Processo n.º 3537/17.9T8STB.E1
*
Sumário:
1 – As declarações prestadas pela
criança na audição técnica especializada não podem ser valoradas como meio de prova
em sede de sentença proferida em processo tutelar cível.
2 – Em princípio, a separação dos
progenitores não deverá determinar a dos irmãos. Contudo, valores de ordem
diversa podem justificar desvios a tal regra, não fazendo, nomeadamente,
sentido que a qualquer dos irmãos seja imposta uma solução que não corresponda
ao seu superior interesse com a exclusiva finalidade de a guarda de todos eles
ser atribuída ao mesmo progenitor.
*
Relatório
Manuel
Vicente recorreu da sentença proferida no presente processo de regulação do
exercício das responsabilidades parentais relativas a Mariana Vicente e Hugo
Vicente, tendo formulado as seguintes conclusões:
1.
Deverá o ponto 2 da decisão da douta sentença recorrida ser revogado e em sua substituição
ser fixado que: o Hugo (e a Mariana) ficará(ão) a residir com o pai.
2. As
crianças Hugo e Mariana não deverão ser separadas, por tal não ser consentâneo
com o seu superior interesse.
3. Não
existe, nem foi apontada em sede de sentença, nenhuma razão ou necessidade que
justifique a decisão de separação dos irmãos.
4. O
pai tem melhores condições para assumir no dia a dia, as responsabilidades parentais
atinentes ao afecto, protecção, estabilidade emocional, bem-estar, alojamento,
sustento, disponibilidade de tempo, autoridade/estratégias de correcção e educação
dos filhos e, ainda, é com o pai que a Mariana deseja viver.
5.
Deverá ser alterada a matéria de facto no que concerne ao facto não provado “que a mãe agrida fisicamente os filhos de
forma repetida sempre que os tem consigo e que o tenha feito, em particular,
quando passou a ficar com eles aos domingos, após fixação do regime provisório
previsto em 14 dos factos provados” para: “A mãe agrediu gritou com os filhos, bateu-lhes e pressionou a filha Mariana
a não contar nada do que se passava, de forma repetida quando os tinha consigo
e fê-lo, mesmo quando passou a ficar com eles aos domingos, após fixação do
regime provisório previsto em 14 dos factos provados”.
6.
Para o efeito deverá ser devidamente ponderada e sopesada a seguinte prova: (1)
audição da Mariana em sede de audição técnica especializada e conclusão o respectivo
relatório, (2) audições da Mariana em Tribunal, (3) depoimento da professora da
Mariana, a testemunha SM, (4) episódio de urgência hospitalar de dia 10 de
julho de 2018 e (5) relatório psicológico, elaborado pela psicóloga que
acompanha a Mariana.
7. A
prova documental que serviu de base aos factos provados n.ºs 27 e 28 não deverá
ser considerada prova bastante das competências parentais da mãe ou do seu
estado de saúde psicológico.
8.
Ainda que, quando foi ouvida pela última vez, a Mariana se tenha expressado relativamente
à mãe de um modo que denotava que a mãe se encontrava desautorizada perante a
criança, o que terá levado o tribunal a acreditar que a Mariana empolou os seus
relatos, porque queria viver com o pai, a criança explicou que a razão da sua “zanga” se prendia com o facto de a mãe
saber o que fez, saber que a Mariana sabia e ainda assim chamá-la de mentirosa
(segundo as suas palavras).
9. De
todo o modo, esse facto não deveria ser suficiente para descredibilizar as queixas
da Mariana, pois, as suas declarações anteriores e as provas já carreadas para
os autos, ao longo de todo o processo, corroboravam a veracidade das ditas
queixas.
10. Na
sequência da fixação da residência das crianças junto do pai deverá ser fixado
um regime de convívios com a mãe e uma pensão de alimentos a pagar às crianças
de acordo com o prudente arbítrio do tribunal.
A
recorrida, Maria Barros, contra-alegou, tendo formulado as seguintes
conclusões:
1 – A
teoria do recorrente de que a mãe das crianças está desequilibrada do ponto de
vista psicológico e que é uma mãe que maltrata os filhos, agredindo-os física e
verbalmente, não teve qualquer suporte na prova produzida.
2 – Da
prova produzida e correctamente avaliada resultou que ambos os progenitores têm
competências para a prestação de cuidados aos filhos e se preocupam com a sua
saúde, educação e desenvolvimento global.
3 –
Perante o quadro factual e diferença de idades entre as crianças, a douta
sentença recorrida estabeleceu a residência da Mariana com o pai e a residência
do Hugo com a mãe por forma a respeitar a individualidade de cada um dos irmãos
e, por conseguinte, garantir os seus diferentes interesses e necessidades.
4 – A
douta sentença acautelou a possibilidade de um convívio regular e próximo entre
os irmãos ao estabelecer que estão e estarão juntos todos os fins-de-semana,
além ter definido um regime de férias que lhes permite estarem sempre juntos
nas férias de Natal, Carnaval, Páscoa e Verão.
5 –
Face ao exposto, deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência,
manter-se a douta sentença recorrida por acautelar o superior interesse da Mariana
e do Hugo.
O
Ministério Público também contra-alegou, tendo formulado as seguintes
conclusões:
1 – A
melhor solução que salvaguarda os interesses da criança, é, designadamente após
o divórcio dos progenitores, manter os irmãos juntos. Acontece que, como toda a
regra, esta comporta excepções, pois haverá casos em que essa separação se
impõe, como foi o caso em apreço.
2 – O Hugo
tem apenas 4 anos de idade e é muito ligado à mãe. Não havendo nada em desabono
desta, e tendo condições para assegurar todos os cuidados que a criança
necessita, tanto basta para concluir que o interesse do Hugo impõe que seja
fixada a sua residência junto da mãe.
3 – A Mariana,
ao longo de todo o processo, mostrou um desejo muito forte de viver com o pai,
de quem é muito próxima. Nesse seu desejo, estamos em crer que supervalorizou
algum aspecto mais negativo da progenitora, como seja alguma falta de paciência
e irritação, que poderiam ter ocorrido, numa fase em que aquela estaria mais
fragilizada, após a ruptura do casamento.
4 – A Mariana,
na sua determinação em ficar a viver com o pai, não perdeu uma oportunidade
para descrever a progenitora de forma negativa, pelo que seria desaconselhável
impor-lhe um regime que ela de todo não aceita.
5 –
Ter fixado a residência da Mariana junto da mãe, para evitar a indesejável
separação dos irmãos, seria contribuir para agudizar o clima de tensão
existente, quando o que se pretende é pacificar esta família.
6 –
Por outro lado, fixar a residência do Hugo junto do pai, para manter os irmãos
juntos, seria privilegiar a relação entre irmãos, em detrimento da relação que
existe entre mãe e filho, sendo esta, como todos sabemos, nos primeiros anos, a
mais importante da vida de todo o indivíduo.
O
recurso foi admitido.
Objecto
do recurso
As questões a resolver são as seguintes:
1 – Impugnação da decisão sobre a
matéria de facto;
2 – Guarda do Hugo.
Factualidade
apurada
Na sentença recorrida, foram julgados provados
os seguintes factos:
1) Mariana Vicente nasceu a 2 de Julho
de 2008 e Hugo Vicente nasceu a 23 de Janeiro de 2014, sendo ambos filhos de Maria
Barros (requerente) e de Manuel Vicente (requerido).
2) Requerente e requerido encontram-se
separados desde meados de 2016.
3) Após a separação do casal, as
crianças ficaram a viver com a mãe na casa que foi a de morada de família, em
Palmela.
4) Por essa altura e já antes, desde 1
de julho de 2012, o pai trabalhava em Sines, onde permanecia enquanto estava a
trabalhar, deslocando-se e permanecendo em casa com os filhos e com a requerente
quando estava de folga.
5) O tempo de trabalho do pai era
organizado da seguinte forma: trabalhava 7 dias, folgava 3, trabalhava 14 dias,
folgava 10 dias e nos 7 seguintes apenas teria que se deslocar ao local de trabalho
apenas em caso de emergência.
6) Após a separação do casal, em fins de
semana e períodos de férias, por vezes, o pai levava os filhos consigo para
Sines.
7) A mãe trabalhava e ainda trabalha
numa loja em Setúbal, por turnos rotativos das 9 às 19.30 horas, folgando aos
domingos e noutro dia da semana, rotativo, contando com o apoio da sua mãe para
assegurar as rotinas dos filhos, sempre que o seu horário de trabalho não
permitia fazê-lo.
8) Em 2017, as crianças e a mãe passaram
a viver em casa da avó materna, em Setúbal, onde também viviam o esposo desta e
a sua mãe.
9) Por despacho proferido a 23 de Outubro
de 2017, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais quanto à Mariana
e ao Hugo, em termos provisórios, nos seguintes termos:
“1.
As crianças residirão por períodos alternados com cada um dos pais, ficando com
o pai nos períodos de folga deste, de 3 e 10 dias seguidos.
2.
Para além disso, o pai poderá estar com os filhos sempre que o desejar,
mediante acordo prévio com a mãe, podendo, designadamente, ir buscá-los à
escola e jantar com eles, sempre que para tal tenha disponibilidade e a mãe não
possa fazê-lo, por causa dos seus horários de trabalho.
3.
As responsabilidades parentais, quanto às questões de particular importância
para a vida das crianças, serão exercidas por ambos os pais.
4.
Cada um dos pais assegurará as despesas correntes dos filhos nos períodos em
que os têm aos seus cuidados e o pai suportará as despesas com a alimentação
escolar dos mesmos.
5.
Os pais suportarão, em partes iguais, as despesas com a educação e saúde dos
filhos; para tal, o progenitor que suportar tais despesas entregará ao outro
cópia dos respetivos comprovativos até ao último dia do mês em que tal suceda e
o outro entregar-lhe-á a sua comparticipação até ao final do mês seguinte.”
10) Após ter sido fixado tal regime, a Mariana
começou a queixar-se que a mãe lhe batia e ofendia verbalmente, chamando-lhe,
por exemplo, “porca” e “estúpida”.
11) Perante tais relatos da filha, o pai
recusou-se a entregar os filhos à mãe e, a partir de 26 de Novembro de 2017, os
mesmos passaram a ficar em casa dos avós paternos, em Azeitão, para onde o pai
se deslocava quando estava de folga.
12) As crianças mantiveram, ainda assim,
o contacto com a mãe, que ia visitá-las a casa dos avós paternos, com o
consentimento destes, normalmente acompanhada pela avó materna ou por outro
familiar.
13) As crianças manifestavam alegria
pelo convívio com a mãe.
14) Por despacho proferido a 9 de Março
de 2018, foi alterado o regime de exercício das responsabilidades parentais,
ainda em termos provisórios, nos seguintes termos:
“1.
A Mariana e o Hugo residirão com o pai e com a avó paterna na residência desta
ou só com a avó, quando, por razões de trabalho, o pai aí não possa permanecer.
2.
As responsabilidades parentais, quanto às questões de particular importância
para a vida das crianças, serão exercidas por ambos os pais.
3.
A mãe poderá visitar os filhos sempre que o desejar, mediante aviso prévio e a
concordância da avó paterna.
4.
Aos domingos, seu dia de folga, a mãe irá buscar os filhos a casa da avó
paterna pelas 10 horas e irá entregá-los no mesmo local após o jantar mas, o
mais tardar, às 21 horas.
5.
Um dia por semana (a combinar com a avó paterna), a mãe irá buscar os filhos à
escola, jantará com eles e irá entregá-los a casa da avó, o mais tardar, às 21
horas.
6.
Nas férias escolares da Páscoa, a mãe passará com os filhos os seus dias de
folga, mediante aviso prévio à avó, nos mesmos horários previstos para os
domingos e, por ora, sem pernoita.
7.
No domingo de Páscoa, as crianças almoçarão com um dos pais e jantarão com o
outro.
8.
A mãe pagará uma pensão de alimentos a favor de cada um dos filhos no valor de
€ 75 mensais, que depositará na conta bancária que a avó paterna lhe indicar,
até ao último dia de cada mês.”
15) A partir da fixação deste regime, as
crianças começaram a passar os domingos com a mãe.
16) No dia 13 de Julho de 2018, o pai
levou a Mariana aos Serviços de Urgência do Hospital de Setúbal, apresentando a
criança equimose no braço esquerdo e referindo que tal foi provocado por “apertão por parte da mãe”.
17) A sós com a médica que a observou, a
Mariana disse que a mãe a trata mal, que grita com ela, chama-a de mentirosa,
porca, estúpida…e lhe inflige agressões físicas (puxões de orelhas, partiu
colher de pau no rabo, estalos/chapadas na cabeça…).
18) No dia 15 de Julho, domingo, a mãe
deslocou-se à residência dos avós paternos para ir buscar os filhos mas os
mesmos ou não se encontravam naquele local ou não lhe foram entregues por
aqueles, situação de que se repetiu nos domingos seguintes.
19) Desde então, as crianças não
voltaram a passar nenhum dia com a mãe.
20) A 4 de Dezembro de 2017 a requerente
celebrou contrato promessa para aquisição de um apartamento em Setúbal,
assumindo a obrigação do pagamento de € 250 mensais a partir dessa data.
21) A requerente vive nessa casa, a qual
é composta por uma sala, um quarto, uma cozinha e uma casa de banho.
22) O quarto encontra-se mobilado com
duas camas.
23) A requerente trabalha numa loja em
Setúbal, para a empresa (...), com turnos rotativos das 9 às 19,30 horas, de
segunda-feira a sábado, com folga ao domingo e outra folga de segunda a sábado,
de forma rotativa.
24) Aufere um vencimento base de € 650
mensais e, líquido, de cerca de € 750.
25) Quando a mãe tinha os filhos consigo
e, por causa do seu horário de trabalho, não podia ir levá-los ou buscá-los à
escola ou ao infantário, contava com o apoio da sua mãe.
26) A avó materna vive em Setúbal, é
empregada doméstica e os seus horários de trabalho são flexíveis, o que lhe
permite cuidar dos netos quando a mãe, por razões profissionais ou pessoais,
não possa fazê-lo.
27) Por declaração emitida a 17 de Janeiro
de 2018, a médica AR atestou que a mãe “sempre
apresentou sinais de robustez psíquica e comportamento adequado às
circunstâncias”, desde que a observa em consulta da própria e quando
acompanha os filhos nas consultas de vigilância de saúde infantil.
28) Em relatório datado de 27 de abril
de 2018, a Sra. Psicóloga escreveu, em conclusão: “(…) segundo a avaliação psicológica apresenta competências educativas
para estar com os seus filhos, comprometendo-se claramente com o saudável
cuidar e educar, quer do ponto de vista afectivo, emocional ou prático
(higiene, alimentação), tendo por base valores reais e conscientes, com uma
estrutura de personalidade e pensamento coerente e capaz.”
29) O requerido vive em Sines, com uma
companheira.
30) Trabalha na mesma cidade, como
(...), para a (...), auferindo um vencimento base de € 1.254,40 e, líquido, de cerca de 1.800
mensais.
31) O horário de trabalho do requerido é
rotativo, das 8 às 20 e das 20 às 8 horas e a alternância dos dias de trabalho
e de folga mantém-se, conforme descrito em 5).
32) Para além de outras, o requerido
suporta as seguintes despesas mensais: € 289,91 de crédito contraído para
aquisição de habitação, acrescido de crédito individual de € 178,91, perante o Banco 1; € 16,67 de IMI; € 18,55 de seguros; cerca de € 50 de electricidade;
cerca de € 15 de água; € 35 de serviços de telecomunicações; € 155,59 de
prestação automóvel; € 4,17 de IUC; € 138,14 de crédito no Banco 2; € 143 de
crédito Universo; € 60 de crédito do Banco 3.
33) Os avós paternos das crianças vivem
em Azeitão e mostram-se disponíveis para cuidar dos netos sempre que
necessário.
34) No ano letivo 2017/2018, a Mariana
frequentou o 4.º ano de escolaridade na Escola Básica de (...),
em Setúbal.
35) O Hugo frequentou o infantário (...), na mesma cidade, desde o
segundo período do ano letivo 2016/2017.
36) Segundo a Educadora do Hugo, a
criança apresentava-se, em geral, em boas condições de higiene, vestuário e
alimentação no infantário e os pais eram ambos interessados pelo dia a dia do
filho, mantendo uma relação de confiança com a instituição.
37) A 10 de Novembro de 2017, o pai do Hugo
informou a referida educadora que a criança deveria deixar de ser entregue à
mãe, por existirem suspeitas de maus tratos por parte desta, o que a deixou
surpreendida, por nunca de tal se ter apercebido.
38) A partir dessa data, porém, foram
notadas alterações no comportamento do Hugo, que voltou a procurar a chupeta,
tinha dificuldade em dormir a sesta e começou a fazer xixi e cocó nas cuecas
mas, passadas duas ou três semanas, o seu comportamento normalizou.
39) A Mariana passou a ser acompanhada
em consultas de psicologia a partir de 17 de Abril de 2018.
40) Em relatório elaborado em setembro
de 2018, a Dra. MO, psicóloga que a acompanha, escreveu, além do mais: “… a sua relação com a figura materna parece
revelar uma ambivalência de tendências: por um lado a procura da sua proteção e
aceitação e por outro um evitamento do contacto com a mãe devido a alguns
receios que foi relatando ao longo das consultas, como por exemplo: “não me
conseguir portar sempre bem e a mãe zangar-se connosco” ou “a mãe saber que eu
contei o que se passou em casa quando estou com ela e zangar-se”. A Mariana
refere gostar muito da mãe, contudo achar que a mesma desde que não vive com o
pai “está diferente e não tem paciência para nós”. A Mariana refere ainda que a
mãe já a agrediu verbalmente (“a mãe chamou-me porca e estúpida”) e também
fisicamente (“chapadas, puxões de orelha ”). (…) Relativamente à figura
paterna, a Mariana refere sentir-se “segura e feliz” com o pai, relatando com
satisfação os momentos entre eles partilhados. A Mariana descreve-o como sendo
“bondoso e sociável”, parecendo existir uma relação afetuosa entre ambos.
Desenhou o pai com uma expressão feliz, não parecendo evidenciar preocupações
quanto ao convívio com o mesmo.”
41) A Mariana verbaliza que deseja viver
com o pai, em Sines, e passar três fins de semana por mês com a mãe e um com a
avó paterna.
A sentença recorrida julgou não provados
os seguintes factos:
- Que a mãe agrida fisicamente os filhos
de forma repetida sempre que os tem consigo e que o tenha feito, em particular,
quando passou a ficar com eles aos domingos, após fixação do regime provisório
previsto em 14) dos factos provados.
- Que o pai não prestasse cuidados aos
filhos, antes da separação do casal.
- Que o pai não cuide da higiene e
alimentação dos filhos, quando os tem consigo, limitando-se a brincar com eles
e entregando-os aos cuidados de terceiros.
Fundamentação
1 - Impugnação da decisão sobre a
matéria de facto:
A fundamentação da pretensão de
alteração da decisão sobre a matéria de facto suscita dois tipos de problemas:
a admissibilidade de valoração de alguns dos meios de prova invocados pelo
recorrente em sede de sentença e o cumprimento dos ónus previstos do artigo
640.º do CPC.
O recorrente invoca, como meio de prova,
declarações prestadas pela menor Mariana em sede de audição técnica
especializada. Porém, tais declarações não podem ser valoradas como meio de
prova em sede de sentença. É o que resulta do n.º 6 do artigo 5.º do Regime
Geral do Processo Tutelar Cível, que apenas permite que as declarações
prestadas pela criança em fase processual anterior possam ser consideradas como
meio de prova em sede de sentença se forem prestadas perante o tribunal.
Logicamente, também não são valoráveis como meio de prova as conclusões das
técnicas que efectuaram a audição técnica especializada acerca das declarações
da Mariana.
O recorrente também invoca aquilo que a Mariana
terá dito à psicóloga que a acompanha e a uma médica num episódio de urgência
hospitalar. Também aqui, estamos perante declarações que não podem ser valoradas
como meio de prova, pois não foram prestadas perante o tribunal.
Relativamente aos restantes meios de
prova invocados pelo recorrente, suscita-se a questão do cumprimento dos ónus
previstos do artigo 640.º do CPC.
O n.º 1 deste artigo estabelece que, quando
seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve
obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de
facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios
probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada,
que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da
recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as
questões de facto impugnadas. A al. a) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece que,
no caso previsto na al. b) do n.º 1, quando os meios probatórios invocados como
fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao
recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar
com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem
prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
O recorrente afirma que a prova
documental que serviu de base aos factos provados n.º 27 e 28 não deverá ser
considerada prova bastante das competências parentais da mãe ou do seu estado
de saúde psicológico. Porém, não especifica qual é a decisão que, no seu
entendimento, deve ser proferida sobre as referidas questões de facto, nem
justifica porquê, com indicação dos meios de prova que considera imporem tal
decisão diversa. Incumpriu, pois, os ónus previstos nas alíneas b) e c) do n.º
1 do artigo 640.º.
No mais, o recorrente cumpriu os ónus
previstos nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º, pois indicou o ponto da
matéria de facto que considera ter sido incorrectamente julgado e o sentido em
que, no seu entendimento, deve ser proferida decisão sobre o mesmo. Concretamente,
o recorrente pretende que, em vez de se julgar não provado “que a mãe agrida fisicamente os filhos de forma repetida sempre que os
tem consigo e que o tenha feito, em particular, quando passou a ficar com eles
aos domingos, após fixação do regime provisório previsto em 14 dos factos
provados”, se julgue provado que “A
mãe agrediu gritou com os filhos, bateu-lhes e pressionou a filha Mariana a não
contar nada do que se passava, de forma repetida quando os tinha consigo e
fê-lo, mesmo quando passou a ficar com eles aos domingos, após fixação do
regime provisório previsto em 14 dos factos provados”. Porém, quanto a esta
matéria, o recorrente não cumpriu o ónus previsto na al. b) do n.º 1, com o
conteúdo descrito na al. a) do n.º 2. O recorrente invoca declarações prestadas
pela Mariana perante o tribunal, mas não indica as passagens da gravação em que
funda o recurso, nem transcreve os excertos que considera relevantes. Invoca também
os depoimentos prestados pelas testemunhas MD (depoimento este particularmente
longo, pois teve a duração de 1 hora, 41 minutos e 37 segundos, de acordo com a
acta respectiva) e SM na audiência de julgamento, mas, novamente, não indica as
passagens da gravação em que funda o recurso, nem transcreve os excertos que
considera relevantes. Em relação a todos estes meios de prova, o recorrente
incumpriu, pois, o ónus acima referido.
Flui do exposto que a decisão sobre a matéria de facto deverá manter-se inalterada.
2 - Guarda do Hugo:
O recorrente insurge-se contra a
sentença recorrida na parte em que esta decidiu atribuir a guarda do Hugo à
recorrida. Considera o recorrente que tal guarda devia ter-lhe sido atribuída, à
semelhança do que aconteceu com a da Mariana. A argumentação por si expendida
para tentar demonstrar o bem-fundado da sua pretensão resume-se assim: salvo
razões ponderosas que imponham solução diversa, os irmãos não devem ser
separados; uma vez que tais razões não se verificam no caso sub judice, a guarda do Hugo e da Mariana
deverá ser atribuída ao mesmo progenitor; considerando os problemas existentes
entre a Mariana e a recorrida, a vontade por esta manifestada e as condições de
vida de cada progenitor, ambas as crianças devem ficar a residir consigo.
Tal como o recorrente sustenta, a
separação dos progenitores não deverá, em princípio, determinar a dos irmãos. A
sentença recorrida também reconhece a importância de os irmãos ficarem a viver
juntos. Contudo, valores de ordem diversa podem justificar desvios a tal regra.
Como acertadamente se observa na sentença recorrida, cada criança tem direito à
sua própria individualidade, não fazendo sentido que a qualquer delas seja
imposta uma solução que não corresponda ao seu superior interesse com a
exclusiva finalidade de a guarda de todos os irmãos ser atribuída ao mesmo
progenitor. Por outras palavras, não deverá o interesse de um dos irmãos ser
sacrificado ao interesse do outro com o pretexto de se manterem a viver juntos.
Se houver razões que a justifiquem, deve ser decidida a separação dos irmãos,
cujos eventuais efeitos negativos poderão ser atenuados por um regime de
convívios que garanta que passem juntos o maior tempo possível.
No caso sub judice, a guarda da Mariana foi atribuída ao recorrente e,
nessa parte, a sentença recorrida não foi posta em causa. Por aquilo que
acabámos de afirmar, dessa circunstância não decorre, forçosamente, que a
guarda do Hugo também tenha de ser atribuída ao recorrente. O interesse em
manter estas duas crianças a viver juntas constitui um factor a ter em
consideração na definição da situação do Hugo, mas não mais que isso.
Considerou-se, na sentença recorrida,
que o Hugo deve continuar a viver com a recorrida porquanto, à data da sua
prolação, tinha apenas quatro anos de idade e, por outro lado, quando deixou de
viver com a recorrida para passar a viver com os avós paternos e o recorrente,
apresentou alterações relevantes no seu comportamento e regrediu nas suas
aquisições e competências. Ponderou-se ainda que, não obstante esta última
situação ter sido ultrapassada, constituiu um sintoma de sofrimento emocional
por parte da criança.
Esta tomada de posição por parte do
tribunal a quo não merece crítica. O Hugo
nasceu em Janeiro de 2014. Até à separação do casal, em meados de 2016, o Hugo
estava a tempo inteiro com a recorrida; com o recorrente, estava apenas quando
este, que trabalhava e permanecia em Sines, vinha a casa nos seus dias de
folga. Após a separação do casal, o Hugo continuou a viver com a recorrida; em
fins de semana e períodos de férias, por vezes, o recorrente levava-o,
juntamente com a irmã, consigo para Sines. No dia 10 de Novembro de 2017, o
recorrente comunicou à educadora do Hugo que este deveria deixar de ser
entregue à recorrida, por ter suspeitas (não confirmadas) de maus tratos por
parte desta. O recorrente recusou-se a entregar o Hugo e a irmã à recorrida e,
a partir do dia 26 do mesmo mês, estes últimos passaram a ficar em casa dos
avós paternos, em Azeitão, para onde o recorrente se deslocava quando estava de
folga. A partir de então, verificou-se uma regressão no comportamento do Hugo,
o qual, não obstante estar a dois meses de completar quatro anos de idade,
voltou a procurar a chupeta, passou a ter dificuldade em dormir a sesta e
começou a fazer as suas necessidades nas cuecas, situação que se prolongou
durante duas ou três semanas.
Resulta destes factos que, desde o seu
nascimento, o Hugo tem uma ligação mais forte à recorrida que ao recorrente.
Antes da separação do casal, o Hugo vivia a tempo inteiro apenas com a
recorrida e a irmã, pois o recorrente trabalhava e pernoitava noutra localidade
durante a maior parte do tempo. Assim continuou a ser após a separação, até
que, em Novembro de 2017, o recorrente, unilateralmente, retirou o Hugo e a
irmã à recorrida e colocou-os em casa dos avós paternos, onde se deslocava
quando estava de folga. Os efeitos negativos dessa retirada no comportamento do
Hugo durante as duas ou três semanas subsequentes não podem ser menosprezados,
pois foram bem reveladores da sua muito forte ligação à recorrida e da grande perturbação
que aquela retirada lhe provocou. Em suma, o Hugo é uma criança ainda muito
nova, com uma ligação especialmente forte à recorrida. Seria, por isso,
contrário ao seu superior interesse retirá-lo à recorrida para atribuir a sua
guarda ao recorrente. A solução de atribuir a guarda do Hugo à recorrida tem o
inegável custo de separar os irmãos. Contudo, esse custo é, por um lado,
mitigado pelo amplo regime de convívios fixado na sentença recorrida e, por
outro, largamente compensado pela evidente vantagem de se manter o Hugo à
guarda do progenitor com quem tem mais forte ligação e de quem mais necessita
nesta fase da sua vida.
Concluindo, a sentença recorrida não
merece crítica, antes devendo ser confirmada, com a consequente improcedência
do recurso.
*
Decisão:
Acordam os juízes da
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso
improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas
pelo recorrente.
Notifique.
*
Évora, 28 de Fevereiro de 2019
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta