sábado, 4 de maio de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 2392/23.4T8STR.E1 – Procedimento cautelar comum.

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Sumário:

1 – Até à partilha, os herdeiros não são comproprietários de cada um dos bens que integram a herança. Em vez disso, cada herdeiro é titular de uma quota hereditária e apenas por efeito da partilha poderá passar a ser proprietário (ou, eventualmente, comproprietário) de bens concretos da herança.

2 – Não entra na partilha um bem que tenha sido legado.

3 – O legatário adquire a posse da coisa legada através dos herdeiros, mas recebe o direito de propriedade sobre essa coisa directamente do autor da sucessão.

4 – Em princípio, os herdeiros não recebem bens que tenham saído da herança por efeito de um legado. Apenas deixará de ser assim em algumas hipóteses de inoficiosidade do legado.

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Requerentes/recorrentes:

- Beatriz;

- Carlos.

Requerida/recorrida:

- Maria João.

Pedidos:

- Reconhecimento judicial do direito de propriedade dos requerentes (em quota a determinar no âmbito de processo de inventário que estes irão instaurar a brevíssimo trecho) sobre o prédio urbano, situado em (…), Rua (…), s/ número, com a área total de 440 m2 composto de edifício de r/ch para habitação e logradouro inscrito na matriz cadastral urbana da freguesia de (…) sob o artigo (…), o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da freguesia de (…);

- Condenação da requerida a, por si ou por terceiro, abster-se de praticar quaisquer actos que perturbem a posse e/ou propriedade dos requerentes;

- Condenação da requerida no pagamento da quantia de € 500 por cada dia de atraso no cumprimento ou de violação da providência cautelar ordenada, a título de sanção pecuniária compulsória.

Sentença recorrida:

- Recusou o decretamento da providência.

Conclusões do recurso:

A) A providência cautelar a que se reportam os presentes autos foi instaurada pelos requerentes com vista a impedir que a requerida procedesse à venda do imóvel a que se reportam os mesmos autos e se apoderasse e dissipasse o dinheiro resultante da venda do dito imóvel (lesando, deste modo, os seus direitos).

Com o intuito de obterem a tutela jurídica e deste modo salvaguardarem os seus direitos, expuseram os requerentes um conjunto de factos dos quais deriva, por um lado, a existência do seu direito e, por outro, o perigo de a requerida lesar os mesmos direitos.

Mais especificamente relataram – e comprovaram – os requerentes que são filhos e herdeiros legitimários de José António (falecido) e que a requerida é neta deste e que o mesmo outorgou testamento a seu favor, o qual juntaram aos autos.

Mais alegaram - e comprovaram - os mesmos que a requerida, antes que tivessem sido partilhados os bens que integram a herança de José António, registou o prédio em seu único e exclusivo nome e que encetou já diligências no sentido de proceder à venda do mesmo imóvel.

No âmbito da sua oposição veio a requerida a afirmar que efectivamente é proprietária exclusiva do prédio.

A verdade, porém, é que tal afirmação não tem rigor jurídico, sendo antes uma realidade controvertida a ser dirimida no processo judicial próprio que os requerentes logo em sede de requerimento inicial manifestaram que iriam intentar.

B) Violação do artigo 5.º, n.º 3, do C. Processo Civil:

Dado que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” deveria o tribunal a quo ter aplicado corretamente os factos ao direito e nessa medida extrair dos mesmos factos a conclusão de que os requerentes não têm direito de propriedade sobre o imóvel em enfoque mas que têm direito a uma quota parte do património hereditário do qual faz parte o dito prédio.

Dito de outra forma: atento o ditame legal contido no n.º 3 do art. 5.º do C. Proc. Civil, o tribunal a quo ao constatar que os requerentes fizeram uma incorrecta qualificação jurídica dos factos que alegaram deveria ter dado aos mesmos factos a correcta qualificação jurídica.

Do que resulta que ao não dar aos factos a qualificação jurídica correcta incorreu o tribunal a quo na violação da norma jurídica a que se vem de fazer menção (art. 5.º, n.º 3 do C. Proc. Civil).

C) Neste sentido e por todos cita-se o acordão proferido pelo excelso Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo 3063/18.9 T8PTM.E2.S1, disponível em www.dgsi.pt, em cujas sapientes palavras nos louvamos:

“ I. O artigo 5.º, n.º 3, do CPC dá expressão à ideia ou regra conhecida como “iura novit curia”, ou seja, de que o juiz conhece (todo) o direito.

II. Nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, o julgador não está circunscrito à indagação, à interpretação e à aplicação das regras jurídicas aplicáveis.

III. Sempre que o enquadramento jurídico realizado pelo tribunal se contenha dentro dos limites da factualidade essencial alegada e seja adequado ao efeito prático-jurídico pretendido, pode o tribunal realizá-lo, posto que as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar sobre ele, sendo poder-dever do julgador proceder à requalificação ou reconfiguração normativo-jurídica do caso quando cumpridas aquelas condições.”

D) Feita a correcta qualificação jurídica dos factos alegados pelos requerentes, ora apelantes, forçoso é concluir que há a probabilidade séria da existência de um direito: não o direito de propriedade (em quota a determinar em sede processo de inventário) como foi entendido e expresso pelos requerentes em sede de requerimento inicial mas sim o direito a uma quota parte do património hereditário do qual faz parte o dito prédio. Certo sendo que, considerando, por um lado, que os requerentes representam a totalidade dos herdeiros legitimários, e, por outro, que o acervo hereditário é de pouca monta - tal como também ficou demonstrado nos autos, mais concretamente no facto indiciariamente provado sob o número 6 (verba 1 - ½ do prédio urbano com o artigo matricial (…) da freguesia (…); verba 2 – ½ (a outra metade) do usufruto do mesmo prédio urbano com o artigo matricial (…) da freguesia de (…); verba 3 – Sepultura perpétua no Cemitério (…) com o n.º (…) do 2.º Plano; verba 4 – Veículo ligeiro de passageiros marca (…), modelo (…) matrícula (…) do ano de 1998, no valor de 150,00€; verba 5 – valores monetários depositados em conta bancária à ordem no valor de 1.305,24€; verba 6 - valores monetários depositados em conta bancária a prazo no valor de 100,45€) e, por outro ainda, que o valor do imóvel em causa é na ordem dos 60.000,00 €, forçoso é concluir que após a partilha os requerentes terão direito de propriedade sobre o mesmo prédio).

E) Incorrecta interpretação do artigo 362.º, n.º 1, do C. Proc. Civil:

O tribunal a quo fez uma interpretação errada da norma constante do art. 362.º, n.º 2, do CPC.

Com efeito, tendo em conta, por um lado, que o tribunal a quo reconhece que os requerentes sendo herdeiros de José António (artigo 2157º do CC) têm direito a 2/3 dos bens que compõem aquela herança (artigo 2159º nº2 do CC) sendo, portanto, quota disponível do de cujus 1/3 dos bens dessa mesma herança, na qual se integra o prédio em enfoque nos presentes autos e, por outro, que deu como indiciariamente provado que a requerida registou o prédio em seu (único e exclusivo nome) e que colocou o mesmo prédio à venda (factos indiciariamente dados como provados sob os números 9 e 10), forçoso é concluir que fez uma interpretação errada da segunda parte do n.º 2 do artigo 362.º do C.P.C..

Efectivamente, tal como dilucida o acordão proferido pelo venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo 989/21.6 T8CSC- A.L1-2 “ (…) “II – Para a valoração do dano grave e irreparável não é necessário que se trate de um dano irreparável em termos absolutos, bastando que implique uma reconstituição difícil do status quo ante.”

Acresce referir que não tem correspondência com a realidade a asserção do douto tribunal a quo segundo a qual “nenhum facto resulta alegado de onde advenha qualquer perigo concreto que se pretenda acautelar com esta demanda”. Com efeito, no artigo 30.º do requerimento inicial verteram os requerentes o seguinte. Considerando que a requerida “não se coibiu de registar o prédio em seu nome como se fosse a sua única proprietária não se coibirá de o vender e de se apropriar da totalidade do preço da venda.”

Efectivamente, quando os requerentes aludiram à pretensão da requerida em vender o imóvel estavam a alegar um perigo concreto susceptível de lesar o seu direito.

Efectivamente a circunstância de a requerida ter registado o prédio em seu único e exclusivo nome e de se colocado o mesmo prédio à venda permite inferir que pretende apoderar-se da totalidade do valor resultante da venda do mesmo prédio, o que, como facilmente se apreende, configura uma grave lesão dos direitos dos requerentes.

O facto de a requerida atribuir ao prédio em causa metade do valor correspondente ao valor comercial do prédio também é preocupante.

De todo resulta que o entendimento adoptado pelo tribunal a quo de acordo com o qual a requerida pode vender o prédio e depois pode pagar de outro modo, esvazia o significado do conceito periculum in mora.

F) Violação do artigo 368.º n.º 1 do C. Processo Civil:

Na parte da sentença que se debruça sobre a apreciação dos requisitos de que depende a decretação da providência cautelar não especificada consignou o douto tribunal a quo o seguinte:

“ (…)

Mas não lhes pode ser reconhecido qualquer direito de propriedade neste procedimento cautelar, sobre um concreto bem, pelo facto de sendo herdeiros, serem tão só titulares de um direito a uma universalidade de bens que apenas recairá sobre coisas concretas depois da partilha.

Pelo que, está votado ao insucesso o presente procedimento, repetindo-se o que acima se disse, ou seja, os pedidos feitos são pedidos de uma acção comum ou eventualmente de processo de inventário, mas não podem produzir efeitos em sede cautelar.

É que se se decretasse a providência com os pedidos feitos, nada restaria para uma demanda definitiva e ulterior, sabendo-se que qualquer procedimento cautelar é dependência de uma acção (artigo 364º do CPC).”

A verdade, porém, é que tal como resulta dos factos dados como indiciariamente provados e de tudo quanto precede, verifica-se a probabilidade séria da existência do direito dos requerentes e o suficientemente fundado risco de lesão dos direitos do mesmos.

Perante o que se vem de asseverar deveria o tribunal a quo ter decretado a providência.

Daqui resultando que ao não decretar a providência o tribunal a quo violou o artigo 368.º n.º 1 do C. Proc. Civil.

G) Mais: O tribunal a quo, ao decidir como decidiu, desvalorizando a factualidade e afirmando que o pedido formulado pelos requerentes apenas pode ser decidido numa acção principal e não numa providência cautelar, negou a tutela jurídica que determinou os requerentes a lançar mão de uma providência cautelar e esvaziou de utilidade as providências cautelares.

Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento desse venerando tribunal, deveria o tribunal a quo ter decidido que se mostrava provado, não que os requerentes têm direito de propriedade sobre o prédio em enfoque, mas sim que têm direito a uma quota parte do património hereditário do qual faz parte o dito prédio, pelo que, consequentemente, deve a decisão do tribunal de 1.ª instância ser alterada, conduzido ao decretamento da providência cautelar.

Questão a decidir:

- Verificação dos pressupostos do decretamento da providência cautelar solicitada.

Factos julgados indiciariamente provados pelo tribunal a quo:

1 – Os requerentes encontram-se registados como filhos de José António e de Rosa Maria.

2 – Rosa Maria faleceu em 06 de Novembro de 2010 e José António em 24 de Novembro de 2018.

3 – Em 03 de Fevereiro de 2010, Rosa Maria outorgou testamento no qual legou a quota disponível dos seus bens à requerida, a saber, a nua propriedade da parte que possuía no prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1710, e a José António o usufruto de todos os bens de que fosse titular na hora do seu falecimento, mais se dizendo nesse instrumento notarial que caso a testadora viesse a falecer no estado de viúva, legava à requerida por conta da quota disponível a propriedade plena da parte que possuísse no referido prédio.

4 – No dia 03 de Fevereiro de 2010, José António outorgou testamento no qual legou a quota disponível dos seus bens à requerida, a saber, a nua propriedade da parte que possuía no prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1710, e a Rosa Maria o usufruto de todos os bens de que fosse titular na hora do seu falecimento, mais se dizendo nesse instrumento notarial que caso a testador viesse a falecer no estado de viúvo, legava à requerida, por conta da quota disponível, a propriedade plena da parte que possuísse no referido prédio.

5 – Correu termos inventário por morte de Rosa Maria, no qual, à requerida, foi adjudicado, em conferência de interessados datada de 15 de Novembro de 2013, o imóvel referido em 3 na proporção de ½ pelo valor de € 6.087,78, tendo a mesma direito a receber em sede de mapa da partilha o valor de € 3.124,14 e pagando tornas de € 2.963,64.

6 – Em 22 de Janeiro de 2019, foi instaurado o processo de imposto de selo nº 2220623 relativo ao óbito de José António, sendo indicados como bens que compunham a herança do mesmo:

- Verba 1: ½ do prédio urbano com o artigo matricial (…) da freguesia de (…);

- Verba 2: ½ do usufruto do mesmo prédio urbano;

- Verba 3: Sepultura perpétua no Cemitério de (…) com o n.º (…) do 2.º Plano;

- Verba 4: Veículo ligeiro de passageiros marca (…), modelo (…), matrícula (…), do ano de 1998, no valor de € 150;

- Verba 5: Valores monetários depositados em conta bancária à ordem no valor de € 1.305,24;

- Verba 6: Valores monetários depositados em conta bancária a prazo no valor de 100,45€).

7 – Em 01 de Fevereiro de 2019 foi elaborada a “habilitação de herdeiros” por morte de José António, aí se indicando que o mesmo fez testamento público a favor da requerida e relativo à sua quota disponível, deixando como herdeiros os requerentes.

8 – O bem indicado em 2 está actualmente inscrito na matriz sob o artigo 1790, com o valor patrimonial de € 30.074,75.

9 – O bem indicado em 2 está descrito na CRP de (…) sob o n.º (…), estando registado sob a apresentação n.º (…) de 2021/08/25 tendo por causa a partilha da herança em ½ a favor da requerida e pela apresentação n.º (…) de 2021/08/25 tendo por causa partilha e legado em ½ a favor da requerida com a menção “1/2 por partilha da herança de Rosa Maria e ½ por legado de José António”.

10 – A requerida tem o imóvel indicado em 9 à venda.

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O n.º 1 do artigo 368.º do CPC estabelece que a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.

O tribunal a quo concluiu que nenhum destes dois pressupostos se verifica.

Concentremos a nossa atenção no primeiro.

No requerimento inicial, os ora recorrentes configuraram o direito que pretendem acautelar através da providência solicitada em termos que assim se sintetizam:

- Os recorrentes são filhos de Rosa Maria e de José António, casados entre si e falecidos, respectivamente, em 06.11.2010 e 24.11.2018;

- Em 03.02.2010, cada um dos progenitores dos recorrentes outorgou testamento mediante o qual:

- Para a hipótese de não sobreviver ao seu cônjuge, legou a quota disponível do seu património nos seguintes termos: ao cônjuge sobrevivo, o usufruto de todos os bens de que fosse titular à data da sua morte; à recorrida, a nua propriedade da sua quota-parte no prédio dos autos;

- Para a hipótese de sobreviver ao seu cônjuge, legou, por conta da sua quota disponível, à recorrida, a propriedade plena da sua quota-parte no mesmo prédio;

- Através de acordo de partilha da herança aberta por óbito de Rosa Maria, foi adjudicada, à recorrida, a nua propriedade de ½ do prédio dos autos;

- Na sequência do óbito de José António, foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros, da qual consta, nomeadamente, que os recorrentes são os seus únicos herdeiros legitimários;

- A herança de José António ainda não foi partilhada;

- A recorrida comporta-se como se fosse a única e exclusiva proprietária do prédio, tendo conseguido registar, a seu favor, a aquisição da totalidade do direito de propriedade sobre o mesmo;

- O que José António consignou no seu testamento foi que legava a quota disponível dos seus bens;

- O valor do prédio excede a quota disponível de José António, pelo que esse bem é necessário para o preenchimento da legítima dos requerentes;

- Ou seja, a quota hereditária de cada um dos recorrentes terá de ser preenchida com a adjudicação de parte do prédio, a determinar em processo de inventário, a intentar a brevíssimo trecho;

- Pelo que a recorrida não é a única e exclusiva proprietária do prédio.

Sobre o direito invocado pelos recorrentes, o tribunal a quo afirmou, em síntese, o seguinte:

- Sendo herdeiros de José António, os recorrentes não são titulares de qualquer direito de propriedade sobre cada um dos bens que integram a herança daquele;

- Cada recorrente é, sim, titular de uma quota hereditária;

- Apenas por efeito da partilha, os recorrentes poderão passar a ser proprietários de bens concretos da herança.

Nas suas alegações, os recorridos aceitam esta qualificação jurídica do direito que cada um deles adquiriu por efeito da aceitação da herança, argumentando, porém, que, atento o disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, o tribunal a quo devia «ter aplicado correctamente os factos ao direito e nessa medida extrair dos mesmos factos a conclusão de que os requerentes não têm direito de propriedade sobre o imóvel em enfoque mas que têm direito a uma quota parte do património hereditário do qual faz parte o dito prédio». Não o tendo feito, o tribunal a quo violou aquela norma processual. Concluem os recorrentes que, «Feita a correcta qualificação jurídica dos factos alegados pelos requerentes, ora apelantes, forçoso é concluir que há a probabilidade séria da existência de um direito: não o direito de propriedade (em quota a determinar em sede processo de inventário) como foi entendido e expresso pelos requerentes em sede de requerimento inicial mas sim o direito a uma quota parte do património hereditário do qual faz parte o dito prédio. Certo sendo que, considerando, por um lado, que os requerentes representam a totalidade dos herdeiros legitimários, e, por outro, que o acervo hereditário é de pouca monta (…), forçoso é concluir que após a partilha os requerentes terão direito de propriedade sobre o mesmo prédio).»

Ao argumentarem nos termos que sintetizámos, os recorrentes suscitam uma questão de natureza processual: a de saber se, ao considerar que cada um deles é titular, não de uma quota do direito de propriedade sobre o prédio, mas de uma quota hereditária, o tribunal a quo devia ter reconhecido este direito e, com esse fundamento, decretado a providência solicitada, mormente condenando a recorrida a abster-se de praticar, em relação ao prédio, quaisquer actos que perturbem o mesmo direito.

Ou seja, os recorrentes sustentam que ficou demonstrada uma forte probabilidade de eles serem titulares de um direito que constitui fundamento para o decretamento da providência solicitada. Concedem que esse direito não seja a compropriedade do prédio, como sustentaram no requerimento inicial, mas consideram que a demonstração, que fizeram, de que cada um deles é titular de uma quota hereditária, preenche o pressuposto do decretamento da providência cautelar que vimos analisando.

Porém, o problema que se suscita acerca deste pressuposto é mais profundo e tem natureza substantiva.

Tal como se considerou na sentença recorrida e os recorrentes aceitam, estes, por serem herdeiros, não são titulares de um direito de compropriedade sobre cada um dos bens que integram a herança. Em vez disso, cada um dos recorrentes é titular de uma quota hereditária e apenas por efeito da partilha poderá passar a ser proprietário (ou, eventualmente, comproprietário) de bens concretos da mesma herança – artigos 2030.º, n.º 2, e 2119.º do CC.

Por si só, esta asserção não invalida uma parte da argumentação que os recorrentes expenderam no requerimento inicial.

Vejamos.

No requerimento inicial, os recorrentes sustentaram serem comproprietários, em conjunto com a recorrida, do prédio. Daí terem pedido o reconhecimento desse suposto direito. É apenas desta pretensão que os recorrentes agora abdicam, considerando, contudo, que inexiste obstáculo processual a que o efeito prático-jurídico da providência cautelar que solicitaram seja decretado com fundamento na qualificação do direito de que cada um deles é titular como quota hereditária. Em nada mais os recorrentes concederam. Daí que a restante argumentação destes tenha de ser analisada.

Os recorrentes não detalham devidamente a fundamentação jurídica da solução que propõem. Abdicando da qualificação do direito de cada um deles como sendo de compropriedade sobre o prédio, persistem na conclusão de que, mesmo antes da partilha, a recorrida não é a única e exclusiva proprietária do prédio? Ou também concedem que a recorrida, afinal, o seja, embora podendo deixar de o ser em consequência da partilha? Ou, ao invés, assumem a posição, mais radical que aquela que exprimiram no requerimento inicial, de que a recorrida não é, de todo, proprietária do prédio? Não encontramos, nas alegações de recurso, resposta para estas questões.

Já é seguro que os recorrentes entendem que, sendo o seu valor superior ao da quota disponível, o prédio é necessário para o preenchimento da legítima de cada um deles. Através de que mecanismo técnico-jurídico isso aconteceria, os recorrentes não explicam. Limitam-se a afirmar que «têm direito a uma quota parte do património hereditário do qual faz parte o dito prédio» e que «após a partilha os requerentes terão direito de propriedade sobre o mesmo prédio».

Além de apresentar as lacunas que acabámos de referir, a argumentação dos recorrentes assenta num equívoco: o de que, até à partilha, o prédio faz parte do património hereditário. Não é assim.

A recorrida recebeu, da mãe dos recorrentes, a título de legado, metade da nua propriedade do prédio, tendo o cônjuge da falecida ficado com o correspondente usufruto.

Com a morte do pai dos recorrentes, extinguiu-se o direito de usufruto, de que ele era titular, que onerava a metade que a recorrida recebera por morte do cônjuge daquele. Por via sucessória, a recorrida recebeu, do pai dos recorrentes, a título de legado, a restante metade do direito de propriedade sobre o prédio, ficando, assim, proprietária da totalidade.

Os recorrentes ignoram, pura e simplesmente, o regime dos legados, parecendo considerar a recorrida como uma co-herdeira (assim a qualificam no artigo 19.º da sua resposta à excepção de caducidade, como adiante veremos com detalhe), que tivesse de entrar na partilha dos bens da herança, entre os quais se contaria o prédio.

A recorrida adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio a título de legatária, primeiro da mãe e, depois, do pai dos recorrentes. Significa isto que, ao contrário dos recorrentes, que são herdeiros, a recorrida sucedeu, em ambas as heranças, num bem determinado e não numa quota hereditária (artigo 2030.º, n.º 2, do CC).

Os recorrentes argumentam que aquilo que seu pai «consignou no seu testamento foi que legava a quota disponível dos seus bens». Isto não é verdade. De acordo com o n.º 4 do enunciado dos factos indiciariamente provados, consta daquele testamento que, «caso a testador viesse a falecer no estado de viúvo, legava à requerida, por conta da quota disponível, a propriedade plena da parte que possuísse no referido prédio». É evidente que o pai dos recorrentes legou, à recorrida, a parte do direito de propriedade sobre o prédio de que fosse titular à data da sua morte. Fê-lo por conta da quota disponível, como não podia deixar de ser, atendendo a que havia herdeiros legitimários e a recorrida não era um deles.

Tendo a recorrida sucedido, a título de legatária nas heranças dos pais dos recorrentes, no direito de propriedade sobre o prédio, este deixou de fazer parte de ambos os patrimónios hereditários e, consequentemente, de estar sujeito a partilha[1]. Daí que esta seja feita entre os herdeiros, nela não tendo lugar os legatários [artigos 2101.º, n.º 1, 2102.º, n.º 2, al. c), 2119.º, 2120.º e 2123.º, n.º 2, do CC].[2]

O legatário recebe os concretos bens que o autor da sucessão lhe deixa, tendo os herdeiros o dever de lhos entregar (artigos 2068.º, 2071.º e 2270.º do CC)[3]. Note-se, a este propósito, que o legatário adquire a posse da coisa legada através dos herdeiros, mas recebe o direito de propriedade sobre essa coisa directamente do autor da sucessão[4].

Os herdeiros não recebem, pois, em princípio, bens da herança que desta tenham saído em cumprimento de um legado. Apenas deixará de ser assim em algumas hipóteses de inoficiosidade do legado, como decorre dos artigos 2168.º, n.º 1, 2169.º e 2174.º, n.ºs 1 e 2, do CC. Mais precisamente, quando:

- O bem objecto do legado inoficioso for divisível, hipótese em que a redução do legado será feita separando-se dele a parte necessária para preencher a legítima (artigo 2174.º, n.º 1, do CC);

- O bem objecto do legado inoficioso for indivisível e a importância da redução exceda metade do valor daquele; nesta hipótese, o bem pertencerá integralmente ao herdeiro legitimário, havendo o legatário o resto em dinheiro (artigo 2174.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC).

Concluímos, assim, que, neste momento, o prédio não integra o património hereditário, antes sendo propriedade exclusiva da recorrida. Consequentemente, esta podia registar a sua aquisição nos termos em que o fez e tem legitimidade substantiva para o vender.

Esta conclusão não é abalada pela eventualidade de o valor da metade do direito de propriedade sobre o prédio exceder o da quota disponível e, em consequência disso, o legado efectuado pelo pai dos recorrentes ser inoficioso.

Na oposição que deduziu, a recorrida invocou a caducidade de um eventual direito à redução do legado efectuado pelo pai dos recorrentes, alegando factos dos quais resulta que estes últimos aceitaram a herança, o mais tardar, em Fevereiro de 2021. Contando-se o prazo para a propositura da acção de redução de legado inoficioso a partir da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário, sendo esse prazo de 2 anos (artigo 2178.º do CC) e tendo o presente procedimento cautelar sido deduzido em 10.08.2023, a caducidade teria ocorrido.

Os recorrentes responderam à excepção de caducidade. Não contestaram a alegação de que aceitaram a herança, o mais tardar, em Fevereiro de 2021. Em vez disso, sustentaram que seu pai beneficiou a recorrida, não com um legado por conta da quota disponível, mas através da atribuição da própria quota disponível. Teria sido por considerarem a recorrida «apenas herdeira da quota disponível (e não por conta da quota disponível)» (artigo 19.º da resposta) que os recorrentes não propuseram uma acção de arguição de inoficiosidade.

Vimos anteriormente não ser exacto que a recorrida tenha recebido a quota disponível do pai dos recorrentes. Também não é exacto que a recorrida seja herdeira deste, como os recorrentes afirmam no artigo 19.º da sua resposta. A recorrida é legatária, como também vimos anteriormente.

Os factos invocados pela recorrida como fundamento da excepção de caducidade não foram impugnados pelos recorrentes. Em momento algum estes puseram em causa que tivessem aceite imediatamente a herança de seu pai, antes tendo toda a alegação factual constante do requerimento inicial essa aceitação como pressuposto. Ora, daqueles factos resulta que, tal como a recorrida sustenta, o procedimento cautelar foi instaurado mais de 2 anos depois daquela aceitação, pelo que o prazo estabelecido no artigo 2178.º do CC se esgotou, tendo caducado um eventual direito dos recorrentes a obterem a redução do legado com fundamento em inoficiosidade.

O direito de propriedade sobre o prédio encontra-se, assim, definitivamente consolidado no património da recorrida, não tendo os recorrentes qualquer direito sobre o mesmo prédio ou qualquer expectativa de virem a adquirir tal direito.

Consequentemente, falta, desde logo, o primeiro pressuposto exigido pelo n.º 1 do artigo 368.º do CPC, ou seja, a probabilidade séria da existência de um direito dos recorrentes que possa ser prejudicado pela eventual venda do prédio por parte da recorrida. Mais, é, desde já, evidente que tal direito não existe. Sendo assim, não há fundamento para decretar a providência cautelar solicitada pelos recorrentes, improcedendo o recurso.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.

*

Évora, 11.04.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.ª adjunta)



[1] INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Sucessões – Noções Fundamentais, 4.ª edição, páginas 163 a 165, 172 e 197.

[2] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Sucessões, Coimbra Editora, Lda., página 251.

[3] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, obra citada, página 447.

[4] INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, obra citada, página 163; JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, obra citada, páginas 386 e 387.

Acórdão da Relação de Évora de 23.05.2024

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