Processo n.º 479/19.7T8ELV.E2
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Sumário:
1 – Sendo a qualificação de
um contrato uma das questões jurídicas em discussão, não poderá a mesma constar
do enunciado da matéria de facto provada. O local próprio para a discussão
dessa qualificação é a fundamentação jurídica da decisão. Daquele enunciado,
apenas deverão constar os factos provados que, para tal, se mostrem relevantes.
2 – O tribunal ad quem não poderá conhecer da
impugnação da decisão do tribunal a quo
sobre determinado ponto da matéria de facto se for manifesto que a alteração
pretendida pelo recorrente em nada o beneficiaria.
3 – O tribunal ad quem poderá conhecer da impugnação da
decisão do tribunal a quo sobre
determinado ponto da matéria de facto se, não obstante antever que a alteração
pretendida pelo recorrente não o beneficiaria, tal conclusão requerer uma
análise jurídica que seja reclamada pela exigência legal de fundamentação das
decisões judiciais.
4 – Não é qualificável como
contrato-promessa de compra e venda o contrato mediante o qual os titulares de
um bem se obrigam «a dar preferência na venda» deste ao
co-contratante.
5 – Se, após a restituição provisória
da posse sobre um imóvel ao requerente dessa providência cautelar, ali permanecerem
bens pertencentes ao requerido, este apenas terá a obrigação de indemnizar o
primeiro por danos decorrentes da privação do pleno uso do imóvel se a não
retirada daqueles bens resultar de culpa sua.
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Autores/recorrentes:
AAA;
BBB;
CCC.
Réu/recorrido:
DDD.
Intervenientes principais,
como associados dos autores:
EEE;
FFF.
Pedidos dos autores, após
redução efectuada na audiência prévia:
Condenação do réu a reconhecer os autores
e os chamados como únicos donos da fracção autónoma identificada no artigo 1.º da
petição inicial;
Condenação do réu a restituir a fracção
aos autores e aos chamados, livre e devoluta de pessoas e bens;
Condenação do réu a pagar, aos autores e
aos chamados, a quantia mensal de € 300, desde 19.01.2019 até Março de 2021,
perfazendo € 7.800.
Pedidos reconvencionais:
Condenação dos autores a pagarem, ao
réu, a quantia de € 15.000, correspondente ao dobro do sinal, acrescida de
juros de mora vencidos, contados desde a data em que foram notificados da
reconvenção;
Condenação dos autores e dos chamados a
pagarem, ao réu, a quantia de € 658,30 euros, correspondente aos danos causados
pela não celebração do negócio acordado com o réu, acrescido dos respectivos
juros de mora vencidos, contados desde a data em que foram notificados da
reconvenção;
Declaração de que o réu é titular de um
direito de retenção sobre a fracção, até integral pagamento de todos os
montantes em divida por parte dos autores e dos chamados.
Sentença recorrida:
Julgou a acção e a reconvenção parcialmente
procedentes, nos seguintes termos:
Condenou o réu a reconhecer que os
autores e os intervenientes são os únicos proprietários da fracção autónoma
identificada no ponto 1 do enunciado dos factos provados;
Condenou o réu a pagar a quantia total
de € 1.500 (€ 300/mês) a título de indemnização pela privação do uso da fracção
durante os meses de Fevereiro a Junho de 2019;
Condenou os autores a pagarem, ao réu, a
quantia de € 5.000, correspondente ao sinal em dobro, acrescida de juros de
mora, calculados à taxa legal, contados desde a data da notificação do pedido reconvencional
até efectivo e integral pagamento.
Conclusões do recurso:
1 – O tribunal a quo julgou erradamente a matéria de facto ao dar como provado que
«23 – Por carta datada de 21 de janeiro
de 2019, o R. recebeu a minuta do contrato promessa de compra e venda, já
assinado por AAA e KKK, junto a folhas 25, cujo teor se dá por integralmente
reproduzido».
2 – Em nenhum momento autores e réu celebraram
qualquer contrato-promessa referente à fracção, reproduzindo-se aqui os motivos
antes invocados.
3 – Deverá, por este motivo, ser
revogada a parte da decisão recorrida que condenou os autores no pagamento, ao réu,
de € 5000, correspondente ao sinal em dobro, acrescidos de juros de mora, calculados
à taxa legal, contados desde a citação.
4 – Também julgou mal o tribunal a quo a matéria de facto ao dar como não
provado que «Só no dia da escritura os
AA. tiveram conhecimento que o R. ocupava a fração. Na fração continuaram
depositados pertences do R., a saber, uma mobília de quarto, diverso material
de escritório e construção civil até ao mês de março de 2021»,
reproduzindo-se aqui as razões antes explanadas.
5 – Esta matéria está em manifesta
contradição, não só com a restante matéria dada como provada pelo tribunal a quo, como com a posição assumida pelas
partes nos autos e que antes referimos.
6 – Deverá, pois, nesta parte, a decisão
recorrida ser revogada, dando-se como provado que só no dia da escritura os autores
tiveram conhecimento de que o réu ocupava a fracção. Na fracção, continuaram
depositados pertences do réu, a saber, uma mobília de quarto, diverso material
de escritório e construção civil até ao mês de Março de 2021.
7 – Condenando-se o réu a satisfazer, aos
autores e chamados, a quantia de € 7800.
Questões a decidir:
1 – Impugnação da decisão sobre a
matéria de facto;
2 – Se foi celebrado um
contrato-promessa e, na hipótese afirmativa, o recorrido tem direito a receber
o sinal em dobro;
3 – Se o recorrido é devedor de uma
indemnização pela privação do uso da fracção entre Julho de 2019 e Março de
2021.
Factos julgados provados
pelo tribunal a quo:
1 – A favor dos autores e do chamado, GGG,
então casado, sob o regime da comunhão geral, com HHH, encontra-se a aquisição
da fracção autónoma, designada pela Letra B, correspondente ao primeiro e
segundo andares, do prédio urbano, constituído no regime de propriedade
horizontal, sito em Elvas, na Rua (…), com entrada própria pelo n.º (…),
inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de (…),
concelho de Elvas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Elvas com o
n.º (…), (…) – Apresentação n.º (…).
2 – A causa da referida aquisição da
fracção foi a sucessão hereditária, por morte de III e mulher, JJJ, pais da
Autora AAA e, da falecida, HHH.
3 – A referida fracção foi a residência
de III e mulher, JJJ, desde, pelo menos, o ano de 1957, data em que a fizeram
coisa sua pois, nesta os mesmos residiam habitualmente, aí tomando as suas
refeições e pernoitando, procedendo a todas as obras de conservação e outras,
que se mostrassem necessárias para os fins da dita fracção.
4 – A HHH, faleceu, no dia 10 de Janeiro
de 2014, no estado de casada, em primeiras núpcias de ambos e, sob o regime da
comunhão geral, com o chamado GGG.
5 – Sucederam-lhe, como únicos e
universais herdeiros, os chamados GGG, EEE e FFF.
6 – No ano de 2018, os autores tomaram o
propósito de alienar a fracção.
7 – Com esse fim contactaram, na cidade
de Elvas, a Sociedade 1, que se comprometeu a proceder à angariação de
possíveis adquirentes da fracção.
8 – Para tanto, os autores depositaram
junto da Sociedade 1 as chaves de acesso à fracção, facilitando, assim, o
acesso à mesma, para visitas de potenciais adquirentes.
9 – O réu apresentou-se como interessado
na fracção, havendo a mesma visitado, no final do ano de 2018.
10 – Havendo chegado a acordo, foi
agendada escritura de compra e venda da fração, alienação a ter lugar em
Janeiro de 2019 no Cartório Notarial, em Elvas.
11 – Por razões relacionadas com o
divórcio do interveniente EEE, a referida escritura não se concretizou, havendo
sido dada sem efeito a alienação da fracção.
12 – O réu desde aproximadamente Janeiro
de 2019, tinha funcionários seus a pernoitar, aí armazenando diverso material
de construção civil.
13 – Ainda que solicitado, o réu
recusou-se a entregar a fracção aos autores.
14 – Nos autos de procedimento cautelar
para restituição provisória da posse a estes apensos, com o n.º 218/19.2T8ELV,
J-2, foi decretada a providência requerida, tendo o imóvel sido restituído à
posse dos autores em 7 de junho de 2019.
15 – O valor de mercado da fracção
referida no mercado de arrendamento é de aproximadamente € 300 mensais.
16 – Em 22/12/2018, o réu assinou
documento intitulado de “proposta de reserva”, da aquisição da referida
fracção, pelo valor de € 25.000.
17 – Nessa data foi entregue pelo
mediador ao R. a chave da fracção, para ir adiantando reparações que pretendia
fazer.
18 – Nessa altura entregou o réu a
quantia de € 2.500, sendo € 1.250 para a autora AAA e € 1.250 para GGG.
19 – No dia da escritura o réu
dirigiu-se à imobiliária munido de dois cheques bancários para pagamento do
restante preço.
20 – Os valores referidos em 18 foram
devolvidos ao réu.
21 – A solicitação do réu, o mediador
imobiliário emitiu a declaração junta a fls. 24, cujo teor aqui se dá por
integralmente reproduzido.
22 – Os autores AAA e KKK, nessa
sequência acordaram com o A. a venda da sua quota parte do prédio, pelo valor
de € 12.500, tendo o réu procedido ao pagamento da quantia de € 2.500.
23 – Por carta datada de 21 de janeiro
de 2019, o réu recebeu a minuta do contrato promessa de compra e venda, já
assinado por AAA e KKK, junta a fls. 25, cujo teor aqui se dá por integralmente
reproduzido.
24 – Por carta datada de 14 de fevereiro
de 2019, o réu é informado que um dos outros proprietários não concorda com a
venda, junta a fls. 26 v.º que aqui se dá por integralmente reproduzida, onde
anexa carta recebida através do mandatário de GGG.
25 – O réu efectuou contrato de
fornecimento de electricidade com a EDP.
26 – O réu procedeu à mudança da
fechadura em 6 de fevereiro de 2019.
27 – No dia 18 de janeiro de 2019, a autora
AAA remeteu ao interveniente EEE, o e mail junto a fls. 51 v.º, cujo teor aqui
se dá por reproduzido, com o seguinte teor:
«Boa
tarde EEE, nesta reunião em que esta presente o tio, a tua prima, eu, o Sr. Eng.
LLL e o Sr. DDD, chegamos a conclusão de que a escritura não se realiza por
culpa do teu divorcio litigioso. O Sr. DDD já tem um prejuízo de 3 500.00 três
mil e quinhentos euros dos quais tu tens de tomar a real responsabilidade.
Urgentemente
resolve está situação agora. liga com urgência agora porque o Sr. DDD não vai
embora sem recuperar o valor já gasto por não se ter efetuado a escritura. Liga
para mim tua prima ou Sr. eng. LLL.
Tua
tia AAA.»
28 – Tomando conhecimento do mesmo a
interveniente FFF respondeu, nos seguintes termos e na mesma data:
«Boa
noite,
Somos
a solicitar que nos informem de:
1.
- Quem deu as chaves ao promitente comprador?
2.
- Com ordem de quem foi-lhe dada as chaves?
3.
- Quem autorizou o Sr. a entrar na casa?
4.
- Quem autorizou obras na casa?
No
que respeita ao direito de preferência, aguardamos a respetiva notificação nos
termos legais, para que nos possamos pronunciar.
Com
os nossos cumprimentos, de
FFF.»
Factos julgados não provados
pelo tribunal a quo:
1 – Os autores, o chamado GGG e a
falecida HHH, que aceitaram a herança, frequentavam a fracção nas deslocações a
Elvas, onde pernoitavam, procedendo à limpeza e obras de conservação e
reparação da fracção, quando tal se mostrava necessário.
2 – Que nas circunstâncias referidas em
6 dos factos provados, os chamados também tenham tomado a decisão de vender a
fracção.
3 – Só no dia da escritura os autores
tiveram conhecimento que o réu ocupava a fracção.
4 – Na fracção continuam depositados
pertences do réu, a saber, uma mobília de quarto, diverso material de
escritório e construção civil.
5 – Na sequência do referido em 22
acordaram ainda a devolução do valor de € 2.500, a ser imputado, descontado no
preço acordado.
6 – Tendo ainda procedido à entrega de
outros € 2.500 em numerário à autora junto ao Centro Comercial Palmeiras, em
Oeiras.
7 – Os autores e intervenientes foram
impedidos de entrar no prédio.
8 – O réu despendeu € 78,80 para visar
dois cheques, gastou € 30 em gasóleo, € 30 em portagens e perdeu um dia de
trabalho correspondente a € 30.
9 – O réu ficou sem local onde colocar
os trabalhadores a pernoitar, tendo um prejuízo de € 334,50.
10 - No dia 17 de Abril de 2019, a
interveniente FFF deslocou-se da sua residência, na Parede, para Elvas e levou
com ela as chaves da fracção em apreço com o propósito de a ela aceder para
verificar em que condições se encontrava, tendo verificado que a fechadura
estava trocada.
11 – Na mesma ocasião, entrou na fracção
uma pessoa que recusou identificar-se e que ali deixou uma mala, e que lhe
disse que a casa era do Senhor DDD – aqui réu – e foi chamá-lo.
12 – Pouco tempo depois, apresentou-se à
porta da fracção o aqui réu, que informou que havia comprado à autora AAA a
metade que lhe cabia na fracção e ter-lhe havia pago o preço correspondente,
estando agora a utilizar a fracção como armazém e dormitório para trabalhadores
de uma obra localizada nas imediações.
13 – Tendo a interveniente informado que
não autorizava a utilização da fracção e que iria voltar a substituir a
fechadura.
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1 – Impugnação da decisão sobre a
matéria de facto:
1.1. Os recorrentes
pretendem a alteração do n.º 23 dos factos provados, cuja redacção é a
seguinte: «Por carta datada de 21 de
janeiro de 2019, o réu recebeu a minuta do contrato promessa de compra e venda,
já assinado por AAA e KKK, junta a fls. 25, cujo teor aqui se dá por
integralmente reproduzido.»
Concretamente, os
recorrentes insurgem-se contra a qualificação do documento em causa como contrato-promessa
de compra e venda, sustentando que em nenhum momento celebraram um contrato
dessa natureza com o recorrido.
Os recorrentes têm razão.
Sendo a qualificação do conteúdo da minuta referida no n.º 23 uma das questões
jurídicas em discussão neste processo, não poderá constar do enunciado da
matéria de facto provada. O local próprio para a discussão dessa qualificação é
a fundamentação jurídica da decisão. Daquele enunciado, apenas deverão constar
os factos provados que, para tal, se mostrem relevantes.
Tal como os recorrentes
sustentam, aquilo que deverá constar do n.º 23 do enunciado da matéria de facto
provada é o conteúdo do documento recebido pelo recorrido que se mostrar útil
para a sua qualificação jurídica, a fazer na sede própria.
Assim, determina-se que o
n.º 23 do enunciado da matéria de facto provada passe a ter a seguinte
redacção:
«Por
carta datada de 21 de janeiro de 2019, o réu recebeu um documento, assinado por
AAA e KKK, do qual consta, nomeadamente, o seguinte:
Entre:
1.ºs
outorgantes:
-
AAA (…) e marido KKK (…), e
2.º
outorgante: DDD (…).
Entre
os outorgantes acima identificados é celebrado, de boa fé e de livre e
espontânea vontade, um acordo, que se rege pelas cláusulas seguintes:
1.ª
– Os 1.ºs outorgantes são donos e legítimos possuidores do direito à meação do
prédio urbano indiviso situado na Rua da (…), n.º (…)/fracção (…), inscrito na Conservatória
do Registo Predial de Elvas/Freguesia (…)/ficha (…) e com o artigo (…), da
freguesia de (…), concelho de Elvas.
2.ª
– Pelo presente acordo, os 1.ºs outorgantes comprometem-se a dar preferência na
venda da sua meação ao 2.º outorgante, pelo preço de € 12.500 (…).
3.ª
– Mais se comprometem os 1.ºs outorgantes a notificarem, nos termos legais,
para o exercício do seu direito de preferência, os comproprietários da outra
meação do prédio.
4.ª
– Para a hipótese de os comproprietários notificados para a preferência não
exercerem o seu direito de preferência, aceitam os 1.ºs outorgantes a
declararem em contrato-promessa de compra e venda a celebrar oportunamente que
vão receber a título de sinal e princípio de pagamento, € 2.500 (…), que serão
tidos como compensação para o 2.º outorgante, pela não realização da escritura
de compra e venda do prédio supra identificado marcada para 18/01/2019, todavia
sem culpa dos 1.ºs outorgantes.
5.ª
– Se os comproprietários notificados para a preferência não exercerem o seu
direito, o 2.º outorgante pagará aos 1.ºs outorgantes a quantia de € 1.000, no
caso e adquirir a meação dos comproprietários notificados para a preferência,
no prazo de 1 (um) ano, a contar da data da assinatura do contrato-promessa de
compra e venda referido na cláusula 4.ª.
6.ª – O 2.º outorgante já entregou ao Sr. Eng. LLL, sócio gerente da Agência Imobiliária Sociedade 1 (…) as chaves do prédio supra identificado.
7.ª
– Mais se compromete o 2.º outorgante, antes de ser dono e legítimo possuidor
da totalidade do prédio acima identificado, a não contratar para o mesmo:
-
Serviços de energia/electricidade, abastecimento de água ou gás;
-
A não realizar obras de qualquer natureza no interior ou no exterior do prédio,
antes de submeter para apreciação os projectos de licenciamento à autoridade
administrativa Câmara Municipal ou outra, obrigando-se a cumprir e respeitar os
regulamentos camarários.»
1.2. Os recorrentes
pretendem que a decisão do tribunal a quo
sobre a matéria de facto seja alterada por forma a que passe a constar, do
enunciado da matéria de facto provada, o conteúdo do actual n.º 3 do enunciado
da matéria de facto não provada, a saber: «Só
no dia da escritura os autores tiveram conhecimento que o réu ocupava a
fracção».
Porém, os recorrentes não
especificam em que medida tal alteração poderia favorecê-los. Na realidade,
trata-se de um facto manifestamente irrelevante para a decisão da causa.
Nomeadamente, os recorrentes não pedem qualquer indemnização pela ocupação da
fracção, por parte do recorrido, anteriormente à data marcada para a realização
da escritura pública de compra e venda.
Sendo manifestamente irrelevante para a
decisão do recurso, a apreciação da decisão do tribunal a quo sobre o n.º 3 do enunciado da matéria de facto não provada
traduzir-se-ia na prática de um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC,
que consagra o princípio da limitação dos actos.
Subsistirá, pois, o decidido pelo
tribunal a quo relativamente ao n.º 3
do enunciado da matéria de facto não provada.
1.3. Os recorrentes pretendem que a
decisão do tribunal a quo sobre a
matéria de facto seja alterada por forma a que passe a constar, do enunciado da
matéria de facto provada, parte do conteúdo do actual n.º 4 do enunciado da
matéria de facto não provada, nos seguintes termos: «Na fracção continuaram depositados pertences do réu, a saber, uma
mobília de quarto, diverso material de escritório e construção civil até ao mês
de março de 2021».
Como veremos no ponto 3 da presente
fundamentação, este facto não tem influência na decisão da causa. Não obstante,
procederemos à apreciação do acerto da decisão do tribunal a quo sobre ele, pois a conclusão de que ele é inócuo requer uma
análise jurídica que é reclamada pela exigência legal de fundamentação das
decisões judiciais. A sua inclusão no enunciado da matéria de facto provada, se
encontrar sustentação nos elementos constantes do processo, viabilizará a
referida análise jurídica.
Em face dos elementos que constam do
processo, constitui uma evidência que o facto em questão corresponde à
realidade. O próprio recorrido o confessou ao requerer, em 17.03.2021, que os
recorrentes lhe entregassem os bens acima referidos.
Consequentemente, determina-se a
supressão do n.º 4 do enunciado da matéria de facto não provada e a inclusão, no
enunciado da matéria de facto provada, do seguinte: «29 – Até ao mês de Março de 2021, continuaram depositados, na fracção,
pertences do réu, a saber, uma mobília de quarto e diverso material de
escritório e construção civil.»
2 – Se foi celebrado um
contrato-promessa e, na hipótese afirmativa, o recorrido tem direito a receber
o sinal em dobro:
O tribunal a quo considerou que:
- O documento transcrito no n.º 23 do
enunciado da matéria de facto provada consubstancia um contrato-promessa de
compra e venda «da quota do prédio em
causa que pertence ou pertencia aos AA. AAA e KKK»;
- Esse contrato-promessa «não obedece aos requisitos do n.º 3 do art.
410.º do Cód. Civil, que estabelece, no caso de contrato relativo à celebração
de contrato oneroso de transmissão e direito real sobre edifício ou fracção
autónoma dele, a obrigatoriedade de reconhecimento presencial da assinatura do
promitente, entre outros requisitos. Todavia, trata-se de nulidade mista, em princípio,
apenas invocável pelo beneficiário da promessa (que não o fez), não sendo
possível ser declarada oficiosamente pelo Tribunal.»
- Os recorrentes não cumpriram esse
contrato-promessa;
- Nos termos do artigo 441.º do Código
Civil, «presume-se sinal no contrato
promessa toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente
vendedor»;
- O n.º 2 do artigo 442.º do Código
Civil estabelece que, «se o não
cumprimento do contrato for imputável a quem recebeu o sinal, tem o outro
contraente a faculdade de exigir o dobro do que prestou»;
- «Da
matéria de facto provada resultou apenas a entrega pelo R. reconvinte da
quantia de € 2.500, pelo que quanto ao pedido de devolução do sinal e dobro, o
mesmo apenas pode proceder na quantia de € 5.000»;
- «Esta
condenação restringe-se à responsabilidade dos promitentes vendedores, AAA e KKK,
este representado pelos seus herdeiros».
Os recorrentes contrapõem
que:
- O documento em causa nunca foi
assinado pelo recorrido, o que determina a sua nulidade;
- O mesmo documento consubstancia, não
um contrato-promessa de compra e venda, mas sim um pacto de preferência;
- Apenas verificada a condição
suspensiva do «não exercício do direito de
preferência pelos contitulares da fracção», eles, recorrentes, «aceitam celebrar com o R. um
contrato-promessa de compra e venda, no âmbito do qual receberão a título de
sinal e princípio de pagamento a quantia de € 2.500»;
- Essa condição suspensiva não se
verificou.
O documento transcrito no
n.º 23 do enunciado da matéria de facto provada não consubstancia, sequer, um
contrato, porquanto o recorrido nunca o assinou, nem, tanto quanto resulta do
enunciado da matéria de facto provada, emitiu qualquer declaração de aceitação
da proposta contratual que ele encerra. Unicamente se provou que os recorrentes
remeteram tal documento ao recorrido, não que este tenha manifestado vontade de
aderir ao seu conteúdo, celebrando um contrato.
Ainda que o recorrido tivesse
assinado o documento em questão, assim manifestando a sua vontade de contratar,
o contrato assim concluído não poderia ser qualificado como um
contrato-promessa de compra e venda, atento o seu conteúdo.
O n.º 1 do artigo 410.º do
Código Civil define o contrato-promessa como a «convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato»,
denominado pelo mesmo preceito legal como «contrato
prometido».
Ora, do documento transcrito
no n.º 23 não consta qualquer promessa de celebração de um contrato de compra e
venda, ou outro. Aquilo que consta da cláusula 2.ª é que os recorrentes se
obrigam «a dar preferência na venda da sua meação» ao recorrido. Assumir a
obrigação de dar preferência na venda não é sinónimo de prometer vender, como é
óbvio.
Por outro lado, consta da
cláusula 4.ª que, para a hipótese de os co-herdeiros (erradamente designados
como «comproprietários») não
exercerem o seu direito de preferência na sequência de notificação para esse
efeito, «aceitam os 1.ºs outorgantes a
declararem em contrato-promessa de compra e venda a celebrar oportunamente que
vão receber a título de sinal e princípio de pagamento, € 2.500 (…), que serão
tidos como compensação para o 2.º outorgante, pela não realização da escritura
de compra e venda do prédio supra identificado marcada para 18/01/2019, todavia
sem culpa dos 1.ºs outorgantes». Daqui também resulta que o documento
transcrito no n.º 23 não corporiza um contrato-promessa de compra e venda. A
celebração deste ficaria dependente de os co-herdeiros não exercerem o seu
direito de preferência, constituindo, assim, um facto futuro e eventual.
Concluímos, assim, que os
recorrentes têm razão ao afirmarem que não celebraram um contrato-promessa com
o recorrido. Consequentemente, inexiste fundamento para qualificar a quantia de
€ 2.500, referida no n.º 22, como sinal, e para a condenação dos recorrentes na
sua restituição em dobro.
Em vez disso, deverão os
recorrentes ser condenados a restituir os referidos € 2.500 ao recorrido em
singelo, por não se ter verificado a causa que levou o este último a entregá-la
àqueles. Isto porque resulta do enunciado da matéria de facto provada que os
recorrentes receberam essa quantia (n.º 22), mas não que a tenham restituído ao
recorrido. A restituição referida no n.º 20 reporta-se à quantia referida no
n.º 18, entregue pelo recorrido na ocasião referida no n.º 16.
Uma vez que os recorrentes
se encontram em mora na restituição da quantia de € 2.500, deverá manter-se a
sua condenação no pagamento de juros moratórios, a ela reportados.
3 – Se o recorrido é
devedor de uma indemnização pela privação do uso da fracção entre Julho de 2019
e Março de 2021:
Como adiantámos em 1.3, a
introdução, no enunciado da matéria de facto provada, do facto de que «Até ao mês de Março de 2021, continuaram
depositados, na fracção, pertences do réu, a saber, uma mobília de quarto e
diverso material de escritório e construção civil», não determina a
alteração da sentença recorrida no que concerne ao montante da indemnização a
pagar pelo recorrido.
O tribunal a quo condenou o recorrido a pagar a
quantia total de € 1.500 (€ 300/mês) a título de indemnização pela privação do
uso da fracção durante os meses de Fevereiro a Junho de 2019.
Não obstante os bens acima
descritos terem permanecido na fracção até ao mês de Março de 2021, não ficou
provado que isso tenha acontecido por facto imputável ao recorrido. Atente-se
na sequência descrita nos n.ºs 12 a 14: desde aproximadamente Janeiro de 2019,
o recorrido tinha funcionários seus a pernoitar na fracção, nesta armazenando,
ainda, diverso material de construção civil; os recorrentes solicitaram a
restituição da fracção, mas o recorrido recusou-se a fazê-lo; os recorrentes
instauraram, contra o recorrido, procedimento cautelar para restituição
provisória da posse, aí tendo sido decretada a providência requerida; a fracção
foi restituída aos recorrentes em 07.06.2019.
Portanto, a partir de
07.06.2019, a fracção voltou a estar na posse dos recorrentes. Não consta do
enunciado da matéria de facto provada que estes tenham procurado o recorrido
com o objectivo de este retirar os seus pertences da fracção. Ao invés, foi o
recorrido quem teve de vir aos autos, em 17.03.2021, requerer que os
recorrentes lhe entregassem os bens em causa.
Daí que, em relação ao
período compreendido entre Julho de 2019 e Março de 2021, não se verifiquem os
pressupostos da responsabilidade civil que os recorrentes pretendem assacar ao
recorrido, estabelecidos no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil. Falta, desde
logo, o pressuposto da culpa.
Deverá, pois, a sentença
recorrida manter-se no que concerne ao montante indemnizatório em que o
recorrido foi condenado.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso parcialmente procedente:
- Revogando a sentença recorrida na
parte em que condenou os recorrentes a pagarem, ao recorrido, a quantia de €
5.000, correspondente ao sinal em dobro, acrescida de juros de mora, calculados
à taxa legal, contados desde a data da notificação do pedido reconvencional até
integral pagamento;
- Condenando os recorrentes a pagarem,
ao recorrido, a quantia de € 2.500, acrescida de juros de mora, calculados à
taxa legal, contados desde a data da notificação do pedido reconvencional até
integral pagamento;
- Confirmando, no mais, a sentença
recorrida.
Custas a cargo dos
recorrentes e do recorrido, na proporção do seu decaimento.
Notifique.
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Évora, 26.09.2024
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª
adjunta)
(2.ª adjunta)