segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2024

Processo n.º 1572/16.3T8STR-J.E1

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Sumário:

1 – Até à partilha, os herdeiros não são comproprietários de cada um dos bens que integram a herança. Em vez disso, cada herdeiro é titular de uma quota hereditária e apenas por efeito da partilha poderá passar a ser proprietário (ou, eventualmente, comproprietário) de bens concretos da herança.

2 – Em consequência do referido em 1, sendo o insolvente titular de uma quota de 1/6 numa herança indivisa, aquilo que pode ser apreendido no processo de insolvência é a referida quota e não uma quota-parte de 1/6 do direito de propriedade sobre um imóvel que integra a herança.

3 – Numa insolvência como a descrita em 2, ainda que o administrador da insolvência, no auto de apreensão de bens, tenha, erradamente, descrito o direito do insolvente como incidindo directamente sobre o imóvel, nenhum crédito, ainda que qualificado como garantido, poderá obter satisfação à custa da totalidade do valor obtido com a venda do mesmo imóvel.


Texto integral: link


sábado, 14 de setembro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2024

Processo n.º 836/20.6T8BNV.E1

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Associação.

Entidades previstas no n.º 1 do artigo 46.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.

Concessão, por município, da gestão de zona de protecção e enquadramento de um loteamento.

Sub-rogação.

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Autora/recorrente:

Associação de Proprietários de (…).

Réus/recorridos, na qualidade de herdeiros do primitivo réu, AAA:

BBB;

CCC.

Pedido:

Condenação dos réus no pagamento das contribuições em dívida, no valor global de € 2.100, bem como das contribuições vincendas, com juros de mora à taxa legal, a partir da citação.

Sentença recorrida:

Julgou a acção parcialmente procedente, condenando os réus, na qualidade de herdeiros do primitivo réu, a pagarem, à autora, quantia pecuniária, a liquidar em incidente de liquidação, correspondente à sua quota-parte – equivalente à proporção do valor do lote n.º (...), de que é proprietária a herança indivisa de AAA – no valor global das despesas que a autora comprovadamente haja efectuado para cumprimento das obrigações assumidas na cláusula 3.ª do acordo de cooperação celebrado, em 27.04.2016, com o Município de (...), desde Dezembro de 2016, com o limite de € 2.100 relativamente às despesas do período de Dezembro de 2016 a Janeiro de 2020.

Conclusões do recurso:

1 – Vem o presente recurso interposto da douta sentença que condenou os réus, na qualidade de herdeiros do primitivo réu, AAA, a pagar à autora quantia pecuniária, a liquidar em incidente de liquidação, correspondente à quota-parte dos réus – equivalente à proporção do valor do lote n.º (...), de que é proprietária a herança indivisa de AAA, cfr. artigo 1424º, nº 1, do Cód. Civil – no valor global das despesas que a autora comprovadamente haja efectuado para cumprimento das obrigações assumidas na cláusula 3.ª do acordo de cooperação celebrado em 27-04-2016 com o Município de (...) desde Dezembro de 2016 (com o limite de 2.100 Euros relativamente às despesas do período de Dezembro de 2016 a Janeiro de 2020).

2 – Destas considerações retirou a Mma Juiz “a quo” a conclusão de que «existe de facto uma obrigação dos Réus, para com a Autora, que tem por fundamento a sub-rogação do direito do Município de (...) sobre os réus, a favor da autora, operada através do acordo de cooperação dos autos.»

3 – Tal conclusão assenta, salvo o devido respeito, num equívoco que é o de considerar que, por via do acordo de cooperação, o município de (...) «…cedeu à Autora os direitos (ou créditos) que detinha sobre os moradores.».

4 – Na verdade a Autora é, ela própria, uma das entidades previstas no art.º 46.º do RJUE que dispõe que «a gestão das infraestruturas e dos espaços verdes e de utilização colectiva pode ser confiada a moradores ou grupo de moradores…. mediante a celebração com o município de acordos de cooperação».

5 – Não faria qualquer sentido e não foi essa, seguramente, a intenção do legislador, considerar que a gestão das infraestruturas e dos espaços verdes e de utilização colectiva pudesse ser confiado a moradores ou grupo de moradores das zonas loteadas e urbanizadas, individualmente considerados como contratantes, e não pudesse ser confiada a associações de moradores/proprietários, legalmente constituídas para o mesmo fim.

6 – Assim, deverá entender-se que uma associação de moradores/proprietários, constituída, em conformidade com o alvará de loteamento, para assegurar a gestão das infraestruturas e dos espaços verdes e de utilização colectiva, integra o elenco dos co-contratantes privados previstos no n.º 1 do art.º 46.º do RJUE.

7 – A legitimidade da Autora advém, portanto, não da cedência, por via do acordo de cooperação, dos direitos que o município detinha sobre os moradores, mas sim do próprio acordo de cooperação celebrado em conformidade com o disposto no RJUE e no alvará de loteamento.

8 – Falece, também, pelo exposto, a invocação do instituto do enriquecimento sem causa como fonte da obrigação dos Réus.

9 – Sendo certo que a Autora não pretende – e não podia pretender – que seja seu associado quem não quer ser e, consequentemente, não pode exigir o pagamento de quotizações, enquanto tal, a quem não é seu associado, nada impede que, investida do poder de gestão que lhe foi confiado, por via do acordo de cooperação celebrado com o município, exija a todos os proprietários e moradores o pagamento da necessária contribuição monetária indispensável ao cumprimento das obrigações decorrentes do dever (porque de um verdadeiro dever se trata e não de um mero poder) que sobre todos recai, sejam ou não associados da autora, e que lhes é imposto pelo alvará de loteamento.

10 – As condições estabelecidas no alvará vinculam a Câmara Municipal e o proprietário do prédio e ainda, desde que constantes do registo predial os adquirentes dos lotes (n.º 4 do art.º 29º do D.L. 448/91 e actualmente, art.º 43º do D.L. 555/99, de 16 de Dezembro).

11 – Neste particular, cita-se a decisão recorrida na parte que se transcreve: «… os custos inerentes ao cumprimento dessas obrigações têm de correr por conta dos proprietários, pois que seria desprovido de sentido, atribuir a gestão aos proprietários e obrigar o Município a arcar com os custos dessa gestão …».

12 – Entendeu a Mma Juiz “a quo” que a quantia pecuniária que a autora tem a receber da ré «… há-de corresponder às despesas efectuadas pela autora com o cumprimento das obrigações contempladas na cláusula 3.ª do acordo de cooperação».

13 – Continuando a citar a decisão recorrida, «… atenta a similitude entre a obrigação dos proprietários dos lotes e a obrigação dos condóminos na propriedade horizontal, e até por apelo ao que se previa no n.º 3 do art.º 15.º do Decreto-Lei n.º 448/91 de 29-11 (com correspondência ao actual art.º 43.º, n,º 4 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16-12) - «Os espaços verdes privados constituem partes comuns dos edifícios a construir nos lotes resultantes da operação de loteamento e regem-se pelo disposto nos artigos 1420.º a 1438.º do Código Civil – é de aplicar a regra do art.º 1424.º, n.º 1 do Cód. Civil de acordo com a qual cada um dos proprietários dos lotes deverá comparticipar nas referidas despesas na proporção do valor das suas fracções.».

14 – No regime da propriedade horizontal o valor da quota deve ser calculado tendo em conta os gastos previstos no orçamento para esse ano e deve ser aprovado em reunião de condóminos.

15 – Ora, foi com base no orçamento das despesas decorrentes da gestão da área de enquadramento que está confiada à Autora que a sua assembleia geral deliberou, em 30.01.2010, (v. 12 dos factos provados) deliberar o montante a pagar pelos proprietários dos lotes, fixando o valor de 25,00 € mensais para lotes de terreno de 1000 m2 a 2000 m2 e de 35,00 € para lotes de terreno com moradias edificadas.

16 – No caso em apreço, afigura-se desajustada a aplicação, por analogia da regra do n.º 1 do art.º 1424.º do C.Civil, porquanto o critério de repartição de encargos será diferente quando o uso das coisas comuns se realize em condições de perfeita igualdade entre todos os co-utentes ou exprima claramente uma desigualdade distinta daquela que serve de base ao critério geral, como sucede “in casu”.

17 – A decisão recorrida violou a norma do art.º 18.º do Decreto-Lei n.º 448/91 de 20-11 (com correspondência ao actual art.º 46.º, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16-12), interpretado no sentido de que no elenco dos contratantes enumerados no n.º1 da citada norma cabem as associações representativas de moradores/proprietários dos lotes das zonas loteadas e urbanizadas com legitimidade para exigir dos proprietários o pagamento das despesas decorrentes da gestão da área de protecção e enquadramento e das áreas afectas a espaços livres públicos e a norma do art.º 1424.º do Código Civil.

18 – Conforme doutamente se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20.02.2024, Proc. 240/21.9T8BNV-E2 «Não se comunga assim das considerações exaradas na sentença recorrida a propósito do motivo originário e determinante da dívida se basear na subrogação e no instituto do enriquecimento sem causa em que se tornaria, por isso, essencial proceder ao cálculo do benefício concreto de cada lote em ordem a obter a fórmula de cálculo necessária a decifrar o valor em dívida.»

Questão a decidir:

Fonte e conteúdo da obrigação, a cargo dos recorridos, de pagamento de quantias à recorrente.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1) A autora é uma associação sem fins lucrativos, constituída em 21.07.2009, cujo objecto é promover a protecção e a defesa dos interesses dos associados, no âmbito da segurança, higiene e demais condições de digna habitabilidade, bem como a defesa do ambiente, qualidade de vida, e património natural e cultural da área inerente e circundante a (…).

2) Por deliberação da sua assembleia-geral realizada em 26.07.2009, foi aprovado o Regulamento Interno da Associação de Proprietários de (…).

3) Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º do Regulamento Interno da APHHH «são fins da Associação promover a protecção e defesa dos interesses dos Associados e demais proprietários de (...), no âmbito da segurança, limpeza, conservação, manutenção e demais condições de digna habitabilidade, defesa do ambiente, qualidade de vida e património natural e cultural da área inerente e circundante a (...), conforme determinado no alvará de loteamento do empreendimento.».

4) Nos termos do disposto no n.º 2 do citado artigo 1.º, para prossecução dos fins enunciados, são competências da APHHH, entre outras, assegurar a segurança, limpeza, conservação e manutenção da zona do empreendimento.

5) Nos termos do disposto no artigo 3.º do pacto de constituição da APHHH, constituem receitas da associação, entre outras, o produto das quotizações fixadas pela assembleia-geral.

6) Segundo o artigo 5.º do Regulamento Interno da APHHH, constituem receitas da associação, entre outras, «as importâncias provenientes do pagamento de quotas» e, ainda, «as quantias pagas pelos proprietários de lotes de (...) que não sendo associados devam proceder ao pagamento de determinada quantia para fazer face às despesas da Associação no interesse de todos os Proprietários.».

7) Nos termos do disposto no artigo 6.º do Regulamento Interno da APHHH, «a quota será mensal, podendo o seu pagamento ser feito em conjunto, anual, semestral ou trimestral. No caso de proprietários de terrenos sem construção, o pagamento deverá ser semestral ou anual.».

8) Nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do mesmo Regulamento Interno, «o valor da quota é estabelecido em Assembleia Geral convocada para o efeito, por proposta da direcção.».

9) Sob a Ap. 4 de 2002/02/22 da respectiva matrícula predial, acha-se registada a favor de AAA, entretanto falecido, a aquisição, por compra, do prédio urbano denominado de lote n.º (...), sito na Herdade (…), (…) da Junta de Freguesia de (…), concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) com o n.º (…), sendo os réus os herdeiros de AAA.

10) O prédio referido em 9) integra-se no alvará de loteamento n.º 8, emitido pela Câmara de Municipal de (...) em 21-12-1998.

11) Sob a AP. 8 de 09.04.1999, da matrícula do prédio referido em 9), encontra-se registada a emissão do alvará de loteamento n.º 8 com o seguintes termos: «Autorizada a constituição de 673 lotes (…) A fim de interpor o domínio público municipal é a área total de 1.113.906,5 m2 – A gestão da área de protecção e enquadramento será garantida pelos futuros moradores ou grupo de moradores, mediante a celebração de «acordo de cooperação» entre estes e a Câmara Municipal como previsto no art. 18.º do Dec. Lei n.º 448/91, condição de cedência ao domínio público da referida área e que será assumida pelos loteadores até à recepção definitiva das obras de urbanização (…);».

12) Por deliberação da assembleia-geral da APHHH, realizada em 30.01.2010, foram estabelecidos os seguintes valores respeitantes às contribuições mensais a pagar pelos proprietários dos lotes situados no empreendimento de (…):

(i) 25 Euros – lotes de terreno de 1.000 m2 e 2.000 m2;

(ii) 35 Euros – lotes com moradia edificadas.

13) Em 27.04.2016, foi celebrado um acordo administrativo de cooperação entre o Município de (...), intitulada de primeira outorgante, e a autora, intitulada de segunda outorgante, mediante o qual esta se obrigou a garantir a limpeza e higiene, manutenção e a conservação das áreas de protecção e enquadramento e das áreas afectas a espaços livres públicos, a conservação e manutenção do circuito de manutenção, a conservação e manutenção da vedação limítrofe da urbanização, a replantação de novas espécies vegetais, paisagisticamente adequadas, efectuar a gestão florestal das áreas protecção e enquadramento e das áreas afectas a espaços livres públicos, elaborar plano de vigilância e segurança, a manutenção de um sistema de segurança tendo em vista obviar a degradação do espaço, equipamentos públicos e zonas verdes do loteamento urbano da (...), constando do mesmo os seguintes considerandos e cláusulas:

«Considerando que:

1) O Alvará n.º 8/98 titula a operação de loteamento e a 1.ª fase da execução das obras de urbanização, em (...).

(…)

4) À presente data, no que respeita à 1.ª fase de execução das obras de urbanização do loteamento encontram-se recebidas definitivamente pela Câmara Municipal todas as insfraestruturas, exceptuando parte residual de plantações, sementeiras e de circuito de manutenção, no âmbito de arranjos exteriores (o que é extensível às 2.ª e 3.ª fase – A das obras de urbanização, entretanto tituladas por aditamentos ao alvará de licença de loteamento inicial, respectivamente, datados de 08.05.1999 e de 27.12.2005);

(…)

7) Assim sendo, por razões de racionalidade e operacionalidade de meios e porque as infraestruturas públicas do loteamento de (...) constituem-se como um espaço que é e será essencialmente fruído pelos atuais e pelos futuros moradores nos lotes constituídos, se justifica que a sua gestão e manutenção seja atribuída a uma única entidade representativa dos mesmos.

Cláusula Primeira

Objecto

O presente acordo tem por objecto as partes da área de Protecção e Enquadramento e das áreas Afectas a Espaços Livres Públicos correspondentes às fases 1.ª, 2.ª, e 3.ª A das obras de urbanização do loteamento urbano de (...), melhor identificados no anexo I, bem como toda a área loteada, demarcada por vedação aramada com 8.000ml seus acessos e caminhos pedonais.

(…)

Cláusula Terceira

Obrigações do Segundo Outorgante

Pelo presente acordo cabe ao Segundo Outorgante

a) garantir a limpeza e higiene, a manutenção e a conservação das áreas da Área de Protecção e Enquadramento e das Áreas Afectas a Espaços Livres Públicos delimitados nos termos da cláusula primeira.

b) assumir a conservação e a manutenção do circuito de manutenção.

c) assumir a conservação e a manutenção da vedação limítrofe da urbanização.

d) promover a replantação de novas espécies vegetais, paisagisticamente adequados ao local.

e) efectuar a gestão florestal das áreas da Área de Protecção e Enquadramento e das Áreas Afectas a Espaços Livres Públicos delimitados nos termos das cláusulas primeira.

f) promover a elaboração do Plano de Vigilância e Segurança (adianta designado por Plano) a área definida na cláusula primeira.

g) vigiar e manter um sistema de segurança em toda a área objecto do presente acordo de cooperação, de forma a evitar qualquer degradação do espaço, equipamentos públicos e zonas verdes.

Cláusula Quarta

Obrigações do Primeiro Outorgante

Pelo presente acordo, cabe ao Primeiro Outorgante, em respeito do interesse público visada pela celebração do presente acordo:

(…)

h) acompanhar e fiscalizar a execução do acordo, nomeadamente no que respeita ao cumprimento pelo Segundo Outorgante das obrigações assumidas, bem como prestar o apoio técnico que se justifique, mediante análise casuística conjunta;

i) acompanhar e fiscalizar a execução do plano de vigilância e segurança referida na cláusula anterior;

j) desenvolver os necessários contactos com as autoridades locais, em particular com as forças de segurança e protecção civil, de modo a possibilitar o apoio articulado destas, às tarefas cobertas pelo mesmo plano de vigilância e segurança. 8…)

Cláusula Oitava

Prazo de Vigência

O presente acordo de cooperação é celebrado pelo prazo de cinco anos, contados a partir da data da sua outorga, prorrogável por períodos iguais e sucessivos, salvo rescisão expressa pelo Primeiro Outorgante, por razões de interesse público, devidamente fundamentado.»

14) O prédio urbano correspondente ao lote n.º (...) não tem moradia edificada.

15) AAA não foi associado da autora, nem o são os seus sucessores, ora réus.

16) Nem AAA, nem os seus sucessores, efectuaram o pagamento das contribuições mensais objecto da deliberação mencionada na alínea 12), relativas aos meses de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2020 e ao lote n.º (...), no valor global de 2.100 Euros.

17) A autora exigiu a AAA o pagamento das contribuições mencionadas na alínea 16) supra em momento anterior à propositura desta acção.

18) A gestão da área de protecção e enquadramento transferida para o Município de (...), nos termos do alvará de loteamento referido em 11), tem sido assegurada exclusivamente pela autora, ao abrigo do acordo de cooperação celebrado com essa edilidade, através da prestação dos serviços mencionados na alínea 13), cujos custos são suportados pela autora.

19) Além dos serviços referidos em 18), a autora também presta outros serviços aos seus associados ou não associados que os requisitem, designadamente a limpeza dos lotes.

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

a) Dispõe a cláusula quinta do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a “Companhia Imobiliária da Herdade da (…), SA”, a loteadora do empreendimento de (...), e os promitentes-compradores dos lotes que o constituem, que «a fim de preservar a qualidade do empreendimento, a segurança dos utentes e assegurar a manutenção de um elevado nível de conservação dos espaços verdes e de utilização colectiva, o segundo contratante obriga-se a, após a data da outorga da escritura da ora prometida compra e venda, contribuir para o pagamento das despesas relacionadas com a segurança e manutenção dos espaços verdes, dos demais espaços de utilização comum e da vedação exterior, contribuição que, durante o ano de 2001, não excederá o montante de 4.000$00/mês/lote e deverá ser paga à “Associação de Proprietários de (…)”, a constituir”, conforme minuta utilizada para a celebração dos contratos promessa que se junta e dá por inteiramente reproduzida.».

b) A falta de pagamento das contribuições devidas pelos proprietários põe em risco a segurança dos moradores e a segurança dos seus bens, assegurada pelos serviços de vigilância, bem como a limpeza, higiene, conservação dos espaços verdes e manutenção dos equipamentos.

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1. Sobre a questão de saber qual é a fonte da obrigação, a cargo dos recorridos, de pagamento de quantias à recorrente, o entendimento do tribunal a quo foi, sucintamente, o seguinte:

- Não sendo os recorridos e, anteriormente, o seu pai, associados da recorrente, não se encontram obrigados a pagar-lhe as contribuições ou quotizações por esta fixadas para quem tem essa qualidade.

- Foi condição da autorização de loteamento a transferência da gestão da área de protecção e enquadramento, integrada no domínio público do Município de (...), para os moradores ou grupos de moradores, o que ficou a constar da matrícula predial do lote adquirido pelo primitivo réu. Trata-se de um dever imposto aos proprietários dos lotes, sejam ou não associados da recorrente, como contrapartida pela autorização de loteamento, de natureza propter rem e que tem por conteúdo a manutenção, conservação e preservação do espaço, conforme descrito no n.º 13 do enunciado da matéria de facto provada.

- As despesas decorrentes do cumprimento do dever de gestão da zona de protecção e enquadramento estão a cargo dos proprietários dos lotes.

- Porém, tem sido a recorrente a assegurar, em exclusivo, a gestão daquela zona, designadamente através do cumprimento das obrigações especificadas na cláusula 3.ª do acordo de cooperação descrito no n.º 13 do enunciado da matéria de facto provada, suportando as despesas daí decorrentes.

- Por efeito da celebração, com o Município de (...), do acordo de cooperação, e do facto de ter vindo a cumprir o dever de gestão da zona de protecção e enquadramento no lugar dos proprietários não associados, a recorrente ficou sub-rogada, no lugar daquele, na titularidade do correspectivo direito, nos termos do artigo 593.º do CC. Trata-se de uma hipótese de sub-rogação pelo credor, nos termos do artigo 589.º do CC.

- Por efeito dessa sub-rogação, os recorridos estão, perante a recorrente, na mesma posição em que se encontravam perante o Município de (...), o que, em termos quantitativos, se traduz no direito de a recorrente exigir, aos recorridos, o pagamento da quota-parte destes nas despesas efectuadas com o cumprimento das obrigações contempladas na cláusula 3.ª do acordo de cooperação.

- Se assim se não entendesse, seria de convocar o instituto do enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 473.º e seguintes do CC, para reconhecer, à recorrente, o direito a ser compensada, pelos recorridos, do valor correspondente à quota-parte destes nas referidas despesas.

A isto, a recorrente contrapõe, sucintamente, o seguinte:

- O enquadramento da relação entre a recorrente, os recorridos e o Município de (...) como sub-rogação não é correcto, pois, por via do acordo de cooperação, este último não cedeu, à primeira, os direitos que detinha sobre os moradores.

- A recorrente é uma das entidades previstas no artigo 46.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), pelo que a sua legitimidade resulta, não da cedência, por via do acordo de cooperação, dos direitos que o Município de (...) detinha sobre os moradores, mas sim do próprio acordo de cooperação celebrado em conformidade com o disposto no RJUE e no alvará de loteamento.

- Não é aplicável o instituto do enriquecimento sem causa. Reconhecendo embora que «não pode exigir o pagamento de quotizações, enquanto tal, a quem não é seu associado, nada impede que, investida do poder de gestão que lhe foi confiado, por via do acordo de cooperação celebrado com o município, exija a todos os proprietários e moradores o pagamento da necessária contribuição monetária indispensável ao cumprimento das obrigações decorrentes do dever (porque de um verdadeiro dever se trata e não de um mero poder) que sobre todos recai, sejam ou não associados da autora, e que lhes é imposto pelo alvará de loteamento.»

2. O reconhecimento, pela recorrente, de que «não pode exigir o pagamento de quotizações, enquanto tal, a quem não é seu associado», torna dificilmente compreensível a sua pretensão neste recurso.

A acção foi proposta com a finalidade de obter a condenação do primitivo réu e, em face da morte deste, dos recorridos, no pagamento das contribuições ou quotizações em dívida, no valor global de € 2.100, bem como das contribuições ou quotizações vincendas, com juros de mora à taxa legal, a partir da citação. O teor da petição inicial não deixa quaisquer dúvidas a esse respeito.

Vem, agora, a recorrente abdicar da tese de que tais contribuições ou quotizações sejam devidas pelos recorridos. Não obstante, continua a pugnar pela procedência da acção. A única interpretação possível desta pretensão é a de que, no seu entendimento, o montante das despesas que o tribunal a quo condenou os recorridos a pagar deveria ter sido, desde já, fixado em montante coincidente com o das contribuições ou quotizações por si fixadas mediante deliberação da sua assembleia geral. É, portanto, em função desta finalidade que a argumentação da recorrente deverá ser analisada.

3. A recorrente discorda do enquadramento da relação entre a recorrente, os recorridos e o Município de (...) no instituto da sub-rogação, contrapondo que ela própria é uma entidade prevista no artigo 46.º do RJUE, pelo que a sua legitimidade resulta, não da cedência, por via do acordo de cooperação, dos direitos que o Município de (...) detinha sobre os moradores, mas sim do próprio acordo de cooperação celebrado em conformidade com o disposto no RJUE e no alvará de loteamento.

Esta argumentação não procede.

Secundando a recorrente, consideramos que nada obsta a que ela seja considerada uma entidade prevista no n.º 1 do artigo 46.º do RJUE. Atenta a descrição que dela é feita no n.º 1 do enunciado da matéria de facto provada, pode ser considerada um grupo de moradores de uma zona loteada e urbanizada.

Todavia, do ponto de vista da finalidade visada pela recorrente com o presente recurso, tal qualificação nada adianta. A própria recorrente não ensaia, sequer, explicar em que medida a sua qualificação como uma entidade prevista no n.º 1 do artigo 46.º do RJUE   determinaria que ela fosse titular do direito de exigir, dos recorridos, o pagamento, a título de reembolso de despesas, de um montante coincidente com o das contribuições ou quotizações por si fixadas. Tal como o tribunal a quo decidiu, a recorrente tem direito a ser reembolsada das despesas que realizou no cumprimento do dever de gestão da zona de protecção e enquadramento, na parte a cargo dos recorridos, mas em montante a liquidar ulteriormente.

É, assim, possível concluir, desde já, que a recorrente não tem direito a receber, dos recorridos, nem as próprias contribuições ou quotizações, nem, com base nos elementos até agora apurados, um montante àquelas equivalente a título de reembolso de despesas.

4. Não tendo os recorridos interposto recurso da sentença, consolidou-se o direito, nesta reconhecido, da recorrente a receber, daqueles, uma quantia pecuniária, a liquidar ulteriormente, correspondente à sua quota-parte no valor global das despesas efectuadas para cumprimento das obrigações assumidas na cláusula 3.ª do acordo de cooperação, desde Dezembro de 2016, com o limite de € 2.100 relativamente às despesas do período de Dezembro de 2016 a Janeiro de 2020.

Sendo assim, é inútil abrir a discussão sobre a aplicabilidade dos institutos da sub-rogação ou do enriquecimento sem causa, que a recorrente pretende, mas é, do ponto de vista do seu interesse, contraproducente. O reconhecimento, pelo tribunal a quo, do direito da recorrente a ser reembolsada pelos recorridos, baseou-se na aplicação do instituto da sub-rogação, tendo o do enriquecimento sem causa sido mencionado como proporcionando o mesmo resultado se o primeiro não fosse aplicável. O afastamento da aplicabilidade de qualquer destes dois institutos apenas poderia levar a concluir que aquele direito de reembolso não existe, o que seria inócuo, atenta a circunstância de os recorridos não terem interposto recurso da sentença.

Apenas para que não fique a dúvida sobre a sorte de um hipotético recurso que os recorridos tivessem interposto da sentença, esclarecemos que o tribunal a quo andou bem ao fundar o direito da recorrente ao reembolso das despesas no instituto da sub-rogação, regulado nos artigos 589.º a 594.º do CC. A sentença recorrida encontra-se muito bem fundamentada, tendo chegado a conclusões correctas cumprindo um percurso argumentativo irrepreensível.

Ao contrário do que a recorrente sugere, a sua qualificação como entidade prevista no n.º 1 do artigo 46.º do RJUE não é incompatível com o instituto da sub-rogação, nem torna dispensável a sua aplicação. Tendo ou não aquela qualidade, a recorrente sempre necessitaria de um título jurídico para poder reclamar, dos recorridos, o reembolso das despesas que realizou ao cumprir a parte que a estes cabia do dever de gestão da zona de protecção e enquadramento. Sendo certo que a possibilidade de a recorrente o fazer corresponde a uma evidente exigência de justiça.

O instituto da sub-rogação responde perfeitamente a esta exigência.

Imaginemos que a recorrente não existia, ou que não cumpria o dever de gestão da zona de protecção e enquadramento também na parte que cabe aos seus associados. Caberia ao Município de (...), em cumprimento dos seus deveres legais, intervir ao nível daquela gestão, repercutindo o custo dessa intervenção sobre os proprietários dos lotes, aos quais teria o direito de exigir o reembolso das despesas por si suportadas.

Ao cumprir o dever de gestão da zona de protecção e enquadramento, quer na parte que cabe aos seus associados, quer naquela que cabe aos não associados, nomeadamente aos recorridos, a recorrente cumpriu, nesta última parte, obrigações alheias. Em consequência deste cumprimento e do estipulado no acordo de cooperação celebrado com o Município de (...), a recorrente adquiriu, por sub-rogação, o referido direito de repercutir, proporcionalmente, o custo da sua intervenção sobre os proprietários dos lotes que não são seus associados, podendo exigir, a cada um deles, o reembolso da sua quota-parte nas despesas que suportou.

O tribunal a quo concluiu que se tratou de um caso de sub-rogação pelo credor, nos termos do artigo 589.º do CC, considerando o teor do acordo de cooperação celebrado entre a recorrente e o Município de (...), no qual este «expressou claramente a sua vontade de que seria a autora a cumprir o dever de gestão a cargo dos moradores de acordo com o alvará de loteamento». Concordamos. Da concessão, à recorrente, da gestão da zona de protecção e enquadramento, deve inferir-se a vontade do Município de (...) de que ela o faça plenamente, nomeadamente tratando, ela própria, de ser compensada das despesas em que incorre ao cumprir em vez dos proprietários de lotes que dela não são associados.

Ao que o tribunal a quo referiu e em reforço do enquadramento, por este feito, da relação entre a recorrente, os recorridos e o Município de (...), no instituto da sub-rogação, acrescentamos que nos parece verificarem-se, concomitantemente, os pressupostos da sub-rogação legal, estabelecidos no n.º 1 do artigo 592.º do CC. Considerando a natureza indivisível de cada uma das obrigações descritas na cláusula 3.ª do acordo administrativo de cooperação (n.º 13 do enunciado dos factos provados), deve considerar-se que a recorrente tem um interesse directo na satisfação do crédito do Município de (...) sobre cada um dos proprietários de lotes que não sejam seus associados. No fundo, a recorrente vê-se na situação de, ou cumprir por todos os proprietários, associados ou não, ou não cumprir de todo, violando o acordo administrativo de cooperação a que se vinculou.

5. Retomemos a ideia que expressámos no final do ponto 3: está assente que a recorrente não tem direito a receber, dos recorridos, nem as próprias contribuições ou quotizações, nem, com base nos elementos até agora apurados, um montante àquelas equivalente a título de reembolso de despesas.

Resta, assim, analisar as razões da discordância da recorrente relativamente ao critério de cálculo desse montante que o tribunal a quo perfilhou.

De acordo com a sentença recorrida, tal critério deverá ser o estabelecido no n.º 1 do artigo 1424.º do CC, segundo o qual, salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das fracções no momento das respectivas deliberações, sendo por estes pagas em proporção do valor das suas fracções. Por aplicação deste critério, os recorridos deverão suportar uma parte do montante global das despesas efectuadas pela recorrente com o cumprimento das obrigações contempladas na cláusula 3.ª do acordo de cooperação que seja proporcional à permilagem do seu lote. Apela-se, na sentença recorrida, à «similitude entre a obrigação dos proprietários dos lotes e a obrigação dos condóminos na propriedade horizontal», de onde concluímos que o tribunal a quo aplicou o n.º 1 do artigo 1424.º do CC por analogia. O tribunal a quo não quantificou o montante a cargo dos recorridos por não ter sido possível apurar dois elementos para o efeito essenciais: a permilagem do lote dos recorridos e o valor global das despesas efectuadas e a efectuar pela recorrente com o cumprimento das obrigações previstas no artigo 3.º do acordo de cooperação.

A esta fundamentação, a recorrente contrapõe o seguinte:

«No regime da propriedade horizontal o valor da quota deve ser calculado tendo em conta os gastos previstos no orçamento para esse ano e deve ser aprovado em reunião de condóminos.

Ora, foi com base no orçamento das despesas decorrentes da gestão da área de enquadramento que está confiada à autora que a sua assembleia geral deliberou, em 30.01.2010, (v. 12 dos factos provados) deliberar o montante a pagar pelos proprietários dos lotes, fixando o valor de 25,00 € mensais para lotes de terreno de 1000 m2 a 2000 m2 e de 35,00 € para lotes de terreno com moradias edificadas.

No caso em apreço, afigura-se desajustada a aplicação, por analogia da regra do n.º 1 do art.º 1424.º do C.Civil, porquanto o critério de repartição de encargos será diferente quando o uso das coisas comuns se realize em condições de perfeita igualdade entre todos os co-utentes ou exprima claramente uma desigualdade distinta daquela que serve de base ao critério geral, como sucede “in casu”.»

A recorrente não tem razão.

O argumento exposto nos dois primeiros parágrafos que transcrevemos não diz respeito à questão da divisão de despesas por si realizadas com o cumprimento das obrigações previstas no artigo 3.º do acordo de cooperação, mas sim à da fixação do montante das contribuições ou quotizações dos seus associados. Não é isso que está em causa nestes autos, como vimos anteriormente.

O argumento exposto no terceiro parágrafo é inconclusivo. A recorrente manifesta discordância relativamente ao critério da proporcionalidade do pagamento à permilagem do lote dos recorridos, mas não concretiza que critério pretende ver aplicado, nem fundamenta a sua pretensão.

Concluindo, a sentença recorrida deverá manter-se na íntegra, improcedendo o recurso.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

*

Évora, 12.09.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)


Acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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