro de 2022 para negociarem os
termos e condições de um novo contrato de arrendamento, sem que aquela tenha
comunicado e/ou informado os recorrentes da sua não aceitação da cessação do contrato
e/ou da apresentação da sua candidatura ao programa das lojas com história.
XLIX. A apresentação da candidatura a
este programa com o completo desconhecimento dos recorrentes teve como intuito
e objectivo – conseguido alcançar – impedir a participação daqueles no âmbito
da consulta pública obrigatória, para que não pudessem pronunciar-se sobre o
mesmo pugnando pelo seu não reconhecimento porquanto a loja em causa é uma livraria
perfeitamente banal, sem qualquer emblema ou apontamento histórico, seja no que
se refere aos bens móveis nela existentes, seja ao negócio que lá é
prosseguido, não se distinguindo esta loja de qualquer outra loja da mesma
marca num qualquer centro comercial.
L. A única razão que encontramos neste caso
em concreto para esta loja ter sido distinguida com aquele reconhecimento está
relacionada com a própria da marca Livraria CCC (marca reconhecidamente forte e
pertencente a um dos principais grupos editoriais que é a Sociedade 2) e não
com a loja em si, o que se torna efectivamente evidente da análise da própria candidatura
submetida e junta como doc. 3 com a contestação.
LI. A verdade é que os recorrentes,
durante todo o período de um ano de negociações que se seguiram à oposição do
contrato, agiram com base na confiança de que o contrato de arrendamento
terminaria no dia 28.02.2022, ignorando, sem culpa, que a recorrida tinha intenções
de agir desconformemente às negociações que estava a manter com aqueles, actuando
em dois planos paralelos em simultâneo e com o completo desconhecimento
daqueles.
LII. Concluindo-se, que existiu um
comportamento anterior (agir em conformidade com a cessação do contrato de
arrendamento ao negociar a celebração de um novo contrato) desconforme com o actual
(oposição à cessação do contrato de arrendamento em virtude do reconhecimento como
«Espaço com História»), ambos
imputáveis à recorrida.
LIII. Aliás, se atentarmos ao facto
provado n.º 8, cuja comunicação foi recebida pelos recorrentes no dia
02.03.2022 – já depois da data da cessação do contrato – percebe-se bem o comportamento
abusivo da ré que, ainda sem lhe ter sido reconhecido aquele estatuto, já invocava
artimanhas legais – cuja invocação poderia ter efectuado desde a data da recepção
da comunicação de oposição à renovação do contrato – para justificar a recusa
de entrega do imóvel na data da cessação do contrato de arrendamento, as quais
foram julgadas – bem – totalmente improcedentes pelo tribunal a quo.
LIV. Por seu turno, os recorrentes
agiram de boa-fé, ignorando, sem culpa, a intenção da recorrida agir de forma
contrária ao comportamento anterior, sem nada que o pudesse indicar em qualquer
uma das comunicações trocadas ou em qualquer uma das reuniões mantidas com aquela
até à data da cessação do contrato de arrendamento – 28.02.2022.
LV. Os recorrentes ficaram, assim,
prejudicados, injustamente, com o comportamento contraditório da recorrida,
porquanto poderiam ter negociado os termos e condições daquele novo contrato
e/ou da manutenção em vigor deste contrato de arrendamento com base em diferentes
pressupostos.
LVI. Termos em que se requer a V. Exas.
que, julgando procedente o presente recurso, se dignem revogar a douta sentença
proferida, devendo, consequentemente, ser declarado cessado o contrato de
arrendamento celebrado entre as partes no dia 28.02.2022 por verificação do
preenchimento dos requisitos legais do instituto do abuso de direito, na
modalidade de venire contra factum
proprium, com as demais consequências legais.
LVII. Julgando-se procedente aquele
pedido, os demais pedidos formulados na petição inicial deverão, também, ser
julgados procedentes por serem a consequência jurídica daqueloutro, pelo que se
requer a V. Exas. que determinem a restituição imediata do imóvel locado nos
termos peticionados e, bem assim, a condenação da recorrida no pagamento de uma
valor mensal no montante de € 1.500,00 desde março de 2022, inclusive, até à
restituição do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, pela ocupação ilícita
daquele espaço.
LVIII. Por último, quanto ao pedido
reconvencional e respectiva condenação dos Recorrentes, entendem estes que não
ficou provado nem demonstrado em primeiro lugar, a existência do dano/prejuízo
e, em segundo lugar o nexo de causalidade entre esses mesmos prejuízos/danos e
a obra realizada pelos recorrentes, o que deveria ter conduzido à improcedência
daqueles pedidos, nos termos já referidos acima quanto à alteração dos pontos
12 e 13 da matéria de facto, os quais se dão aqui por reproduzidos.
LIX. Entendendo o tribunal a quo que pudessem existir danos de
quebras de vendas imputáveis directamente à obra dos recorrentes, e não lhe
sendo possível concluir por qualquer valor atendendo à falta de prova produzida
pela recorrida a esse respeito – sobre quem incumbia o ónus da prova –,
competiria ao tribunal a quo,
querendo, relegar a quantificação daqueles danos/prejuízos para liquidação em
sede de execução de sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2
do artigo 609.º do Código de Processo Civil.
LX. Requerendo-se a V. Exas. que,
julgando o presente recurso procedente por provado, se dignem revogar a douta
sentença recorrida, substituindo-a, nesta parte, por outra que absolva os recorrentes
do peticionado por falta de prova quanto ao valor dos prejuízos e respectivo
nexo de causalidade e/ou, alternativamente, condene os recorrentes no pagamento
de uma indemnização pela quebra das vendas a liquidar em execução de sentença,
assim se fazendo justiça!
LXI. No que se refere à indemnização
peticionada pela substituição do reclamo, refira-se, em primeiro lugar, que não
ficou demonstrado qualquer nexo de causalidade entre os danos nele verificados
e qualquer conduta dos recorrentes, conforme também já expendido.
LXII. Em todo o caso, ainda que se considerasse
existir um nexo de causalidade, nunca o tribunal a quo poderia condenar os recorrentes no pagamento de um qualquer
orçamento, porquanto tal afronta e viola grosseiramente as regras
indemnizatórias previstas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil, segundo os
quais a obrigação de indemnização deverá consistir na reconstituição da
situação que existiria, a menos que tal não seja possível.
LXIII. No caso em concreto, a
reconstituição era possível mas não foi peticionada pela recorrida (tal como não
foi peticionado o pagamento do reclamo que efetivamente substituiu o
danificado), razão pela qual o tribunal a
quo deveria, sem mais, ter julgado o pedido de condenação dos recorrentes
num montante orçamentado – em 2019 - muito antes da verificação do possível evento
danoso – em 2020 - totalmente improcedente por não provado e, consequentemente,
deveria ter absolvido os recorrentes daquele pedido, o que se requer a V. Exas.
que determinem na sequência da procedência do presente recurso.
Questões a decidir:
1 – Impugnação da decisão sobre a
matéria de facto;
2 – Abuso de direito por parte da
recorrida;
3 – Responsabilidade civil dos
recorrentes.
Factos julgados provados
pelo tribunal a quo:
1 – Encontra-se registado, com compra, a
favor de BBB e de AAA, pela Ap. (…), o prédio urbano sito na Rua (…), n.º (…),
em Faro (Sé), freguesia de Faro (Sé e São Pedro), constituído sob o regime de
propriedade horizontal, pela Ap. (…), inscrito na matriz predial urbana sob o
artigo n.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro com o n.º
(…).
2 – Por escritura pública, datada de 8
de Março de 1978, com o título «Trespasse
e Novo Arrendamento», o rés-do-chão dito do imóvel identificado em 1 (que,
após a constituição da propriedade horizontal, passou a corresponder à fracção
autónoma designada pela letra “B”), foi arrendado à ré.
3 – Em resposta à proposta, remetida
pelos autores à ré, por carta datada de 20 de Dezembro de 2016, de actualização
de renda e alteração do regime do contrato de arrendamento, a ré, por carta,
datada de 20 de Janeiro de 2017, informa os autores que «relativamente às novas condições propostas, a saber: transição do
contrato de arrendamento para o NRAU, passando este a ter prazo certo, com
duração de cinco anos e manutenção do valor atual de renda (de 400,00 €), com
as atualizações mensais previstas na lei, cumpre-nos informar a sua aceitação
por esta Empresa, pelo que confirmamos a submissão do contrato ao NRAU, nas
indicadas condições, a partir do dia 01/03/2017.»
4 – Em 1 de Fevereiro de 2021, os autores
remeteram à ré, a carta, com o assunto «Oposição
à renovação do contrato de arrendamento do estabelecimento sito na Rua (…), n.º
(…), (…), em Faro», da qual consta, entre o mais, o seguinte:
«(…)
o prazo inicial dos cinco anos terminará no próximo dia 28.02.2022.
Nesse
sentido, na qualidade de Senhorios do imóvel acima identificado vimos, pela
presente e ao abrigo das disposições conjugadas constantes do n.º 1 do artigo
9.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, com o n.º 1 do artigo 1110.º e a
alínea a) do n.º 1 do artigo 1097.º do Código Civil, comunicar-lhes a nossa
vontade expressa de OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO do mesmo contrato.
Com
a oposição à renovação agora comunicada, o contrato de arrendamento terminará
de produzir quaisquer efeitos no próximo dia 28.02.2022, devendo, até
àquela data, V. Ex.ª proceder à entrega do imóvel locado, livre de devoluto de
pessoas e bens, em bom estado de conservação.»
5 – Após a carta referida em 4., os autores
e a ré encetaram negociações (através da troca de cartas, em Março de 2021, de
e-mails, em Fevereiro e em Março de 2022 e da realização de duas reuniões, em Junho
de 2021 e em Janeiro de 2022, respectivamente) para a celebração de um novo
contrato de arrendamento, as quais não lograram obter sucesso.
6 – No dia 2 de Junho de 2021, em sessão
da Assembleia Municipal, foi aprovado o Regulamento n.º 286/2021 (Regulamento «Município de Faro – Espaços com História»),
o qual foi publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 23 de Agosto de 2021.
7 – No dia 29 de Julho de 2021, a ré
apresentou a sua candidatura à distinção «Município
de Faro – Espaços com História»;
8 – No dia 24 de Fevereiro de 2022, a ré
remeteu aos autores, a carta, com o assunto «Contrato
de arrendamento da Livraria CCC sita na Rua (…), n.º (…), fração B 8000-306
Faro», da qual consta, entre o mais, o seguinte:
«(…)
a Livraria CCC celebrou, em 08/03/1978, um contrato de arrendamento tendo por
objeto o locado supra identificado, tendo a V. comunicação de 20/12/2016 dado
início a um processo negocial do qual resultou a transição para o NRAU e a
consequente celebração de um novo contrato, com prazo certo, e duração de cinco
anos, com início em 01/03/2017.
Ora,
nos termos da legislação atualmente em vigor, nos cinco primeiros anos após o
início do contrato, não pode o senhorio opor-se à sua renovação, pelo que o
contrato se renovou, por efeito da lei, por igual período.»
9 – Em reunião ordinária pública da
Câmara Municipal de Faro, realizada no dia 28 de Fevereiro de 2022, foi
aprovada, por unanimidade, a Proposta n.º 107/2022/CM – Pedido de
Reconhecimento da Livraria CCC a «Espaço
com História»;
10 – No dia 4 de Março de 2022, a ré
remeteu aos autores, a carta, com o assunto «Reconhecimento
da Livraria CCC sita na Rua (…), n.º (…), fração B 8000-306 Faro como “Espaço
com História”», da qual consta, entre o mais, o seguinte:
«(…)
vimos informar que, em reunião ordinária pública da Câmara Municipal de Faro de
28.02.2022 (proposta n.º 107/2022/CM), foi aprovado o reconhecimento da Livraria
CCC de Faro como “Espaço com História”, nos termos previstos no artigo 6.º da
Lei 42/2017, de 14 de junho, e do Regulamento n.º 786/2021 “Município de Faro –
Espaços com História”.
Do
citado reconhecimento e do regime legal aplicável aos “Espaços com História”
decorre que, ainda que o contrato de arrendamento do imóvel tenha transitado
para o NRAU nos termos da lei então aplicável, não podem V. Exas. opor-se à
renovação do novo contrato celebrado à luz do NRAU, por um período adicional de
cinco anos.»
11 – Durante o período compreendido
entre Maio de 2018 e entre data não concretamente apurada nos meses de Setembro
ou de Outubro de 2020, os autores realizaram obras de restauro no imóvel
referido em 1, as quais causaram constrangimentos à utilização, pela ré, da fracção
autónoma designada pela letra “B” (em particular, ocorreram inundações em Junho,
Outubro e Novembro de 2018 e em Maio de 2019, que limitaram o acesso à loja, e
implicaram o seu encerramento para reparações nos períodos compreendidos entre
1 a 4 de Novembro de 2018 e entre 20 de Maio a 24 de Junho de 2019).
12 – Em virtude do referido em 11, nos
períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado, nos anos de
2018 e de 2019, a ré sofreu uma quebra de vendas de livros não escolares, de
montante correspondente a cerca de € 56.558,63 (cinquenta e seis mil,
quinhentos e cinquenta e oito euros e sessenta e três cêntimos), a que
corresponde uma margem de € 24.803,00 (vinte e quatro mil, oitocentos e três
euros), em comparação com os períodos homólogos de 2017.
13 – Em virtude do referido em 11, foram
danificadas duas letras (em particular, o “R” e o “N”) do reclamo existente na
fachada da fracção autónoma designada pela letra “B”, do imóvel identificado em
1, tendo a sua substituição integral sido orçamentada em € 710,00 (setecentos e
dez euros).
14 – Pela carta, datada de 8 de Março de
2021, a ré solicitou aos autores o pagamento dos montantes referidos em 12 e
13, sem sucesso.
Factos julgados não provados
pelo tribunal a quo:
a) A ré comunicou, à representante dos autores,
que estava a decorrer o processo de reconhecimento da sua loja como «Loja com História», junto do Município
de Faro.
b) Durante o período compreendido entre Junho
de 2019 e Julho de 2020, o empreiteiro dos autores utilizou a energia eléctrica
da fracção autónoma designada pela letra “B”, sem o consentimento e/ou a
autorização da ré, o que implicou, para a ré, um custo adicional de € 700,00
(setecentos euros).
c) Todos os constrangimentos à
utilização, pela ré, da fracção autónoma designada pela letra “B”, decorrentes
das obras de restauro do imóvel referido em 1., nomeadamente, os referidos em
12 e 13, foram indemnizados pela seguradora dos autores.
*
1 – Impugnação da decisão
sobre a matéria de facto:
1.1. Os recorrentes pretendem
a eliminação dos n.ºs 5, 11, 12, 13 e 14 do enunciado dos factos provados,
substituindo-os por outros «em que sejam
eliminadas as referências conclusivas e interpretativas do tribunal a quo
constantes daqueles factos provados, as quais deveriam constar exclusivamente
da motivação da decisão sobre a matéria de facto, limitando-se os factos
provados ao efectivamente alegado e provado pelas partes quanto àqueles pontos
em concreto».
Porém, os recorrentes não
especificam a «decisão que, no seu
entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas» [artigo
640.º, n.º 1, al. c), do CPC], ou seja, as concretas alterações que pretendem
ver introduzidas naqueles pontos da matéria de facto. Não cumprem, pois, o ónus
estabelecido naquela norma legal. Consequentemente, a sua pretensão não poderá
ser apreciada.
1.2. Ainda em relação ao n.º
5 do enunciado dos factos provados, os recorrentes pretendem que o mesmo seja
substituído pela reprodução do teor da totalidade das comunicações ali
referidas.
Não o faremos. Decorre do
artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, que a sentença deve enunciar os factos
julgados provados e não provados. Não que o tribunal deva reproduzir o conteúdo
integral de meios de prova, nomeadamente de natureza documental, no enunciado
da matéria de facto provada e não provada. Tal reprodução vem-se, infelizmente,
vulgarizando, estimulada pelos recursos que a informática proporciona ao
utilizador, mas é errada. Tamanha é a vulgarização desse erro que, como
acontece neste recurso, já se censura o tribunal a quo por ter cumprido aquelas normas legais, extraindo, dos meios
de prova, os factos úteis para a decisão da causa, em vez de ceder à tentação
de vazar, acriticamente, a totalidade do conteúdo da prova documental nos
enunciados da matéria de facto provada e não provada. Tal censura não tem razão
de ser.
A afirmação, feita pelos
recorrentes, de que, ao «não
individualizar aquelas comunicações, é notório que o tribunal a quo não as
analisou criticamente e/ou considerou aquando da fundamentação de direito»,
é puramente gratuita. O tribunal não tem de reproduzir, na sentença, o conteúdo
integral dos meios de prova com vista a demonstrar que os apreciou devidamente.
A ser assim, o tribunal também teria de reproduzir integralmente os depoimentos
prestados na audiência final, para que ficasse claro que os tinha apreciado.
Isso constituiria um perfeito absurdo e uma grosseira violação do disposto no
artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.
Sendo assim, a redacção do
n.º 5 do enunciado dos factos provados deverá manter-se.
1.3. Os recorrentes
pretendem que o n.º 12 do enunciado dos factos provados seja eliminado ou,
subsidiariamente, que a sua redacção passe a ser a seguinte: «Em virtude do referido em 11, nos períodos
em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado, nos anos de 2018 e de
2019, a ré sofreu uma quebra de venda de livros não escolares de montante não
concretamente apurado.»
A crítica fundamental que os
recorrentes, a este propósito, fazem ao tribunal a quo, é a de este «dar como
provada uma margem de quebra de vendas com base num quadro de excel preparado
pela ré, cujo conteúdo foi devidamente impugnado, sem sequer exigir os
documentos contabilísticos base através dos quais aquele quadro terá sido
supostamente preparado e através dos quais se pudesse confirmar a veracidade
dos números apresentados, quer quanto a receitas, quer quanto a custos,
nomeadamente os balancetes analíticos».
Esta crítica tem razão de
ser. Contudo, ela não justifica a eliminação do n.º 12. Apenas impõe que a sua
redacção seja alterada em conformidade com aquilo que os recorrentes pretendem.
Passamos a justificar esta tomada de posição.
É fora de dúvida que a
realização das obras descritas no n.º 11 causou significativa perturbação no
funcionamento da loja da recorrida, com repercussão directa no volume das
vendas de livros, que diminuiu. Os depoimentos do legal representante da
recorrida, MMM, e das testemunhas EEE e DDD são eloquentes a esse respeito. Nem
poderia deixar de ser assim, atenta a natureza e a dimensão das obras em causa
e tendo em conta as regras da experiência comum. Daí que o n.º 12 não possa ser
eliminado. A existência de uma quebra do volume de vendas de livros não
escolares em consequência das obras descritas no n.º 11 tem de constar do
enunciado dos factos provados.
Contudo, o único meio de
prova dos exactos valores percentuais da referida quebra de vendas durante o
período de execução da obra, bem como da tradução monetária dessa quebra, é o
documento junto com a contestação sob o n.º 16. Trata-se de um documento
elaborado pela contabilista da recorrida, em que esta declara o seguinte: «(…) com base no conhecimento da entidade e
da informação económico-financeira de cuja preparação sou responsável,
certifico, para efeitos de apuramento de quebra de vendas e outros prejuízos na
Livraria CCC de Faro, que a loja mencionada evidenciou os valores indicados na
informação anexa.» A informação anexa é constituída por uma folha que
menciona diversos valores, percentuais e monetários, reportados a cada um dos
meses dos anos de 2018 e 2019, bem como os valores monetários globais. Nada
mais.
Como os recorrentes
acertadamente salientam, o conteúdo deste documento foi por eles impugnado. MMM,
EEE e DDD descreveram genericamente a dimensão da quebra do volume de vendas de
livros não escolares, mas não tinham, obviamente, memória, nem das exactas
percentagens respeitantes a cada mês, nem dos valores monetários das perdas.
Aliás, se os tivessem discriminado nos seus depoimentos, não mereceriam
qualquer credibilidade, pois, com grande probabilidade, ter-se-iam limitado a
memorizá-los para esse efeito a partir de dados fornecidos por terceiros.
Factos desta natureza provam-se através de elementos contabilísticos,
eventualmente com o auxílio de peritos, e não por «declarações» emitidas por um colaborador da parte ou por
depoimentos prestados na audiência final.
Consequentemente, não pode considerar-se
demonstrado, com o grau de segurança necessário para a formulação de um juízo
de prova, que as percentagens das quebras do volume de vendas de livros não
escolares durante o tempo em que as obras decorreram, bem como a sua tradução
monetária, tenham sido as referidas no documento a que nos vimos referindo.
Deverá, pois, o n.º 12 do
enunciado dos factos provados passar a ter a seguinte redacção: «Em virtude do referido em 11, nos períodos
em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado, nos anos de 2018 e de
2019, a ré sofreu uma quebra de venda de livros não escolares de montante não
concretamente apurado.» A parte suprimida deverá ser aditada ao enunciado
dos factos não provados.
1.4. Os recorrentes
pretendem que o n.º 13 do enunciado dos factos provados seja eliminado ou,
subsidiariamente, que a sua redacção passe a ser a seguinte: «Em agosto de 2020, a ré substituiu o
reclamo da fachada principal da fracção autónoma designada pela letra “B” do
imóvel identificado em 1, cujo preço de aquisição não foi apurado.»
Consideram que não foi produzida prova de que o reclamo tenha ficado danificado
em consequência das obras realizadas a seu mando e que, pelo contrário, aquilo
que resultou dos depoimentos das testemunhas que depuseram sobre esta matéria
foi que o reclamo «era muito velho,
estava muito sujo de pombos, não tinha manutenção alguma há vários anos e
encontrava-se muito ressequido pelo sol, imputando a queda daquelas letras a
estas situações e não à obra realizada pelos recorrentes». Salientam ainda
que nunca foi junta aos autos a factura relativa à aquisição do novo reclamo.
Os recorrentes têm razão.
Não foi produzida prova de
que o descolamento das duas letras do reclamo anterior tenha sido consequência
da realização das obras. Aquilo que resulta dos depoimentos das testemunhas que
sobre esta matéria se pronunciaram (EEE, HHH, GGG e FFF) é que se tratava de um
reclamo velho e deteriorado pelo sol e pela acumulação de dejectos de pombos,
pelo que não constitui um facto anormal o descolamento e consequente queda ao
chão de duas letras.
GGG assegurou que, quando o
andaime foi retirado, o reclamo estava intacto, só posteriormente tendo caído
uma das letras, que podia ser recolada caso fosse essa a vontade da recorrida.
HHH, que sucedeu a GGG como
director da obra, afirmou que, quando assumiu essa função, o reclamo continuava
no sítio dele e intacto. A certa altura, o reclamo teve de ser retirado e foi
no momento da sua reposição que uma das letras se descolou. Nessa altura, a
letra foi novamente colada ao reclamo.
O então gerente da livraria,
EEE, alvitrou mesmo que o reclamo em causa foi substituído, não por ter sofrido
qualquer deterioração em consequência das obras, mas por estar velho e sujo.
Note-se, por último, que o
documento junto com a contestação sob o n.º 17 constitui um mero orçamento, não
sendo, por isso, idóneo para provar a realização de uma despesa por parte da
recorrida.
Pelo exposto, deverá ser
eliminado o n.º 13 do enunciado da matéria de facto provada. O seu conteúdo
deverá ser aditado ao enunciado dos factos não provados, com excepção da
referência final ao valor constante do orçamento que constitui o documento
junto com a contestação sob o n.º 17, que, atentas a falta de prova de um nexo
de causalidade entre a execução da obra e a necessidade de substituição do
reclamo anterior e a própria natureza desse documento, carece de relevância
para a decisão da causa.
1.5. Os recorrentes
pretendem que, ao enunciado da matéria de facto provada, seja aditado o
seguinte: «A renda mensal de mercado da
loja arrendada pela ré aos autores é no montante actual de € 1.500,00 (mil e
quinhentos euros).»
Como adiante veremos, a
recorrida não agiu em abuso de direito ao invocar, como fundamento para a não
restituição do locado, o reconhecimento da loja neste existente como «Espaço com História». Em consequência
disso, não será determinada tal restituição. Sendo assim, o facto que os
recorrentes pretendem ver aditado ao enunciado da matéria de facto provada
carece de relevância para a decisão da causa, não tendo lugar nesse enunciado.
Convém lembrar, a este
propósito, que o artigo 130.º do CPC estabelece que não é lícito realizar actos
inúteis no processo, consagrando, assim, o princípio da limitação dos actos.
Sendo irrelevante para a decisão da causa, o aditamento que os recorrentes
pretendem introduzir na matéria de facto provada, ainda que tivesse fundamento
em face da prova produzida, traduzir-se-ia na prática de um acto inútil e, como
tal, proibido.
1.6. Nas conclusões XL e
XLI, os recorrentes pretendem que o tribunal ad quem adite, ao enunciado da matéria de facto provada, o conteúdo
de «todas as comunicações trocadas entre
as partes com relação aos pedidos reconvencionais formulados pela recorrida na
presente acção, e cujos conteúdos se devem considerar provados por acordo entre
as partes, e que se consideram importantes na apreciação daqueles pedidos. Pelo
que em termos de matéria de facto, consideram os recorrentes que o tribunal a
quo deveria ter feito constar expressamente da matéria de facto provada o teor
da resposta remetida pelos recorrentes à comunicação referida no ponto 14 da matéria
de facto junta como doc. 21 com a réplica, tal como deveria ter feito constar
da matéria de facto provada os e-mails datados de 10.02.2022, 24.02.2022 e de
25.02.2022 juntos como doc. 11 com a petição inicial».
Como referimos em 1.2,
constitui um erro técnico e uma violação do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo
607.º do CPC vazar-se, pura e simplesmente, a totalidade do conteúdo de prova
documental nos enunciados da matéria de facto provada e não provada. Em vez
disso, o que deve constar daqueles enunciados são os factos relevantes para a
decisão da causa que sejam julgados provados e não provados, o que pressupõe a
sua prévia apreciação e selecção.
Consequentemente, tal como
em 1.2, não procederemos ao aditamento pretendido pelos recorrentes, os quais,
saliente-se, nem sequer indicam qual seria a utilidade de tal aditamento para a
decisão da causa.
2 – Abuso de direito por
parte da recorrida:
Os recorrentes sustentam que
a recorrida actuou com abuso de direito ao invocar a qualificação da loja
existente no locado como «Espaço com
História» com a finalidade de obstar à cessação do contrato de
arrendamento. A fundamentação é, sucintamente, a seguinte:
- Na sequência da oposição à renovação do
contrato de arrendamento por parte dos recorrentes, a recorrida remeteu, a
estes, uma carta em que declarou aceitar a produção dos efeitos daquela
oposição e se mostrou disponível para negociar um novo contrato;
- Os recorrentes e a recorrida encetaram
negociações, trocando cartas e e-mails e realizando duas reuniões, tendo em
vista a celebração de um novo contrato de arrendamento, embora sem sucesso;
- No decurso dessas negociações, os
recorrentes apresentaram, por escrito, uma proposta concreta de celebração de
novo contrato de arrendamento, através de e-mail enviado em 10.02.2022;
- Ou seja, desde a data da comunicação
da oposição à renovação do contrato de arrendamento (01.02.2021) até à data da
cessação deste (28.02.2022), as partes mantiveram-se em contacto, sempre no
sentido de negociarem a celebração de um novo contrato, destinado a produzir
efeitos a partir de 01.03.2022;
- Durante todo o ano que antecedeu a
data prevista para o final do contrato, nunca a recorrida comunicou, deu a
entender ou informou os recorrentes de que não aceitava a produção dos efeitos da
cessação do contrato de arrendamento, muito pelo contrário;
- Simultaneamente e à socapa, em
29.07.2021, a recorrida apresentou a sua candidatura à distinção «Município de Faro – Espaços com História»,
cujo estatuto lhe foi reconhecido na reunião ordinária pública da Câmara
Municipal de Faro realizada no dia 28.02.2022;
- Durante todo esse período e apesar de
se encontrar a negociar com os recorrentes a celebração de um novo contrato, a recorrida
não os informou da apresentação daquela candidatura nem da pendência daquele
processo;
- Os recorrentes nunca pensaram ou
equacionaram a hipótese de a recorrida recorrer a tal subterfúgio apenas para
evitar a cessação do contrato de arrendamento, porquanto a loja em questão é
uma livraria perfeitamente banal, sem qualquer emblema ou apontamento
histórico, seja no que se refere aos bens móveis nela existentes, seja ao
negócio que lá é prosseguido, não se distinguindo de qualquer outra loja da
mesma marca num qualquer centro comercial;
- Com o descrito comportamento, a recorrida
não permitiu que os recorrentes participassem activamente no processo de
reconhecimento de «Loja com História»
que correu na Câmara Municipal de Faro, porquanto dele não tiveram, sem culpa
porque nunca o poderiam prever ou antecipar, conhecimento atempado;
- Assim, o investimento de confiança dos
recorrentes na cessação do contrato de arrendamento no dia 28.02.2022 está
perfeitamente justificado pelos comportamentos anteriores da recorrida que ficaram
provados na sentença ora em crise, ainda que de forma abreviada;
- Concluindo-se que existiu um
comportamento anterior (agir em conformidade com a cessação do contrato de
arrendamento ao negociar a celebração de um novo contrato) desconforme com o actual
(oposição à cessação do contrato de arrendamento em virtude do reconhecimento
como «Espaço com História»), ambos
imputáveis à recorrida;
- Os recorrentes ficaram injustamente prejudicados
com o comportamento contraditório da recorrida, porquanto poderiam ter
negociado os termos e condições daquele novo contrato e/ou da manutenção em
vigor deste contrato de arrendamento com base em diferentes pressupostos;
- Pelo que se verificam os pressupostos
da figura do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, devendo ser declarado cessado o contrato
de arrendamento celebrado entre as partes no dia 28.02.2022.
Esta argumentação assenta em
duas ideias fundamentais:
1.ª – Num primeiro momento, a recorrida
aceitou a oposição à renovação do contrato de arrendamento; posteriormente,
opôs-se; daí que nos encontremos perante um venire
contra factum proprium por parte da recorrida;
2.ª – No decurso de negociações entre os
recorrentes e a recorrida, esta, sem dar conhecimento àqueles, candidatou-se à
atribuição de um título que, após lhe ter sido concedido, utilizou para obstar
à cessação do contrato de arrendamento.
Analisemo-las.
Não é qualquer conduta
contraditória com uma conduta anterior do mesmo sujeito que configura um abuso
de direito, na modalidade de venire
contra factum proprium. «Ressalvada
ficará (…) a possibilidade de o venire assentar numa circunstância
justificativa e, designadamente, no surgimento ou na consciência de elementos
que determinem o agente a mudar de atitude. O venire contra factum proprium só
o será, em última análise, se não tiver nenhum factor que o justifique.»[1] Não existe, na nossa ordem
jurídica, «uma proibição genérica de
contradição. Apenas circunstâncias especiais podem levar à sua aplicação.»[2]
A recorrida conformou-se com
a oposição à renovação do contrato de arrendamento por parte dos recorrentes
num momento em que ainda não dispunha do título que posteriormente invocou com
a finalidade de obstar à cessação daquele contrato. A própria candidatura à
obtenção desse título ocorreu posteriormente à data em que foi notificada da
oposição à renovação do contrato. Logo que esse título lhe foi atribuído, a
recorrida invocou-o perante os recorrentes.
Analisada a situação sob a
perspectiva dos recorrentes, admite-se que estes, em face de a recorrente se
ter conformado com a cessação do contrato quando foi notificada da oposição à
sua renovação e ter mantido essa mesma postura ao longo do processo negocial,
tenham confiado que, caso este último não tivesse sucesso, ela restituiria o
locado na data para o efeito fixada.
Contudo, o Direito não
confere protecção a toda e qualquer situação de confiança, sob pena de, em
contrapartida, limitar a liberdade de quem criou essa confiança em medida intolerável
à luz do princípio da liberdade de actuação dos sujeitos privados. Recordemos o
que acima defendemos, citando a lição de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO: se a
alteração de comportamento tiver uma justificação que torne compreensível a
mudança de atitude por parte do agente, a situação de confiança que este tiver
gerado não merecerá protecção por parte do Direito, o que se traduz na
ininvocabilidade do instituto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por parte
do sujeito que se sentir defraudado.
É o que se verifica nestes
autos. A alteração da atitude da recorrida relativamente à cessação do contrato
teve uma causa objectiva: a superveniente atribuição, à loja que funciona no
locado, do título de «Espaço com
História». Aquela alteração ocorreu logo que esse título foi atribuído e
por causa dessa atribuição. Deve, por isso, considerar-se justificada.
A atribuição, à loja que
funciona no locado, do título de «Espaço
com História», ocorreu na sequência de a recorrida a ele se ter
candidatado. Coloca-se, pois, a questão de saber se tal candidatura no decurso
das negociações com os recorrentes ou, ao menos, a ausência de prestação de
informação, a estes, da apresentação dessa candidatura, configura uma situação
de abuso de direito.
A resposta a esta questão é
negativa.
Não podemos perder de vista
que a protecção jurídica da confiança adquirida por determinada pessoa na
coerência do comportamento de outra tem sempre, como contrapartida, uma
limitação, também obviamente jurídica, da liberdade de actuação desta última.
Ora, em princípio, as pessoas só podem considerar-se vinculadas a determinadas
acções ou omissões por efeito da prática de actos que a lei reconheça como
fontes dessa vinculação, sejam eles voluntários (caso típico do contrato) ou
involuntários (como acontece na responsabilidade civil aquiliana). Fora desse
âmbito, inexiste, em princípio, fundamento jurídico para considerar que, por
praticar determinado acto, um sujeito fique, ipso facto, vinculado a não praticar, futuramente, qualquer outro
que com ele seja contraditório. Se a prática do primeiro acto tiver criado, em
terceiros, uma situação de confiança em que o agente não pratique, no futuro,
actos que com o primeiro se não harmonizem, tal confiança não será, em regra,
digna de tutela jurídica. Solução diversa determinaria uma violenta compressão
da liberdade individual, ampliando desmesuradamente o âmbito das fontes de
vinculação jurídica das pessoas.
A esta luz, consideramos não
haver fundamento para considerar que o facto de a recorrida ter manifestado,
perante os recorrentes, uma atitude de conformismo relativamente à oposição
destes à renovação do contrato, a impedisse de, sem violação de valores
relevantes para o Direito, como o da protecção da confiança, se candidatar à
atribuição, à loja que funciona no locado, do título de «Espaço com História». Dado o interesse que a recorrida sempre
demonstrou na manutenção da loja no locado – daí o início de negociações
tendentes à celebração de novo contrato –, ficou claro que aquele conformismo se
baseava na constatação da inexistência de fundamento para assumir atitude
diversa e não em falta de interesse naquela manutenção. Logo, nem sequer é
surpreendente que, paralelamente ao decurso das negociações com os recorrentes
e perante a ausência de resultado destas, a recorrida tenha procurado resolver
o problema que decorreria da desocupação do locado através de um meio legal
alternativo.
Também não há fundamento
para considerar que, por não ter informado os recorrentes, fosse na qualidade
de senhorios, fosse na de contraparte num processo negocial, do facto de se ter
candidatado à atribuição, à loja que funciona no locado, do título de «Espaço com História», a recorrida tenha
actuado com abuso de direito ao invocar a qualificação da loja como «Espaço com História» com a finalidade
de obstar à cessação do contrato de arrendamento. O procedimento de atribuição
daquele título, regulado no artigo 6.º da Lei n.º 42/2017, de 14.06, e no
Código do Procedimento Administrativo (cfr o artigo 8.º daquela lei), tem
natureza administrativa, decorrendo entre o requerente e a câmara municipal,
prevendo o n.º 3 do referido artigo 6.º um período de consulta pública de 20
dias. Nomeadamente, o dever de proceder segundo as regras da boa fé durante um
processo negocial, consagrado no n.º 1 do artigo 227.º do CC, não impõe um
dever de informar a contraparte de uma candidatura com a natureza daquela que a
recorrida efectuou. Repetimos, perante a situação em que a oposição à renovação
do contrato de arrendamento colocou a recorrida, tem de se reconhecer, a esta,
plena liberdade para, ao mesmo tempo que tentava resolver esse problema por via
da negociação de um novo contrato de arrendamento com os recorrentes, procurar
fazê-lo por meios alternativos, desde que legais, como era o caso da
candidatura à atribuição, à loja que funciona no locado, do título de «Espaço com História».
Concluindo este ponto,
inexiste fundamento para considerar que a recorrida actuou com abuso de direito
ao invocar a qualificação da loja existente no locado como «Espaço com História» com a finalidade de obstar à cessação do
contrato de arrendamento.
3 – Responsabilidade
civil dos recorrentes:
A alteração da redacção do
n.º 12 e a eliminação do n.º 13 do enunciado da matéria de facto provada tem
evidente repercussão em matéria de responsabilidade civil dos recorrentes.
Terá de manter-se a
condenação dos recorrentes a pagarem, à recorrida, uma indemnização pelo
prejuízo decorrente da quebra de vendas resultante da execução das obras.
Todavia, dada a falta de prova do montante exacto desse prejuízo, a condenação
terá de ser na quantia que for liquidada ulteriormente, nos termos do n.º 2 do artigo
609.º do CPC.
Por outro lado, deverá ser
revogada a condenação dos recorrentes a pagarem, à recorrida, a quantia de €
710 a título de indemnização pelos alegados danos causados pelas obras no
reclamo da loja.
*
Dispositivo:
Pelo exposto, julga-se o
recurso parcialmente procedente, determinando-se o seguinte:
- O n.º 12 do enunciado dos factos
provados passa a ter a seguinte redacção: «Em
virtude do referido em 11, nos períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com
acesso limitado, nos anos de 2018 e de 2019, a ré sofreu uma quebra de venda de
livros não escolares de montante não concretamente apurado.»
- Adita-se, ao enunciado dos factos não
provados, o seguinte: «d) O montante da
quebra de venda de livros não escolares referida no n.º 12 foi de cerca de €
56.558,63, a que corresponde uma margem de € 24.803.»
- O n.º 13 do enunciado da matéria de
facto provada é eliminado.
- Adita-se, ao enunciado dos factos não
provados, o seguinte: «e) Em virtude do
referido em 11, foram danificadas duas letras (em particular, o “R” e o “N”) do
reclamo existente na fachada da fracção autónoma designada pela letra “B”, do
imóvel identificado em 1.»
- Revoga-se a sentença recorrida na
parte em que condenou os recorrentes a pagarem, à recorrida, a quantia global
de € 25.513, a título de indemnização pela «quebra/margem
de vendas», no montante de € 24.803, e pela substituição do reclamo, no
montante de € 710, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos,
calculados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data de 22.06.2022, até efectivo
e integral pagamento.
- Condena-se os recorrentes a pagarem, à
recorrida, uma indemnização pela quebra das vendas de livros não escolares,
ocorrida nos períodos em que a loja esteve encerrada e/ou com acesso limitado,
nos anos de 2018 e de 2019, em consequência das obras descritas no n.º 11 do
enunciado da matéria de facto provada.
- Confirma-se, em tudo o mais, a
sentença recorrida.
Custas a cargo dos
recorrentes e da recorrida, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa
em 75% para os recorrentes e 25% para a recorrida.
Notifique.
*
Évora, 07.11.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.ª adjunta)