Processo n.º 749/12.5TMSTB-B.E1
Incidente de incumprimento
do regime de exercício das responsabilidades parentais.
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Sumário:
1 – Compete aos progenitores
prover ao sustento dos filhos.
2 – Ainda que um dos
progenitores tenha rendimentos suficientes para assegurar, por inteiro, o
sustento dos filhos, o outro não fica isento de contribuir para esse sustento.
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Requerente/recorrida:
- AAA.
Requerido/recorrente:
- BBB.
Despacho recorrido:
- Determinou a cessação dos pagamentos a
cargo do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM);
- Ordenou que a quantia correspondente
às mensalidades da pensão de alimentos vencidas seja directamente deduzida da
prestação social que o requerido recebe, em fracções mensais de € 70, até
perfazer o valor global de € 2.392,49, e que, a este valor, acresça o de € 101,10
mensais, relativo às prestações alimentícias devidas pelo requerido às filhas,
no valor de € 50,55 cada, que igualmente deverá ser deduzida daquela prestação
social;
- Determinou que a Segurança Social
proceda à transferência bancária das referidas quantias para a conta que a requerente
indicar.
Conclusões do recurso:
1 – A decisão constante do despacho
recorrido em determinar, sem mais, a cessação dos pagamentos a cargo do FGADM é
legalmente inadmissível (art.º 1.º, n.ºs 1 e 3.º, do Decreto-Lei 164/99, de 13
de maio, normas que se invocam como violadas para os devidos e legais efeitos).
2 – O Tribunal de Setúbal ao determinar
(in limine) a cessação dos pagamentos
a cargo do FGADM, violou as normas constitucionais dos artigos 2.º (dignidade
de pessoa humana) e 18.º, n.º 2 (princípio da proibição do excesso), normas que
se invocam para os devidos e legais efeitos.
Efetivamente,
3 – A obrigação do Fundo de Garantia de
Alimento Devidos a Menores não cessa logo que sejam conhecidos rendimentos ao
progenitor não guardião (obrigado a alimentos) que permitam a cobrança coerciva
dos mesmos.
4 – Ao invés, tal obrigação só cessa com
o início do efetivo cumprimento da obrigação de alimentos que impende sobre o
pai das menores e não com a verificação de que é possível, atendendo à
modificação da sua situação económica, cobrar coercivamente os alimentos
devidos.
5 – Nos termos e para os efeitos do art.º
639.º, n.º 2, alínea b), do CPC, o tribunal a
quo fez uma errada interpretação dos artigos 48.º, ex vi, do art.º 3.º, alínea d), do RGPTC; art.º 1.º, n.º 1, da Lei
75/98, de 19 de novembro; e ainda do art.º 3.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei
n.º 164/99, de 13 de maio.
6 – Ao desatender às condições sócio-económicas
do progenitor não guardião, bem assim, desconhecendo as (atuais) condições de
vida do agregado familiar da progenitora guardiã (Art.º 2004.º, n.º 1, do
Código Civil), o Tribunal de Setúbal violou o art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do
CPC e com ele, o superior interesse das menores.
7 – Ademais, ao acolher (in integrum, sem mais diligências
instrutórias) a promoção do MP, troca o certo pelo incerto e viola os
princípios de intervenção mínima, proporcionalidade e atualidade.
8 – A referência no despacho recorrido a
que o progenitor não guardião “exerce atividade
laboral remunerada na qual aufere retribuição”, só pode ter por base um
erro, visto que o recorrente apresenta uma incapacidade de 60% e não pode
trabalhar.
9 – Ademais, quando é o próprio tribunal
a quo a apreciar/valorar, as
informações da Segurança Social, demonstrativas de que os rendimentos auferidos
não são resultantes do trabalho, mas tão somente das prestações sociais a que o
mesmo tem direito.
10 – Nos termos e para os efeitos do art.º
615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, dizemos que só por lapso se entende a frase de
que “deve a quantia em dívida ser deduzida
do rendimento do requerido, ainda que de modo fracionado e diretamente entregue
pela sua entidade patronal à requerente”, pois a mesma se apresenta em
oposição à restante fundamentação.
Aqui chegados,
11 – Considerando a natureza da
prestação em causa acima explanada e a proteção dos menores que o Estado visou
com a criação do FGADM, não faria qualquer sentido que a simples verificação da
possibilidade (teórica e temporária) de o obrigado cumprir, sem se certificar o
cumprimento efetivo, pudesse colocar em perigo a efetividade do direito a alimentos,
nos termos e para os efeitos do art.º 18.º, n.º 2, da CRP (princípio da
proibição do excesso).
Questão a decidir:
- Admissibilidade legal dos descontos
ordenados pelo tribunal a quo.
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Os argumentos invocados pelo
recorrente para sustentar a sua pretensão de revogação do despacho que
determinou a realização dos descontos acima descritos na prestação social que
recebe do ISS são, esquematicamente, os seguintes:
1 – Não é verdade que, como se afirma no
despacho recorrido, o recorrente exerça uma actividade laboral remunerada;
2 – A cessação dos pagamentos a cargo do
FGADM apenas pode ser decretada quando os descontos começarem a ser
efectivamente realizados;
3 – O tribunal a quo não considerou as condições sócio-económicas do recorrente e
da recorrida.
Analisemos cada um deles.
1.º argumento:
A referência, feita no
despacho recorrido, ao exercício de uma actividade laboral remunerada por parte
do recorrente, deve-se a um óbvio lapso do tribunal a quo na sua elaboração, certamente cometido ao aproveitar, para
esse efeito, o suporte informático de um outro despacho.
A comprová-lo, está o facto
de constar, do mesmo despacho, que o recorrente «se encontra a receber a título de prestação social para a inclusão –
componente base (desde 2023/01) no valor de 298,42 € e respectivo complemento
(desde 2023/01) no valor de 488,22 €, com o montante total de 786,64 euros».
E, ainda, o facto de o tribunal ter dirigido ao ISS a ordem de dedução das
quantias devidas pelo recorrente e de transferência das mesmas para a conta
bancária da recorrida.
É, pois, fora de dúvida que
o tribunal a quo não considerou que o
recorrente exerça uma actividade laboral remunerada. Em vez disso, considerou,
acertadamente, que o recorrente recebe a prestação social acima referida, e
ordenou que os descontos sejam nela efectuados.
O despacho recorrido não
padece, pois, da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC,
arguida pelo recorrente, nem de um erro de julgamento, mas apenas de um lapso
de escrita que em nada afecta a sua validade, eficácia e inteligibilidade.
2.º argumento:
A questão de saber se a
cessação dos pagamentos a cargo do FGADM apenas pode ser decretada quando os
descontos começarem a ser efectivamente realizados é absolutamente irrelevante
para a apreciação da pretensão do recorrente, que consiste na não realização
daqueles descontos. Se aquela cessação ocorrer prematuramente, será a recorrida
a única prejudicada, pois nada receberá, nem do FGADM, nem do recorrente. Este,
em nada será afectado.
Para a apreciação da
pretensão do recorrente interessa, sim, verificar se existe algum obstáculo
legal à realização dos descontos ordenados pelo tribunal a quo.
3.º argumento:
O recorrente critica o
tribunal a quo por não ter
considerado, nem as suas condições sócio-económicas, nem as da recorrida.
Relativamente a estas
últimas, o recorrente afirma, nomeadamente, que a recorrida vende em feiras e
festas e que o seu companheiro trabalha na empresa Etermar, muitas vezes no
estrangeiro. E interroga-se: «Quanto aufere
este agregado? Pode o Tribunal asseverar que os rendimentos são insuficientes
para prover o sustento das menores? Que diligências fez nesse sentido?»
O recorrente labora num
equívoco: o de que, se a recorrida e o companheiro desta tivessem capacidade económica
para assegurarem, por inteiro, o sustento das menores, deveriam fazê-lo,
ficando ele, recorrente, desonerado desse dever.
A obrigação de assegurar,
conjuntamente com a recorrida, o sustento das menores, é do recorrente, pai
destas. Não é do companheiro da recorrida, que não é pai das menores. É o que
decorre do artigo 1878.º, n.º 1, do CC, nos termos do qual compete aos pais, no
interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu
sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e
administrar os seus bens. Prover ao seu sustento, sublinhamos. Este dever é do
pai e não do companheiro da mãe ou, sequer, do FGADM, que apenas deverá ser
chamado a pagar se aquele se encontrar efectivamente impossibilitado de prestar
alimentos. A pretensão do recorrente de que o companheiro da recorrida o
substitua no sustento das menores carece, em absoluto, de fundamento.
Por outro lado, ainda que a
recorrida tivesse, sem o auxílio do seu companheiro, rendimentos suficientes
para assegurar, por inteiro, o sustento das menores, o recorrente não ficaria
isento de contribuir para esse sustento. O citado artigo 1878.º, n.º 1, do CC,
impõe esse dever a ambos os progenitores, ainda que qualquer deles tenha
capacidade económica para, sozinho, o cumprir.
Sendo assim, concluímos que
o tribunal a quo não tinha de
praticar as diligências instrutórias reclamadas pelo recorrente antes de
proferir o despacho recorrido.
No que concerne às condições
sócio-económicas do recorrente, a única diligência instrutória relevante era o
apuramento do seu rendimento, com vista a ajuizar se é legalmente admissível o
desconto de parte dele para prestar alimentos às menores, atento o disposto no
artigo 738.º, n.º 4, do CPC, conjugado com a Portaria n.º 424/2023, de 11.12.
Ora, essa diligência foi feita e, em resultado dela, o tribunal a quo ordenou que o ISS procedesse ao
referido desconto. O mesmo é dizer que o tribunal a quo não omitiu qualquer diligência instrutória útil.
O recorrente afirma que, ao
não atender às suas condições sócio-económicas e não averiguar as actuais
condições de vida do agregado familiar da recorrida, o tribunal a quo violou o superior interesse das
menores. É evidente a sua falta de razão, pelas razões que acabámos de expor.
Ao pretender que não sejam feitos os descontos ordenados pelo tribunal a quo, é óbvio que o recorrente não está
preocupado com o superior interesse das filhas, para cujo sustento não
contribui, com um cêntimo que seja, há anos, mas sim com o seu próprio
interesse, que pretende que prevaleça sobre aquele.
O recorrente invoca ainda,
neste contexto, os princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e actualidade,
mas sem a menor fundamentação. Não divisamos em que medida a decisão de fazer
com que o recorrente contribua para o sustento das suas filhas possa pôr em
causa qualquer destes princípios.
Note-se, finalmente, que o
recorrente não põe em causa a conformidade dos montantes dos descontos
ordenados pelo tribunal a quo com o
disposto no artigo 738.º, n.º 4, do CPC, conjugado com a Portaria n.º 424/2023,
de 11.12.
Concluindo:
Nenhum dos argumentos
apresentados pelo recorrente procede.
Consequentemente, deverá o
recurso ser julgado improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo do recorrente,
sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.
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Évora, 23.04.2024
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.º
adjunto)
(2.º adjunto)