Em acórdão que relatei recentemente, a valoração de uma perícia médica suscitou algumas dificuldades. Não identifico o processo para garantir o anonimato da pessoa sujeita à perícia. Transcrevo a parte relevante da fundamentação do acórdão:
“O recorrente pretende, por
outro lado, que o facto que o tribunal a quo julgou não provado seja julgado
provado. Está em causa saber se o recorrente teve um período de descompensação
aguda da sua doença nos meses de Julho a Setembro de 2020. O recorrente
considera que tal facto devia ter sido julgado provado, por respeito pela
perícia médica.
Antes de passarmos à análise
do conteúdo do relatório pericial, importa clarificar qual é o valor probatório
deste. Nos termos do artigo 389.º do Código Civil, a força probatória das
respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal. O recorrente não põe isto
em causa, mas salienta que, tendo em conta a natureza daquele meio de prova, a
postura do julgador deverá ser a de só deixar de acatar o juízo científico em
que assenta o relatório pericial se tiver razões da mesma índole para o fazer, especificando-as
cuidadosamente na sentença, ou se considerar o resultado da perícia
inconclusivo, explicando também porquê.
Não existe fundamento legal
para qualquer restrição à regra da livre apreciação da prova pericial. Razões
de natureza não científica podem levar o julgador a formar uma convicção não
coincidente com o resultado da prova pericial e, não obstante, inexistir erro
de julgamento. Num exemplo extremo, imaginemos a hipótese de o relatório
pericial mencionar que a estrutura de um edifício é suficientemente forte para
garantir a sua estabilidade e, antes do julgamento, esse edifício ruir na
sequência de um sismo de baixa intensidade. A realidade não poderá deixar de se
impor ao juízo científico que está na base do relatório pericial, por muito
claro e bem fundamentado que este esteja. O julgador não poderá deixar de ter
em consideração, na formação da sua convicção sobre a existência do referido
defeito, que o edifício ruiu. De outra forma, deixaria de haver livre apreciação
da prova.
O relatório pericial é parco em
fundamentação. Reproduz parcialmente um relatório médico e, em seguida, a
descrição que o recorrente fez da sua doença. A “história clínica” também
parece basear-se exclusivamente na informação prestada pelo recorrente. Em sede
de “observação psiquiátrica”, escreveu-se apenas o seguinte: “O examinando
apresenta aspecto cuidado e investido, contacto informal, algo hiperfamiliar
(possível componente caracterial), colaborante, humor em eutimia, sem ideação suicida,
não se apurando sintomatologia da linha psicótica. No momento actual, com
insight sobre a sua doença e necessidade de tratamento.” Logo de seguida, foram
formuladas as seguintes conclusões: “1. O examinando padece de Perturbação
Afectiva Bipolar (F31; CID-11); 2. Podemos assumir o início da doença em
Fevereiro de 2006; 3. Nos episódios de descompensação aguda de doença
(episódios maníacos e hipomaníacos), tanto o componente cognitivo como o
volitivo do doente apresentam-se muito alterados pela aceleração e
desorganização dos processos psíquicos, pelo que o examinando se torna incapaz
de avaliar e compreender os actos que pratica; 4. Nos episódios de
descompensação aguda da doença (episódios maníacos e hipomaníacos), o
examinando poderá não ser capaz de conformar a sua actuação de acordo com a
avaliação que faz, pela desorganização comportamental habitualmente observada
nestes episódios; 5. A incapacidade não se verifica ao longo de todo o período
de doença, observando-se apenas nos episódios de descompensação aguda da doença
(episódios maníacos e hipomaníacos). 6. Esta incapacidade observa-se nos
episódios de descompensação aguda da doença (episódios maníacos e
hipomaníacos), que – de acordo com a descrição do próprio e do seu Psiquiatra
Assistente – se podem considerar, para além de Fevereiro de 2006, o período compreendido
entre Janeiro de 2020 e Dezembro de 2021.”
Afigura-se-nos que as
conclusões se basearam, essencialmente, no teor do relatório médico referido no
relatório pericial, datado de 21.09.2022, e na descrição que o recorrente fez
da sua doença. Isto porque, por um lado, o relatório pericial pouco mais
contém, e, por outro, as conclusões em nada se afastam dos referidos elementos.
Mais, a 6.ª conclusão funda-se assumidamente na “descrição do próprio e do seu
Psiquiatra Assistente”. Esta constatação leva-nos, logo à partida, a
relativizar o valor científico das referidas conclusões.
O recorrente baseia-se
fundamentalmente na 6.ª conclusão, a qual, além do que referimos no parágrafo anterior,
tem uma redacção gramaticalmente incorrecta, o que dificulta a apreensão do seu
conteúdo. O sentido da primeira parte é unívoco: a incapacidade descrita nas 3.ª
e 4.ª conclusões observa-se nos episódios de descompensação aguda da doença
(episódios maníacos e hipomaníacos). Já o sentido da segunda parte é ambíguo:
“(…) que (…) se podem considerar, para além de Fevereiro de 2006, o período
compreendido entre Janeiro de 2020 e Dezembro de 2021.” Literalmente, isto parece
significar que podem considerar-se episódios maníacos e hipomaníacos o mês de
Fevereiro de 2006 e o período compreendido entre Janeiro de 2020 e Dezembro de
2021. É esta a interpretação que o recorrente faz para concluir que deve ser
julgado provado que ele sofreu um período de descompensação aguda da sua doença
nos meses de Julho a Setembro de 2020 e, por isso, podia não ser capaz de conformar
a sua actuação de acordo com a avaliação que faz.
Porém, isto não faz sentido e
contradiz o próprio relatório médico em que a perícia se baseou, bem como o
relatório médico anterior, datado de 25.08.2020.
Não faz sentido porque, por
definição, um episódio de descompensação aguda não dura dois anos. Aquilo que
pode acontecer é, durante um período de dois anos, ocorrerem vários episódios
de descompensação aguda.
Isto é corroborado pelo
relatório médico de 25.08.2020. Segundo este relatório, no final de Janeiro e
início de Fevereiro de 2020, o recorrente teve um episódio de mania. Na data em
que o relatório foi elaborado, o recorrente encontrava-se compensado, graças à
medicação prescrita.
No relatório de 21.09.2022,
faz-se referência ao episódio de mania ocorrido no final de Janeiro e início de
Fevereiro de 2020. Descreve-se o ano de 2020 como o período em que o recorrente
esteve mais descompensado e em que foi mais difícil o controlo da
sintomatologia, mas não se afirma que tenha ocorrido um episódio de
descompensação aguda da doença que se tenha prolongado por todo esse ano e,
ainda, pelo de 2021. Menciona-se, sim, um episódio maníaco em Julho de 2021,
menção esta que corrobora a ideia de que estes episódios eram pontuais e se
prolongavam por períodos relativamente curtos e não, ininterruptamente, ao
longo de anos.
Sendo este o teor dos
relatórios elaborados pelo psiquiatra que acompanhava o recorrente, consideramos
que a conclusão 6.ª do relatório pericial tem de ser interpretada no sentido
de, nos anos de 2020 e 2021, o recorrente ter estado mais descompensado e com
mais difícil controlo da sintomatologia. Não no sentido de ter havido um
episódio de descompensação aguda da doença, de forma ininterrupta, ao longo
daqueles dois anos. E, mesmo nesta interpretação, o relatório pericial vai além
do relatório médico em que se baseou, ao incluir no período de maior
descompensação e maior dificuldade de controlo da sintomatologia o ano de 2021,
aliás sem fundamentação. Interpretada literalmente, a 6.ª conclusão teria de
ser considerada infundada e, logo, desconsiderada, prevalecendo os relatórios
elaborados pelo psiquiatra que tem acompanhado o recorrente, o qual certamente
conhece muito melhor o estado de saúde deste último que a perita médica.
Portanto, aquilo que resulta dos relatórios elaborados pelo psiquiatra que acompanha o recorrente e do relatório pericial, devidamente interpretado, é que, ao longo dos anos de 2020 e 2021, o recorrente esteve mais descompensado e com maior dificuldade de controlo da sintomatologia. Durante esse período, estão reportados dois episódios de descompensação aguda, um no final de Janeiro e início de Fevereiro de 2020, outro em Julho de 2021. Em contraponto, é seguro, atento o teor do relatório médico de 25.08.2020, que, nesta data, o recorrente se encontrava compensado com a medicação prescrita.”