terça-feira, 30 de abril de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Apreciação crítica da prova.

Regras da experiência comum.

Desconhecimento da língua portuguesa por contraente estrangeiro.

*

Processo n.º 335/20.6T8ODM.E1

Autor/recorrido:

RRR.

Réu/recorrente:

DDD.

Pedidos:

a) Reconhecimento da existência e da validade do contrato-promessa de compra e venda;

b) Reconhecimento da recusa do réu em realizar o contrato prometido;

c) Reconhecimento da ilegitimidade da conduta do réu em fazer seu o montante que lhe foi entregue e recebeu a título de sinal e princípio de pagamento, ou seja, € 12.000;

d) Condenação do réu no pagamento, ao autor, do valor que recebeu a tais títulos (sinal e princípio de pagamento), em dobro, ou seja, na quantia de € 24.000.

Sentença recorrida:

Julgou a acção procedente, por provada, e, em consequência:

a) Declarou não verificada a nulidade do contrato-promessa de compra e venda;

b) Reconheceu a existência e a validade do contrato-promessa de compra e venda;

c) Reconheceu a recusa do réu em realizar o contrato prometido;

d) Condenou o réu a pagar, ao autor, o valor de € 24.000, a título de restituição em dobro do sinal que por este lhe foi entregue.

Conclusões do recurso:

a) Verifica-se errada apreciação sobre a matéria de facto, e errada aplicação do Direito, nos moldes que passará a descrever.

b) O recorrente identificou, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640.º n.º 1, alíneas, a), b) e c), do CPC, os concretos pontos que considera incorrectamente julgados, e que impugna.

c) O tribunal a quo não realizou uma apreciação rigorosa, quer dos depoimentos prestados em audiência e julgamento, quer dos documentos juntos aos autos, plasmando na sua sentença uma errada critica, que fez da prova.

d) Traduzindo-se numa errada apreciação, quer de facto, quer de direito.

e) Para tanto, passará a indicar os pontos da matéria de facto, cuja apreciação, pretende ver alterada, por discordar da análise critica da prova, com relevo para a boa decisão da causa.

f) O tribunal a quo, não conjugou, uns depoimentos com outros, não identificando contraditoriedades colossais!

g) O tribunal a quo, assente nas regras da lógica e da experiência comum, formar a convicção que formou, nem analisar criticamente a prova, como analisou!

h) Nos termos e para o efeitos decorrentes do artigo 640º nº 1, alínea a), b) e c), e nº 2, alínea a) e b), cumpre apreciar.

i) Para tanto, foram transcritos os depoimentos das testemunhas, Paulo Varela, Francisca Gomes, João Luís, e Alberto Vicente, e identificadas as passagens da gravação em que se funda o recurso.

j) Reapreciada a prova produzida pelas identificadas testemunhas, e transcritos os depoimentos, verifica-se erro na apreciação da matéria de facto.

k) Pelo que os pontos 5 ao 7, e do 13 ao 14, identificados na douta sentença como matéria assente como provada, não podem ser considerados como provados, em virtude de resultar o oposto, das transcrições supra identificadas, tendo sido erradamente apreciada a prova testemunhal, ao invés terão de ser dados como não provados!

l) De igual modo, os factos descritos como não provados, na douta sentença recorrida, de a) a c), e e), por força da prova produzida, ao invés, terão de ser dados como provados!

m) Errou na apreciação da prova produzida, em vários aspectos, conforme supra se explana.

n) O tribunal a quo, falhou e errou de forma colossal, ao ter considerado que o réu, recorrente, dominava a língua portuguesa.

o) O réu, ora recorrente, não dominava, nem domina, a língua portuguesa, não podendo, nem tendo, entendido, os contratos que assinou, mormente, o contrato promessa de compra e venda!

p) As testemunhas foram absolutamente induzidas e manipuladas em respostas.

q) Sucede porém que no contra-interrogatório, e através da audição da gravação da prova produzida, verifica-se com relativa facilidade, que foram parciais, e tendenciosas, porém entraram em contradições intensas, sendo clarividente que tudo procuraram fazer, para assegurar a procedência acção.

r) As testemunhas criaram um cenário, sucede, que ouvidas em gravação, detecta-se contradições severas, razão pelo qual os depoimentos não podem ter o acolhimento que tiveram pelo tribunal a quo.

s) O tribunal a quo, por forma a alicerçar do desígnio que tinha traçado, descredibiliza apenas uma testemunha, o Alberto Vicente, que conhece o réu e recorrente, desde há anos, e assegura, que o réu, nada percebe de português;

t) O depoimento de Alberto Vicente, e das demais testemunhas, ouvidas as gravações, e as severas contradições, dúvidas não restam quanto ao facto do réu, ora recorrente: 1. não dominar a língua portuguesa, nem falada, nem escrita, 2. não ter sido ele a elaborar contrato promessa de compra e venda, 3. estar desacompanhado de advogado, 4. ter tido diante dele advogado do autor, 5. ter assinado contrato promessa de compra e venda redigido, pelo advogado do autor, 6. não ter sido tampouco lido o contrato de promessa de compra e venda , 7. nem o termo de autenticação foi lido, no dia das assinaturas pelo advogado do autor, João Luís, ouvido como testemunha 8. Não ter compreendido os termos dos documentos que assinou, 9. Porquanto não entendia a língua portuguesa, não tendo entendido os termos do negócio!

u) O depoimento da testemunha, Alberto Vicente, foi isento, firme e seguro, ao contrário do que o tribunal a quo, considerou: que não merecia acolhimento. fê-lo, por forma a não deixar pontas soltas à fundamentação fáctica e de direito, de raiz errada, mas que defendeu!

v) Ora os vícios da fundamentação, de uma sentença poderão inquinar a decisão de facto,

w) Significando que nestas situações, as partes, designadamente em sede de recurso, devem alegar o motivo, que as leva a entender estarem perante matéria fáctica, rogando, para tanto, a deficiência.

x) A douta sentença recorrida, peca por obscuridade: dever da resposta aos quesitos, apreciados individualmente ou em articulação com as demais respostas, dever ser clara e perceptível, sem que reste qualquer dúvida sobre a posição do tribunal.

y) As respostas isoladas, ou conjugadas com as demais, e com a matéria assente, deve, forçosamente, ser harmonizáveis, coerentes, concordantes, de interpretação única e clara, por forma, a que na fase da aplicação do direito, não sejam suscitadas dúvidas sobre o sentido das respostas, garantindo que não subsistirão dificuldades que impeçam uma correcta interpretação jurídica.

z) Tal não sucedeu, atente-se às transições supra realizadas,

aa) A douta sentença recorrida peca, ainda pela contradição, vício, que ocorre, através de duas ou mais partes da resposta, ou duas ou mais respostas conjugadas entre si, incompatíveis, no sentido de que a verificação de uma determinada realidade de facto exclui a outra.

bb) A decisão não foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração e, portanto, de forma imparcial;

cc) Não fez o tribunal a quo, sobre todas as provas produzidas, uma prudente apreciação!

dd) O tribunal a quo, cometeu uma errada ponderação.

ee) Não respeitou critérios objectivos e controláveis de valoração, não resultando em apreciação imparcial.

ff) Pelo exposto considera a recorrente, que a decisão da matéria de facto, não se encontra adequadamente fundamentada!

gg) O tribunal a quo, com a aplicação que fez do direito, violou as normas decorrentes dos artigos 224º, 247º, 251º, 2 do artigo 410º, e nº 2 do artigo 442º, todos do Código Civil, e artigos 70º nº 1 alínea b), 150º, e 151º nº 1 alínea a), do Código de Notariado,

hh) O réu, agiu em erro, atento facto de ter assinado contrato promessa de compra e venda, cujo conteúdo não lhe foi explicado, nem conhecidas as necessárias implicações;

ii) Sucede que no caso sub judice, e em conformidade com o estipulado no artigo 224º do CC, a vontade do declarante, não pode ser considerada manifestada, devendo antes ser considerada, de ineficaz;

jj) A declaração negocial, deverá ser pelas supra expostas razões, considerada nula, conforme resulta do artigo 220º, e nº 2 do artigo 410º do, ambos do CC,

kk) Em bom rigor, não estamos na presença de uma declaração de vontades, e por essa banda, não vincula o réu,

ll) Ora estamos diante de falta de consciência da declaração,

mm) Inexistiu vontade de declaração negocial, por parte do réu,

nn) O réu não teve consciência, do que assinou, por desconhecer o conteúdo, do contrato promessa de compra e venda, e do termo de autenticação,

oo) Não tomou o réu, conhecimento, da vinculação pretendida através do clausulado do contrato promessa,

pp) É por demais evidente, que para existir declaração negocial, importa em abstracto, que a pessoa, em concreto o réu, queira celebrar aquele negócio jurídico e não outro, e tenha consciência de que está a celebrar aquele negócio e não outro.

qq) Pelo que tem o recorrido, o dever de restituir ao autor ora recorrido, o sinal em singelo,

rr) A invocada excepção de nulidade do negócio jurídico, deve ser julgada procedência;

ss) O contrato promessa de compra e venda deve ser considerado inválido,

tt) Desta feita, considera-se que o réu não incumpriu com a obrigação, nos termos e para os efeitos decorrentes do disposto no nº 2 do artigo 442º do CC.

uu) A sentença impugnada, deveria ter considerado, reunidos, os pressupostos impostos pelo artigo 247.º do Código Civil, e concluir-se pela anulabilidade do negócio.

Questões a decidir:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Excepção peremptória de nulidade do contrato-promessa.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1) O prédio urbano sito na freguesia de (…), concelho de (…), inscrito na matriz urbana da referida freguesia, sob o art.º (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de (…), sob a ficha n.º (…), encontra-se registado a favor do réu.

2) O réu celebrou com a imobiliária Sociedade 1, Lda. um acordo para que esta, no âmbito da sua actividade, diligenciasse pela venda do imóvel descrito em 1).

3) A empresa de mediação imobiliária representou o réu em toda a fase da negociação para venda.

4) No acordo descrito em 2), datado de 16/11/2018, que as partes denominaram “contrato de mediação imobiliária”, pode ler-se na cláusula segunda:

“A mediadora obriga-se, em nome do segundo contratante, a procurar destinatário para a realização do negócio jurídico de compra e venda pelo valor de 250.000 Euros (Duzentos e cinquenta mil euros)…”

5) Posteriormente à celebração do denominado “contrato de mediação imobiliária” descrito em 2) e em 4), o autor propôs e aceitou a aquisição do imóvel descrito em 1) pelo preço de € 232.000,00, tendo o réu aceitado a venda por este valor.

6) No seguimento da negociação descrita em 5), foi acordada a data para a celebração de um acordo que as partes denominaram contrato-promessa de compra e venda, e ainda que seria o réu a redigir o mesmo.

7) O réu apresentou o acordo referido em 6) previamente escrito para ser celebrado.

8) No dia 20 de Maio de 2019, foi celebrado e outorgado um acordo que as partes denominaram “contrato promessa de compra e venda”, que aqui se dá por integralmente reproduzido, entre o autor, na qualidade de promitente comprador, e o réu, na qualidade de promitente vendedor, documento particular que foi objecto de autenticação, através de termo lavrado perante advogado, aí se podendo ler:

“…

Pelos mesmos foi dito:

Que, leram e assinaram o documento que antecede, que é um contrato promessa de compra e venda, e que o mesmo exprime a sua vontade.

Assim disseram e outorgaram.

Este instrumento foi lido aos outorgantes, tudo em voz alta e na sua presença, pessoas cuja identidade verifiquei…”.

9) O autor entregou ao réu, com a aceitação e assinatura do contrato-promessa de compra e venda, o montante de € 12.000,00, podendo ler-se nesse documento:

“CLÁUSULA TERCEIRA

1. O preço global para a prometida compra e venda é de 232.000,00 (Duzentos e tinta e dois mil Euros), a pagar pelo PROMITENTE COMPRADOR ao PROMITENTE VENDEDOR conforme segue:

a) A importância de 12.000,00€ (Doze mil Euros) a título de sinal, valor que será pago na assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, por transferência bancária a ser efetuada para a conta com o NIB (…) do Banco (…) e cujo titular é o PROMITENTE VENDEDOR.

b) (…)

(…)

CLÁUSULA NONA

1. O PROMITENTE VENDEDOR pode resolver o presente contrato, fazendo seu o sinal, no caso do PROMITENTE COMPRADOR faltar dolosamente à outorga da escritura pública de compra e venda prometida, impossibilitar a sua realização, não proceder á liquidação de qualquer um dos pagamentos nos termos e condições previstas na cláusula 3.ª supra, ou por causa a si dolosamente imputável, deixar decorrer o prazo previsto no n.º 1 da cláusula 4.ª.

2. O PROMITENTE COMPRADOR pode resolver o presente contrato, exigindo do PROMITENTE VENDEDOR a restituição em dobro do sinal e respetivos reforços, se a escritura pública de compra e venda prometida não for celebrada por causa dolosamente imputável ao PROMITENTE VENDEDOR.”.

10) Na cláusula terceira do acordo referido em 8), consta ainda:

“CLÁUSULA TERCEIRA

1. O preço global para a prometida compra e venda é de 232.000,00 (Duzentos e tinta e dois mil Euros), a pagar pelo PROMITENTE COMPRADOR ao PROMITENTE VENDEDOR conforme segue:

a) (…)

b) O remanescente do preço, ou seja, a quantia de 220.000,00€ (Duzentos e vinte mil Euros), será pago no ato da outorga da escritura pública de compra e venda, mediante cheque bancário ou visado emitido à ordem do PROMITENTE VENDEDOR.”

11) Na “cláusula quarta” do acordo referido em 8), pode ler-se:

“CLÁUSULA QUARTA

1. A escritura pública de compra e venda do negócio prometido realizar-se-á até 22 de julho de 2019.

2. (…)”.

12) Na “cláusula quarta” do acordo referido em 8), pode ainda ler-se:

“CLÁUSULA QUARTA

1.(…)

2. A marcação de escritura a que alude o número anterior caberá ao PROMITENTE COMPRADOR, os quais deverá notificar para o efeito o PROMITENTE VENDEDOR, por meio de carta registada expedida com a antecedência mínima de 12 (doze) dias, indicando o dia, hora e Cartório Notarial ou outro local em que aquela se realizará.”.

13) Após a assinatura do acordo referido em 8), foi acordado, verbalmente, entre as partes, que seria o promitente vendedor, o ora réu, através da empresa de mediação imobiliária Sociedade 1, Lda., a marcar a data da escritura pública de compra e venda e a comunicar a data, ao promitente comprador, ora autor, através de contacto pessoal.

14) O réu, no acto de outorga do acordo que as partes denominaram “contrato de promessa compra e venda”, comunicou em português e disse que não precisava de intérprete, nem de tradução.

15) No acto de outorga, quer do denominado acordo “Contrato Promessa de Compra e Venda”, quer do termo de autenticação, a leitura destes documentos foi efectuada na língua portuguesa.

16) Em consonância com o acordo verbal referido em 13), a empresa de mediação imobiliária Sociedade 1, Lda. marcou para o dia 22 de julho de 2019 a escritura pública do contrato prometido, no Cartório Notarial de (…), a cargo da Notária(…), sito na Rua (…), em (…).

17) Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 19 de julho de 2019, a data mencionada em 16) foi comunicada pela empresa de mediação imobiliária Sociedade 1, Lda., por telefone e mensagem escrita, a ambas as partes intervenientes no acordo que denominaram de “contrato promessa de compra e venda”.

18) Em 19 de julho de 2019 a empresa de mediação imobiliária Sociedade 1, Lda., transmitiu ao promitente comprador, ora autor, uma mensagem de correio eletrónico da mandatária do promitente vendedor, ora réu, com o seguinte teor:

“Na qualidade de mandatária do Sr. DDD, informo V.Exas. que após ter analisado os termos do Contrato Promessa de Compra e Venda, considero que o mesmo, não foi pelo Promitente Comprador cumprido, em virtude de recair sobre o mesmo, conforme resulta do nº 2 da clausula quarta do referido Contrato, o dever de notificar o Promitente Vendedor, da marcação da escritura, através de carta registada, com antecedência mínima de 12 dias úteis , indicando o dia , a hora e o Cartório Notarial.

Acresce que a mesma clausula fixa como prazo para realização da escritura de compra e venda, a data de 22 de Julho de 2019 , próxima segunda feira.

Atento o exposto, tem o promitente vendedor o direito de fazer seu o sinal entregue pelo promitente comprador, podendo em alternativa requer a execução específica do contrato.

Manifesta todavia, que não irá requer a execução específica do contrato.

Posto isto, considera-se resolvido o Contrato de Compra e Venda, por causa imputável ao Promitente Comprador.

Solicita-se a entrega imediata das chaves, que têm em v/ poder.”

19) O réu, promitente vendedor, não compareceu à escritura pública agendada para o dia 22 de Julho de 2019, no Cartório Notarial de (…).

20) O autor diligenciou pela marcação de nova data para realização da escritura pública de transmissão/aquisição do prédio urbano descrito em 1) para o dia 29 de Agosto de 2019, no mesmo Cartório Notarial.

21) Mediante o envio de carta registada com aviso de receção, e pelo seguro do correio através do registo n.º (…), foi no dia 31 Julho de 2019 comunicada ao réu a data indicada em 20).

22) A carta enviada em 31 de julho de 2019 foi rececionada pelo próprio réu em 02 de Agosto de 2019.

23) O réu não compareceu à escritura pública de transmissão agendada para 29 de agosto de 2019.

24) Aquando da celebração do acordo referido em 2), o réu entregou à sociedade imobiliária ali identificada as chaves do imóvel descrito em 1).

25) O réu outorgou uma escritura de compra e venda no dia 01/07/2015, junto do Cartório Notarial de (…), perante a notária Dra. (…), com a presença de intérprete.

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

a) O réu pretendeu sempre vender o prédio urbano descrito em 1) pelo preço nunca inferior a € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros).

b) O termo de autenticação descrito no facto provado 6), não foi lido, nem compreendido pelo réu, em virtude do mesmo ter naturalidade e nacionalidade francesa e desconhecer em absoluto a língua portuguesa, falada e escrita.

c) Não foi explicado ao réu o conteúdo do contrato promessa de compra e venda descrito no facto provado 6).

d) O réu recolheu interpretação e tradução do contrato promessa de compra e venda, em data posterior à da receção da comunicação assinada pelo autor, que propunha a outorga da escritura para 22 de julho de 2019.

e) Só na sequência do descrito em d), o réu constatou que o resultante do contrato promessa de compra e venda por si assinado não estava em conformidade com a sua vontade, designadamente no que ao preço fixado respeita.

f) As chaves do imóvel descrito no facto provado 1) foram pela Imobiliária entregues ao autor.

*

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

O recorrente pretende que os factos constantes dos n.ºs 5 a 7, 13 e 14 sejam julgados não provados e que os factos constantes das als. b) a e) sejam julgados provados.

A defesa do recorrente assenta fundamentalmente na alegação de que:

- Por ter naturalidade e nacionalidade francesas, desconhece, em absoluto, a língua portuguesa, falada e escrita;

- Em consequência desse desconhecimento da língua portuguesa, assinou o contrato-promessa sem estar ciente do seu conteúdo, nomeadamente do preço nele estipulado para o contrato de compra e venda prometido.

Antes de reapreciarmos a prova referida pelo recorrente, analisemos a posição por este assumida à luz das regras da experiência comum, tendo em consideração a matéria de facto que se encontra consolidada. É que não basta o recorrente insistir que não conhece a língua portuguesa, falada ou escrita, e, por essa razão, não estava ciente do conteúdo do contrato-promessa. Há que, hipotisando tal desconhecimento, tentar encontrar uma justificação para os factos comprovadamente praticados pelo recorrente. Quanto mais difícil se mostrar essa justificação, mormente à luz das regras da experiência comum, menos verosímil teremos de considerar a versão que o recorrente sustenta.

Está provado que, em 01.07.2015, o recorrente outorgou uma escritura pública de compra e venda, tendo, então, sido assistido por um intérprete.

Com base neste facto, podemos concluir que:

1) O contrato dos autos não foi o primeiro que o recorrente celebrou em Portugal;

2) O recorrente tem noção de que a celebração de um contrato constitui um acto cuja importância exige que ele conheça o seu conteúdo e efeitos com exactidão; ou seja, o recorrente é uma pessoa avisada e não um irresponsável;

3) O recorrente sabe que, quando se mostra necessário conhecer o conteúdo de um acto praticado numa língua que não conhece, convém assegurar o auxílio de um intérprete.

Em 20.05.2019, o recorrente assinou o contrato-promessa dos autos. É consensual que o recorrente não foi assistido por intérprete, não se considerando como tal a pessoa que o acompanhou nessa ocasião.

O recorrente afirma que, em 20.05.2019, não conhecia a língua portuguesa, falada ou escrita, e, por essa razão, não estava ciente do conteúdo do contrato-promessa. Não obstante, assinou-o. Sendo assim, a imagem que o recorrente pretende dar de si é a de alguém que assina um contrato, redigido numa língua estrangeira que desconhece em absoluto, cujo conteúdo, obviamente, também desconhece.

Esta imagem não é compatível com aquela que o recorrente deu de si próprio em 01.07.2015. Nesta ocasião, ele actuou com um grau de diligência normal, não assinando um contrato redigido numa língua estrangeira que desconhecia sem estar assessorado por um intérprete. Já em 20.05.2019, estaríamos, a acreditar no recorrente, perante uma pessoa totalmente irresponsável, capaz de assinar um contrato sem fazer a menor ideia do seu conteúdo.

Note-se que o recorrente não afirma ter-se limitado a interpretar mal uma palavra ou uma frase, atribuindo-lhes um sentido diverso daquele que lhes atribuiria um contraente que dominasse a língua portuguesa. Em vez disso, afirma desconhecer em absoluto a língua em que o contrato foi redigido, ao ponto de nem sequer ter percebido qual era o preço a estipular no contrato prometido, não obstante tratar-se de um elemento expresso, não só por extenso, mas também em algarismos. Daí afirmarmos que o recorrente pretende dar, de si, a imagem de alguém capaz de assinar um contrato referente à venda de um imóvel sem fazer a mínima ideia do seu conteúdo.

Isto não é credível.

Dizem-nos as regras da experiência comum que salvo, porventura, em hipóteses de excepcional ingenuidade ou descuido, ou de défice cognitivo (pontual ou duradouro), ninguém assina um contrato redigido numa língua que lhe seja totalmente desconhecida sem se encontrar assessorada por pessoa em quem confie, como um familiar que conheça aquela língua, um advogado ou um intérprete. Ora, o recorrente não fornece qualquer dado que nos permita acreditar que ele seja uma pessoa particularmente ingénua ou descuidada, que se tenha deixado ludibriar ao ponto de assinar um contrato de cuja redacção não entendeu uma única palavra, ou que padeça de algum défice cognitivo que o torne presa fácil de quem pretenda enganá-lo.

Mais, a forma como o recorrente actuou em 01.07.2015 afasta, sem margem para dúvidas, a imagem que ele agora pretende dar de si. É seguro que o recorrente não é uma pessoa tão ingénua, tão descuidada, ou tão mentalmente débil, que, sem ser assessorado por alguém em quem confie, assine um contrato redigido numa língua de que não entende uma única palavra.

Por outro lado, há que atentar no objecto do suposto erro do recorrente. Tal erro teria incidido sobre o montante do preço da venda que prometeu efectuar. O recorrente teria prometido vender pelo preço de € 232.000, supondo que estava a prometer vender pelo preço de € 250.000.

Nem sequer na hipótese, já de si inverosímil, de, quando celebrou o contrato-promessa dos autos, o recorrente desconhecer, em absoluto, a língua portuguesa, isto seria credível. Constam do contrato-promessa, mais precisamente da sua cláusula 3.ª, três valores pecuniários expressos em algarismos: € 232.000, € 12.000 e € 220.000. Em parte alguma do contrato consta o valor de € 250.000. Logo, ainda que não conseguisse ler uma única palavra em português, o recorrente não teria qualquer fundamento para supor que estava a prometer vender o imóvel por € 250.000.

Mais, no momento da celebração do contrato-promessa, o recorrente recebeu € 12.000 a título de sinal e princípio de pagamento. Esta quantia corresponde à diferença entre € 232.000 e € 220.000, que são os outros valores expressos em algarismos no contrato-promessa. Nem assim o recorrente conseguiu perceber que o preço pelo qual prometeu vender era de € 232.000 e que, dado o pagamento antecipado de € 12.000, receberia € 220.000 aquando da celebração do contrato prometido? Não é possível.

Atentemos ainda no seguinte:

Em 16.11.2018, o recorrente celebrou um contrato de mediação imobiliária, visando a venda do imóvel que posteriormente prometeu vender ao recorrido. É pacífico que o recorrente entendeu o conteúdo desse contrato, redigido em português, nomeadamente que o preço nele mencionado para o imóvel era de € 250.000. Não há notícia de o recorrente ter sido assistido por intérprete, o que constitui mais um indício de que, então, ele já havia adquirido um conhecimento da língua portuguesa suficiente para ler o contrato e ficar ciente do seu conteúdo. Não é crível que, em 20.05.2019, o seu conhecimento da língua portuguesa tivesse regredido ao ponto de não entender, como afirma, uma única palavra do contrato-promessa. Mais, de não entender, sequer, os valores expressos em algarismos, pensando que um deles era de € 250.000, hipótese em que a regressão do recorrente já não se circunscreveria ao conhecimento da língua portuguesa.

Concluindo esta apreciação preliminar da tese do recorrente, diremos que é, logo à partida, inverosímil que este, como alega, desconhecesse, em absoluto, a língua portuguesa, falada e escrita, na data em que celebrou o contrato-promessa dos autos.

Passemos à reapreciação dos meios de prova invocados pelo recorrente.

As testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís foram unânimes na afirmação de que, na data da celebração do contrato-promessa, o conhecimento que o recorrente tinha da língua portuguesa lhe permitiu perceber perfeitamente o seu conteúdo e efeitos. Acresce que o recorrente se fazia acompanhar por uma senhora portuguesa, que poderia auxiliá-lo caso ele necessitasse.

O recorrente invoca os depoimentos destas testemunhas, mas exclusivamente para os rotular como não credíveis. Com esse fundamento, parece pretender que o tribunal ad quem julgue provado o contrário daquilo que as mesmas testemunhas afirmaram, mormente que ele não falava nem percebia uma palavra de português. Isto não faz o menor sentido, como é evidente.

O único depoimento que o recorrente considera credível é aquele que foi prestado pela testemunha Alberto Vicente. Ao contrário de Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís, Alberto Vicente não presenciou qualquer dos factos em que o recorrente interveio, apenas se tendo pronunciado, genericamente, sobre o conhecimento que aquele tem da língua portuguesa.

Note-se que nem sequer Alberto Vicente corroborou a afirmação do recorrente segundo a qual desconhece, em absoluto, a língua portuguesa, quer falada, quer escrita. Não é rigorosa a afirmação, constante das alegações de recurso, segundo a qual Alberto Vicente assegurou, sem margem para dúvidas, que o recorrente não compreendeu absolutamente nada do que resultava escrito no contrato, nem os direitos, nem as obrigações. Alberto Vicente afirmou, sim, que o recorrente não poderia compreender «os termos técnicos portugueses». Não que o recorrente fosse incapaz de perceber que o preço de venda do imóvel seria de € 232.000. O sentido comum da palavra «preço» coincide com o seu sentido técnico e a quantia expressa em algarismos é tão perceptível por um francófono como por um lusófono, como é evidente.

Certo é que nunca poderia considerar-se provado que o recorrente desconhecesse em absoluto a língua portuguesa, ao ponto de não conseguir perceber que, ao celebrar o contrato-promessa, estava a prometer vender o imóvel pelo preço de € 232.000 e não pelo de € 250.000 (cifra nunca é mencionada do contrato, de novo salientamos). Além dos depoimentos em sentido contrário das testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís, obstam decisivamente à formação de tal convicção as razões que expusemos preliminarmente.

Ao contrário, é seguro, tendo em conta a análise objectiva da actuação do recorrente, a que procedemos, e os depoimentos das testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís, que aquele ficou ciente do conteúdo e dos efeitos do contrato-promessa.

Analisemos, à luz desta conclusão fundamental, cada um dos pontos de facto relativamente aos quais o recorrente manifesta discordância.

N.º 5 e al. a):

O preço fixado, no contrato-promessa, para a compra e venda, foi de € 232.000. Tendo o recorrente assinado o contrato-promessa e estando demonstrado que ele estava ciente do conteúdo e dos efeitos deste, conclui-se que, posteriormente à celebração do contrato de mediação mobiliária, recorrente e recorrido acordaram que o preço da compra e venda seria de € 232.000. Logicamente, não é verdade que o recorrente sempre tenha pretendido vender o imóvel por preço não inferior a € 250.000. Daí que o n.º 5 e a al. a) devam manter-se.

N.ºs 6 e 7:

O facto de, na sequência da negociação descrita em 5, recorrente e recorrido terem acordado uma data para celebrarem o contrato-promessa, resultou dos depoimentos, não contrariados por qualquer meio de prova, das testemunhas Paulo Varela e Francisca Gomes, cuja credibilidade, ao contrário do que o recorrente sustenta, não nos suscita qualquer reserva.

O recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal a quo de julgar provado que o recorrente e o recorrido acordaram que seria o primeiro a redigir o contrato-promessa. Insurge-se, igualmente, contra a decisão do tribunal a quo de julgar provado que, em execução desse acordo, ele próprio apresentou o contrato-promessa, previamente escrito, para ser celebrado.

Estamos perante factos instrumentais, tendentes a demonstrar que o recorrente estava ciente do conteúdo do contrato-promessa. É indiferente, para a procedência da acção, quem elaborou o contrato-promessa e o apresentou à contraparte. Ora, tendo ficado demonstrado, pelas razões acima expostas (que se basearam, como frisámos, apenas na matéria de facto consolidada), que o recorrente estava ciente do conteúdo do contrato-promessa, o referido facto instrumental deixou de ter utilidade. O facto principal ficou provado por outra via. Consequentemente, a alteração pretendida pelo recorrente traduzir-se-ia na prática de um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC, que consagra o princípio da limitação dos actos.

N.º 13:

A matéria de facto constante do n.º 13 é irrelevante para a decisão da causa, atento o fundamento com que o recorrente contestou a acção.

Trata-se de matéria alegada na petição inicial, a qual foi elaborada tendo como referencial o fundamento invocado pelo recorrente para, através de e-mail enviado, pela sua advogada, ao recorrido, resolver o contrato-promessa. Apenas nessa perspectiva seria útil discutir se, posteriormente à celebração do contrato-promessa, recorrente e recorrido acordaram verbalmente que seria o primeiro, através da mediadora, a marcar a data da escritura pública de compra e venda e a comunicá-la ao segundo, através de contacto pessoal.

Porém, não foi com esse fundamento que o recorrente contestou a acção, mas sim com o de que o contrato-promessa é nulo devido à ocorrência de um vício na formação da sua vontade, que inquinou a sua declaração negocial. Tendo-se a discussão deslocado para a questão, logicamente anterior, da procedência desta excepção peremptória, a matéria constante do n.º 13 perdeu relevância. É indiferente que a marcação da escritura pública e a comunicação da data desta à contraparte tenham ficado a cargo do recorrente ou do recorrido. Interessa, sim, saber se o fundamento de nulidade do contrato-promessa invocado pelo recorrente se verificou.

Sendo assim, também esta alteração se traduziria na prática de um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC.

N.º 14:

Pelas razões que anteriormente expusemos, é nossa convicção que, na data da celebração do contrato-promessa, o conhecimento que o recorrente tinha da língua portuguesa era suficiente ele para ficar ciente do conteúdo e dos efeitos daquele, bem como para comunicar nessa língua. Dos depoimentos das testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís resultou que o recorrente comunicou efectivamente em português e afirmou não precisar, nem de intérprete, nem de tradução do contrato. Logo, a decisão do tribunal a quo sobre esta matéria está correcta.

Al. b):

Já nos pronunciámos acerca do alegado desconhecimento absoluto da língua portuguesa por parte do recorrente.

Resultou dos depoimentos das testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís que o termo de autenticação descrito no n.º 6 foi lido e compreendido pelo recorrente.

Deverá, pois, manter-se como não provado o conteúdo da al. b).

Als. c), d) e e):

Inexistiu, pura e simplesmente, prova de que:

- O conteúdo do contrato-promessa não foi explicado ao recorrente;

- Só posteriormente à celebração do contrato-promessa o recorrente «recolheu interpretação e tradução» deste;

- E só na sequência de tal «recolha de interpretação e tradução» do contrato-promessa o recorrente se tenha apercebido da alegada, mas não provada, desconformidade entre o conteúdo daquele e a sua vontade.

Daí que deva manter-se como não provado o conteúdo das als. c), d) e e).

Concluindo:

A decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto deverá manter-se na íntegra.

2 – Excepção peremptória de nulidade do contrato-promessa:

Como vimos em 1, não ficou provado que o recorrente celebrou o contrato-promessa por ter pensado, erradamente, que estava a obrigar-se a vender o imóvel de que é proprietário pelo preço de € 250.000. Ao contrário, ficou demonstrado que o recorrente se encontrava ciente de todo o conteúdo do contrato-promessa no momento da sua celebração, nomeadamente de que o contrato de compra e venda seria celebrado pelo preço de € 232.000. Consequentemente, inexistiu qualquer divergência entre a vontade real do recorrente e a sua vontade declarada, improcedendo, assim, a excepção peremptória de nulidade do contrato-promessa por ele suscitada. Improcede, assim, o recurso, devendo a sentença recorrida manter-se integralmente.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

*

Évora, 11.04.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)

 

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 376/23.1T8TMR.E1

*

Sumário:

1 – O regime estabelecido no artigo 1406.º, n.º 1, do Código Civil, é aplicável, ex vi artigo 1404.º do mesmo código, à comunhão hereditária, pelo que, na falta de acordo sobre o uso das coisas que integram a herança, qualquer dos co-herdeiros pode usá-las, contanto que, ao fazê-lo, respeite o fim a que cada uma delas se destina e não prive os restantes co-herdeiros do uso a que igualmente têm direito.

2 – É ilícito o uso de uma fracção autónoma, por um co-herdeiro, de forma que impeça os restantes de também o fazerem.

3 – A violação culposa do direito ao uso da fracção de que é titular o co-herdeiro não utilizador é geradora de responsabilidade civil aquiliana, nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.

4 – A questão do uso das coisas que integram a herança não se confunde com a da administração desta.

*

Autor/recorrente:

AAA.

Réu/recorrido:

BBB.

Pedidos:

a) Ser o uso que o réu faz do imóvel considerado ilícito;

b) Ser o réu condenado no pagamento, ao autor, de uma indemnização, na quantia de € 10.200, correspondente a metade do valor mensal de € 400, que seria possível obter num arrendamento da fracção supra identificada, desde Dezembro de 2018;

c) Ser o réu condenado no pagamento das rendas vincendas até à realização da partilha do imóvel ou até à sua desocupação.

d) Ser o réu condenado no pagamento de juros de mora contados desde a citação na presente acção até efectivo e integral pagamento.

e) Ser o réu condenado a, alternativamente, no prazo de dois meses a contar do trânsito em julgado da sentença, celebrar, com o autor, um contrato de arrendamento nos termos dos artigos 1022.º e seguintes do Código Civil, do qual resulte a renda fixada por este tribunal e o prazo de pagamento da renda, que deverá corresponder ao primeiro dia útil do mês a que disser respeito, ou, no mesmo prazo, deixar o imóvel livre de pessoas e bens.

Sentença recorrida:

Julgou a acção improcedente.

Conclusões do recurso:

a) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e muito precipitada, tendo partido de pressupostos errados.

b) Entende o recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.

c) Quando a presente acção foi instaurada, o aqui recorrente não assumia a qualidade de cabeça-de-casal, porquanto o despacho que proferiu à sua designação apenas foi proferido, nos autos de inventário 183/23.1T8TMR, em 13 de Abril de 2023, pelo que não podia, logicamente, proceder a essa instauração imbuído de uma qualidade que não detinha.

d) Ao contrário do referido pelo tribunal a quo, o autor, aqui recorrente, apresentou, efectivamente, alegações, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cfr. “Alegações” com a Ref.ª 47042264, datadas de 07 de Novembro de 2023.

e) Por outro lado, concluiu o tribunal de primeira instância sufragar o entendimento “…que “o artigo 1406.º do CC é inaplicável à situação em apreço porque a natureza da comunhão em que se consubstancia a herança indivisa é incompatível com o disposto nesta norma.”, fazendo assim improceder a presente acção e absolvendo o réu dos pedidos.

f) Ora, com todo o respeito que lhe merece a sentença proferida, o autor, aqui recorrente, não pode deixar de manifestar a sua veemente discordância com tal conclusão.

g) Pelo que, de igual modo e uma vez mais, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo na sentença de que se recorre, a utilização por qualquer herdeiro dos bens da herança em proveito próprio, nas situações em que o cabeça-de-casal não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, deve considerar-se sujeita ao regime do artigo 1406.º do Código Civil, face à ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de situações.

h) A utilização de um determinado bem da herança por um dos herdeiros só determina uma privação do uso pelos outros consortes, para os efeitos do artigo 1406.º do Código Civil, se ela contrariar a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização.

i) Provou-se nos presentes autos que, não só que não houve qualquer acordo entre o outro herdeiro, o aqui recorrente, e o réu sobre a utilização do bem da herança, como o réu decidiu por sua própria iniciativa ocupar o prédio, ignorando as solicitações que lhe foram dirigidas no sentido de proceder à entrega das chaves do imóvel ao recorrente, de forma a que este pudesse também ter acesso ao mesmo, tudo sem qualquer autorização do (agora) cabeça-de-casal e restante herdeiro, fazendo dele a sua habitação diária - conforme resulta expressamente da matéria de facto provada, supra transcrita em 18.

j) Logo, ocorrendo uma ocupação por um herdeiro de um imóvel pertencente a uma herança, impeditiva do seu uso por outro herdeiro, o prejuízo causado a este último corresponde à parte do valor locativo daquela unidade predial no mercado de arrendamento, durante todo o período em que se verificar tal ocupação, correspondendo essa parcela à quota desse herdeiro na herança.

k) Teria assim de proceder a acção.

l) Não pode, pois, colher a argumentação sustentada pelo tribunal a quo na decisão proferida, uma vez que a vingar o seu entendimento estaria, assim, legitimada a conduta de qualquer co-herdeiro na utilização exclusiva, não autorizada, ilícita e indevida de bens da herança, em manifesto favor deste e prejuízo dos restantes co-herdeiros.

m) Entende o recorrente que a decisão recorrida viola claramente os artigos 562.º, 564.º, 566.º, 1305.º e 1406.º do Código Civil.

Questões a decidir:

1 – Uso dos bens da herança até à partilha;

2 – Verificação dos pressupostos da responsabilidade civil;

3 – Montante da indemnização.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1 – Em 31 de Julho de 2014, no Hospital de (…), faleceu, intestada, CCC, cuja última residência habitual foi na Rua (…), n.º (…), 1.º esquerdo, freguesia de (…), concelho de (…).

2 – Faleceu no estado de viúva de DDD.

3 – Não tendo deixado testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, sucederam-lhe, como seus herdeiros legitimários, o autor, seu filho, e o réu, seu neto.

4 – CCC deixou, como herança, a fracção designada pela letra D do prédio sito na Rua (…), lote (…), concelho de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da União das Freguesias de (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da mesma freguesia.

5 – A qual vem sendo habitada pelo réu, sem que tenha sido efectuado qualquer pagamento ou compensação pela ocupação.

6 – Acrescendo que não foi facultado o acesso à mesma ao autor, nem o mesmo autorizou tal ocupação.

7 – Esse não consentimento foi transmitido, através de um contacto telefónico, em Dezembro de 2018, pelo autor ao réu, sendo que foi também durante essa mesma conversa telefónica que o autor solicitou as chaves do imóvel ao réu, de forma a ter acesso ao mesmo.

8 – Não obstante, instado para esse efeito, o réu ignorou ambos os pedidos, que lhe foram feitos pelo autor.

9 – Esse mesmo não consentimento foi reiterado posteriormente pelo filho do aqui autor, junto do réu.

10 – O que mais, uma vez, foi ignorado pelo réu.

11 – Essa utilização do imóvel pelo réu mantém-se desde a data do óbito de CCC e ainda hoje se verifica.

12 – Com este comportamento do réu, designadamente, o uso indevido do imóvel e à revelia do outro herdeiro, o autor foi impedido de, também, utilizar esse imóvel.

13 – Por forma a proceder-se à partilha do imóvel, correm termos, neste Juízo Local Cível, os autos de inventário sob o processo n.º 183/23.1T8TMR, que se encontra pendente.

14 – Considerando que o imóvel se encontra junto a uma das principais avenidas da cidade de (…) e relevando a sua tipologia e área, seria possível obter num arrendamento do imóvel supra identificado, um rendimento mínimo mensal de € 400.

15 – O autor foi nomeado como cabeça-de-casal no processo referido em 13.

*

1 – Uso dos bens da herança até à partilha:

Os traços essenciais do litígio são os seguintes:

- O recorrente e o recorrido são os únicos herdeiros;

- Integra a herança uma fracção autónoma;

- O recorrido reside na fracção, sem pagar qualquer contrapartida, desde a data da abertura da sucessão;

- O recorrente foi impedido de utilizar a fracção e opõe-se a que o recorrido nela resida.

O recorrente sustenta que a utilização da fracção pelo recorrido, feita de molde a privá-lo a si próprio de também a utilizar, é ilícita e lhe confere o direito de ser indemnizado. Em abono desta tese, invoca o disposto no artigo 1406.º, n.º 1, do Código Civil (diploma ao qual pertencem todas as normas doravante referenciadas), segundo o qual, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. O recorrente considera que esta norma deve ser aplicada à comunhão hereditária ex vi artigo 1404.º.

É diverso o entendimento do tribunal a quo.

Este começa por salientar, acertadamente, que o recorrente propôs a acção na qualidade de herdeiro e não na de cabeça-de-casal.

Considera, em seguida, que, a existir uma utilização ilícita da fracção por parte do recorrido, seria a herança, e não o recorrente (simples herdeiro), o titular de um eventual direito a indemnização daí resultante, o que, logo à partida, determinaria a improcedência da acção.

Considera o tribunal a quo, por outro lado, que o disposto no artigo 1406.º é inaplicável à comunhão hereditária porquanto é incompatível com a natureza desta. Cita, a esse propósito, o voto de vencida exarado no acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 21.04.2022, proferido no processo n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1.

As objecções feitas, no referido voto de vencido, à aplicabilidade do artigo 1406.º à comunhão hereditária, são, resumidamente, as seguintes:

- A herança indivisa constitui uma comunhão de tipo germânico ou em mão comum, na qual a propriedade de cada um dos bens não se reparte por quotas ideais, antes tendo, cada um dos titulares, apenas direito a uma quota de liquidação aquando da partilha;

- Daí que, havendo dois herdeiros, não seja correcto afirmar-se que cada um deles tem direito a metade do prédio que faz parte da herança;

- Logo, é impossível repartir o uso do prédio pelos referidos herdeiros em função da quota de cada um e considerar que, na falta de acordo, o herdeiro utilizador tem a obrigação de compensar, nessa medida, o herdeiro não utilizador.

É, naturalmente, diverso o entendimento que fez vencimento no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ao qual o recorrente adere. No que concerne, especificamente, à questão da aplicabilidade do disposto no artigo 1406.º, n.º 1, à comunhão hereditária, a sua fundamentação é, resumidamente, a seguinte:

- A questão do uso de bens da herança, em proveito próprio, por um dos herdeiros, não se mostra especificamente prevista e regulada pelas regras do direito sucessório, pelo que deve considerar-se aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 1406.º, ex vi artigo 1404.º;

- A isso não obsta o entendimento de que, nas situações de comunhão em mão comum, designadamente na comunhão sucessória, os direitos dos contitulares não incidem sobre cada um dos elementos que constituem o património colectivo, mas sim sobre todo ele, como um todo unitário;

- A posse do autor da sucessão sobre os bens da herança continua nos seus sucessores, nos termos dos artigos 1225.º e 2050.º;

- Apesar de nos encontrarmos perante uma posse meramente jurídica, porque não se exige a prática de actos materiais, qualquer dos co-herdeiros, além da acção de petição da herança (artigos 2075.º e seguintes), pode utilizar os meios de defesa da posse relativamente a cada um dos bens da herança (artigos 1276.º e seguintes), inclusivamente contra o cabeça-de-casal que não se encontre no exercício dos poderes de administração (artigo 2088.º, n.º 2);

- Pelo que o artigo 1406.º é subsidiariamente aplicável a uma situação de composse, a qual se verifica sempre que há pluralidade de herdeiros.

À argumentação no sentido da verificação de uma situação de composse por parte dos herdeiros, responde-se, no voto de vencida, em termos que assim se resumem:

- Seria possível pensar na defesa judicial da posse e equacionar a hipótese de uma acção possessória (artigo 1277.º), mais precisamente de uma acção de restituição (artigo 1278.º), destinada a obter a recuperação da posse efectiva e pôr fim ao esbulho, o que permitiria, ainda, ao possuidor restituído, o direito a ser indemnizado dos prejuízos causados pelo esbulho, nos termos do artigo 1284.º;

- Porém, a acção em apreciação não era uma acção possessória; ainda que o fosse, sempre estaria sujeita ao regime das acções possessórias, designadamente à regra do artigo 1284.º, do qual resulta que o possuidor perturbado ou esbulhado não pode pedir a indemnização dos prejuízos sofridos se não pedir, simultaneamente, a manutenção ou a restituição da posse, e a procedência daquele pedido dependerá da procedência deste último;

- Por outro lado, a posse é exercida nos mesmos termos do direito real, pelo que a aplicação do artigo 1406.º depara com os mesmos obstáculos apontados à propriedade colectiva;

- A composse pode existir em relação a qualquer direito real susceptível de posse; se o direito real for divisível (propriedade, usufruto), também a composse o será; se o direito real for indivisível (servidão, enfiteuse), os compossuidores sê-lo-ão in solidum: haverá como que uma titularidade colectiva da posse e não uma posse de quotas ideais do direito possuído;

- O domínio e a posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a realização da partilha; a herança constitui um património autónomo, nada mais tendo os herdeiros que o direito a uma quota-parte do património hereditário;

- A posse da herança indivisa é causal, pois o co-herdeiro compossuidor é, simultaneamente, contitular do direito a que a posse corresponde;

- Logo, a invocação da composse pouco ou nada acrescenta para o efeito da protecção do interesse do co-herdeiro;

- Seja como for, o acórdão não fundamenta a conclusão de que a existência de uma situação de composse gera, na esfera jurídica do herdeiro não utilizador, o direito a uma indemnização.

No voto de vencida, considera-se que o meio jurisdicional apropriado para a tutela do interesse do co-herdeiro que não utilizou o bem da herança é uma acção de prestação de contas, a propor contra o co-herdeiro utilizador daquele bem; este deveria ser demandado na qualidade de cabeça-de-casal, com vista ao apuramento das contas da administração da herança.

Foi neste quadro que se desenvolveu a discussão da causa, como resulta da petição inicial e das alegações que o recorrente apresentou antes da prolação da sentença recorrida, bem como desta última.

Analisemos a questão.

Com a morte do autor da sucessão e a consequente abertura desta, coloca-se a questão da utilização das coisas que integram a herança até ao momento em que o direito de propriedade (ou outro direito real de gozo que não se extinga por efeito da morte do titular) sobre cada uma delas ingresse, por efeito da partilha, no património de cada um dos herdeiros. Esse período é, não raro, muito longo, seja devido à inércia dos herdeiros no que concerne à realização da partilha, seja devido ao arrastamento de negociações entre os interessados nesta, seja ainda devido à demora de processo de inventário que seja instaurado em face da ausência de acordo sobre a partilha. Facilmente decorrem vários anos entre a abertura da sucessão e a aquisição dos singulares bens da herança por cada um dos herdeiros.

Daí que a regulação da utilização das coisas que integram a herança constitua um tema da maior importância.

Há coisas que podem permanecer sem utilização durante longos períodos sem que sejam postos em causa interesses relevantes dos co-herdeiros, quer porque não visam satisfazer necessidades prementes destes, quer porque aquela não utilização não afecta a sua conservação. É o caso de objectos preciosos ou de uma colecção de quadros ou de moedas, por exemplo.

Outras coisas existem cuja utilização corresponde a necessidades prementes dos herdeiros, ou de alguns deles. A sua não utilização redundaria, objectivamente, numa perda económica, pois, de um lado, teríamos bens não aproveitados e, do outro, necessidades de herdeiros por satisfazer. O Direito deve visar o melhor aproveitamento possível das coisas para a satisfação de necessidades humanas e não tornar-se um obstáculo a esse aproveitamento e, por essa via, uma fonte de desperdício de recursos, por natureza escassos.

Mais, há coisas que se deterioram se não forem utilizadas regularmente, como é o caso da generalidade das máquinas, nomeadamente de veículos. E há coisas que, se não forem utilizadas de forma permanente, deixam, pura e simplesmente, de existir enquanto tais, como é o caso de uma exploração agrícola ou agro-pecuária, ou de um estabelecimento comercial ou industrial.

Note-se que a questão do uso das coisas que integram a herança não se confunde com a da administração desta.

O artigo 2088.º, n.º 1, estabelece que o cabeça-de-casal pode pedir, aos herdeiros ou a terceiro, a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar, contra eles, de acções possessórias, a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído. Desta norma não resulta, porém, que todos os bens que integram a herança tenham de ser entregues ao cabeça-de-casal. Muito menos que essa entrega tenha como finalidade a sua utilização exclusiva pelo cabeça-de-casal. Este é um simples administrador da herança (artigo 2079.º) e não, sendo herdeiro (como é regra – artigo 2080.º), um herdeiro com privilégios relativos ao uso das coisas que integram a herança[1]. Por isso, «Essencial é que, como aliás se depreende do próprio texto da norma, a entrega material dos bens seja realmente necessária ao exercício da gestão que os artigos 2079.º e 2087.º confiam ao cabeça-de-casal como administrador da herança.»[2]

Em suma, a regulação do uso das coisas que integram a herança constitui uma questão que não pode ser desprezada, impondo-se encontrar um regime legal que salvaguarde devidamente os interesses em jogo. Foi isso que se procurou fazer no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que vimos referenciando, na senda do acórdão do mesmo tribunal de 15.02.2022 (processo n.º 929/14.9TBAMT.P2.S1), ao convocar, com apoio no disposto no artigo 1404.º, o regime estabelecido no artigo 1406.º, n.º 1. É tarefa a que o aplicador do Direito não pode esquivar-se. Daí que, se se considerar inaplicável o regime estabelecido no artigo 1406.º, n.º 1, tenha de se encontrar outro regime jurídico para aquele uso. Isto, claro, partindo do princípio de que são inaceitáveis, quer a solução de vedar, pura e simplesmente, a utilização das coisas que integram a herança, pelos co-herdeiros, até à partilha, quer a de reconhecer, como utilizador exclusivo legítimo de cada uma daquelas coisas, o co-herdeiro que tome a iniciativa de o fazer, unilateralmente, antes dos restantes.

Nesta ordem de ideias, o primeiro reparo a fazer à sentença recorrida é a de, à semelhança do voto de vencida em que se inspirou, após afastar a aplicabilidade do regime estabelecido no artigo 1406.º, n.º 1, não especificar que regime jurídico considera aplicável ao uso das coisas que integram a comunhão hereditária.

Como acima referimos, no voto de vencida, considera-se que o meio jurisdicional apropriado para a tutela do interesse da aí autora é uma acção de prestação de contas, a propor contra o co-herdeiro utilizador da coisa, na qualidade de cabeça-de-casal, com vista ao apuramento das contas da administração da herança. Todavia, isso é questão diversa. Não se indica qual é o regime que se considera aplicável ao uso das coisas que integram a comunhão hereditária.

Na sentença recorrida, ainda se faz menos. Afasta-se a aplicabilidade do regime estabelecido no artigo 1406.º, n.º 1, mas não se indica, nem qual é o regime que se considera aplicável ao uso das coisas que integram a comunhão hereditária, nem qual seria o meio jurisdicional apropriado para a tutela do interesse do aqui autor e recorrente, sendo certo que a solução proposta no voto de vencida não é aproveitável neste processo, pois o réu e recorrido nunca foi cabeça-de-casal.

Em vez disso, conclui-se, na sentença recorrida, que, «não estando ainda a herança partilhada, não é possível atribuir metade do direito de uso do imóvel a cada um dos herdeiros e considerar que, na falta de acordo, o herdeiro utilizador tem a obrigação de compensar, nessa medida, o herdeiro não utilizador, termos em que, mais não resta do que julgar a presente ação improcedente». Considera-se, portanto, que, na falta de acordo, o herdeiro utilizador não tem a obrigação de compensar o herdeiro não utilizador. Nem na proporção indicada (metade do valor de uso), nem em qualquer outra, aparentemente.

Ou seja, cairíamos, ou na solução de vedar o uso das coisas que integram a herança pelos co-herdeiros, salvo, eventualmente, acordo de todos eles sobre os termos desse uso, ou na solução de reconhecer, como utilizador legítimo, o co-herdeiro que primeiro iniciasse a utilização de determinada coisa e privasse os restantes de fazerem outro tanto. Como anteriormente referimos, qualquer destas soluções é de afastar.

O reparo, que acabamos de fazer, à ausência de indicação de um regime legal de uso das coisas que integram a herança pelos co-herdeiros alternativo àquele que o artigo 1406.º, n.º 1, estabelece, não resolve a questão com que nos defrontamos. A aplicabilidade do regime do artigo 1406.º, n.º 1, à comunhão hereditária, tem de ser demonstrada.

O primeiro dado a ter em conta é a ausência de regulamentação específica sobre o uso, pelos co-herdeiros, das coisas que integram a herança. Em vez disso, temos o artigo 1404.º, que manda aplicar as regras da compropriedade, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles. Saliente-se: independentemente da natureza da comunhão. Não se restringe a aplicabilidade das regras da compropriedade às hipóteses de comunhão romana, com exclusão da comunhão em mão comum.

Sendo assim, o regime do artigo 1406.º, n.º 1, só não será aplicável à comunhão hereditária se se demonstrar a sua incompatibilidade com a natureza desta. A redacção desta norma é a seguinte: «Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito».

Não divisamos qualquer obstáculo à aplicabilidade desta norma ao uso das coisas que integram a comunhão hereditária pelos co-herdeiros. Se houver acordo entre estes, valerá esse acordo. Na falta dele, qualquer dos co-herdeiros terá o direito de usar as coisas que integram a comunhão hereditária, desde que respeite o fim a que cada uma delas se destina e não prive os restantes co-herdeiros da possibilidade de fazerem o mesmo.

A circunstância de os co-herdeiros não serem titulares de quotas sobre cada um dos bens que constituem a herança, mas apenas sobre a globalidade desta e para valerem no momento da partilha, é, para este efeito, irrelevante.

Mais, esta característica da comunhão hereditária até a torna mais harmoniosa com o regime do artigo 1406.º, n.º 1, que a própria compropriedade. Nesta, ao usar a totalidade da coisa, o comproprietário vai além das forças da sua quota. Daí a necessidade do n.º 2 do mesmo artigo, que esclarece que o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título.

Na comunhão hereditária, os co-herdeiros têm um direito unitário sobre cada uma das coisas que integram a herança, pelo que, quando um deles usa uma dessas coisas, não se verifica a desconformidade entre esse uso e o direito de que ele é titular sobre a mesma coisa. Daí que a aplicabilidade do n.º 2 à comunhão hereditária seja desnecessária. Dada a natureza unitária do direito dos co-herdeiros sobre cada uma das coisas que integram a herança, em caso algum o uso de uma dessas coisas por um deles poderia conduzir à usucapião, a menos que houvesse inversão do título da posse.

Concluímos, assim, que o regime do artigo 1406.º, n.º 1, é aplicável, ex vi artigo 1404.º, à comunhão hereditária, pelo que, na falta de acordo sobre o uso das coisas que integram a herança, qualquer dos co-herdeiros pode usá-las, contanto que, ao fazê-lo, respeite o fim a que cada uma delas se destina e não prive os restantes co-herdeiros do uso a que igualmente têm direito.

Daí que, quer o recorrente, quer o recorrido, sejam titulares de um direito a usar a fracção dos autos, direito esse decorrente da sua qualidade de herdeiros.

Não se trata aqui de cada um deles ter direito a metade da fracção, ou metade do direito de uso desta, como é referido na sentença recorrida. Por aplicação do regime do artigo 1406.º, n.º 1, quer o recorrente, quer o recorrido, por serem herdeiros, são titulares de um direito de uso da fracção, nos termos ali estabelecidos. Assim acontecerá até à partilha.

2 – Verificação dos pressupostos da responsabilidade civil:

A pretensão indemnizatória do recorrente funda-se em responsabilidade civil aquiliana. Cumpre verificar se se verificam os pressupostos desta, estabelecidos no artigo 483.º, n.º 1.

O recorrido reside na fracção, sem pagar qualquer contrapartida, desde a data da abertura da sucessão. O recorrente, por seu turno, tem sido impedido de utilizar a fracção e opõe-se a que o recorrido nela resida.

Vimos no ponto anterior que, quer o recorrente, quer o recorrido, por serem herdeiros, são titulares, cada um deles, de um direito de uso da fracção.

Este direito de uso não decorre da posse que eles tenham sobre a fracção, pelo que é inútil entrar na discussão sobre se os herdeiros são titulares dessa posse e em que termos.

O mesmo direito de uso também não integra o conteúdo de qualquer direito real de gozo de que recorrente e recorrido sejam titulares sobre a fracção. Nenhum deles é titular de um direito dessa natureza sobre qualquer das coisas que integram a herança.

A fonte de cada um dos direitos de uso da fracção é a qualidade de herdeiro que, quer o recorrente, quer o recorrido, têm, conjugada com o disposto nos artigos 1404.º e 1406.º, n.º 1. O recorrente é titular de um direito de uso da fracção e o recorrido é titular de outro direito de uso da fracção.

Os termos em que o recorrido vem exercendo o seu direito de uso da fracção desde a data da abertura da sucessão violam o disposto no artigo 1406.º, n.º 1, pois impedem o recorrente de, também ele, exercer o seu direito de uso da fracção. Daí que se verifique o primeiro pressuposto da responsabilidade civil aquiliana: a prática de um acto ilícito, por violação de um direito alheio.

O recorrente, não só nunca autorizou o recorrido a usar a fracção em exclusividade, como lhe comunicou, em Dezembro de 2018, que a isso se opunha. Nessa ocasião, o recorrente solicitou, ao recorrido, que este lhe entregasse as chaves da fracção, de forma a ter acesso à mesma, pedido esse que o segundo não satisfez. Em face disto, concluímos que o recorrido sabe que está a violar o direito do recorrente ao uso da fracção e, não obstante, persiste nessa conduta. Verifica-se, pois, o pressuposto da culpa, na modalidade de dolo.

Em consequência da actuação do recorrido, o recorrente encontra-se privado do uso da fracção desde 31.07.2014, data da abertura da sucessão. Contudo, não está provado que o recorrente tenha interpelado o recorrido para cessar o seu uso exclusivo e permitir que, ele próprio, também usasse a fracção, antes de Dezembro de 2018. Sendo assim, é lícito concluir que apenas desde esta última data o recorrente vem sofrendo danos em consequência da privação do uso da fracção.

Encontram-se, assim, reunidos os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana: acto ilícito e culposo, dano e nexo de causalidade entre aquele e este. O consequente direito a uma indemnização surgiu na esfera jurídica do recorrente, titular do direito violado.

3 – Montante da indemnização:

Os danos que, para o recorrente, resultam do facto de o recorrido estar a privá-lo de usar a fracção desde Dezembro de 2018, não são susceptíveis de uma avaliação em função do critério da diferença entre a sua efectiva situação patrimonial e aquela em que ele se encontraria se tal privação não ocorresse, estabelecido, como regra, no artigo 566.º, n.º 2. Em face disso, é aplicável o disposto no n.º 3 do mesmo artigo, de acordo com o qual o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

Está provado que, dando a fracção de arrendamento, seria possível obter um rendimento mínimo mensal de € 400. Mostra-se conforme com o critério de equidade estabelecido no artigo 566.º, n.º 3, calcular a perda que o recorrente sofreu em consequência de o recorrido o ter privado do uso da fracção desde Dezembro de 2018 em metade daquele valor mensal de € 400, ou seja, em € 200 por cada mês de duração dessa situação. Sendo dois os herdeiros, um uso equitativo da fracção – fosse em regime de coabitação, fosse para cada um deles a utilizar em períodos pré-determinados, fosse, simplesmente, para depósito de bens pessoais – traduzir-se-ia numa vantagem patrimonial avaliável em € 200 por mês para cada um deles. Tendo o recorrido privado ilícita e culposamente o recorrente desta vantagem, deverá ser no referido montante mensal de € 200 a indemnização que terá de lhe pagar. Tal indemnização apenas deixará de ser devida a partir do momento em que o recorrido desocupe a fracção ou, quando menos, permita que o recorrente a esta aceda e também posse a usá-la, entregando-lhe uma cópia das respectivas chaves.

Não se apurou em que dia do mês de Dezembro de 2018 o recorrente contactou o recorrido no sentido de lhe transmitir a sua oposição a que ele usasse em exclusivo a fracção e lhe solicitou as chaves desta para, também ele, ter acesso à mesma. Consequentemente, o primeiro mês relativamente ao qual existe o direito de indemnização do recorrente é o de Janeiro de 2019.

Sobre o montante indemnizatório acumulado até à data da citação, são devidos, pelo recorrido, juros de mora, à taxa supletiva legal, desde essa data até integral pagamento – artigos 805.º, n.º 3, e 806.º, n.ºs 1 e 2.

Sobre o montante indemnizatório que for devido pela ocupação ilícita da fracção a partir da data da citação, são devidos juros de mora, à taxa supletiva legal, desde o último dia do mês a que respeitar cada parcela de € 200 até integral pagamento – artigos 564.º, n.º 2, 805.º, n.º 2, al. b), e 806.º, n.ºs 1 e 2.

Em face da procedência dos pedidos de condenação do recorrido no pagamento de uma indemnização e dos respectivos juros de mora, fica prejudicada a apreciação do pedido de condenação do mesmo a celebrar um contrato de arrendamento com o recorrente.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e, julgando-se a acção totalmente procedente:

- Condena-se o recorrido a pagar, ao recorrente, uma indemnização, à razão de € 200 (duzentos euros) por mês, desde Janeiro de 2019, inclusive, até ao momento em que o recorrido desocupe a fracção ou, quando menos, permita que o recorrente a esta aceda e também passe a usá-la, entregando-lhe uma cópia das respectivas chaves;

- Condena-se o recorrido a pagar, ao recorrente, juros de mora, à taxa supletiva legal, sobre o montante indemnizatório acumulado até à data da citação, desde essa data até integral pagamento;

- Condena-se o recorrido a pagar, ao recorrente, pela ocupação ilícita da fracção a partir da data da citação, juros de mora, à taxa supletiva legal, desde o último dia do mês a que respeitar cada parcela de € 200 até integral pagamento.

Custas a cargo do recorrido.

Notifique.

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Évora, 11.04.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.ª adjunta)



[1] O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.04.2022, que vimos referindo, chama muito justamente a atenção para este aspecto, aí se afirmando que «a competência do cabeça de casal para administrar os bens da herança atribui-lhe os poderes necessários para a prática de atos e de negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens administrados […], neles não se incluindo, seguramente, a utilização dos bens da herança para seu exclusivo proveito, designadamente a utilização de um imóvel da herança para nele habitar com a sua família.»

[2] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume VI, Coimbra Editora, 1998, página 148, em anotação ao artigo 2088.º.

Acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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