Processo n.º 2392/23.4T8STR.E1 – Procedimento cautelar comum.
*
Sumário:
1 – Até à partilha, os
herdeiros não são comproprietários de cada um dos bens que integram a herança.
Em vez disso, cada herdeiro é titular de uma quota hereditária e apenas por
efeito da partilha poderá passar a ser proprietário (ou, eventualmente, comproprietário)
de bens concretos da herança.
2 – Não entra na partilha um
bem que tenha sido legado.
3 – O legatário adquire a
posse da coisa legada através dos herdeiros, mas recebe o direito de
propriedade sobre essa coisa directamente do autor da sucessão.
4 – Em princípio, os
herdeiros não recebem bens que tenham saído da herança por efeito de um legado.
Apenas deixará de ser assim em algumas hipóteses de inoficiosidade do legado.
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Requerentes/recorrentes:
- Beatriz;
- Carlos.
Requerida/recorrida:
- Maria João.
Pedidos:
- Reconhecimento judicial do direito de
propriedade dos requerentes (em quota a determinar no âmbito de processo de
inventário que estes irão instaurar a brevíssimo trecho) sobre o prédio urbano,
situado em (…), Rua (…), s/ número, com a área total de 440 m2 composto de
edifício de r/ch para habitação e logradouro inscrito na matriz cadastral
urbana da freguesia de (…) sob o artigo (…), o qual se encontra descrito na
Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da freguesia de (…);
- Condenação da requerida a, por si ou
por terceiro, abster-se de praticar quaisquer actos que perturbem a posse e/ou propriedade
dos requerentes;
- Condenação da requerida no pagamento
da quantia de € 500 por cada dia de atraso no cumprimento ou de violação da
providência cautelar ordenada, a título de sanção pecuniária compulsória.
Sentença recorrida:
- Recusou o decretamento da providência.
Conclusões do recurso:
A) A providência cautelar a que se
reportam os presentes autos foi instaurada pelos requerentes com vista a
impedir que a requerida procedesse à venda do imóvel a que se reportam os
mesmos autos e se apoderasse e dissipasse o dinheiro resultante da venda do
dito imóvel (lesando, deste modo, os seus direitos).
Com o intuito de obterem a tutela
jurídica e deste modo salvaguardarem os seus direitos, expuseram os requerentes
um conjunto de factos dos quais deriva, por um lado, a existência do seu
direito e, por outro, o perigo de a requerida lesar os mesmos direitos.
Mais especificamente relataram – e
comprovaram – os requerentes que são filhos e herdeiros legitimários de José
António (falecido) e que a requerida é neta deste e que o mesmo outorgou testamento
a seu favor, o qual juntaram aos autos.
Mais alegaram - e comprovaram - os
mesmos que a requerida, antes que tivessem sido partilhados os bens que
integram a herança de José António, registou o prédio em seu único e exclusivo
nome e que encetou já diligências no sentido de proceder à venda do mesmo
imóvel.
No âmbito da sua oposição veio a requerida
a afirmar que efectivamente é proprietária exclusiva do prédio.
A verdade, porém, é que tal afirmação
não tem rigor jurídico, sendo antes uma realidade controvertida a ser dirimida
no processo judicial próprio que os requerentes logo em sede de requerimento inicial
manifestaram que iriam intentar.
B) Violação do artigo 5.º, n.º 3, do C.
Processo Civil:
Dado que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à
indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” deveria o tribunal
a quo ter aplicado corretamente os
factos ao direito e nessa medida extrair dos mesmos factos a conclusão de que
os requerentes não têm direito de propriedade sobre o imóvel em enfoque mas que
têm direito a uma quota parte do património hereditário do qual faz parte o
dito prédio.
Dito de outra forma: atento o ditame
legal contido no n.º 3 do art. 5.º do C. Proc. Civil, o tribunal a quo ao constatar que os requerentes fizeram
uma incorrecta qualificação jurídica dos factos que alegaram deveria ter dado
aos mesmos factos a correcta qualificação jurídica.
Do que resulta que ao não dar aos factos
a qualificação jurídica correcta incorreu o tribunal a quo na violação da norma jurídica a que se vem de fazer menção
(art. 5.º, n.º 3 do C. Proc. Civil).
C) Neste sentido e por todos cita-se o
acordão proferido pelo excelso Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do
processo 3063/18.9 T8PTM.E2.S1, disponível em www.dgsi.pt, em cujas sapientes
palavras nos louvamos:
“
I. O artigo 5.º, n.º 3, do CPC dá expressão à ideia ou regra conhecida como
“iura novit curia”, ou seja, de que o juiz conhece (todo) o direito.
II.
Nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, o julgador não está circunscrito à
indagação, à interpretação e à aplicação das regras jurídicas aplicáveis.
III.
Sempre que o enquadramento jurídico realizado pelo tribunal se contenha dentro
dos limites da factualidade essencial alegada e seja adequado ao efeito
prático-jurídico pretendido, pode o tribunal realizá-lo, posto que as partes
tenham tido oportunidade de se pronunciar sobre ele, sendo poder-dever do
julgador proceder à requalificação ou reconfiguração normativo-jurídica do caso
quando cumpridas aquelas condições.”
D) Feita a correcta qualificação
jurídica dos factos alegados pelos requerentes, ora apelantes, forçoso é
concluir que há a probabilidade séria da existência de um direito: não o
direito de propriedade (em quota a determinar em sede processo de inventário)
como foi entendido e expresso pelos requerentes em sede de requerimento inicial
mas sim o direito a uma quota parte do património hereditário do qual faz parte
o dito prédio. Certo sendo que, considerando, por um lado, que os requerentes
representam a totalidade dos herdeiros legitimários, e, por outro, que o acervo
hereditário é de pouca monta - tal como também ficou demonstrado nos autos,
mais concretamente no facto indiciariamente provado sob o número 6 (verba 1 - ½
do prédio urbano com o artigo matricial (…) da freguesia (…); verba 2 – ½ (a
outra metade) do usufruto do mesmo prédio urbano com o artigo matricial (…) da freguesia
de (…); verba 3 – Sepultura perpétua no Cemitério (…) com o n.º (…) do 2.º
Plano; verba 4 – Veículo ligeiro de passageiros marca (…), modelo (…) matrícula
(…) do ano de 1998, no valor de 150,00€; verba 5 – valores monetários
depositados em conta bancária à ordem no valor de 1.305,24€; verba 6 - valores
monetários depositados em conta bancária a prazo no valor de 100,45€) e, por
outro ainda, que o valor do imóvel em causa é na ordem dos 60.000,00 €, forçoso
é concluir que após a partilha os requerentes terão direito de propriedade
sobre o mesmo prédio).
E) Incorrecta interpretação do artigo
362.º, n.º 1, do C. Proc. Civil:
O tribunal a quo fez uma interpretação errada da norma constante do art. 362.º,
n.º 2, do CPC.
Com efeito, tendo em conta, por um lado,
que o tribunal a quo reconhece que os
requerentes sendo herdeiros de José António (artigo 2157º do CC) têm direito a
2/3 dos bens que compõem aquela herança (artigo 2159º nº2 do CC) sendo,
portanto, quota disponível do de cujus 1/3 dos bens dessa mesma herança, na
qual se integra o prédio em enfoque nos presentes autos e, por outro, que deu
como indiciariamente provado que a requerida registou o prédio em seu (único e
exclusivo nome) e que colocou o mesmo prédio à venda (factos indiciariamente
dados como provados sob os números 9 e 10), forçoso é concluir que fez uma
interpretação errada da segunda parte do n.º 2 do artigo 362.º do C.P.C..
Efectivamente, tal como dilucida o acordão
proferido pelo venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo
989/21.6 T8CSC- A.L1-2 “ (…) “II – Para a
valoração do dano grave e irreparável não é necessário que se trate de um dano
irreparável em termos absolutos, bastando que implique uma reconstituição
difícil do status quo ante.”
Acresce referir que não tem
correspondência com a realidade a asserção do douto tribunal a quo segundo a qual “nenhum facto resulta alegado de onde
advenha qualquer perigo concreto que se pretenda acautelar com esta demanda”.
Com efeito, no artigo 30.º do requerimento inicial verteram os requerentes o
seguinte. Considerando que a requerida “não
se coibiu de registar o prédio em seu nome como se fosse a sua única
proprietária não se coibirá de o vender e de se apropriar da totalidade do
preço da venda.”
Efectivamente, quando os requerentes
aludiram à pretensão da requerida em vender o imóvel estavam a alegar um perigo
concreto susceptível de lesar o seu direito.
Efectivamente a circunstância de a requerida
ter registado o prédio em seu único e exclusivo nome e de se colocado o mesmo
prédio à venda permite inferir que pretende apoderar-se da totalidade do valor
resultante da venda do mesmo prédio, o que, como facilmente se apreende,
configura uma grave lesão dos direitos dos requerentes.
O facto de a requerida atribuir ao
prédio em causa metade do valor correspondente ao valor comercial do prédio
também é preocupante.
De todo resulta que o entendimento
adoptado pelo tribunal a quo de
acordo com o qual a requerida pode vender o prédio e depois pode pagar de outro
modo, esvazia o significado do conceito periculum
in mora.
F) Violação do artigo 368.º n.º 1 do C.
Processo Civil:
Na parte da sentença que se debruça
sobre a apreciação dos requisitos de que depende a decretação da providência
cautelar não especificada consignou o douto tribunal a quo o seguinte:
“
(…)
Mas
não lhes pode ser reconhecido qualquer direito de propriedade neste
procedimento cautelar, sobre um concreto bem, pelo facto de sendo herdeiros,
serem tão só titulares de um direito a uma universalidade de bens que apenas
recairá sobre coisas concretas depois da partilha.
Pelo
que, está votado ao insucesso o presente procedimento, repetindo-se o que acima
se disse, ou seja, os pedidos feitos são pedidos de uma acção comum ou
eventualmente de processo de inventário, mas não podem produzir efeitos em sede
cautelar.
É
que se se decretasse a providência com os pedidos feitos, nada restaria para
uma demanda definitiva e ulterior, sabendo-se que qualquer procedimento
cautelar é dependência de uma acção (artigo 364º do CPC).”
A verdade, porém, é que tal como resulta
dos factos dados como indiciariamente provados e de tudo quanto precede,
verifica-se a probabilidade séria da existência do direito dos requerentes e o
suficientemente fundado risco de lesão dos direitos do mesmos.
Perante o que se vem de asseverar
deveria o tribunal a quo ter
decretado a providência.
Daqui resultando que ao não decretar a
providência o tribunal a quo violou o
artigo 368.º n.º 1 do C. Proc. Civil.
G) Mais: O tribunal a quo, ao decidir como decidiu, desvalorizando a factualidade e
afirmando que o pedido formulado pelos requerentes apenas pode ser decidido
numa acção principal e não numa providência cautelar, negou a tutela jurídica
que determinou os requerentes a lançar mão de uma providência cautelar e
esvaziou de utilidade as providências cautelares.
Termos em que, nos melhores de direito e
com o sempre mui douto suprimento desse venerando tribunal, deveria o tribunal a quo ter decidido que se mostrava
provado, não que os requerentes têm direito de propriedade sobre o prédio em
enfoque, mas sim que têm direito a uma quota parte do património hereditário do
qual faz parte o dito prédio, pelo que, consequentemente, deve a decisão do
tribunal de 1.ª instância ser alterada, conduzido ao decretamento da
providência cautelar.
Questão a decidir:
- Verificação dos pressupostos do
decretamento da providência cautelar solicitada.
Factos julgados indiciariamente
provados pelo tribunal a quo:
1 – Os requerentes encontram-se
registados como filhos de José António e de Rosa Maria.
2 – Rosa Maria faleceu em 06 de Novembro
de 2010 e José António em 24 de Novembro de 2018.
3 – Em 03 de Fevereiro de 2010, Rosa
Maria outorgou testamento no qual legou a quota disponível dos seus bens à requerida,
a saber, a nua propriedade da parte que possuía no prédio urbano inscrito na
matriz sob o artigo 1710, e a José António o usufruto de todos os bens de que
fosse titular na hora do seu falecimento, mais se dizendo nesse instrumento
notarial que caso a testadora viesse a falecer no estado de viúva, legava à requerida
por conta da quota disponível a propriedade plena da parte que possuísse no
referido prédio.
4 – No dia 03 de Fevereiro de 2010, José
António outorgou testamento no qual legou a quota disponível dos seus bens à requerida,
a saber, a nua propriedade da parte que possuía no prédio urbano inscrito na
matriz sob o artigo 1710, e a Rosa Maria o usufruto de todos os bens de que
fosse titular na hora do seu falecimento, mais se dizendo nesse instrumento
notarial que caso a testador viesse a falecer no estado de viúvo, legava à requerida,
por conta da quota disponível, a propriedade plena da parte que possuísse no
referido prédio.
5 – Correu termos inventário por morte
de Rosa Maria, no qual, à requerida, foi adjudicado, em conferência de
interessados datada de 15 de Novembro de 2013, o imóvel referido em 3 na
proporção de ½ pelo valor de € 6.087,78, tendo a mesma direito a receber em
sede de mapa da partilha o valor de € 3.124,14 e pagando tornas de € 2.963,64.
6 – Em 22 de Janeiro de 2019, foi
instaurado o processo de imposto de selo nº 2220623 relativo ao óbito de José
António, sendo indicados como bens que compunham a herança do mesmo:
- Verba 1: ½ do prédio urbano com o
artigo matricial (…) da freguesia de (…);
- Verba 2: ½ do usufruto do mesmo prédio
urbano;
- Verba 3: Sepultura perpétua no
Cemitério de (…) com o n.º (…) do 2.º Plano;
- Verba 4: Veículo ligeiro de
passageiros marca (…), modelo (…), matrícula (…), do ano de 1998, no valor de €
150;
- Verba 5: Valores monetários
depositados em conta bancária à ordem no valor de € 1.305,24;
- Verba 6: Valores monetários
depositados em conta bancária a prazo no valor de 100,45€).
7 – Em 01 de Fevereiro de 2019 foi
elaborada a “habilitação de herdeiros”
por morte de José António, aí se indicando que o mesmo fez testamento público a
favor da requerida e relativo à sua quota disponível, deixando como herdeiros
os requerentes.
8 – O bem indicado em 2 está actualmente
inscrito na matriz sob o artigo 1790, com o valor patrimonial de € 30.074,75.
9 – O bem indicado em 2 está descrito na
CRP de (…) sob o n.º (…), estando registado sob a apresentação n.º (…) de
2021/08/25 tendo por causa a partilha da herança em ½ a favor da requerida e
pela apresentação n.º (…) de 2021/08/25 tendo por causa partilha e legado em ½
a favor da requerida com a menção “1/2
por partilha da herança de Rosa Maria e ½ por legado de José António”.
10 – A requerida tem o imóvel indicado
em 9 à venda.
*
O n.º 1 do artigo 368.º do
CPC estabelece que a providência é decretada desde que haja probabilidade séria
da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua
lesão.
O tribunal a quo concluiu que nenhum destes dois
pressupostos se verifica.
Concentremos a nossa atenção
no primeiro.
No requerimento inicial, os
ora recorrentes configuraram o direito que pretendem acautelar através da
providência solicitada em termos que assim se sintetizam:
- Os recorrentes são filhos de Rosa
Maria e de José António, casados entre si e falecidos, respectivamente, em 06.11.2010
e 24.11.2018;
- Em 03.02.2010, cada um dos
progenitores dos recorrentes outorgou testamento mediante o qual:
- Para a hipótese de não sobreviver ao
seu cônjuge, legou a quota disponível do seu património nos seguintes termos: ao
cônjuge sobrevivo, o usufruto de todos os bens de que fosse titular à data da
sua morte; à recorrida, a nua propriedade da sua quota-parte no prédio dos
autos;
- Para a hipótese de sobreviver ao seu
cônjuge, legou, por conta da sua quota disponível, à recorrida, a propriedade
plena da sua quota-parte no mesmo prédio;
- Através de acordo de partilha da
herança aberta por óbito de Rosa Maria, foi adjudicada, à recorrida, a nua
propriedade de ½ do prédio dos autos;
- Na sequência do óbito de José António,
foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros, da qual consta,
nomeadamente, que os recorrentes são os seus únicos herdeiros legitimários;
- A herança de José António ainda não
foi partilhada;
- A recorrida comporta-se como se fosse
a única e exclusiva proprietária do prédio, tendo conseguido registar, a seu
favor, a aquisição da totalidade do direito de propriedade sobre o mesmo;
- O que José António consignou no seu
testamento foi que legava a quota disponível dos seus bens;
- O valor do prédio excede a quota
disponível de José António, pelo que esse bem é necessário para o preenchimento
da legítima dos requerentes;
- Ou seja, a quota hereditária de cada
um dos recorrentes terá de ser preenchida com a adjudicação de parte do prédio,
a determinar em processo de inventário, a intentar a brevíssimo trecho;
- Pelo que a recorrida não é a única e
exclusiva proprietária do prédio.
Sobre o direito invocado
pelos recorrentes, o tribunal a quo afirmou,
em síntese, o seguinte:
- Sendo herdeiros de José António, os
recorrentes não são titulares de qualquer direito de propriedade sobre cada um
dos bens que integram a herança daquele;
- Cada recorrente é, sim, titular de uma
quota hereditária;
- Apenas por efeito da partilha, os
recorrentes poderão passar a ser proprietários de bens concretos da herança.
Nas suas alegações, os
recorridos aceitam esta qualificação jurídica do direito que cada um deles
adquiriu por efeito da aceitação da herança, argumentando, porém, que, atento o
disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, o tribunal a quo devia «ter aplicado
correctamente os factos ao direito e nessa medida extrair dos mesmos factos a
conclusão de que os requerentes não têm direito de propriedade sobre o imóvel
em enfoque mas que têm direito a uma quota parte do património hereditário do
qual faz parte o dito prédio». Não o tendo feito, o tribunal a quo violou aquela norma processual.
Concluem os recorrentes que, «Feita a
correcta qualificação jurídica dos factos alegados pelos requerentes, ora
apelantes, forçoso é concluir que há a probabilidade séria da existência de um
direito: não o direito de propriedade (em quota a determinar em sede processo
de inventário) como foi entendido e expresso pelos requerentes em sede de
requerimento inicial mas sim o direito a uma quota parte do património
hereditário do qual faz parte o dito prédio. Certo sendo que, considerando, por um lado, que os requerentes
representam a totalidade dos herdeiros legitimários, e, por outro, que o acervo
hereditário é de pouca monta (…), forçoso é concluir que após a partilha os
requerentes terão direito de propriedade sobre o mesmo prédio).»
Ao argumentarem nos termos
que sintetizámos, os recorrentes suscitam uma questão de natureza processual: a
de saber se, ao considerar que cada um deles é titular, não de uma quota do
direito de propriedade sobre o prédio, mas de uma quota hereditária, o tribunal
a quo devia ter reconhecido este
direito e, com esse fundamento, decretado a providência solicitada, mormente
condenando a recorrida a abster-se de praticar, em relação ao prédio, quaisquer
actos que perturbem o mesmo direito.
Ou seja, os recorrentes
sustentam que ficou demonstrada uma forte probabilidade de eles serem titulares
de um direito que constitui fundamento para o decretamento da providência
solicitada. Concedem que esse direito não seja a compropriedade do prédio, como
sustentaram no requerimento inicial, mas consideram que a demonstração, que
fizeram, de que cada um deles é titular de uma quota hereditária, preenche o
pressuposto do decretamento da providência cautelar que vimos analisando.
Porém, o problema que se
suscita acerca deste pressuposto é mais profundo e tem natureza substantiva.
Tal como se considerou na
sentença recorrida e os recorrentes aceitam, estes, por serem herdeiros, não são
titulares de um direito de compropriedade sobre cada um dos bens que integram a
herança. Em vez disso, cada um dos recorrentes é titular de uma quota hereditária
e apenas por efeito da partilha poderá passar a ser proprietário (ou,
eventualmente, comproprietário) de bens concretos da mesma herança – artigos
2030.º, n.º 2, e 2119.º do CC.
Por si só, esta asserção não
invalida uma parte da argumentação que os recorrentes expenderam no
requerimento inicial.
Vejamos.
No requerimento inicial, os
recorrentes sustentaram serem comproprietários, em conjunto com a recorrida, do
prédio. Daí terem pedido o reconhecimento desse suposto direito. É apenas desta
pretensão que os recorrentes agora abdicam, considerando, contudo, que inexiste
obstáculo processual a que o efeito prático-jurídico da providência cautelar
que solicitaram seja decretado com fundamento na qualificação do direito de que
cada um deles é titular como quota hereditária. Em nada mais os recorrentes
concederam. Daí que a restante argumentação destes tenha de ser analisada.
Os recorrentes não detalham
devidamente a fundamentação jurídica da solução que propõem. Abdicando da
qualificação do direito de cada um deles como sendo de compropriedade sobre o
prédio, persistem na conclusão de que, mesmo antes da partilha, a recorrida não
é a única e exclusiva proprietária do prédio? Ou também concedem que a
recorrida, afinal, o seja, embora podendo deixar de o ser em consequência da
partilha? Ou, ao invés, assumem a posição, mais radical que aquela que
exprimiram no requerimento inicial, de que a recorrida não é, de todo,
proprietária do prédio? Não encontramos, nas alegações de recurso, resposta
para estas questões.
Já é seguro que os
recorrentes entendem que, sendo o seu valor superior ao da quota disponível, o
prédio é necessário para o preenchimento da legítima de cada um deles. Através
de que mecanismo técnico-jurídico isso aconteceria, os recorrentes não
explicam. Limitam-se a afirmar que «têm
direito a uma quota parte do património hereditário do qual faz parte o dito prédio»
e que «após a partilha os requerentes
terão direito de propriedade sobre o mesmo prédio».
Além de apresentar as
lacunas que acabámos de referir, a argumentação dos recorrentes assenta num
equívoco: o de que, até à partilha, o prédio faz parte do património
hereditário. Não é assim.
A recorrida recebeu, da mãe
dos recorrentes, a título de legado, metade da nua propriedade do prédio, tendo
o cônjuge da falecida ficado com o correspondente usufruto.
Com a morte do pai dos
recorrentes, extinguiu-se o direito de usufruto, de que ele era titular, que
onerava a metade que a recorrida recebera por morte do cônjuge daquele. Por via
sucessória, a recorrida recebeu, do pai dos recorrentes, a título de legado, a
restante metade do direito de propriedade sobre o prédio, ficando, assim,
proprietária da totalidade.
Os recorrentes ignoram, pura
e simplesmente, o regime dos legados, parecendo considerar a recorrida como uma
co-herdeira (assim a qualificam no artigo 19.º da sua resposta à excepção de
caducidade, como adiante veremos com detalhe), que tivesse de entrar na
partilha dos bens da herança, entre os quais se contaria o prédio.
A recorrida adquiriu o
direito de propriedade sobre o prédio a título de legatária, primeiro da mãe e,
depois, do pai dos recorrentes. Significa isto que, ao contrário dos
recorrentes, que são herdeiros, a recorrida sucedeu, em ambas as heranças, num
bem determinado e não numa quota hereditária (artigo 2030.º, n.º 2, do CC).
Os recorrentes argumentam
que aquilo que seu pai «consignou no seu
testamento foi que legava a quota disponível dos seus bens». Isto não é
verdade. De acordo com o n.º 4 do enunciado dos factos indiciariamente provados,
consta daquele testamento que, «caso a
testador viesse a falecer no estado de viúvo, legava à requerida, por conta da
quota disponível, a propriedade plena da parte que possuísse no referido
prédio». É evidente que o pai dos recorrentes legou, à recorrida, a parte
do direito de propriedade sobre o prédio de que fosse titular à data da sua
morte. Fê-lo por conta da quota disponível, como não podia deixar de ser,
atendendo a que havia herdeiros legitimários e a recorrida não era um deles.
Tendo a recorrida sucedido,
a título de legatária nas heranças dos pais dos recorrentes, no direito de
propriedade sobre o prédio, este deixou de fazer parte de ambos os patrimónios
hereditários e, consequentemente, de estar sujeito a partilha[1]. Daí que esta seja feita
entre os herdeiros, nela não tendo lugar os legatários [artigos 2101.º, n.º 1, 2102.º,
n.º 2, al. c), 2119.º, 2120.º e 2123.º, n.º 2, do CC].[2]
O legatário recebe os
concretos bens que o autor da sucessão lhe deixa, tendo os herdeiros o dever de
lhos entregar (artigos 2068.º, 2071.º e 2270.º do CC)[3]. Note-se, a este
propósito, que o legatário adquire a posse da coisa legada através dos herdeiros,
mas recebe o direito de propriedade sobre essa coisa directamente do autor da
sucessão[4].
Os herdeiros não recebem, pois,
em princípio, bens da herança que desta tenham saído em cumprimento de um legado.
Apenas deixará de ser assim em algumas hipóteses de inoficiosidade do legado, como
decorre dos artigos 2168.º, n.º 1, 2169.º e 2174.º, n.ºs 1 e 2, do CC. Mais
precisamente, quando:
- O bem objecto do legado inoficioso for
divisível, hipótese em que a redução do legado será feita separando-se dele a
parte necessária para preencher a legítima (artigo 2174.º, n.º 1, do CC);
- O bem objecto do legado inoficioso for
indivisível e a importância da redução exceda metade do valor daquele; nesta
hipótese, o bem pertencerá integralmente ao herdeiro legitimário, havendo o
legatário o resto em dinheiro (artigo 2174.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC).
Concluímos, assim, que,
neste momento, o prédio não integra o património hereditário, antes sendo
propriedade exclusiva da recorrida. Consequentemente, esta podia registar a sua
aquisição nos termos em que o fez e tem legitimidade substantiva para o vender.
Esta conclusão não é abalada
pela eventualidade de o valor da metade do direito de propriedade sobre o
prédio exceder o da quota disponível e, em consequência disso, o legado
efectuado pelo pai dos recorrentes ser inoficioso.
Na oposição que deduziu, a
recorrida invocou a caducidade de um eventual direito à redução do legado
efectuado pelo pai dos recorrentes, alegando factos dos quais resulta que estes
últimos aceitaram a herança, o mais tardar, em Fevereiro de 2021. Contando-se o
prazo para a propositura da acção de redução de legado inoficioso a partir da
aceitação da herança pelo herdeiro legitimário, sendo esse prazo de 2 anos
(artigo 2178.º do CC) e tendo o presente procedimento cautelar sido deduzido em
10.08.2023, a caducidade teria ocorrido.
Os recorrentes responderam à
excepção de caducidade. Não contestaram a alegação de que aceitaram a herança,
o mais tardar, em Fevereiro de 2021. Em vez disso, sustentaram que seu pai
beneficiou a recorrida, não com um legado por conta da quota disponível, mas
através da atribuição da própria quota disponível. Teria sido por considerarem
a recorrida «apenas herdeira da quota
disponível (e não por conta da quota disponível)» (artigo 19.º da resposta)
que os recorrentes não propuseram uma acção de arguição de inoficiosidade.
Vimos anteriormente não ser
exacto que a recorrida tenha recebido a quota disponível do pai dos
recorrentes. Também não é exacto que a recorrida seja herdeira deste, como os
recorrentes afirmam no artigo 19.º da sua resposta. A recorrida é legatária,
como também vimos anteriormente.
Os factos invocados pela
recorrida como fundamento da excepção de caducidade não foram impugnados pelos
recorrentes. Em momento algum estes puseram em causa que tivessem aceite
imediatamente a herança de seu pai, antes tendo toda a alegação factual
constante do requerimento inicial essa aceitação como pressuposto. Ora,
daqueles factos resulta que, tal como a recorrida sustenta, o procedimento
cautelar foi instaurado mais de 2 anos depois daquela aceitação, pelo que o
prazo estabelecido no artigo 2178.º do CC se esgotou, tendo caducado um
eventual direito dos recorrentes a obterem a redução do legado com fundamento
em inoficiosidade.
O direito de propriedade
sobre o prédio encontra-se, assim, definitivamente consolidado no património da
recorrida, não tendo os recorrentes qualquer direito sobre o mesmo prédio ou
qualquer expectativa de virem a adquirir tal direito.
Consequentemente, falta,
desde logo, o primeiro pressuposto exigido pelo n.º 1 do artigo 368.º do CPC,
ou seja, a probabilidade séria da existência de um direito dos recorrentes que
possa ser prejudicado pela eventual venda do prédio por parte da recorrida.
Mais, é, desde já, evidente que tal direito não existe. Sendo assim, não há
fundamento para decretar a providência cautelar solicitada pelos recorrentes,
improcedendo o recurso.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos
recorrentes.
Notifique.
*
Évora, 11.04.2024
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.ª adjunta)
[1] INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Sucessões – Noções Fundamentais,
4.ª edição, páginas 163 a 165, 172 e 197.
[2]
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil
– Sucessões, Coimbra Editora, Lda., página 251.
[3] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, obra citada, página 447.
[4] INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, obra citada, página 163; JOSÉ DE
OLIVEIRA ASCENSÃO, obra citada,
páginas 386 e 387.