terça-feira, 30 de abril de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Apreciação crítica da prova.

Regras da experiência comum.

Desconhecimento da língua portuguesa por contraente estrangeiro.

*

Processo n.º 335/20.6T8ODM.E1

Autor/recorrido:

RRR.

Réu/recorrente:

DDD.

Pedidos:

a) Reconhecimento da existência e da validade do contrato-promessa de compra e venda;

b) Reconhecimento da recusa do réu em realizar o contrato prometido;

c) Reconhecimento da ilegitimidade da conduta do réu em fazer seu o montante que lhe foi entregue e recebeu a título de sinal e princípio de pagamento, ou seja, € 12.000;

d) Condenação do réu no pagamento, ao autor, do valor que recebeu a tais títulos (sinal e princípio de pagamento), em dobro, ou seja, na quantia de € 24.000.

Sentença recorrida:

Julgou a acção procedente, por provada, e, em consequência:

a) Declarou não verificada a nulidade do contrato-promessa de compra e venda;

b) Reconheceu a existência e a validade do contrato-promessa de compra e venda;

c) Reconheceu a recusa do réu em realizar o contrato prometido;

d) Condenou o réu a pagar, ao autor, o valor de € 24.000, a título de restituição em dobro do sinal que por este lhe foi entregue.

Conclusões do recurso:

a) Verifica-se errada apreciação sobre a matéria de facto, e errada aplicação do Direito, nos moldes que passará a descrever.

b) O recorrente identificou, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640.º n.º 1, alíneas, a), b) e c), do CPC, os concretos pontos que considera incorrectamente julgados, e que impugna.

c) O tribunal a quo não realizou uma apreciação rigorosa, quer dos depoimentos prestados em audiência e julgamento, quer dos documentos juntos aos autos, plasmando na sua sentença uma errada critica, que fez da prova.

d) Traduzindo-se numa errada apreciação, quer de facto, quer de direito.

e) Para tanto, passará a indicar os pontos da matéria de facto, cuja apreciação, pretende ver alterada, por discordar da análise critica da prova, com relevo para a boa decisão da causa.

f) O tribunal a quo, não conjugou, uns depoimentos com outros, não identificando contraditoriedades colossais!

g) O tribunal a quo, assente nas regras da lógica e da experiência comum, formar a convicção que formou, nem analisar criticamente a prova, como analisou!

h) Nos termos e para o efeitos decorrentes do artigo 640º nº 1, alínea a), b) e c), e nº 2, alínea a) e b), cumpre apreciar.

i) Para tanto, foram transcritos os depoimentos das testemunhas, Paulo Varela, Francisca Gomes, João Luís, e Alberto Vicente, e identificadas as passagens da gravação em que se funda o recurso.

j) Reapreciada a prova produzida pelas identificadas testemunhas, e transcritos os depoimentos, verifica-se erro na apreciação da matéria de facto.

k) Pelo que os pontos 5 ao 7, e do 13 ao 14, identificados na douta sentença como matéria assente como provada, não podem ser considerados como provados, em virtude de resultar o oposto, das transcrições supra identificadas, tendo sido erradamente apreciada a prova testemunhal, ao invés terão de ser dados como não provados!

l) De igual modo, os factos descritos como não provados, na douta sentença recorrida, de a) a c), e e), por força da prova produzida, ao invés, terão de ser dados como provados!

m) Errou na apreciação da prova produzida, em vários aspectos, conforme supra se explana.

n) O tribunal a quo, falhou e errou de forma colossal, ao ter considerado que o réu, recorrente, dominava a língua portuguesa.

o) O réu, ora recorrente, não dominava, nem domina, a língua portuguesa, não podendo, nem tendo, entendido, os contratos que assinou, mormente, o contrato promessa de compra e venda!

p) As testemunhas foram absolutamente induzidas e manipuladas em respostas.

q) Sucede porém que no contra-interrogatório, e através da audição da gravação da prova produzida, verifica-se com relativa facilidade, que foram parciais, e tendenciosas, porém entraram em contradições intensas, sendo clarividente que tudo procuraram fazer, para assegurar a procedência acção.

r) As testemunhas criaram um cenário, sucede, que ouvidas em gravação, detecta-se contradições severas, razão pelo qual os depoimentos não podem ter o acolhimento que tiveram pelo tribunal a quo.

s) O tribunal a quo, por forma a alicerçar do desígnio que tinha traçado, descredibiliza apenas uma testemunha, o Alberto Vicente, que conhece o réu e recorrente, desde há anos, e assegura, que o réu, nada percebe de português;

t) O depoimento de Alberto Vicente, e das demais testemunhas, ouvidas as gravações, e as severas contradições, dúvidas não restam quanto ao facto do réu, ora recorrente: 1. não dominar a língua portuguesa, nem falada, nem escrita, 2. não ter sido ele a elaborar contrato promessa de compra e venda, 3. estar desacompanhado de advogado, 4. ter tido diante dele advogado do autor, 5. ter assinado contrato promessa de compra e venda redigido, pelo advogado do autor, 6. não ter sido tampouco lido o contrato de promessa de compra e venda , 7. nem o termo de autenticação foi lido, no dia das assinaturas pelo advogado do autor, João Luís, ouvido como testemunha 8. Não ter compreendido os termos dos documentos que assinou, 9. Porquanto não entendia a língua portuguesa, não tendo entendido os termos do negócio!

u) O depoimento da testemunha, Alberto Vicente, foi isento, firme e seguro, ao contrário do que o tribunal a quo, considerou: que não merecia acolhimento. fê-lo, por forma a não deixar pontas soltas à fundamentação fáctica e de direito, de raiz errada, mas que defendeu!

v) Ora os vícios da fundamentação, de uma sentença poderão inquinar a decisão de facto,

w) Significando que nestas situações, as partes, designadamente em sede de recurso, devem alegar o motivo, que as leva a entender estarem perante matéria fáctica, rogando, para tanto, a deficiência.

x) A douta sentença recorrida, peca por obscuridade: dever da resposta aos quesitos, apreciados individualmente ou em articulação com as demais respostas, dever ser clara e perceptível, sem que reste qualquer dúvida sobre a posição do tribunal.

y) As respostas isoladas, ou conjugadas com as demais, e com a matéria assente, deve, forçosamente, ser harmonizáveis, coerentes, concordantes, de interpretação única e clara, por forma, a que na fase da aplicação do direito, não sejam suscitadas dúvidas sobre o sentido das respostas, garantindo que não subsistirão dificuldades que impeçam uma correcta interpretação jurídica.

z) Tal não sucedeu, atente-se às transições supra realizadas,

aa) A douta sentença recorrida peca, ainda pela contradição, vício, que ocorre, através de duas ou mais partes da resposta, ou duas ou mais respostas conjugadas entre si, incompatíveis, no sentido de que a verificação de uma determinada realidade de facto exclui a outra.

bb) A decisão não foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração e, portanto, de forma imparcial;

cc) Não fez o tribunal a quo, sobre todas as provas produzidas, uma prudente apreciação!

dd) O tribunal a quo, cometeu uma errada ponderação.

ee) Não respeitou critérios objectivos e controláveis de valoração, não resultando em apreciação imparcial.

ff) Pelo exposto considera a recorrente, que a decisão da matéria de facto, não se encontra adequadamente fundamentada!

gg) O tribunal a quo, com a aplicação que fez do direito, violou as normas decorrentes dos artigos 224º, 247º, 251º, 2 do artigo 410º, e nº 2 do artigo 442º, todos do Código Civil, e artigos 70º nº 1 alínea b), 150º, e 151º nº 1 alínea a), do Código de Notariado,

hh) O réu, agiu em erro, atento facto de ter assinado contrato promessa de compra e venda, cujo conteúdo não lhe foi explicado, nem conhecidas as necessárias implicações;

ii) Sucede que no caso sub judice, e em conformidade com o estipulado no artigo 224º do CC, a vontade do declarante, não pode ser considerada manifestada, devendo antes ser considerada, de ineficaz;

jj) A declaração negocial, deverá ser pelas supra expostas razões, considerada nula, conforme resulta do artigo 220º, e nº 2 do artigo 410º do, ambos do CC,

kk) Em bom rigor, não estamos na presença de uma declaração de vontades, e por essa banda, não vincula o réu,

ll) Ora estamos diante de falta de consciência da declaração,

mm) Inexistiu vontade de declaração negocial, por parte do réu,

nn) O réu não teve consciência, do que assinou, por desconhecer o conteúdo, do contrato promessa de compra e venda, e do termo de autenticação,

oo) Não tomou o réu, conhecimento, da vinculação pretendida através do clausulado do contrato promessa,

pp) É por demais evidente, que para existir declaração negocial, importa em abstracto, que a pessoa, em concreto o réu, queira celebrar aquele negócio jurídico e não outro, e tenha consciência de que está a celebrar aquele negócio e não outro.

qq) Pelo que tem o recorrido, o dever de restituir ao autor ora recorrido, o sinal em singelo,

rr) A invocada excepção de nulidade do negócio jurídico, deve ser julgada procedência;

ss) O contrato promessa de compra e venda deve ser considerado inválido,

tt) Desta feita, considera-se que o réu não incumpriu com a obrigação, nos termos e para os efeitos decorrentes do disposto no nº 2 do artigo 442º do CC.

uu) A sentença impugnada, deveria ter considerado, reunidos, os pressupostos impostos pelo artigo 247.º do Código Civil, e concluir-se pela anulabilidade do negócio.

Questões a decidir:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Excepção peremptória de nulidade do contrato-promessa.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1) O prédio urbano sito na freguesia de (…), concelho de (…), inscrito na matriz urbana da referida freguesia, sob o art.º (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de (…), sob a ficha n.º (…), encontra-se registado a favor do réu.

2) O réu celebrou com a imobiliária Sociedade 1, Lda. um acordo para que esta, no âmbito da sua actividade, diligenciasse pela venda do imóvel descrito em 1).

3) A empresa de mediação imobiliária representou o réu em toda a fase da negociação para venda.

4) No acordo descrito em 2), datado de 16/11/2018, que as partes denominaram “contrato de mediação imobiliária”, pode ler-se na cláusula segunda:

“A mediadora obriga-se, em nome do segundo contratante, a procurar destinatário para a realização do negócio jurídico de compra e venda pelo valor de 250.000 Euros (Duzentos e cinquenta mil euros)…”

5) Posteriormente à celebração do denominado “contrato de mediação imobiliária” descrito em 2) e em 4), o autor propôs e aceitou a aquisição do imóvel descrito em 1) pelo preço de € 232.000,00, tendo o réu aceitado a venda por este valor.

6) No seguimento da negociação descrita em 5), foi acordada a data para a celebração de um acordo que as partes denominaram contrato-promessa de compra e venda, e ainda que seria o réu a redigir o mesmo.

7) O réu apresentou o acordo referido em 6) previamente escrito para ser celebrado.

8) No dia 20 de Maio de 2019, foi celebrado e outorgado um acordo que as partes denominaram “contrato promessa de compra e venda”, que aqui se dá por integralmente reproduzido, entre o autor, na qualidade de promitente comprador, e o réu, na qualidade de promitente vendedor, documento particular que foi objecto de autenticação, através de termo lavrado perante advogado, aí se podendo ler:

“…

Pelos mesmos foi dito:

Que, leram e assinaram o documento que antecede, que é um contrato promessa de compra e venda, e que o mesmo exprime a sua vontade.

Assim disseram e outorgaram.

Este instrumento foi lido aos outorgantes, tudo em voz alta e na sua presença, pessoas cuja identidade verifiquei…”.

9) O autor entregou ao réu, com a aceitação e assinatura do contrato-promessa de compra e venda, o montante de € 12.000,00, podendo ler-se nesse documento:

“CLÁUSULA TERCEIRA

1. O preço global para a prometida compra e venda é de 232.000,00 (Duzentos e tinta e dois mil Euros), a pagar pelo PROMITENTE COMPRADOR ao PROMITENTE VENDEDOR conforme segue:

a) A importância de 12.000,00€ (Doze mil Euros) a título de sinal, valor que será pago na assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, por transferência bancária a ser efetuada para a conta com o NIB (…) do Banco (…) e cujo titular é o PROMITENTE VENDEDOR.

b) (…)

(…)

CLÁUSULA NONA

1. O PROMITENTE VENDEDOR pode resolver o presente contrato, fazendo seu o sinal, no caso do PROMITENTE COMPRADOR faltar dolosamente à outorga da escritura pública de compra e venda prometida, impossibilitar a sua realização, não proceder á liquidação de qualquer um dos pagamentos nos termos e condições previstas na cláusula 3.ª supra, ou por causa a si dolosamente imputável, deixar decorrer o prazo previsto no n.º 1 da cláusula 4.ª.

2. O PROMITENTE COMPRADOR pode resolver o presente contrato, exigindo do PROMITENTE VENDEDOR a restituição em dobro do sinal e respetivos reforços, se a escritura pública de compra e venda prometida não for celebrada por causa dolosamente imputável ao PROMITENTE VENDEDOR.”.

10) Na cláusula terceira do acordo referido em 8), consta ainda:

“CLÁUSULA TERCEIRA

1. O preço global para a prometida compra e venda é de 232.000,00 (Duzentos e tinta e dois mil Euros), a pagar pelo PROMITENTE COMPRADOR ao PROMITENTE VENDEDOR conforme segue:

a) (…)

b) O remanescente do preço, ou seja, a quantia de 220.000,00€ (Duzentos e vinte mil Euros), será pago no ato da outorga da escritura pública de compra e venda, mediante cheque bancário ou visado emitido à ordem do PROMITENTE VENDEDOR.”

11) Na “cláusula quarta” do acordo referido em 8), pode ler-se:

“CLÁUSULA QUARTA

1. A escritura pública de compra e venda do negócio prometido realizar-se-á até 22 de julho de 2019.

2. (…)”.

12) Na “cláusula quarta” do acordo referido em 8), pode ainda ler-se:

“CLÁUSULA QUARTA

1.(…)

2. A marcação de escritura a que alude o número anterior caberá ao PROMITENTE COMPRADOR, os quais deverá notificar para o efeito o PROMITENTE VENDEDOR, por meio de carta registada expedida com a antecedência mínima de 12 (doze) dias, indicando o dia, hora e Cartório Notarial ou outro local em que aquela se realizará.”.

13) Após a assinatura do acordo referido em 8), foi acordado, verbalmente, entre as partes, que seria o promitente vendedor, o ora réu, através da empresa de mediação imobiliária Sociedade 1, Lda., a marcar a data da escritura pública de compra e venda e a comunicar a data, ao promitente comprador, ora autor, através de contacto pessoal.

14) O réu, no acto de outorga do acordo que as partes denominaram “contrato de promessa compra e venda”, comunicou em português e disse que não precisava de intérprete, nem de tradução.

15) No acto de outorga, quer do denominado acordo “Contrato Promessa de Compra e Venda”, quer do termo de autenticação, a leitura destes documentos foi efectuada na língua portuguesa.

16) Em consonância com o acordo verbal referido em 13), a empresa de mediação imobiliária Sociedade 1, Lda. marcou para o dia 22 de julho de 2019 a escritura pública do contrato prometido, no Cartório Notarial de (…), a cargo da Notária(…), sito na Rua (…), em (…).

17) Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 19 de julho de 2019, a data mencionada em 16) foi comunicada pela empresa de mediação imobiliária Sociedade 1, Lda., por telefone e mensagem escrita, a ambas as partes intervenientes no acordo que denominaram de “contrato promessa de compra e venda”.

18) Em 19 de julho de 2019 a empresa de mediação imobiliária Sociedade 1, Lda., transmitiu ao promitente comprador, ora autor, uma mensagem de correio eletrónico da mandatária do promitente vendedor, ora réu, com o seguinte teor:

“Na qualidade de mandatária do Sr. DDD, informo V.Exas. que após ter analisado os termos do Contrato Promessa de Compra e Venda, considero que o mesmo, não foi pelo Promitente Comprador cumprido, em virtude de recair sobre o mesmo, conforme resulta do nº 2 da clausula quarta do referido Contrato, o dever de notificar o Promitente Vendedor, da marcação da escritura, através de carta registada, com antecedência mínima de 12 dias úteis , indicando o dia , a hora e o Cartório Notarial.

Acresce que a mesma clausula fixa como prazo para realização da escritura de compra e venda, a data de 22 de Julho de 2019 , próxima segunda feira.

Atento o exposto, tem o promitente vendedor o direito de fazer seu o sinal entregue pelo promitente comprador, podendo em alternativa requer a execução específica do contrato.

Manifesta todavia, que não irá requer a execução específica do contrato.

Posto isto, considera-se resolvido o Contrato de Compra e Venda, por causa imputável ao Promitente Comprador.

Solicita-se a entrega imediata das chaves, que têm em v/ poder.”

19) O réu, promitente vendedor, não compareceu à escritura pública agendada para o dia 22 de Julho de 2019, no Cartório Notarial de (…).

20) O autor diligenciou pela marcação de nova data para realização da escritura pública de transmissão/aquisição do prédio urbano descrito em 1) para o dia 29 de Agosto de 2019, no mesmo Cartório Notarial.

21) Mediante o envio de carta registada com aviso de receção, e pelo seguro do correio através do registo n.º (…), foi no dia 31 Julho de 2019 comunicada ao réu a data indicada em 20).

22) A carta enviada em 31 de julho de 2019 foi rececionada pelo próprio réu em 02 de Agosto de 2019.

23) O réu não compareceu à escritura pública de transmissão agendada para 29 de agosto de 2019.

24) Aquando da celebração do acordo referido em 2), o réu entregou à sociedade imobiliária ali identificada as chaves do imóvel descrito em 1).

25) O réu outorgou uma escritura de compra e venda no dia 01/07/2015, junto do Cartório Notarial de (…), perante a notária Dra. (…), com a presença de intérprete.

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

a) O réu pretendeu sempre vender o prédio urbano descrito em 1) pelo preço nunca inferior a € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros).

b) O termo de autenticação descrito no facto provado 6), não foi lido, nem compreendido pelo réu, em virtude do mesmo ter naturalidade e nacionalidade francesa e desconhecer em absoluto a língua portuguesa, falada e escrita.

c) Não foi explicado ao réu o conteúdo do contrato promessa de compra e venda descrito no facto provado 6).

d) O réu recolheu interpretação e tradução do contrato promessa de compra e venda, em data posterior à da receção da comunicação assinada pelo autor, que propunha a outorga da escritura para 22 de julho de 2019.

e) Só na sequência do descrito em d), o réu constatou que o resultante do contrato promessa de compra e venda por si assinado não estava em conformidade com a sua vontade, designadamente no que ao preço fixado respeita.

f) As chaves do imóvel descrito no facto provado 1) foram pela Imobiliária entregues ao autor.

*

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

O recorrente pretende que os factos constantes dos n.ºs 5 a 7, 13 e 14 sejam julgados não provados e que os factos constantes das als. b) a e) sejam julgados provados.

A defesa do recorrente assenta fundamentalmente na alegação de que:

- Por ter naturalidade e nacionalidade francesas, desconhece, em absoluto, a língua portuguesa, falada e escrita;

- Em consequência desse desconhecimento da língua portuguesa, assinou o contrato-promessa sem estar ciente do seu conteúdo, nomeadamente do preço nele estipulado para o contrato de compra e venda prometido.

Antes de reapreciarmos a prova referida pelo recorrente, analisemos a posição por este assumida à luz das regras da experiência comum, tendo em consideração a matéria de facto que se encontra consolidada. É que não basta o recorrente insistir que não conhece a língua portuguesa, falada ou escrita, e, por essa razão, não estava ciente do conteúdo do contrato-promessa. Há que, hipotisando tal desconhecimento, tentar encontrar uma justificação para os factos comprovadamente praticados pelo recorrente. Quanto mais difícil se mostrar essa justificação, mormente à luz das regras da experiência comum, menos verosímil teremos de considerar a versão que o recorrente sustenta.

Está provado que, em 01.07.2015, o recorrente outorgou uma escritura pública de compra e venda, tendo, então, sido assistido por um intérprete.

Com base neste facto, podemos concluir que:

1) O contrato dos autos não foi o primeiro que o recorrente celebrou em Portugal;

2) O recorrente tem noção de que a celebração de um contrato constitui um acto cuja importância exige que ele conheça o seu conteúdo e efeitos com exactidão; ou seja, o recorrente é uma pessoa avisada e não um irresponsável;

3) O recorrente sabe que, quando se mostra necessário conhecer o conteúdo de um acto praticado numa língua que não conhece, convém assegurar o auxílio de um intérprete.

Em 20.05.2019, o recorrente assinou o contrato-promessa dos autos. É consensual que o recorrente não foi assistido por intérprete, não se considerando como tal a pessoa que o acompanhou nessa ocasião.

O recorrente afirma que, em 20.05.2019, não conhecia a língua portuguesa, falada ou escrita, e, por essa razão, não estava ciente do conteúdo do contrato-promessa. Não obstante, assinou-o. Sendo assim, a imagem que o recorrente pretende dar de si é a de alguém que assina um contrato, redigido numa língua estrangeira que desconhece em absoluto, cujo conteúdo, obviamente, também desconhece.

Esta imagem não é compatível com aquela que o recorrente deu de si próprio em 01.07.2015. Nesta ocasião, ele actuou com um grau de diligência normal, não assinando um contrato redigido numa língua estrangeira que desconhecia sem estar assessorado por um intérprete. Já em 20.05.2019, estaríamos, a acreditar no recorrente, perante uma pessoa totalmente irresponsável, capaz de assinar um contrato sem fazer a menor ideia do seu conteúdo.

Note-se que o recorrente não afirma ter-se limitado a interpretar mal uma palavra ou uma frase, atribuindo-lhes um sentido diverso daquele que lhes atribuiria um contraente que dominasse a língua portuguesa. Em vez disso, afirma desconhecer em absoluto a língua em que o contrato foi redigido, ao ponto de nem sequer ter percebido qual era o preço a estipular no contrato prometido, não obstante tratar-se de um elemento expresso, não só por extenso, mas também em algarismos. Daí afirmarmos que o recorrente pretende dar, de si, a imagem de alguém capaz de assinar um contrato referente à venda de um imóvel sem fazer a mínima ideia do seu conteúdo.

Isto não é credível.

Dizem-nos as regras da experiência comum que salvo, porventura, em hipóteses de excepcional ingenuidade ou descuido, ou de défice cognitivo (pontual ou duradouro), ninguém assina um contrato redigido numa língua que lhe seja totalmente desconhecida sem se encontrar assessorada por pessoa em quem confie, como um familiar que conheça aquela língua, um advogado ou um intérprete. Ora, o recorrente não fornece qualquer dado que nos permita acreditar que ele seja uma pessoa particularmente ingénua ou descuidada, que se tenha deixado ludibriar ao ponto de assinar um contrato de cuja redacção não entendeu uma única palavra, ou que padeça de algum défice cognitivo que o torne presa fácil de quem pretenda enganá-lo.

Mais, a forma como o recorrente actuou em 01.07.2015 afasta, sem margem para dúvidas, a imagem que ele agora pretende dar de si. É seguro que o recorrente não é uma pessoa tão ingénua, tão descuidada, ou tão mentalmente débil, que, sem ser assessorado por alguém em quem confie, assine um contrato redigido numa língua de que não entende uma única palavra.

Por outro lado, há que atentar no objecto do suposto erro do recorrente. Tal erro teria incidido sobre o montante do preço da venda que prometeu efectuar. O recorrente teria prometido vender pelo preço de € 232.000, supondo que estava a prometer vender pelo preço de € 250.000.

Nem sequer na hipótese, já de si inverosímil, de, quando celebrou o contrato-promessa dos autos, o recorrente desconhecer, em absoluto, a língua portuguesa, isto seria credível. Constam do contrato-promessa, mais precisamente da sua cláusula 3.ª, três valores pecuniários expressos em algarismos: € 232.000, € 12.000 e € 220.000. Em parte alguma do contrato consta o valor de € 250.000. Logo, ainda que não conseguisse ler uma única palavra em português, o recorrente não teria qualquer fundamento para supor que estava a prometer vender o imóvel por € 250.000.

Mais, no momento da celebração do contrato-promessa, o recorrente recebeu € 12.000 a título de sinal e princípio de pagamento. Esta quantia corresponde à diferença entre € 232.000 e € 220.000, que são os outros valores expressos em algarismos no contrato-promessa. Nem assim o recorrente conseguiu perceber que o preço pelo qual prometeu vender era de € 232.000 e que, dado o pagamento antecipado de € 12.000, receberia € 220.000 aquando da celebração do contrato prometido? Não é possível.

Atentemos ainda no seguinte:

Em 16.11.2018, o recorrente celebrou um contrato de mediação imobiliária, visando a venda do imóvel que posteriormente prometeu vender ao recorrido. É pacífico que o recorrente entendeu o conteúdo desse contrato, redigido em português, nomeadamente que o preço nele mencionado para o imóvel era de € 250.000. Não há notícia de o recorrente ter sido assistido por intérprete, o que constitui mais um indício de que, então, ele já havia adquirido um conhecimento da língua portuguesa suficiente para ler o contrato e ficar ciente do seu conteúdo. Não é crível que, em 20.05.2019, o seu conhecimento da língua portuguesa tivesse regredido ao ponto de não entender, como afirma, uma única palavra do contrato-promessa. Mais, de não entender, sequer, os valores expressos em algarismos, pensando que um deles era de € 250.000, hipótese em que a regressão do recorrente já não se circunscreveria ao conhecimento da língua portuguesa.

Concluindo esta apreciação preliminar da tese do recorrente, diremos que é, logo à partida, inverosímil que este, como alega, desconhecesse, em absoluto, a língua portuguesa, falada e escrita, na data em que celebrou o contrato-promessa dos autos.

Passemos à reapreciação dos meios de prova invocados pelo recorrente.

As testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís foram unânimes na afirmação de que, na data da celebração do contrato-promessa, o conhecimento que o recorrente tinha da língua portuguesa lhe permitiu perceber perfeitamente o seu conteúdo e efeitos. Acresce que o recorrente se fazia acompanhar por uma senhora portuguesa, que poderia auxiliá-lo caso ele necessitasse.

O recorrente invoca os depoimentos destas testemunhas, mas exclusivamente para os rotular como não credíveis. Com esse fundamento, parece pretender que o tribunal ad quem julgue provado o contrário daquilo que as mesmas testemunhas afirmaram, mormente que ele não falava nem percebia uma palavra de português. Isto não faz o menor sentido, como é evidente.

O único depoimento que o recorrente considera credível é aquele que foi prestado pela testemunha Alberto Vicente. Ao contrário de Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís, Alberto Vicente não presenciou qualquer dos factos em que o recorrente interveio, apenas se tendo pronunciado, genericamente, sobre o conhecimento que aquele tem da língua portuguesa.

Note-se que nem sequer Alberto Vicente corroborou a afirmação do recorrente segundo a qual desconhece, em absoluto, a língua portuguesa, quer falada, quer escrita. Não é rigorosa a afirmação, constante das alegações de recurso, segundo a qual Alberto Vicente assegurou, sem margem para dúvidas, que o recorrente não compreendeu absolutamente nada do que resultava escrito no contrato, nem os direitos, nem as obrigações. Alberto Vicente afirmou, sim, que o recorrente não poderia compreender «os termos técnicos portugueses». Não que o recorrente fosse incapaz de perceber que o preço de venda do imóvel seria de € 232.000. O sentido comum da palavra «preço» coincide com o seu sentido técnico e a quantia expressa em algarismos é tão perceptível por um francófono como por um lusófono, como é evidente.

Certo é que nunca poderia considerar-se provado que o recorrente desconhecesse em absoluto a língua portuguesa, ao ponto de não conseguir perceber que, ao celebrar o contrato-promessa, estava a prometer vender o imóvel pelo preço de € 232.000 e não pelo de € 250.000 (cifra nunca é mencionada do contrato, de novo salientamos). Além dos depoimentos em sentido contrário das testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís, obstam decisivamente à formação de tal convicção as razões que expusemos preliminarmente.

Ao contrário, é seguro, tendo em conta a análise objectiva da actuação do recorrente, a que procedemos, e os depoimentos das testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís, que aquele ficou ciente do conteúdo e dos efeitos do contrato-promessa.

Analisemos, à luz desta conclusão fundamental, cada um dos pontos de facto relativamente aos quais o recorrente manifesta discordância.

N.º 5 e al. a):

O preço fixado, no contrato-promessa, para a compra e venda, foi de € 232.000. Tendo o recorrente assinado o contrato-promessa e estando demonstrado que ele estava ciente do conteúdo e dos efeitos deste, conclui-se que, posteriormente à celebração do contrato de mediação mobiliária, recorrente e recorrido acordaram que o preço da compra e venda seria de € 232.000. Logicamente, não é verdade que o recorrente sempre tenha pretendido vender o imóvel por preço não inferior a € 250.000. Daí que o n.º 5 e a al. a) devam manter-se.

N.ºs 6 e 7:

O facto de, na sequência da negociação descrita em 5, recorrente e recorrido terem acordado uma data para celebrarem o contrato-promessa, resultou dos depoimentos, não contrariados por qualquer meio de prova, das testemunhas Paulo Varela e Francisca Gomes, cuja credibilidade, ao contrário do que o recorrente sustenta, não nos suscita qualquer reserva.

O recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal a quo de julgar provado que o recorrente e o recorrido acordaram que seria o primeiro a redigir o contrato-promessa. Insurge-se, igualmente, contra a decisão do tribunal a quo de julgar provado que, em execução desse acordo, ele próprio apresentou o contrato-promessa, previamente escrito, para ser celebrado.

Estamos perante factos instrumentais, tendentes a demonstrar que o recorrente estava ciente do conteúdo do contrato-promessa. É indiferente, para a procedência da acção, quem elaborou o contrato-promessa e o apresentou à contraparte. Ora, tendo ficado demonstrado, pelas razões acima expostas (que se basearam, como frisámos, apenas na matéria de facto consolidada), que o recorrente estava ciente do conteúdo do contrato-promessa, o referido facto instrumental deixou de ter utilidade. O facto principal ficou provado por outra via. Consequentemente, a alteração pretendida pelo recorrente traduzir-se-ia na prática de um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC, que consagra o princípio da limitação dos actos.

N.º 13:

A matéria de facto constante do n.º 13 é irrelevante para a decisão da causa, atento o fundamento com que o recorrente contestou a acção.

Trata-se de matéria alegada na petição inicial, a qual foi elaborada tendo como referencial o fundamento invocado pelo recorrente para, através de e-mail enviado, pela sua advogada, ao recorrido, resolver o contrato-promessa. Apenas nessa perspectiva seria útil discutir se, posteriormente à celebração do contrato-promessa, recorrente e recorrido acordaram verbalmente que seria o primeiro, através da mediadora, a marcar a data da escritura pública de compra e venda e a comunicá-la ao segundo, através de contacto pessoal.

Porém, não foi com esse fundamento que o recorrente contestou a acção, mas sim com o de que o contrato-promessa é nulo devido à ocorrência de um vício na formação da sua vontade, que inquinou a sua declaração negocial. Tendo-se a discussão deslocado para a questão, logicamente anterior, da procedência desta excepção peremptória, a matéria constante do n.º 13 perdeu relevância. É indiferente que a marcação da escritura pública e a comunicação da data desta à contraparte tenham ficado a cargo do recorrente ou do recorrido. Interessa, sim, saber se o fundamento de nulidade do contrato-promessa invocado pelo recorrente se verificou.

Sendo assim, também esta alteração se traduziria na prática de um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC.

N.º 14:

Pelas razões que anteriormente expusemos, é nossa convicção que, na data da celebração do contrato-promessa, o conhecimento que o recorrente tinha da língua portuguesa era suficiente ele para ficar ciente do conteúdo e dos efeitos daquele, bem como para comunicar nessa língua. Dos depoimentos das testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís resultou que o recorrente comunicou efectivamente em português e afirmou não precisar, nem de intérprete, nem de tradução do contrato. Logo, a decisão do tribunal a quo sobre esta matéria está correcta.

Al. b):

Já nos pronunciámos acerca do alegado desconhecimento absoluto da língua portuguesa por parte do recorrente.

Resultou dos depoimentos das testemunhas Paulo Varela, Francisca Gomes e João Luís que o termo de autenticação descrito no n.º 6 foi lido e compreendido pelo recorrente.

Deverá, pois, manter-se como não provado o conteúdo da al. b).

Als. c), d) e e):

Inexistiu, pura e simplesmente, prova de que:

- O conteúdo do contrato-promessa não foi explicado ao recorrente;

- Só posteriormente à celebração do contrato-promessa o recorrente «recolheu interpretação e tradução» deste;

- E só na sequência de tal «recolha de interpretação e tradução» do contrato-promessa o recorrente se tenha apercebido da alegada, mas não provada, desconformidade entre o conteúdo daquele e a sua vontade.

Daí que deva manter-se como não provado o conteúdo das als. c), d) e e).

Concluindo:

A decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto deverá manter-se na íntegra.

2 – Excepção peremptória de nulidade do contrato-promessa:

Como vimos em 1, não ficou provado que o recorrente celebrou o contrato-promessa por ter pensado, erradamente, que estava a obrigar-se a vender o imóvel de que é proprietário pelo preço de € 250.000. Ao contrário, ficou demonstrado que o recorrente se encontrava ciente de todo o conteúdo do contrato-promessa no momento da sua celebração, nomeadamente de que o contrato de compra e venda seria celebrado pelo preço de € 232.000. Consequentemente, inexistiu qualquer divergência entre a vontade real do recorrente e a sua vontade declarada, improcedendo, assim, a excepção peremptória de nulidade do contrato-promessa por ele suscitada. Improcede, assim, o recurso, devendo a sentença recorrida manter-se integralmente.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

*

Évora, 11.04.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)

 

Acórdão da Relação de Évora de 23.05.2024

Processo n.º 2108/21.0T8FAR.E1 * Sumário: 1 – Quando invoque, como fundamento de um pedido de alteração da decisão sobre a matéria de ...