Processo n.º 1031/23.8T8PTM.E1
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Sumário:
Tendo a declaração de
resolução de um contrato, por uma das partes, sido enviada para a morada da
outra parte e aí recebida, a sua eficácia não depende da prova de que foi o
próprio destinatário quem a recebeu.
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Procedimento cautelar de
entrega judicial – artigo 21.º do Regime Jurídico do Contrato de Locação
Financeira, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24.06.
Requerente/recorrida:
Sociedade 1.
Requerido/recorrente:
AAA.
Pedidos:
- Que seja ordenada a entrega judicial,
à requerente, do imóvel objecto do contrato de locação financeira imobiliária;
- Pronúncia quanto à composição
definitiva do litígio, para tando declarando a resolução definitiva do contrato
de locação financeira imobiliária nos precisos termos expostos e condenando o
requerido na entrega do imóvel.
Sentença recorrida:
Julgou procedente o procedimento
cautelar e, em consequência, determinou a apreensão e a entrega, à requerente,
do imóvel objecto do contrato de locação financeira.
Conclusões do recurso:
A. O recurso onde se produz a presente
motivação vem interposto da sentença proferida no processo e juízo
supramencionados que, relativamente ao ora aqui recorrente, veio julgar
procedente o procedimento cautelar e, em consequência, determinar a apreensão e
entrega à ora requerente Sociedade 1 da fracção autónoma designada pela letra
“D”, correspondente ao primeiro andar A – apartamento 301 – tipo T3 – destinado
a habitação integrado no prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito
na Rua (…), n.º (…), (…), freguesia de (…), concelho de Lagos, descrito na
Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o n.º (…).
B. O Recorrente não concorda nem se conforma
com a sentença proferida.
C. E, daí, o presente recurso interposto
que, assim, vai motivado.
D. Salvo o devido respeito pela sentença
recorrida, que é muito, o recorrente entende que o seu incidente de impugnação
da genuinidade de documento não foi correctamente apreciado.
E. A letra e assinatura, ou só a
assinatura, de um documento particular, só se consideram verdadeiras quando são
reconhecidas ou quando não são impugnadas pela parte contra quem o documento é
apresentado.
F. Estatui o n.º 2 do art. 374.º do
Código Civil que “Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a
veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são
verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o
documento a prova da sua veracidade.”
G. O recorrente suscitou o incidente da
impugnação da genuinidade de documento, impugnando as assinaturas apostas no
aviso de recepção, por a mesma não corresponder à assinatura do requerido.
H. De acordo com o ponto 15 da
factualidade indiciariamente provada foi provado que “A assinatura aposta no
aviso de receção (“proof of delivery”) de fls. 27 v. e 38 v. é diferente da
assinatura aposta a fls. 74 (art. 6º da oposição)”.
I. O recorrente alegou também que no dia
09 de Janeiro de 2023, de forma a deslocar-se para o seu local de trabalho
havia iniciado a sua viagem de comboio pelas 06:36h, sendo que a carta da
resolução contratual foi recepcionada a 09 de Janeiro de 2023 pelas 11:51h,
alegadamente pelo requerido.
J. O recorrente não se pode conformar
que sendo provado que a assinatura aposta no aviso de recepção da mesma tal não
releve para o caso em apreço.
K. O recorrente discorda por completo
que a simples indicação “Harold” seja bastante para se comprovar que foi de
facto o recorrente a recepcionar a carta.
L. E, mais uma vez, tendo em conta, a
importância da carta, discorda totalmente que notificação bastar-se-ia com a
receção por alguém na morada constante do contrato.
M. O recorrente não se pode conformar
que tenha ficado provado que a assinatura aposta nos avisos de recepção não
sejam igual à assinatura aposta no documento de identificação do ora recorrente,
diga-se que é a única assinatura do recorrente, e que, ainda, assim, se tenha
considerado que o mesmo havia sido notificado da carta de interpelação e de
resolução e, consequentemente, considerar-se o contrato de locação financeira
resolvido.
N. Ora, aquando da impugnação da
assinatura no aviso de recepção, a parte que apresentou o documento não se
pronunciou sobre o incidente nem provou a sua veracidade.
O. A assinatura do documento é o que lhe
confere a sua autoria e o que justiça a força probatória do mesmo.
P. A base da resolução do contrato de
leasing é o envio e recepção da carta de interpelação e, posteriormente, a de
resolução.
Q. Ora, as assinaturas apostas nos
avisos de recepção de ambas as cartas, conforme foi provado, não correspondem à
assinatura do recorrente.
R. O mesmo impugnou as referidas
assinaturas e a requerente não se pronunciou quanto à impugnação, sendo que era
sobre esta que recai o ónus da prova acerca da veracidade da assinatura.
S. O recorrente considera, assim, que
tendo sido considerado provado que não era a sua assinatura que estava aposta
nos avisos de recepção não poderia ser considerado que teria sido este a
recepcionar a carta.
T. E, consequentemente, não se deveria
ter considerado resolvido o contrato de locação financeira e julgado procedente
o procedimento cautelar.
U. O recorrente considera que o contrato
de locação financeira não deveria ter sido considerado resolvido e que o
procedimento cautelar deveria ser considerado totalmente improcedente.
Questão a decidir:
Se o contrato de locação financeira foi
validamente resolvido.
Factos julgados indiciariamente
provados pelo tribunal a quo:
1. A Sociedade 2 é uma sociedade anónima
que tem por objecto o exercício de actividades financeiras permitidas por lei,
entre elas o exercício da actividade de locação financeira.
2. No exercício da sua usual actividade,
em 08.03.2012, Sociedade 2, na posição de locadora, celebrou, com o ora
requerido, na posição de locatário, por um período de 360 meses, um contrato de
locação financeira, identificável pelo n.º 419.44.000026-5.
3. A mencionada locação financeira teve
por base a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao
primeiro andar A – apartamento 301 – tipo T3 – destinado a habitação integrado
no prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…), n.º (…), (…),
freguesia de (…), concelho de Lagos, descrito na CRP de Lagos sob o n.º (…) e
inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…).
4. O locatário tomou posse efectiva dos
imóveis conforme o declarara aquando da outorga do referido contrato.
5. Pela celebração do acordo da posição
contratual, obrigou-se o locatário ao pagamento de 360 rendas mensais e
sucessivas, com início do prazo em 08.03.2013, sendo que a primeira renda tem o
valor de € 11.634,88 e montante das demais rendas têm o valor unitário de €
1.337,84.
6. Foi convencionado que ao presente
contrato, no início da sua vigência, seria aplicada a taxa de juro de 5,3620%,
a qual seria actualizada semestralmente em função do resultado da média
aritmética simples das cotações diárias da taxa Euribor.
7. Convencionou-se ainda um valor
residual de 2,00% do valor total do investimento, no montante de € 5.032,69.
8. Plasmou-se a responsabilidade da
locatária pelo pagamento de seguros, despesas legais e convencionais.
9. Para titulação e garantia das
responsabilidades emergentes do presente contrato, o requerido subscreveu e
entregou à requerente uma livrança em branco.
10. Acontece que o aqui requerido deixou
de proceder ao pagamento das rendas n.ºs 107, 108, 109 e 110 inclusive a que
estava obrigado, vencidas respectivamente a 05.05.2022, 05.06.2022, 05.07.2022
e 05.08.2022.
11. Foi o ora requerido interpelado em
09.08.2022 para proceder a regularização dos valores em dívida no prazo máximo
de 60 dias sob cominação expressa da resolução do referido contrato, conforme
missivas dirigidas ao requerido para a morada Rua (…), n.º (…), (…),
apartamento (…), (…), 8600-683 Lagos, não recebida com a menção “rejeitado”
“devolvido ao remetente” e para a morada (…), Reino Unido com proof of delivery
(assinado por “Harold”, a 15 de agosto de 2022) de fls. 25 e ss.
12. Os valores em dívida não foram pagos
e a locadora considerou o contrato resolvido em 21.10.2022, conforme missivas
de fls. 32 e ss., dirigidas ao requerido para a morada Rua (…), n.º (…), (…),
apartamento (…), (…), 8600-683 Lagos, não recebida “devolvido ao remetente” e
para a morada (…), Reino Unido com proof of delivery (assinado por “Harold”, a
9 de janeiro de 2023).
13. Consentaneamente a comunicação da
resolução exigiu a locadora a restituição do bem locado livre e devoluto de
pessoas e bens no prazo máximo de 8 dias.
14. A locadora tentou tomar posse do
imóvel, mas o requerido não procedeu à restituição do bem, encontrando-se o
imóvel a ser utilizado como alojamento local.
15. A assinatura aposta no aviso de
receção (“proof of delivery”) de fls. 27 v. e 38 v. é diferente da assinatura
aposta a fls. 74.
16. No dia 09 de janeiro de 2023, foi
adquirida uma viagem de comboio para as 06:36h.
17. O requerido tinha a sua conta
sediada no balcão de Vale do Lobo e os funcionários desse balcão, em julho de
2014, em abril e maio de 2015, fevereiro e março de 2016, julho de 2016,
novembro de 2016, janeiro, março, abril, maio, agosto, novembro de 2018,
janeiro, fevereiro, março, agosto, outubro de 2019, janeiro, fevereiro de 2020
informaram-no em inglês de que era necessário transferir valores para a conta.
O Requerido acabava por transferir o montante indicado (fls. 136 v.) e também
solicitava informações sobre os montantes pagos.
18. No dia 26 de julho de 2022, Carlos
Oliveira, da Direcção de Recuperação de crédito da Sociedade 2, enviou email,
em português, ao requerido, de que tinha em dívida a quantia de € 4290,23.
Depois dessa data e até à resolução, a conta do requerido foi creditada com os
seguintes montantes: € 833 (7/9), € 620,55 (7/10). Antes tinha-a creditado com
€ 834 (8/4), € 833 (6/5), € 833 (7/6).
19. Em resposta a email do requerido, a
Sociedade 2 (balcão de Loulé) informou o requerido no dia 4 de julho de 2023
(já depois da resolução) que não tinha pagamentos em atraso.
20. O Requerido nasceu no Reino Unido,
tem nacionalidade inglesa, é cidadão daquele país e não compreende a língua
portuguesa.
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A posição assumida pelo
recorrente é, sucintamente, a seguinte: 1) As cartas referidas nos n.ºs 11 e 12
não lhe foram entregues e não tomou conhecimento do seu conteúdo; 2) A
assinatura aposta em cada um dos avisos de recepção não é a sua (n.º 15); 3) Consequentemente,
o contrato de locação financeira não foi validamente resolvido.
Analisemos a argumentação
desenvolvida pelo recorrente com a finalidade de a sustentar.
O n.º 1 do artigo 436.º do
CC estabelece que a resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à
outra parte. Tratar-se-á, então, de uma declaração recipienda ou receptícia, à
qual será aplicável o regime estabelecido no artigo 224.º do CC.
O n.º 1 do artigo 224.º do
CC estabelece, na parte que nos interessa, que a declaração negocial que tem um
destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida. A
lei adoptou, pois, em simultâneo, os critérios da recepção e do conhecimento. «Não se exige, por um lado, a prova do
conhecimento por parte do destinatário; basta que a declaração tenha chegado ao
seu poder. O conhecimento presume-se neste caso, juris et de jure. Mas, provado
o conhecimento, não é necessário provar a recepção para a eficácia da
declaração.»[1]
Fácil é, pois, concluir que
a tese do recorrente carece de fundamento.
A posição que o recorrente
sustenta faria sentido se a lei exigisse, em qualquer hipótese, o conhecimento
efectivo da declaração negocial por parte do destinatário. A leitura da
oposição deduzida pelo recorrente evidencia o erro em que este labora. Não
obstante ter transcrito correctamente o n.º 1 do artigo 224.º no ponto 53, a
interpretação que dele propõe no ponto 56 é grosseiramente errada.
Transcrevemos esse ponto: «Ora, para que
a declaração de resolução contratual se torne eficaz é necessário que esta
chegue ao poder do destinatário e que este tenha conhecimento dela. Tal não se
verificou no caso em apreço.» Onde, naquela norma legal, consta «ou», o recorrente leu «e». Ficou, assim, inquinada toda a sua
argumentação.
Está provado e o recorrente
não põe em causa que as cartas referidas nos n.ºs 11 e 12 foram entregues no
seu domicílio no Reino Unido. Isso basta para que a declaração negocial seja
eficaz, pois significa que chegou ao poder do recorrente. Se este se encontrava
ou não em casa no momento em que as cartas aí foram entregues, ou se foi ele ou
outra pessoa quem recebeu as cartas, é indiferente. O recorrente não alegou,
nem provou, que, durante a sua hipotética ausência em Londres para trabalhar, o
seu domicílio tenha sido ocupado por outrem sem o seu consentimento e que esse
hipotético ocupante tenha recebido as cartas em questão e lhas tenha sonegado
(hipótese que, à luz das regras da experiência comum, seria muitíssimo pouco
provável). Daí que, se as cartas tiverem sido recebidas por pessoa diversa do
recorrente, essa pessoa seria, necessariamente, alguém da sua confiança,
presumindo-se assim, juris et de jure,
que ele as recebeu. É esse, repetimos, o regime decorrente do n.º 1 do artigo
224.º do CC.
Sendo assim, a discussão,
que o recorrente pretende introduzir, sobre se foi ele quem assinou os avisos
de recepção das cartas referidas nos n.ºs 11 e 12, ou se os bilhetes de comboio
que juntou aos autos respeitam a viagens por si efectuadas, não tem qualquer
utilidade para a decisão do recurso. Ainda que os avisos de recepção tenham
sido assinados, não pelo recorrente, mas por um terceiro (que aquele nunca
identificou, apesar de se tratar de pessoa que se encontraria em sua casa
durante a sua alegada ausência, à partida com o seu consentimento), e ainda que
os bilhetes de comboio correspondam a viagens efectuadas pelo recorrente, a
declaração de resolução do contrato de locação financeira chegou ao seu poder,
pelo que, nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 224.º do CC, é eficaz.
Aquele contrato foi validamente resolvido pelo locador.
Flui do exposto que o
tribunal a quo decidiu acertadamente
ao decretar a providência cautelar solicitada, devendo o recurso ser julgado
improcedente.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do
recorrente.
Notifique.
*
Évora, 10.10.2024
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª
adjunta)
(2.ª
adjunta)
[1] PIRES
DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil
Anotado, volume I, 2.ª edição revista e actualizada, página 199, anotação 1
ao artigo 224.º.